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PESOS MORTOS

Ele não estava sozinho. Karou sentiu outras presenças mesmo antes de os encantos se desfazerem. Os dois que encontrara na ponte Carlos. Reconheceu-os imediatamente, por mais diferentes que estivessem agora. O belo rosto da irmã dele — Liraz —, antes tão sério e ameaçador, estava transfigurado pelo sofrimento. Ela arfava, e seus olhos eram poços vermelhos de tristeza — embora nem de longe tão vermelhos quanto os de Akiva, que estavam como naquele dia tantos anos antes, o dia em que Madrigal tomara o corpo de outra pessoa para libertá-lo da prisão em Loramendi. A parte branca estava vermelha com o sangue dos vasos rompidos. O que o deixara assim? Ele estava lívido e tomado pela exaustão.

Mas nenhum dos dois estava tão desfigurado quanto o irmão. Que estava... morto.

Akiva e a irmã carregavam o corpo juntos, mesmo não parecendo aptos a fazer isso. Abaixaram o anjo até o chão, mas ele escorregou de suas mãos e caiu pesadamente. Liraz deixou escapar um gemido, caiu de joelhos e ergueu a cabeça dele com todo o carinho.

Hazael, lembrou-se Karou. O nome dele era Hazael. Seus olhos estavam abertos, fixos; a pele, muito pálida; o pescoço e os membros, já rígidos. Com o fogo extinto, suas asas tinham se apagado; as penas ardentes tinham sido reduzidas às raques, as barbas tendo virado cinzas e caído. Já estava morto fazia algum tempo.

O corpo de Karou continuava alternando rapidamente entre o calor e o frio. Paralisada no lugar, ela tentava entender a cena. Foi Issa quem avançou, lentamente, e se curvou sobre Hazael para tocar seu rosto. Karou só olhava, um estranho distanciamento se apoderando dela — aquela antiga irrealidade de volta, como se sua vida fosse um teatro de sombras projetado em uma parede. Achou que a impetuosa irmã de Akiva fosse ranger os dentes e empurrar Issa para longe, mas não: Liraz pegou a mão da Naja. As serpentes no cabelo de Issa e em volta de seu pescoço ficaram imóveis e retesadas, prontas para atacar se fosse preciso.

— Por favor. — A voz de Liraz saiu sufocada. Seus olhos correram de Issa para Karou, desesperados. — Salvem meu irmão.

Karou ouviu o que ela disse, mas, no estado de torpor em que se encontrava, teve a impressão de que as palavras pairavam no ar. Olhou para Akiva. A maneira como ele olhava para ela... era como se a estivesse tocando. Ela recuou um passo, involuntariamente. O rosto dele era uma súplica silenciosa; Akiva estava quase tão pálido quanto o irmão morto, que eles haviam deitado no espaço em que Karou conjurava os corpos. O piso da ressurreição. Todos olhavam para ela. Até mesmo Issa.

Salvá-lo?

Eles estavam lhe pedindo ajuda? Depois de queimarem os portais de Brimstone — e o próprio Brimstone —, depois de aniquilarem seu povo, tinham trazido seu irmão morto para que ela o ressuscitasse?

De que distância o traziam? Os dois tremiam, tamanho o esforço que haviam feito. Akiva desabou contra a parede, os braços soltos ao longo do corpo. Parecia mais morto do que vivo, mais morto até do que da primeira vez que o vira, sangrando no campo de batalha de Bullfinch.

— O que aconteceu com você?

Poderia ter sido ela lhe fazendo essa pergunta, mas não. Era Akiva, que olhava para seu rosto, seus lábios, sua orelha recém-costurada. Constrangida, ela tirou o cabelo de trás da orelha.

— Quem fez isso com você? — continuou ele. Por mais fraca que soasse, ainda assim sua voz fervia de raiva. — Foi ele, não foi? O Lobo?

Ele acertara em cheio. Karou só conseguiu pensar, ao ver a fúria em seu rosto, no xale vivo que ele lhe fizera uma vez, as asas macias das mariposas-beija-flor nos seus ombros; uma vez, eras antes, quando Thiago rasgara seu vestido e, sob as falsas estrelas das lanternas do festival, Akiva evocara um xale vivo para cobri-la.

Ela fizera uma escolha naquela noite, e não tinha sido a escolha errada.

Mas isso na época. Muitas coisas tinham acontecido desde então.

Coisas demais.

Ela ignorou a pergunta, odiando a evidência física da própria vulnerabilidade, desejando que seus braços estivessem cobertos e que tivesse reparado a pele. O que seria um pouco mais de dor, afinal de contas? Ela não podia demonstrar fraqueza, não agora. Deu um passo à frente, voltando sua atenção para Hazael. Akiva lhe trouxera seu irmão morto? Bem, ele também lhe trouxera Issa. E lhe devolvera Ziri, ela não podia se esquecer disso, não importava o que tivesse acontecido depois. Ajoelhou-se ao lado do corpo — lentamente; tudo doía — e se perguntou por que tinham trazido o corpo de tão longe.

