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ESTAVA PRÓXIMO, E ERAM ASAS

Karou estava em seu quarto. Era noite. De novo. Um dia se passara desde o que acontecera no fosso. Sabe-se lá como.

A porta estava fechada, mas as tábuas de Mik haviam sumido. Tinham-nas levado embora, assim como os trincos da veneziana, ou seja, sua segurança — que, estava claro agora, nunca passara de uma ilusão.

Ela pensou no movimento rápido da Lua em volta da Terra, e no curso apressado da Terra em volta do Sol, e no brilho das estrelas em seus arcos — mas... não. Também aquilo era uma ilusão, assim como o nascer e o pôr do sol eram um truque. Era o mundo que se movia, não as estrelas, não o Sol. O céu se movia, deslizando por aquela vastidão enquanto rolava pelo espaço, girando e girando, e aquela corrida era o que a mantinha ali. Uma em bilhões.

Não importa o que aconteça comigo, disse a si mesma. Sou uma em bilhões. Sou poeira estelar reunida transitoriamente em uma forma. Serei dispersa. A poeira estelar vai se transformar em outras coisas algum dia, e eu estarei livre. Como Brimstone está.

Poeira estelar. Isso era ciência, ela lera e ouvira falar a respeito — toda matéria vem de explosões das estrelas —, mas soava como a versão humana para os mitos de Eretz. Um pouco menos emocionante, talvez: nenhum sol estuprador, nenhuma lua tristonha. Nenhuma lua que apunhalava. Essa era a história dos Kirin: o sol tinha tentado possuir Ellai à força, e ela o esfaqueara, como Karou fizera com Thiago. Nitid chorara, e suas lágrimas se transformaram nos quimeras. Filhos do pesar.

Será que Ellai chorou?, perguntou-se Karou. Será que se banhou no mar, tentando voltar a se sentir limpa? Isso podia fazer parte da história: suas lágrimas deram aos mares o sal, e tudo no mundo nasceu de violência, traição e tristeza.

Karou se banhara no rio. Suas lágrimas não chegariam ao mar: regariam tamareiras em algum oásis, onde se tornariam frutos e seriam comidas, e talvez fossem choradas de novo através de outros olhos.

Não é assim que funciona.

Sim, é sim. Nada nunca se perde. Nem mesmo lágrimas.

E quanto à esperança?

Tinha se limpado o máximo que conseguira sem água quente e sabão. Submergira na água corrente até seus braços e pernas ficarem dormentes, até livrar sua pele arranhada e machucada de todo o sangue — o seu e... o que não era seu. A maior parte nem era seu.

Também não era só de Thiago.

Ela ouviu um som. Estava próximo, e eram asas.

Tentou afastar da mente aquela lembrança como se fosse um rosto em que pudesse bater.

Pense em outra coisa.

A dor que sentia. Isso serviria. Mas que dor? Eram tantas. Sem contar que, especialista em dores que se tornara, não conseguia mais deixar que se fundissem em uma coisa só. Cada arranhão, cada contusão tinha sua própria existência, como estrelas em uma constelação. Uma constelação chamada... A Vítima?

Que parecia uma vítima, parecia. Ferida. Torturada. O lado direito de seu rosto tinha sido arrastado nas pedras. Seu lábio estava cortado; sua bochecha, roxa, arranhada e cicatrizando. Bolhas abertas em sua mão exsudavam por causa da pá. A pá. Não pense. O lóbulo de sua orelha. Essa era a dor em que decidira se focar; isso ela podia enfrentar. Estava rasgada e inchada, pois o Lobo a mordera; pensou em remendá-la como fizera com as mãos e o sorriso cortado de Ziri, mas dificilmente conseguiria manter o foco necessário; além do mais, não podia nem pensar em usar os tornos. Seu corpo todo era dor e pontadas e gritos.

“Você deixa lindas marcas”, dissera-lhe Thiago uma vez.

Você não, pensou ela, olhando para os feios hematomas e arranhões que cobriam seus braços, os dedos abertos que mostravam o que ele lhe fizera.

Tentara fazer, lembrou a si mesma.

Será que Ellai esfaqueara o sol a tempo, perguntou-se ela, ou o sol tinha conseguido o que queria? A história não era clara quanto a isso. Decidiu acreditar que Ellai tinha evitado o pior, assim como ela. Karou segurava uma agulha curva na chama de uma vela para esterelizá-la. Um espelho de mão estava apoiado na mesa à sua frente; apontou-o na direção da orelha, evitando que refletisse seu rosto. Não queria ver o próprio rosto.

Tantos anos treinando artes marciais, pensou enquanto a agulha começava a brilhar. Era de se imaginar que a luta seria como as dos filmes: com espaço para uma coreografia elegante, chutes bem desenhados no ar e intensos olhares de fúria. Rá. Não houvera nenhum espaço, apenas aperto e pânico, e a força de Thiago tinha pesado muito mais do que o repertório de chutes estilosos dela.

É claro, ela o matara. Podia parecer a vítima, mas não era. Ela o detivera.

