71

O FOSSO

Quando Karou chegou ao fosso, já era tarde demais.

Amzallag, Tangris, Bashees. Todos mortos sob as estrelas, e Thiago de pé ao lado dos corpos, tranquilo e resplandecente em todo o seu brancor, esperando. Esperando por ela. Havia outros ali por perto em um semicírculo; Karou devia ter dado uma olhada na cena, dado meia-volta ali mesmo no ar e voado de volta para a questionável segurança de seu quarto. Mas não podia, não com aqueles corpos estendidos ali, Amzallag e as esfinges, o sangue ainda pulsando de suas gargantas cortadas e escorrendo para o rochedo, suas almas fragilmente presas aos corpos. Por terem ficado do lado dela.

Seria esse o preço? Ela nunca mais teria outro aliado. Recuar naquele momento seria o mesmo que abandonar a causa quimera ali mesmo, naquele exato momento.

Karou estava entorpecida pela repulsa e a fúria quando desceu, aterrissando com força diante do Lobo. A mancha de sangue no peito e na manga da túnica dele parecia preta na escuridão da noite. Atrás dele havia montes de terra que sobraram da escavação do fosso; uma fileira de pás erguidas como estacas de uma cerca; Karou ouvia um zumbido baixo, como o de um motor distante, mas percebeu que eram moscas. Ao longe, no escuro. Examinou a terrível cena por um instante até finalmente encontrar a voz. Engasgada, disse:

— Eis aqui o grande herói dos quimeras, assassino de seus próprios soldados.

— Não creio que fossem soldados meus — replicou Thiago. — Azar o deles.

Então ele se virou de frente para o corpo de Amzallag, que estava bem na beirada do fosso. Preparou-se e, com o pé, as garras de lobo ajudando a conseguir um apoio, chutou com força o corpo, que saiu rolando. Devia pesar uns duzentos e cinquenta quilos, mas, quando os ombros passaram da beirada, seu peso arrastou sozinho o resto. Foi uma queda lenta, bem lenta no começo... e então repentina. O corpo de Amzallag caiu no fosso e desapareceu naquela escuridão fétida.

Lisseth fez o mesmo com os corpos das esfinges, que, bem mais leves, quase não fizeram barulho, como se a queda tivesse sido suave — Karou sabia, mas não queria imaginar o que as amortecera —, mas o mau cheiro subiu até eles, assim como moscas, centenas de moscas, uma nuvem escura a zunir, e era como se carregassem consigo a putrescência. Karou se afastou, lutando contra a ânsia de vômito. Quase podia sentir o ar dentro da boca, denso e sufocante, vapor e líquido. Cambaleou para trás, olhando horrorizada para Thiago.

— Eles não são todos monstros como você — disse ela. — Como alguns de vocês.

E olhou para os capitães ali reunidos em torno dos dois: Nisk, Lisseth, Virko, Rark, Sarsagon. Eles sustentaram seu olhar, indiferentes e sem o menor pudor — com exceção de Virko, que baixou o rosto.

— Monstros, sim, somos monstros — disse Thiago. — Vou dar aos anjos suas “feras”. Vou dar a eles pesadelos que irão assombrar seus sonhos até bem depois da minha morte.

— Então é isso? É esse o seu objetivo, deixar um legado de pesadelos para quando morrer? E por que não? Por que não resumir tudo a você? O grande Lobo Branco, assassino de anjos, redentor de ninguém.

— Redentor. — Ele riu. — É isso que você quer ser? Que meta ambiciosa para uma traidora.

— Nunca fui uma traidora. Se alguém é traidor aqui, é você. E toda aquela história hoje sobre a escavação da catedral? Foi tudo mentira?

— Karou, o que você acha? O que faríamos com aqueles milhares de almas? Nossa ressurreicionista mal consegue criar um exército.

Quanto desprezo na voz dele. Karou respondeu na mesma moeda:

— Bem, eu não vou mais criar seu exército, então vou precisar de algo para me manter ocupada.

Estava praticamente cuspindo agora; sua mente zunia de raiva. Ela ia colher a alma de Amzallag, e das esfinges também. Amzallag não tinha sentido a esperança de reencontrar sua família para morrer logo depois.

— Ah, não vai mais? — Thiago sorriu. Assassino, torturador, selvagem. Ele estava à vontade com aquela situação. — Acha mesmo que pode vencer este jogo? — Ele balançou a cabeça. — Karou, Karou. Ah, seu nome me diverte. Aquele idiota do Brimstone. Ele lhe deu o nome de esperança por você ter se deitado com um anjo? Devia tê-la chamado de luxúria. Ou vagabunda.

