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— Então, isso é mesmo o que parece ser? — perguntou Thiago.
— E parece ser o quê? — indagou Akiva, odiando falar com o Lobo.
Eles não ficavam cara a cara desde o calabouço em Loramendi, e, agora que estavam, falar não era bem o que Akiva tinha em mente.
— Parece um anjo morto. — Indicando Hazael, Thiago se virou de Akiva para Karou e depois de volta com um sorriso insolente. — Veio fazer uma visita à nossa ressurreicionista? Sinto muito, mas não servimos à sua raça. Achei que você soubesse que estamos em guerra.
— A guerra acabou — rosnou Liraz, com uma paixão que, Akiva sabia, ela não sentia pela vitória. — Vocês perderam.
— Perdemos? Gosto de pensar que o resultado ainda não foi decidido.
Devagar, Akiva passou um braço em volta do ombro da irmã, para contê-la. Se ela se lançasse para cima do Lobo como tinha feito com Karou, a mulher-serpente não a empurraria de volta viva. Talvez fosse a morte o que Liraz queria (ou achasse que queria) em meio ao sofrimento, e talvez a morte fosse mesmo chegar para eles ali, naquela noite, não importava o que fizessem, mas Akiva não lhe daria mais chances do que já dera indo até ali, e aquilo tinha sido por puro desespero.
Ele olhou para Karou, tentando imaginar o que se passava em sua cabeça. Ela teria ajudado Hazael; ele tinha visto como era genuína sua tristeza. E agora? Ela iria ajudá-los? Será que podia? Aqueles hematomas em seus braços... Ela ainda abraçava o próprio corpo, e, embora Akiva tivesse quase certeza de que ela estava tentando esconder as marcas — por que parecia tão envergonhada? —, o resultado era o contrário: ele não conseguia deixar de olhar. Já tinha visto as marcas do dízimo nela quando fora até ali antes; a lembrança o assombrara. Mas aquelas eram diferentes.
Pois aquelas não tinham sido feitas por tornos, mas sim por mãos.
De repente, ele não conseguia ver mais nada além daquilo. Uma onda de fúria o dominou, e então era ele quem precisava ser contido. Ficou de pé e se lançou para a frente, ou caiu para a frente, e foi só devido ao insistente apelo da escuridão e à fraqueza enfurecedora que Karou — Karou — conseguiu se colocar entre ele e Thiago e empurrá-lo de volta. Com as sobrancelhas erguidas em irritação e os olhos com um brilho selvagem, sua expressão dizia: Você ficou louco?
Sim, ele estava louco. E patético. Tropeçou em Hazael ao cair para trás, e foi Liraz que o pegou daquela vez. Os dois estavam tão fracos, tão debilitados e desmoralizados que desabaram juntos no chão de terra ao lado do corpo do irmão. E os quimeras nem precisaram mostrar hamsás em sua direção. Estavam tão esgotados, tão dolorosa, óbvia e lamentavelmente esgotados.
— Acabem logo com isso — sibilou Liraz. Akiva nem conseguia se obrigar a argumentar. — Podem nos matar.
Karou olhou para os dois com aquela severidade que havia mostrado quando o empurrara — era raiva, pensou Akiva, por se ver forçada mais uma vez a decidir o destino dele. Como ela havia mudado em tão poucos meses. A dureza, o ar de tristeza. Ele se lembrou de como ela era em Praga e em Marrakech, durante o pouco tempo que passaram juntos antes de partirem o osso da sorte: a suavidade e a inconstância de suas expressões; os sorrisos tímidos e contraditórios; e o rubor que subia rapidamente por seu pescoço alvo. Até a raiva dela era antes algo vibrante, vital. Ele odiava aquela nova máscara de dureza, odiava saber que provocava isso nela. Mas, naquele momento, se lhe dessem a chance de escolher, ainda diria que preferia viver.
Foi só no instante seguinte que essa convicção foi abalada.
Karou se virou para Thiago — para Thiago, de todas as criaturas vivas em dois imensos mundos — e trocou com ele um olhar breve e secreto, íntimo e cheio de dor, um olhar que trazia uma dor compartilhada, um olhar... terno. Era de uma ternura tão profana, tão insuportável, que Akiva esqueceu todo o resto. Toda a pouca vitalidade que lhe restava se reuniu em uma última explosão de força e ele se lançou para cima de Thiago.
O Lobo o pegou pelo pescoço com as garras de uma das mãos. Segurava-o com o braço estendido, e até parecia fácil. Seus olhos se encontraram. Enquanto Akiva sentia seu pescoço ser comprimido pelo poderoso punho de Thiago, viu um traço daquela ternura perversa ainda no olhar do inimigo. Ao ver isso, Akiva simplesmente desistiu de lutar. Seus olhos se reviraram nas órbitas. Sua cabeça tombou.
Ele se deixou envolver pela escuridão, uma parte sua desejando nunca mais voltar.
