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ADEUS

Quando Akiva acordou, Liraz dormia ao seu lado. Estavam no escuro, embora, lógico, a escuridão nunca fosse total onde havia serafins. O fogo de suas asas, mesmo fraco da exaustão e do sono, projetava uma discreta luminosidade que chegava ao teto alto de madeira e às paredes inclinadas de barro. Era um espaço grande, sem janelas; ele não sabia se era dia ou noite. Por quanto tempo tinha dormido?

Ele se sentia... bem, revigorado era uma palavra forte demais naquelas circunstâncias, pois dava a entender que ele estava cheio de vida, o que não era o caso, mas estava bem melhor. Ergueu o corpo e se sentou.

A primeira coisa que viu foi seu irmão. Hazael estava deitado do outro lado de Liraz, o corpo dela curvado na direção dele, e por um louco instante Akiva foi invadido pela esperança de que eles fossem três de novo, de que Karou tivesse ressuscitado seu irmão, e Hazael se sentaria e começaria a contar histórias ridículas sobre tudo o que tinha visto e feito enquanto era uma alma desligada do corpo. Mas aquela esperança se desfez rapidamente, como acontece com a maioria das esperanças: devorada por uma amargura ácida, fazendo Akiva se sentir um idiota. É claro que Hazael estava morto, ainda, e estaria para sempre. Começavam a aparecer moscas; eles tinham que tomar alguma providência.

Acordou Liraz. Estava na hora de prestarem suas homenagens ao irmão.

A cerimônia não foi muito usual, mas as cerimônias deles nunca eram: o funeral de um soldado, o corpo sua própria pira. As palavras oficiais eram muito impessoais, então eles procuraram dizer algo que combinasse mais com Hazael.

— Ele vivia com fome — disse Liraz — e às vezes dormia enquanto estava de sentinela. E graças ao seu sorriso conseguiu escapar de ser castigado milhares de vezes.

— Hazael conseguia fazer qualquer um falar com ele — disse Akiva. — Nenhum segredo escapava do nosso irmão.

— Menos os seus — murmurou Liraz, e a verdade daquilo doeu.

— Ele devia ter tido uma vida de verdade — disse Akiva. — Saberia preenchê-la. Experimentaria de tudo.

Ele teria se casado, pensou. Poderia ter tido filhos. Akiva quase conseguia vê-lo: o Hazael que ele poderia ter sido se o mundo fosse melhor.

— A risada mais verdadeira de todos os tempos — disse Liraz. — Ele fazia o riso parecer fácil.

E deveria ser fácil, pensou Akiva, mas não era. Eles dois, por exemplo: mãos negras e almas estilhaçadas. Ele pegou a mão da irmã, que apertou a dele com tanta força quanto apertaria o cabo de uma espada, como se sua vida dependesse disso. Doeu, mas era uma dor que ele podia suportar facilmente.

Liraz estava mudada. Camadas tinham sido desveladas — toda a severidade e dureza, que mesmo ele mal conseguira atravessar desde que eram crianças, tinham sumido. Abraçando os joelhos, com os ombros curvados e o rosto suavizado pela tristeza, ela parecia vulnerável. Jovem. Quase outra pessoa.

— Ele morreu me defendendo — disse ela. — Se eu tivesse obedecido Jael, ele ainda estaria vivo.

— Não. Ele teria sido enforcado — disse Akiva. — Você seria levada, e ele morreria infeliz por não ter conseguido salvá-la. Ele teria preferido assim.

— Mas se ele tivesse vivido um pouco mais, poderia ter escapado de lá conosco. — Ela olhava fixamente para as chamas que consumiam seu irmão, mas então desviou os olhos para Akiva. — Akiva. O que foi aquilo que você fez?

Não perguntou “E por que não fez antes?, mas a pergunta estava escondida ali, de todo modo.

— Não sei — disse ele, em resposta tanto à pergunta formulada quanto à não formulada, e observou o fogo da cremação que queimava com rapidez e violência, deixando apenas cinzas para uma urna que não tinham.

O que havia dentro dele capaz de fazer algo como aquilo, e por que aquilo não se manifestara antes, quando ele mais precisara — não só a tempo de salvar a vida de Hazael, mas também anos antes, para salvar Madrigal? Os anos de dedicação ao sirithar tinham apurado sua afinidade com a magia? Ou aquilo tinha sido despertado pela repentina onda de lembranças de sua mãe?

