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— Temos visita, Karou? Não sabia que você estava dando uma festa.
Ah, aquela voz, a calma e o desdém, a nota de diversão. Karou não conseguia olhar para ele. Vida naqueles olhos pálidos, força naquelas mãos e garras. Era errado, tão errado. E ela fizera aquilo. A bile lhe subiu à garganta; ela quase caiu de joelhos e vomitou tudo de novo.
— Eu também não.
Era a única maneira, disse ela a si mesma, mas os tremores aumentavam quanto mais tentava controlá-los. Karou fixou o olhar em um ponto atrás dele, mas Lisseth e Nisk chegaram deslizando, preenchendo o corredor, e ela também não queria olhar para eles. Nunca esqueceria ou perdoaria a frieza no rosto deles quando voltara mancando do fosso, trêmula e ensopada de sangue, em choque, arrastando-se atrás de Thiago.
Quanto ao próprio Thiago...
Ele entrou no quarto. Karou podia ouvir suas garras arranhando o piso de terra, podia sentir seu cheiro de almíscar, mas ainda não conseguia fitá-lo. Ele era uma forma branca indistinta em sua visão periférica, atravessando o quarto, e colocou-se ao lado dela e encarou os anjos. Ao lado dela, como se estivessem juntos naquilo.
E... estavam.
Ela fizera uma escolha. Merecer a confiança que Brimstone depositara nela e o nome que lhe dera. Trabalhar pela salvação — e ressurreição — de seu povo, da forma que fosse necessária, qualquer forma. E Thiago era necessário. Os quimeras o seguiam. Aquela era a única maneira, mas mesmo assim não era nada mais fácil ficar ao seu lado e sentir o peso do olhar de Akiva, ou — quando olhou de volta para ele, pois tinha que olhar para algum lugar — ver o ódio e a confusão em seu rosto, a incredulidade. Como se ele não pudesse acreditar que ela suportaria estar tão próxima daquele monstro.
Eu também sou um monstro, queria dizer a ele. Sou uma quimera, e farei o que for preciso pelo meu povo.
Que falsa coragem. Ela vestia uma expressão desafiadora, mas não passava disso. O fogo dos olhos de Akiva sempre fora como um estopim que acendia o ar em volta deles. Agora não era diferente. Ela queimava, mas de vergonha por estar ao lado do Lobo. O anjo e o Lobo, juntos no mesmo quarto. Parecia agora que tudo a conduzira para aquele momento, que finalmente chegara: o anjo e o Lobo cara a cara. Akiva tinha os olhos vermelhos, o rosto pálido, destruído, arruinado, tomado pela tristeza, e ela... ela estava ao lado do Lobo, como se os dois fossem o senhor e a senhora daquela rebelião sangrenta.
Não é o que está pensando, tinha vontade de dizer a Akiva.
É pior.
Mas não disse nada. Não lhe daria nenhuma explicação, nem lhe pediria desculpas. E então se forçou a virar. Para Thiago. Não colocara os olhos nele desde que tinham voltado do fosso. Mas se obrigou a olhar para ele agora. Se não conseguisse fazer isso, quais seriam as chances de conseguir fazer tudo que estava por vir?
Ela olhou.
O Lobo era o Lobo, majestoso e impressionante, uma das melhores obras de Brimstone. Não estava em sua usual forma impecável, o que não era nenhuma surpresa levando-se em consideração o último dia e meio. As mangas de sua túnica estavam puxadas para cima, dobradas e amassadas nos braços musculosos e bronzeados, e Ten tinha negligenciado o cabelo de seu senhor, que parecia ter sido puxado para trás por mãos apressadas e preso em um nó branco. Alguns fios tinham escapado, e, quando ele os jogou para trás, fez isso com certa impaciência. Quanto ao seu belo e odiável rosto, estava coberto de arranhões produzidos pelas unhas de Karou, mas a ferida por onde a lâmina dela penetrara, na garganta dele, havia sido fechada e reparada como se nunca tivesse existido. Essa parte fora fácil, nem de longe tão complicada quanto as mãos ou o sorriso de Ziri; apenas algumas camadas de tecido para juntar ao longo de um pequeno corte. Karou não poderia tê-lo matado de forma mais limpa nem se tivesse planejado trazê-lo de volta à vida, e tivera dor de sobra para pagar o dízimo.
Eram os olhos dele, ah, meu Deus... Eram os olhos dele o mais difícil de se ver. Vida naqueles olhos pálidos.
Afinal, todos nós somos apenas receptáculos.
Ela sentiu as lágrimas arderem e abaixou a cabeça. Não sabia o que fazer. Abraçou o corpo com os braços marcados pelos hematomas e procurou desesperadamente algo para dizer. Havia anjos em seu quarto, um deles morto, outro Akiva. Era complicada sua situação.
Fazia apenas alguns segundos desde que o Lobo havia entrado. Sua imobilidade e silêncio ainda não pareciam esquisitos, mas em pouco tempo alguém estranharia.
Se Liraz não tivesse gritado, Karou os teria ajudado a sair dali. Teria acendido um incenso para encobrir o cheiro deles. Devia isso a Akiva, isso e muito mais. Nimguém precisaria saber que eles tinham estado ali. Mas era tarde demais. Agora Thiago teria que fazer alguma coisa a respeito, e — Karou vira isso em seus olhos naquele relance — estava ainda mais perdido do que ela quanto a como agir.
Sua linha de ação deveria ser bem clara; ele já tinha lidado com Akiva antes: já o havia torturado e punido, não só por ser um serafim, mas também por ter sido o escolhido de Madrigal. Qualquer um que fosse próximo a Thiago sabia que ele ansiava por terminar o que tinha começado. O Lobo Branco deveria estar rindo agora; deveria estar embriagado em seu prazer sangrento.
Mas não estava.
Porque, é claro — é claro, é claro —, ele não era o Lobo Branco.