A HISTÓRIA DE UMA «TIA POBRE»
1
Começou tudo numa tarde perfeitamente idílica de domingo – por sinal, a primeira tarde de Julho. No horizonte, deslizavam duas ou três pequenas nuvens brancas que mais pareciam sinais de pontuação colocados no céu com o maior cuidado. Sem obstáculos de qualquer espécie, a luz do Sol derramava-se em profusão sobre o mundo. Com o mês de Julho a reinar em toda a sua glória, até mesmo a prata amachucada de uma tablete de chocolate abandonada sobre a relva cintilava orgulhosamente, como um cristal lendário no fundo de um lago. Olhando para a cena tempo bastante, uma pessoa conseguia ver que o Sol abrigava um outro tipo de luz, ligeiramente diferente, como uma caixa chinesa que sai dentro de outra. Essa luz interior brilhava como mil e um grãos de pólen – grãos macios e opacos, flutuando ao sabor do ar, quase imperceptivelmente, até por fim descer e assentar sobre a face da Terra.
No caminho de regresso a casa depois de um passeio de domingo, fizemos uma paragem na praça diante da galeria de pintura. Sentados à beira do lago, a minha companheira e eu admirámos por cima da água os dois unicórnios de bronze que havia na outra margem. A longa estação das chuvas tinha chegado ao fim. Uma fresca brisa de Verão agitava as folhas dos carvalhos, fazendo aparecer pequenas rugas aqui e ali sobre a superfície das águas pouco profundas. O tempo corria ao sabor da brisa: ora estava quieto e em sossego, ora agitado, ora quieto, ora agitado. Algumas latas de refrigerantes podiam ver-se à transparência das águas límpidas do lago. Aos meus olhos pareciam as ruínas inundadas de uma qualquer cidade antiga perdida. Mesmo à nossa frente passou uma equipa de softball, equipada a rigor, um rapaz a andar de bicicleta, um velho que andava a passear o cão, um cidadão estrangeiro com calções de corrida. A aragem trouxe até nós pedaços de uma música que saía de um rádio portátil pousado em cima da relva: uma xaroposa canção pop que falava de amores perdidos ou a caminho disso. Pareceu-me reconhecer a melodia, mas fiquei na dúvida. Podia dar-se o caso de ser apenas parecida com uma outra que eu conhecia. Apenas com um ouvido à escuta, sentia o sol derramar-se nos meus braços – sem um som, lenta e suavemente. De vez em quando, esticava os braços à frente do corpo e espreguiçava-me, depois voltava à posição inicial. O Verão tinha chegado.
Por que carga de água haveria uma tia pobre, no meio daquela tarde de domingo, de ter invadido e enternecido o meu coração, escapa-me por completo. Perto de mim não se via nenhuma pobre tia, nem qualquer outra coisa que me fizesse crer na sua existência. E, contudo, a verdade é que ela apareceu diante de mim, vinda do nada, e desapareceu logo a seguir. Quanto muito, tinha-se apoderado do meu coração por um milionésimo de segundo, antes de ir à vida, deixando no seu lugar uma estranha sensação de vazio humano. Parecia que alguém se tinha evolado por uma janela e foi um ar que lhe deu. Corremos até à janela, metemos a cabeça de fora, mas já não se encontrava ninguém à vista.
Uma tia pobre?
Passeei os olhos em volta, depois levantei a cabeça e olhei para cima, na direcção do céu. Tal como tinha aparecido, desaparecera. Como acontece com a trajectória invisível de uma bala, as palavras tinham sido absorvidas por aquele início de tarde de domingo. Os começos são sempre assim. Num determinado momento está lá tudo, no minuto seguinte foi tudo ao ar.
Virando-me para a minha amiga, experimentei traduzir os pensamentos.
– Gostaria de escrever sobre uma tia pobre. – Acrescente-se que sou uma daquelas pessoas que sente necessidade de escrever histórias. – Uma tia pobre?
Ela pareceu ficar um nadinha surpreendida e lançou-me um olhar inquiridor, como se estivesse a tentar captar o sentido das minhas palavras.
– Porquê uma tia pobre?
Nem eu próprio sabia a resposta. Por qualquer razão, as coisas que captam a minha atenção e despertam os meus sentidos são sempre coisas que escapam à minha compreensão.
Fiquei calado durante um tempo. Entretive-me a passar o dedo pelo vazio feito de ausência humana que em mim ficara.
– Pergunto-me se alguém gostaria de ler uma história assim... – disse ela.
–Tens razão – retorqui –, de facto pode não ser uma leitura especialmente interessante.