— Você acha que Jael está vivo? — perguntou Liraz.

Akiva mais uma vez não soube o que responder. Não queria pensar em Jael, mas não dava muito para evitar.

— Talvez sim... — acabou dizendo. — E se estiver...

— Espero que esteja.

Ele olhou para a irmã. A dureza que a revestia ainda não tinha voltado. Ela ainda parecia jovem e vulnerável. Tinha dito aquilo sem nenhuma emoção, suavemente, e Akiva entendia. Uma parte dele queria o mesmo que ela. Jael não merecia uma morte rápida, como teria acontecido na explosão. Mas, se ele estivesse vivo, havia coisas a se fazer.

Ele se levantou e olhou em volta. Paredes de barro, porta de madeira, nenhum guarda apontando os hamsás para mantê-los enfraquecidos; aquele lugar escuro não poderia detê-los. Onde estava o Lobo, e por que ele permitira a seus prisioneiros descansar e recuperar as energias?

E onde estava Karou? Com Thiago? Só de pensar nisso ele sentiu uma dor como a de uma punhalada. Akiva não conseguia afastar a lembrança do olhar que os dois tinham trocado. Aquele olhar o fizera questionar tudo o que pensava saber a respeito de Karou.

— Acho que é hora de irmos.

Ele estendeu a mão para a irmã. Fosse outra época, Liraz teria revirado os olhos e se levantado sozinha. Naquele momento, porém, aceitou a ajuda. Mas quando ficou de pé, colocou-se ao lado dos restos da pira do irmão e ali ficou, olhando fixamente, sem sair do lugar.

— Sinto como se estivéssemos deixando Hazael aqui.

— Eu sei.

Ter carregado o peso dele até ali, vindos tão longe, e de repente abandoná-lo, parecia impensável. Ele olhou em volta de novo: viu um jarro.

— Água — disse Liraz. — Foi a mulher Naja quem deixou aí.

Akiva pegou o jarro, ofereceu água a Liraz e então também bebeu, avidamente. A água era doce, fresca, essencial naquele momento. Quando acabaram, ele encheu o jarro cuidadosamente com as cinzas de Hazael. Talvez fosse tolo ou mórbido guardar aquele tipo de resíduo físico, mas, por algum motivo, ajudava.

— Pronto — disse ele.

— Vamos para as cavernas? Os outros devem estar pensando que morremos na explosão.

As cavernas dos Kirin, onde, muito tempo antes, ele e Madrigal tinham combinado de se encontrar para darem início a sua revolução. Agora eram seus irmãos Ilegítimos que o esperavam lá, e, com eles, um futuro que ainda não parecia real. Seu propósito permanecia claro: terminar o que tinha começado, acabar com a matança, criar — embora não soubesse como — uma nova maneira de viver. Mas, sem Karou ao seu lado, aquele sonho parecia ter toda a magia de uma estrada de terra empoeirada levando a um horizonte vazio.

— Vamos — disse ele. — Mas antes precisamos fazer uma coisa.

Liraz exalou o ar demoradamente.

— Por favor me diga que isso não envolve dizer adeus.

Adeus. A palavra doeu. Adeus era a última coisa que Akiva queria dizer a Karou. Então ele se lembrou da primeira noite que passaram juntos, dos repetidos “olás” sussurrados que tinham dito um ao outro no baile do Comandante e depois, como um segredo compartilhado. Estava nos lábios dele na primeira vez que a beijara. Era o que diria a ela se pudesse. Olá.

— Não — disse ele a Liraz, lembrando-lhe que despedidas davam azar.

E ela respondeu friamente:

— Azar? É melhor começarmos a evitar isso, sem dúvida alguma.

* * *

Não foi “olá” nem “adeus” o que fez Akiva interromper sua fuga e voltar ao quarto escondido pelo encanto, para surpreender Karou e Issa.

O Lobo, graças aos deuses da luz, não estava lá, mas, quando Karou ficou de pé, ela lançou um olhar rápido e inseguro em direção à porta que foi como outra punhalada — um lembrete de que Thiago estava por perto e de que podia entrar ali a qualquer momento.