Corpos são só pesos mortos — todos nós somos apenas receptáculos —, mas saber isso era uma coisa; deixar um corpo para trás era outra. Karou entendia isso muito bem. São os corpos que nos tornam reais. O que é uma alma sem olhos para se olhar, ou sem mãos para segurar? Ela fechou os punhos para fazê-los parar de tremer.

Encontrou o ferimento embaixo do braço esquerdo de Hazael. No coração. Devia ter sido uma morte rápida.

— Por favor — repetiu Liraz. — Salve meu irmão. Eu lhe dou qualquer coisa. Diga seu preço.

Preço? Karou lançou-lhe um olhar hostil, mas não viu nela nenhum sinal da crueldade ou severidade de que se lembrava, só angústia.

— Não tem preço nenhum — disse Karou, e olhou de relance para Akiva. Se houvesse, poderia ter acrescentado, o preço já foi pago.

— Você vai trazê-lo de volta, então? — As palavras de Liraz saíram trêmulas de esperança.

Ela ia? Karou sabia que era a única esperança deles — justo ela, a quem aqueles dois teriam matado em Praga só pelos hamsás em suas mãos. Havia uma ironia em tudo aquilo, mas que não lhe deu nenhum prazer. Ela não conseguia olhar para as mãos de Liraz — eram tão negras —, mas via que elas seguravam com ternura o pescoço do irmão morto, os dedos tocando suavemente o rosto dele. Karou sabia que não devia sentir pena daquela garota que ajudara a assassinar seu povo, mas sentia. Quem entre eles, afinal, tinha as mãos limpas? Não ela. Ah, Ellai, minhas mãos nunca mais ficarão limpas. Karou cerrou os punhos de repente, sentiu arderem as bolhas abertas pelo uso da pá. Sentia que fazer aquilo, salvar aquela vida... poderia ser um bálsamo. Não só para aqueles serafins, mas também para si mesma, depois daquele horror do fosso, da pá, do que tivera que fazer e... e da mentira que agora era obrigada a viver. Ela queria salvar o serafim. Uma marca no nó de seu dedo por uma vida salva em vez de assassinada.

— Não posso preservar este corpo — disse ela. — É tarde demais. E também não posso fazer outro corpo igual a este. — Talvez Brimstone soubesse como conjurar as asas de fogo, mas aquilo estava muito além da capacidade dela. — Ele vai deixar de ser um serafim.

— Não tem problema — disse Akiva. Ela olhou em seus olhos, seus olhos tão, tão vermelhos, e quis fazer aquilo por ele. — Desde que continue a ser ele. É só o que importa.

Sim, disse Karou a si mesma, e queria acreditar nisso com tanta firmeza quanto ele. A alma é o que importa. A carne é um receptáculo.

— Está bem. — Ela respirou fundo e olhou para Hazael. — Podem me dar o turíbulo.

Suas palavras foram recebidas com um silêncio que era como o de um abismo.

Um abismo.

Ah, não. Karou olhou para o rosto morto de Hazael, os olhos azuis abertos, as linhas de sorriso, e a dor que sentiu aflorar em seu peito a tomou por completo. Não. Ela mordeu o lábio, tentando impedir a boca de tremer. Estava controlada. Tinha que estar. Sua tristeza... se a deixasse sair, seria como o lenço de um mágico, uma tristeza amarrada a outra e outra e mais outra, sem nunca acabar. Ela não queria levantar o rosto e ver a devastação no rosto de Akiva e Liraz, seus semblantes congelados naquele terrível silêncio.

— Não tínhamos... Não tínhamos um — sussurrou Liraz. — Nós o trouxemos para . Para você.

Akiva, rouco, insistiu:

— Faz só um dia. Karou, por favor.

Como se fosse uma questão de persuadi-la.

Eles não entendiam. Como poderiam? Ela nunca contara a Akiva como funcionava, como a conexão com a alma ficava cada vez mais tênue após a morte, ou quão facilmente a alma poderia ficar à deriva se não fosse recolhida. Nunca lhe contara, e agora não havia nada no ar ou na aura daquele anjo morto — soldado, assassino, irmão amado —, nenhuma impressão de luz ou risada para acompanhar aqueles olhos azuis e aquelas rugas sorridentes, nenhuma vibração de nenhum tipo para tocar seus sentidos e lhe dizer quem ele era... porque ele já não era mais.

Ela levantou a cabeça. Então se forçou a olhar nos olhos de Akiva e de Liraz, para que vissem e entendessem sua tristeza.

E soubessem que a alma de Hazael estava perdida.