A palavra não doeu. Nada que Thiago dissesse poderia feri-la. Ao olhar para ele agora, Karou mal entendia como havia se deixado levar por tanto tempo, cumprindo suas ordens, criando monstros para seu legado de pesadelos. Ela pensou em Akiva, na noite em que ele fora ao encontro dela no rio, na dor e vergonha esmagadoras que vira no rosto dele, e amor, ainda amor — tristeza e amor e esperança —, e lembrou-se da noite do baile do Comandante, e em como Akiva sempre fora sua certeza enquanto Thiago era tudo de errado, o calor em oposição à frieza gélida do Lobo, a segurança protegendo-a da ameaça do monstro.

Ela olhou bem fundo nos olhos de Thiago e disse em voz baixa, friamente:

— Isso ainda acaba com você, não é? Eu ter escolhido Akiva em vez de você? Quer saber de uma coisa? — O amor é um elemento. — Você nunca foi uma opção.

Ela viu um espasmo de fúria desfazer na mesma hora a expressão fria e contida de Thiago. Aquele lindo receptáculo que Brimstone criara escondia algo sombrio e mortal por dentro.

— Deixem-nos a sós — ordenou ele por entre os dentes trincados.

Os outros já estavam batendo as asas em obediência antes mesmo que Karou tivesse a chance de se arrepender de suas palavras. Com o barulho das asas e o movimento intenso a levantar poeira, o bafo de podridão que se agitou no ar e a areia batendo em seus braços descobertos e seu rosto, ela teve a breve impressão de sentir as asas que tivera um dia, tão forte era seu impulso de fugir. Como na noite do baile do Comandante, ao dançar com Thiago, quando a cada segundo suas asas ansiavam por levá-la para longe dele.

Para longe. Vá para longe dele. Ela se preparou para saltar, mas antes que deixasse o chão, Thiago avançou. Depressa. Um brevíssimo movimento e ele agarrou seu braço — os hematomas gritaram de dor. Com força.

Sim, acaba comigo, Karou. É isso o que você quer ouvir? Que você me humilhou? Eu a puni por isso, mas a punição foi... insatisfatória. Foi impessoal. Seu protetor Brimstone cuidou para que eu nunca ficasse sozinho com você. Sabia disso? Mas ele não está aqui agora, está?

Presa, Karou olhou para os soldados que partiam. Apenas Virko olhou para trás, mas não parou. De repente a escuridão o envolveu e ele desapareceu junto com os outros, o som das asas diminuindo, a poeira se assentando, e Karou ficou sozinha com Thiago.

A mão dele apertava seu braço como um torno; Karou sabia como Brimstone fizera os corpos do Lobo. Sabia a força que ele tinha, portanto não tinha esperanças de conseguir escapar.

— Me solta.

— Eu não fui amável? Não fui gentil? Pensei que fosse isso que você queria. Achei que seria a melhor maneira de lidar com você. Gentileza e agrados. Mas vejo que me enganei. E quer saber? Fico feliz. Existem outros meios de persuasão.

De repente sua mão livre estava na cintura dela, entrando por baixo da blusa para tocar sua pele. A mão livre de Karou voou para a lâmina de lua crescente presa à cintura, mas Thiago afastou-lhe a mão, agarrou a arma e atirou-a no fosso; segundos depos fez o mesmo com a outra. Karou empurrou inutilmente o peito dele, tentando se soltar.

Aconteceu tudo muito rápido; seus pés desprenderam-se do chão e seu corpo caiu com tanta força que sua visão escureceu e ela perdeu o ar. Karou arfava, com Thiago em cima dela, pesado e muito, muito forte, e o inútil pensamento que não lhe saía da cabeça era: Ele não pode fazer isso, não pode me machucar, ele precisa de mim. E o tempo todo ele ria.

Ria. Seu hálito no rosto dela. Karou tentou se afastar, lutou, todos os músculos se retesando para lutar contra ele, o pulmão se enchendo daquele ar fétido do fosso toda vez que engolia avidamente o ar.

Ela também era forte. Seu corpo era obra de Brimstone tanto quanto o dele, e tampouco era uma força vazia — ela treinara a vida inteira. Conseguiu soltar um braço e girou, colocando o ombro como um obstáculo entre eles, levantou um joelho e se soltou dele, rolando para longe enquanto ele se lançava de volta para cima dela, e levantou voo, subindo, tentando escapar, mas foi quando ele a pegou por trás e a derrubou com força de novo. Bateu com o rosto no chão dessa vez, a dor a inundando, e ficou presa de novo, sentindo o peso dele nos ombros de uma forma que não lhe dava chance de se soltar, e então ouviu a voz dele em seu ouvido:

Vagabunda — sussurrou Thiago, e seu hálito era quente, seus lábios tocavam o lóbulo da orelha dela, e depois as pontas afiadas de suas presas.