— O que está fazendo aqui? — perguntou Karou, assustada. Seu cabelo azul-pavão caía em uma trança por cima de um dos ombros, e as marcas em seus braços estavam agora cobertas pela roupa. O inchaço em seu rosto tinha diminuído um pouco, e a raiva parecia ter sumido. Um rubor subiu pelo seu pescoço, cobrindo repentinamente sua palidez. — Vocês já deviam ter ido embora.

Já deviam ter ido. Aquilo não causou a surpresa que poderia ter provocado. A prisão deles era uma farsa. Quando Akiva colocara a mão na porta para queimá-la, ela se abriu. Não estava nem trancada. Ele deixara escapar um sorriso, espiara pela abertura e vira um pequeno pátio sujo cheio de escombros; nenhum guarda.

— Estamos indo. Mas preciso lhe dizer uma coisa. — Akiva fez uma pausa e viu Karou ficar tensa. O que ela achava que ele iria dizer? Será que estava com medo de que ele tivesse ido até ali para falar de amor? Ele balançou a cabeça, querendo assegurá-la de que aqueles dias tinham acabado, de que ela não precisava mais temer que ele lhe causasse aquele tormento. Naquela noite, ele era o portador de outro tormento. Mais uma vez lhe trazia uma escolha impossível. — Vou fechar os portais.

Fosse lá o que ela tivesse imaginado, com certeza não estava preparada para aquilo.

O quê? — indagou, em um fiapo de voz.

— Sinto muito — disse ele. — Queria avisá-la para que você pudesse escolher de que lado vai ficar.

Que lado: Eretz ou o mundo humano? De que vida você vai desistir?

— Que lado? — Ela saiu de trás da mesa. — Você não pode fazer isso. Não este portal. Eu preciso dele. Nós precisamos dele. — Ela havia começado a falar com espanto, mas depois pareceu se sentir afrontada, com uma pontada de pânico.

Issa ondulou o corpo e se colocou ao lado dela.

— Já não destruiu o suficiente? Por que você...?

— Para salvar os dois mundos — respondeu Liraz — de corromperem um ao outro.

— Do que você está falando?

— Armas — explicou Akiva, sem meandros. Então fez uma pausa. Ele não conseguia pensar em uma forma de resumir tudo o que tinha acontecido na Torre da Conquista, formular uma explicação clara. — Jael. Talvez ele esteja morto, mas, se não estiver, virá até aqui atrás de armas. Com o Domínio.

O branco dos olhos de Karou apareciam em toda a volta de suas íris pretas. Ela estendeu a mão para se apoiar na mesa.

— Como ele poderia saber sobre as armas humanas? — Uma súbita fúria. — Você contou a ele?

Outra punhalada: como ela podia acreditar que ele ajudaria Jael a conseguir armas? Mas foi sem alegria alguma que ele lhe disse a verdade; queria poder mentir e poupá-la.

— Razgut.

Karou ficou imóvel por um instante, depois fechou os olhos. Todo o rubor que cobria seu rosto se esvaneceu, e ela deixou escapar um gemido baixo e angustiado.

— Não é culpa sua, docinho — sussurrou Issa, ao lado dela.

— É, sim — retrucou Karou, abrindo os olhos. — Muitas outras coisas não são, mas isto é.

— E minha também — disse Akiva. — Eu encontrei um portal para o império.

Os serafins não tinham mais acesso aos portais — e, por conseguinte, ao mundo humano — fazia um milênio. Akiva mudara isso. Ele havia encontrado um portal, na Ásia Central, no Uzbequistão. Razgut mostrara a Karou o outro.

— Eles podem passar por qualquer um dos dois portais. Jael planejou isso como um desfile, com tudo o que os humanos acreditam que envolva os anjos.

Karou segurava a mão de Issa, sua respiração acelerada.

— Como se as coisas já não estivessem ruins o bastante — disse ela, e deu uma gargalhada sofrida que Akiva sentiu no coração.

Ele queria abraçá-la, dizer que ficaria tudo bem, mas não podia prometer isso e, é claro, não podia tocá-la.

— Os portais precisam ser fechados — disse ele. — Se você precisar de tempo para decidir...

— Decidir o quê? Em que mundo vou ficar? — Ela o encarou. — Como você pode me pedir isso?

E Akiva soube que Karou escolheria Eretz. É claro que já sabia disso. Senão, pensou, nenhum tipo de ameaça — mesmo com mundos e vidas em jogo — poderia levá-lo a fechar os portais entre eles, mantendo-o preso para sempre em um mundo sem ela.

