EPÍLOGO

As cavernas dos Kirin. Dois exércitos inquietos e desconfortáveis se agitam em nervosismo. Somente a grande extensão das cavernas garante a paz, mantendo-os afastados.

Os Ilegítimos alegam sentir o mal-estar causado pelos hamsás mesmo além das pedras. Os espectros, furiosos com as frias contagens marcadas em preto nos nós dos dedos dos inimigos, não desistem de colocar as mãos nas paredes que os separam. Não é um bom começo. Cada exército anseia por cortar as mãos dos soldados do outro e atirá-las no abismo gelado lá embaixo.

Akiva diz aos irmãos que a magia das marcas não passa pela pedra, mas eles não querem admitir. O tempo todo ele deseja que Hazael estivesse ali.

— A essa altura ele já teria feito todos jogarem uma partida de dados juntos — diz Akira para Liraz.

— Pelo menos a música ajuda — comenta ela.

Ela não se refere à música das cavernas. O som das flautas de bambu assombra a todos, fazendo tanto anjos quanto feras acordarem de pesadelos mais parecidos do que ambos poderiam imaginar. Os pesadelos dos Ilegítimos, de um país de fantasmas; os dos quimeras, de uma tumba cheia das almas dos seus amados. Só Karou se sente mais calma com a música do vento. É a canção de ninar da sua primeira infância, e ela foi surpreendida pelas duas noites de sono profundo e sem sonhos que passaram ali.

Mas não esta noite. É a véspera da batalha, e eles estão reunidos, várias centenas juntos, na caverna maior. O violino de Mik preenche o espaço com uma sonata de outro mundo, e estão todos em silêncio, ouvindo.

Inimigo em comum, seus comandantes lhes disseram. Causa em comum.

Por enquanto, pelo menos. Está implícito, ou assim se acredita, que em breve esta situação vai mudar — reverter — e que eles ficarão livres para mais uma vez perseguirem seu ódio como sempre fizeram, quimeras contra serafins, serafins contra quimeras. A esperança — a de Karou, a do Lobo, a de Akiva e até a de Liraz — é de que o ódio deles possa se transformar em algo diferente antes que esse dia chegue.

Parece um teste para o futuro em Eretz.

A cabeça de Zuzana está em um dos ombros de Karou, e Issa está do outro lado. O Lobo não está longe; Ziri ficou mais à vontade em seu novo corpo, e, deitado de costas, reclinado sobre os cotovelos, ao lado do fogo, ele parece elegante, a crueldade do antigo ocupante ausente de seu rosto a não ser quando ele se lembra de tentar colocá-la ali. Seus sorrisos não parecem mais saídos de um livro. Karou percebe que ele a olha, mas não retribui o olhar. Sua atenção é atraída para outra direção, para o outro lado da caverna, onde Akiva está sentado junto à outra fogueira com seus próprios soldados em volta.

Ele está olhando para ela.

Como sempre acontece quando estão juntos, é como se houvesse um estopim aceso queimando no ar que os separa. Nestes últimos dias, quando isso acontece, ou um ou outro desvia os olhos rapidamente, mas desta vez eles deixam o estopim queimar. Estão preenchidos pela visão um do outro. Ali, naquela caverna, aquela reunião extraordinária — aquele fervilhar de ódios em colisão, controlados temporariamente por um ódio em comum — podia ser seu sonho de tanto tempo atrás, visto através de um espelho distorcido. Não era assim que deveria ser. Eles não estão lado a lado como imaginaram um dia. Não estão exultantes e não se sentem mais como se fossem os instrumentos de uma força maior. São criaturas agarrando a vida com mãos manchadas. Há muita coisa entre os dois, todos os vivos e todos os mortos, mas por um instante tudo se desfaz e o estopim queima mais forte e com mais força, e Karou e Akiva quase sentem como se estivessem se tocando.

Amanhã eles vão dar início ao apocalipse.

Esta noite eles se permitem olhar um para o outro, apenas um pouco mais.

... continua