– Nesse caso, porquê escrever acerca disso?
–Vamos lá ver se consigo explicar-me direito – disse eu. – Para explicar as razões que me levam a desejar escrever uma história sobre uma tia pobre, teria de escrever primeiro a história propriamente dita. Porém, uma vez escrita, deixaria de ser preciso explicar a razão que me levou a escrevê-la, não é verdade?
Ela sorriu, tirou do bolso um cigarro todo amassado e acendeu-o. Maltratava de tal maneira os cigarros que às vezes nem sequer ficavam em condições de os acender. Aquele deu para acender.
– A propósito – referiu ela. – Por acaso tens alguma tia pobre na tua família?
– Nem uma para amostra – respondi.
– Bom, tenho eu. Uma, para ser concreta. Uma pobre tia digna desse nome. Até cheguei a morar com ela durante alguns anos.
Olhei-a nos olhos. O seu olhar tinha a expressão calma de sempre.
– Mas a verdade é que não tenho qualquer desejo de escrever acerca dela – acrescentou. – Nem uma palavra que seja.
O rádio portátil começou a passar outra canção. A música era parecida com a primeira, mas desta vez não fui capaz de a identificar.
– Tu, que não tens uma tia pobre na tua família – continuou ela –, ainda assim queres a todo o custo escrever uma história sobre uma pobre tia. Ao passo que eu, que tenho uma pobre tia na vida real, não quero escrever sobre ela. Uma situação um tanto ou quanto bizarra, não te parece?
Fiz que sim.
– Porque será?
Ela limitou-se a inclinar ligeiramente a cabeça. De costas para mim, entretinha-se a deixar que a água corresse entre os seus dedos. Era como se as minhas perguntas percorressem os seus dedos até serem conduzidas à tal cidade em ruínas no fundo do mar. Ainda por lá deve estar, de certeza. Tenho a certeza de que o meu ponto de interrogação por lá se encontra, cintilando como um pedaço de metal. Tanto quanto sei, azucrinando as latas de Coca-Cola espalhadas à volta com a mesma pergunta.
Porque será? Porque será? Porque será?
Com a ponta do cigarro amarfanhado, ela deixou cair a cinza no chão.
– Para ser sincera – adiantou –, há muitas coisas que gostaria de dizer acerca da minha tia, mas não consigo encontrar as palavras certas. Só sei que não sou capaz... pelo facto de conhecer uma pobre tia de verdade. – Ela mordeu o lábio. – É complicado... muito mais complicado do que possas imaginar.
Tornei a dirigir o olhar para os unicórnios de bronze. Tinham os chifres em riste, em jeito de protesto contra o facto de a maré do tempo os ter deixado para trás, abandonados à sua sorte. A minha companheira limpou os dedos à bainha da blusa, depois tornou a secar a mão, antes de se virar para mim:
– Vais esforçar-te por escrever acerca de uma pobre tia – asseverou ela. – Vais encarar isso como uma missão. No meu entender, tomar a responsabilidade de qualquer coisa significa oferecer-lhe a salvação. No entanto, tenho as minhas dúvidas de que estejas em posição de alcançar o que te propões. Quer dizer, a começar pelo facto de nem sequer existir uma pobre tia a que possas chamar tua.
Soltei um profundo suspiro.
–Tenho muita pena – disse ela.
– Não tem importância – disse eu. – És capaz de ter razão.
E tinha. Eu nem sequer tinha uma pobre tia a que pudesse chamar minha.
Até parecia o estribilho de uma canção.
2
Se calhar, o leitor também não tem uma tia pobre na família. Nesse caso, temos alguma coisa em comum. Bem sei que é algo estranho para partilhar – como uma poça de água da chuva numa manhã tranquila.
Ainda assim, é provável que já tenham posto a vista em cima de uma pobre velha no casamento de alguém. Tal como em todas as estantes existe sempre um calhamaço à espera de ser lido e em todos os armários se esconde uma camisa há muito não usada, também todo o copo-d’água de um casamento que se preze conta com a presença de uma tia pobrezinha.
Quase ninguém se dá ao trabalho de a apresentar, e quase ninguém mete conversa com ela. Ninguém lhe pede que faça um discurso. Encontra-se sentada à mesa, no lugar que lhe foi destinado, mas limita-se a estar para ali – como uma garrafa vazia de leite. Devagar, mergulhando tristemente a colher no consommé, que bebe em triste golinhos. Come a salada com o garfo de peixe. Não consegue engolir o feijão-verde todo. E é a única pessoa sem colher de sobremesa quando chega a hora do sorvete. Com sorte, o presente que ofereceu aos noivos acabará perdido no fundo do armário. Mas se a sorte tombar para o outro lado, será o presente dado por ela que deitarão fora na hora da despedida, juntamente com aquele objecto obscuro e poeirento que ninguém sabe o que é, de quem foi e toda a tralha do género.