— Você tem uma vida aqui — disse ele. — Talvez nunca mais haja uma forma de voltar.

— Voltar?

Ela inclinou a cabeça daquele jeito, como um pássaro, tão Madrigal. Estava ferida e confusa, ali de pé diante dele, arfando e reunindo coragem como se realizasse um encanto. Com o cabelo puxado para trás, a linha do seu pescoço parecia mais firme, como a representação que um artista faria da elegância. Os ângulos de seu rosto também estavam destacados — magros demais —, rivalizando com a suavidade, e aquela mistura parecia a própria essência da beleza. Seus olhos negros, iluminados pela luz das velas, brilhavam como os de um animal, e não houve dúvidas naquele momento de que, qualquer que fosse o corpo em que estivesse, sua alma pertencia ao imenso mundo selvagem de Eretz, terrível e lindo, com tantos lugares bravios e inexplorados, lar de feras e anjos, caça-tempestades e serpentes do mar, com uma história ainda a ser contada.

Então, em um misto de sibilar e ronronar, afiada como uma lâmina recém-amolada, ela disse:

Eu sou uma quimera. Minha vida é lá.

Akiva sentiu alguma coisa percorrer seu corpo, talvez várias coisas: um tremor de amor e um calafrio de medo, um ímpeto de poder e uma onda de esperança. Esperança. Era verdade, nada podia matar a esperança, como os grandes besouros-escudo que ficavam inertes durante anos sob as areias do deserto, esperando que alguma presa passasse por perto. Que razões ele ainda tinha para sentir esperança?

Enquanto estiver vivo, dissera ele a Liraz, sem muita convicção, há sempre uma chance.

Bem, ele estava vivo, e Karou também, e ficariam no mesmo mundo. Eram provavelmente as razões mais frágeis para se ter esperança — estamos vivos e no mesmo mundo —, mas ele se agarrou àquilo enquanto lhe contava seus planos de voar até o portal de Samarcanda e queimá-lo primeiro, para então voltar ao do Marrocos. Queria lhe perguntar aonde os rebeldes iriam agora, mas não podia. Ele não podia saber aquilo. Ainda eram inimigos, e, quando saísse dali, Karou desapareceria de sua vida de novo — se por muito tempo ou se para sempre, ele não tinha como saber.

— De quanto tempo vocês precisam? — perguntou ele, sentindo um aperto na garganta. — Para voltarem?

Mais uma vez ela olhou em direção à porta, e Akiva sentiu o calor da fúria e da inveja, sabendo que ela iria até o Lobo assim que ele saísse dali, e que os dois planejariam juntos o que fazer em seguida e que, para onde quer que os rebeldes quimeras fossem, Karou ainda estaria com Thiago, e não — nunca — com ele. Então ele perdeu o controle. Deu um passo firme em direção a ela e disse:

— Karou, como...? Depois do que ele lhe fez?

Estendeu o braço para tocá-la, mas ela se encolheu e balançou a cabeça decididamente, uma única vez.

— Não.

Ele abaixou a mão.

— Você não pode me julgar — disse ela, em um sussurro alto e violento.

Os olhos dela estavam úmidos e arregalados e desesperadamente infelizes, e ele a viu levar a mão, por um antigo instinto, ao pescoço, onde costumava usar o cordão do osso da sorte. Ela o usava na primeira noite que passaram juntos; eles o partiram quando estava prestes a amanhecer e sabiam que era hora de se separarem, e nos dias que se seguiram aquilo se tornara um ritual. Sempre antes da partida. E, ainda que o desejo tivesse mudado com o passar dos dias e das semanas e se transformado no grande sonho deles de um mundo refeito, tinha começado bem mais simples: que eles pudessem se ver novamente.

Mas Karou não encontrou nada no pescoço, portanto abaixou a mão de novo. Então encarou Akiva diretamente e falou com frieza:

— Adeus.

Parecia o arrebentar de uma última corda. Enquanto estiver vivo, há sempre uma chance. Uma chance de quê?, perguntou-se Akiva, lançando um encanto sobre si mesmo e a irmã e então saindo para a noite. De que as coisas possam melhorar? Como tinha terminado a conversa naquele amargo campo de batalha, tantos dias antes?

Ou piorar. Era isso. Geralmente pioram.