Se ao menos tivesse terminado ali.

Um som. Estava próximo, e eram asas.

Aquilo tudo ecoava em sua cabeça: as batidas das asas, o baque, o som surdo que a terra fazia ao ser lançada com a pá. E as moscas. Como as moscas achavam os cadáveres tão rápido?

Parecia que ainda estava lá, na beira do fosso, aquela escuridão fétida ameaçando arrastá-la para baixo. Ela enfiou a agulha no lóbulo da orelha, com força. Isso serviu para afastar a lembrança de novo, mas ela sabia que a lembrança era como as moscas — podia espantá-la, mas nada a impediria de voltar —, e aquilo doeu. O gemido de dor que deixou escapar, mesmo baixo, foi o suficiente para acordar Issa.

Issa. A única bênção da noite. Ela ainda tinha Issa.

— Docinho, o que está fazendo? — A mulher-serpente se desenrolou de seu lugar perto da porta e sibilou, irritada, quando viu a agulha enfiada na orelha de Karou como um anzol. — Eu faço isso.

Karou a deixou pegar a agulha. E se ela não tivesse mais Issa? Se, além de tudo, também a tivessem tirado dela?

— Eu não estava conseguindo dormir — sussurrou.

— Não? — A voz de Issa era suave, assim como suas mãos. Ela passou a agulha pela pele de Karou e puxou firme o primeiro ponto. — Ah, pobrezinha, não é para menos. Queria ter um pouco de chá dos sonhos para lhe dar.

— Ou chá de réquiem.

Então a voz de Issa não soou nada suave:

— Não diga uma coisa dessas! Você está viva. Desde que você esteja viva e ele... — Mas parou aí. Ele quem? O que quer que fosse dizer, ela mudou de ideia. — Desde você esteja viva, ainda há esperança. — Ela respirou fundo, firmou a mão e perguntou: — Pronta?

Só então enfiou a agulha de novo.

Karou se encolheu de dor. Esperou até a agulha atravessar a orelha.

— Sinto muito. Foi assim...? Foi assim que você e Yasri...?

— Foi — disse Issa. — Foi tranquilo, criança, não fique triste. — Issa suspirou. — Mas eu queria que ela estivesse aqui. Ela saberia o que lhe dar. Tinha vários truques para fazer Brimstone dormir.

— Nós vamos buscá-la — disse Karou, perguntando-se quando e como, e imaginando como estaria o lugar atualmente.

Thiago incendiara o templo e o bosque de réquiem. Isso tinha acontecido dezoito anos antes; será que as árvores tinham crescido de novo? O bosque era antigo. Ela se lembrava de chegar sob o luar e ver as copas das árvores e o telhado do templo brilhando através das folhas, de como seu coração disparava sabendo que Akiva a esperava lá embaixo. Akiva, esperando para buscá-la no ar. Akiva, deitando-se ao seu lado, passando os dedos por suas pálpebras, o toque dele tão suave quanto as mariposas-beija-flor, tão suave quanto as flores de réquiem caindo na escuridão.

Fechou os olhos e passou as mãos nos braços. Como estavam sensíveis seus hematomas. Thiago, seu aliado; Akiva, seu inimigo. Tudo tão distorcido. O que faz de alguém um inimigo?

Não. Ela não podia esquecer. Apertou os machucados para espantar as lembranças. Linhas de tinta tatuadas em mãos assassinas: era isso o que fazia de alguém um inimigo. Paliçadas queimadas onde antes havia cidades: isso fazia de alguém um inimigo.

Issa amarrou mais um ponto e cortou a linha. Karou lhe agradeceu e se perguntou: E agora?

O sol nasceria; ela não podia ficar ali em seu quarto para sempre. Teria que encarar os quimeras. Não podia esperar os hematomas sumirem. Será que eles sequer notariam? Estavam tão acostumados a vê-la com hematomas... Até que ponto sabiam sobre o que havia acontecido no fosso?

Não tudo, isso era certo, e — queridos deuses e poeira estelar — era melhor que nunca descobrissem.

Um som. Estava próximo, e eram...

Karou.

Um sussurro abafado. Karou piscou, confusa.

— Quem está aí? — perguntou Issa, atenta, e Karou soube que não tinha imaginado coisas. A voz vinha da janela, e daquela vez não era Bast.

Por favor.

A voz parecia desligada do corpo, as palavras se arrastavam, e era um sussurro muito baixo que não lembrava a força de sua voz, mas Karou sabia quem era. Seu corpo ficou quente e logo em seguida gelou. Por quê? Por que ele voltaria ali? Ela se levantou tão rápido que a cadeira bateu na parede.

Issa olhou para ela.

— Quem é, criança?

Mas Karou não teve tempo de responder. Já não havia mais trincos na veneziana. A janela se abriu. Issa se assustou, os fortes músculos de seu anel de serpente ondulando à luz das velas. A invasão — e o calor — fez Karou se encolher quando Akiva apareceu em meio ao brilho fraco do encanto que se desfazia e no mesmo instante aterrissou com força no chão.