* * *
Quando Akiva desabou, o alívio do Lobo foi tão profundo quanto sua aversão às palavras que se forçara a dizer e ao som delas saindo de sua garganta, a garganta de Thiago. Afinal, aquela voz era a de Thiago. E aquelas mãos que combinavam perfeitamente com as marcas no corpo de Karou? Também eram de Thiago.
Mas o pesadelo? Esse era todo de Ziri.
Ele queria descer o anjo devagar até o chão, mas se forçou a atirá-lo bruscamente na direção da outra serafim, uma linda moça que parecia ao mesmo tempo perdida e feroz. Ela pegou Akiva, cambaleando sob o peso morto dele — mas não, ele não estava morto. O Lobo não deixaria o Ruína das Feras morrer assim de forma tão indolor. Quanto a Ziri... ele não o deixaria morrer e ponto, se pudesse evitar.
Se.
Era injusto que o primeiro teste de sua farsa fosse decidir o destino do serafim que salvara sua vida. Ele não estava pronto para ser testado. A pele ainda não se ajustava bem, ou talvez fosse ele que não soubesse usá-la. Não era uma questão física. Como receptáculo, era um corpo forte, gracioso, com uma flexibilidade e um poder de tração que pareciam aprimorados, além de belo aos olhos, mas ele não conseguia vencer a repulsa que sentia. Quando tomara posse daquele corpo... ah, Nitid, encontrara ainda o gosto do sangue de Karou na boca.
Agora já tinha saído, mas a repulsa permanecia, e, o que era pior: ela sentia o mesmo. Como esperar outra coisa? Ziri vira o estado de Thiago no fosso, sabia o que ele fizera com ela — ou tentara fazer; esperava que tivesse apenas tentado, mas não chegara a perguntar. Como poderia perguntar algo assim? Ele a encontrara ensopada de sangue, tremendo violentamente como se estivessem em um lugar muito frio, e mesmo agora ela mal conseguia olhar para ele.
Quantos dias tinham se passado desde que Ziri sentira a esperança de que ela pudesse vê-lo pelo que ele era — não mais uma criança, mas um homem e... talvez criar um pouco de sorte para os dois. Um homem que pudesse amar. E agora ele era aquilo?
Se havia uma força maior operando no cosmos, as estrelas estariam rindo agora. Até ele se sentia à beira das gargalhadas. Seria possível que alguma esperança já tivesse sido mais aniquilada de maneira tão terrível?
Mas, se era injusto, pelo menos tinha sido uma decisão sua. Ele vira o que precisava ser feito, e fizera.
Por ela. Pelos quimeras e por Eretz, sim, mas fora nela que pensara ao passar a lâmina na própria garganta. Nem soubera a quem rezar, se para a deusa da vida ou a dos assassinos. Que presente horrível ele dera a Karou: seu sacrifício. Seu corpo para ela enterrar. A enormidade daquela farsa para levar adiante.
E... a chance de mudar o curso da rebelião e tomar posse do futuro. O que também era colossal, mas naquele momento tudo o que Ziri sentia era o peso da farsa.
O que já tinha sido feito — morrer — era a parte fácil. Agora ele precisava ser Thiago. Se ele e Karou queriam que aquilo funcionasse, Ziri precisava ser convincente, começando ali, agora, com aqueles serafins. E por isso é que tinha ficado tão incomensuravelmente aliviado quando Akiva perdera a consciência, pois assim pudera dar um fim rápido ao encontro, ou pelo menos adiar o inevitável até tentar pensar no que fazer.
— Leve-os para o armazém — ordenou ele a Ten, com o que esperava ser a gentileza desprezível e autoritária costumeira do Lobo.
E, depois que Ten obedeceu — Issa ajudando a garota serafim com o corpo de Akiva, e Nisk e Lisseth carregando o morto —, bateu a porta e se apoiou na madeira. Fechou bem os olhos e levou as mãos ao rosto. Mas como ele odiava aquele toque... Então abaixou as mãos. Odiava sentir as próprias mãos. As mãos dele? Afastou-as do corpo — do corpo dele? Com a tensão da tristeza que sentia, sentiu-as ficarem rígidas como em rigor mortis, como as mãos do anjo de cuja morte ele se forçara a zombar.
Não havia como fugir do mal, porque o mal era ele.
— Eu sou Thiago — ele se ouviu dizer com uma voz baixa e sufocada pelo horror. — Eu sou o Lobo Branco.
E então, primeiro em uma de suas odiosas mãos, depois na outra, ele sentiu um toque. Abriu os olhos. Viu Karou diante de si, pálida e chorando, trêmula e machucada, os olhos escuros e o cabelo azul, linda e tão perto, e olhando para ele — dentro dele, para ele —, segurando suas mãos.
— Eu sei quem você é — disse ela, em um sussurro doce porém ardoroso. — Eu sei. E estou com você. Ziri, Ziri. Eu vejo você.
Ela apoiou a cabeça em seu peito e deixou que ele a envolvesse com seus braços assassinos. Ela cheirava à água do rio e tremia como uma asa de borboleta soprada pela brisa. Ziri a aninhou como se ela fosse a última esperança de seu mundo.
E talvez fosse.