Ele a mordeu. Rasgou sua pele.

Karou gritou, mas Thiago bateu a cabeça dela no rochedo outra vez, e a dor sufocou o grito.

Ela não conseguia vê-lo. Ele a prendia, mantendo seu rosto na areia e nas pedras, quando ela sentiu garras segurarem em sua calça jeans e puxarem. Por um segundo sua mente ficou vazia.

Não.

Não.

O grito não era sua voz. Era sua mente, repetindo os mesmos pensamentos tolos e horrorizados de antes: Ele não pode, não pode.

Mas ele podia. E estava fazendo.

Só que o jeans não saiu do lugar, mesmo quando ele puxou com tanta força que a arrastou meio metro pelo chão, sua face sentindo cada pedra, e então ele a virou para abrir o botão. Agora estava em cima dela, sorrindo, e Karou viu seu sangue nos lábios dele, nas presas dele. O sangue pingou em sua boca e ela sentiu o gosto. Olhou para as estrelas no céu além dele e, quando Thiago soltou seu braço para agarrar os dois lados da calça e tentar arrancá-la, ela agarrou uma pedra e esmagou o sorriso em seu rosto.

Ele grunhiu de dor, mas não saiu do lugar. O sangue de Thiago se juntou ao dela em suas presas, e seu sorriso voltou. A gargalhada também. Era obscena. Sua boca era uma careta vermelha, mas ele continuava em cima dela.

Não! — gritou ela, e a palavra parecia saída de sua alma.

— Não banque a pura, Karou — disse ele. — Afinal, todos nós somos apenas receptáculos.

E, quando ele puxou dessa vez, a calça desceu e ficou presa nas botas dela, embolando na altura de suas panturrilhas. Ela sentiu as pedras machucando sua pele nua. Os gritos em sua cabeça eram ensurdecedores e pareciam inúteis quando ele conseguiu colocar o joelho entre os dela, separando-os. Ele rosnou de maneira animal, e Karou continuou lutando. Lutando. Não parava um segundo. Todos os seus músculos estavam em movimento, se movendo para impedi-lo. As garras das mãos de Thiago laceraram seus braços, prendendo-a, e as pedras cortavam suas costas e pernas, mas a dor parecia distante. Ela sabia que não podia ficar parada, não podia parar nunca. Ele então segurou os dois pulsos dela com uma das mãos — para ficar com a outra livre, para ficar com a outra livre —, mas Karou conseguiu livrar-se e tentou alcançar os olhos dele. Ele se afastou bem na hora, então ela só conseguiu arranhar seu rosto.

Ele deu-lhe um tapa com as costas da mão.

Karou piscava, as estrelas nadavam no céu. Ela balançava a cabeça para clarear a visão quando se lembrou da faca.

Na bota.

Como a bota parecia infinitamente longe das suas mãos. Ele segurava os pulsos dela com tanta força que Karou mal sentia os dedos. Quando se levantou um pouco para tentar tirar a própria roupa — não estava mais tão branca, ela se pegou pensando, muito distante dali —, teve que soltar uma das mãos dela. Karou deixou o braço cair para o lado dessa vez, sem se mover. Fechou os olhos. Sem contar com a respiração irregular deles, o silêncio do deserto era como um vácuo, que tragava o som e o engolia. Ela se perguntou: se gritasse, será que a ouviriam lá na casbá? E se ouvissem, será que alguém viria em seu socorro?

Issa. Issa já devia estar ali àquela altura.

O que tinham feito com Issa?

Karou não gritou.

Thiago esqueceu a mão livre dela ao se deitar novamente em cima de Karou, e ela virou a cabeça de lado e fechou os olhos com força. Ele parecia um lobo ofegante. Karou moveu os quadris e girou, se contorceu para evitá-lo, e não abriu os olhos enquanto tateava por baixo da calça jeans embolada, em busca da bota. Da faca. Sentiu o frio do cabo curto em sua mão quente. Em meio à dor e à falta de ar, à escuridão dos olhos cerrados, ao ar abafado e pútrido e ao zumbido das moscas, às pedras que arranhavam seu corpo e à pressão e força do corpo em cima dela, aquele cabo era tudo.

Ela puxou a faca com facilidade. Thiago tentava empurrar seus quadris para baixo.

— Vamos, meu amor — ronronou ele. — Quero entrar em você.

Nada nunca fora mais perverso do que aquela voz suave, e Karou sabia que, se olhasse para o rosto dele, veria um sorriso. Então não olhou.

Cravou a faca na base da garganta dele. Era uma faca pequena, mas foi o bastante.

Ao sentir o calor se derramar sobre si, ela soube que era sangue. As mãos de Thiago esqueceram os quadris dela. E, quando Karou abriu os olhos, ele não estava mais sorrindo.