É um facto que a fotografia dela está ali, sempre que se abre o álbum do casamento. Contudo, mostra-se tão animada como um corpo acabado de resgatar das águas.
«Querido, quem é esta senhora aqui, na segunda fila, com óculos?»
«Ninguém que interesse», responde o jovem marido. «Apenas uma pobre tia que eu tenho na família.»
Nem sequer nome tem. É apenas uma pobre tia. Nada mais.
Todos os nomes se esbatem com o tempo. Tão certo como o destino.
Agora, o que existem são muitas maneiras de isso acontecer. Primeiro, temos aqueles cujo nome deixa de existir a partir do momento em que morrem. Esses são os fáceis. Cabe-nos chorar a sua morte: «O rio secou, os peixes morreram...», ou então: «As chamas cobriram os céus, incendiando a floresta e matando todas as aves». Seguem-se aqueles que se apagam como um televisor muito usado, deixando ver uma espécie de fantasmas tremeluzentes por cima da imagem, até que um dia também isso se desvanece e o televisor dá o berro. Não se pode dizer que seja mau de todo, para os que se encontram nessa situação: trata-se de nomes que fazem lembrar as pegadas de um elefante indiano que anda perdido. Decididamente, não é mau de todo. E, finalmente, temos aqueles nomes que se varrem da nossa memória ainda antes da hora da morte, e a essa categoria pertence os das pobres tias.
Confesso que volta e meia eu próprio me encaixo neste última categoria dos sem-nome que é o das pobres tias. Costuma acontecer no meio da confusão vivida no terminal de uma estação. De repente, deixo de saber para onde vou, o meu nome e morada, tudo desaparece da minha cabeça. O que vale é que nunca dura muito tempo; cinco ou dez segundos no máximo.
E depois temos outro caso, quando alguém diz:
«Por mais que queira, não me consigo lembrar do seu nome.»
«Deixe estar, não se preocupe. O nome não tem grande importância.»
Apontando para a boca repetidas vezes, diz o outro:
«Está mesmo aqui, na ponta da língua, palavra de honra...»
Sinto-me como se estivesse enterrado no chão, apenas com metade do pé esquerdo de fora. As pessoas tropeçam e desatam a pedir desculpa. «Desculpe, está mesmo aqui, debaixo da língua...»
Muito bem, assim sendo, para onde vão todos esses nomes perdidos? A probabilidade de sobreviverem nos labirintos da grande cidade revela-se extremamente reduzida. Alguns são atropelados por camiões enormes, outros há que morrem a um canto, à beira da sarjeta, por não terem dinheiro para tomar o autocarro, e outros ainda escolhem afundar-se, com os bolsos pesados, carregados de orgulho, no fundo de um rio.
Mesmo assim, um ou outro poderão ter sobrevivido e encontrado o caminho de volta para a cidade dos nomes perdidos, onde erigiram uma pequena e pacata comunidade. Uma cidadezinha à entrada da qual existirá por certo um letreiro a dizer:
ENTRADA PERMITIDA APENAS A FUNCIONÁRIOS EM EXERCÍCIO DE FUNÇÕES
Escusado será dizer que todo aquele que ali entrar sem ser por motivo de negócio receberá, naturalmente, a devida puniçãozinha.
Pode acontecer que a tal pequena punição seja a que me foi reservada, ao ver-me amarrado a uma pobre tia.
A primeira vez que dei por ela foi em meados de Agosto. Não que tivesse acontecido alguma coisa de anormal que me pudesse ter alertado para a sua presença. Houve um dia em que simplesmente dei por mim com uma pobre tia às costas.
Não se pode dizer que fosse uma sensação desagradável. A tia nem sequer era especialmente pesada e também não despejava mau hálito por cima dos meus ombros. Limitava-se a estar ali, às minhas costas, como uma sombra esbatida. As pessoas viam-se obrigadas a olhar com mais atenção para dar pela presença dela. Nos primeiros dois ou três dias, os gatos que vivem na minha casa olharam para ela com uma certa desconfiança, mas, assim que perceberam que a pobre tiazinha não tinha pretensões a conquistar o seu território, habituaram-se a ela.
Alguns dos meus amigos mostraram-se inquietos, verdade seja dita. Por vezes, acontecia estarmos todos sentados à mesa a tomar um copo e ela aparecer atrás de mim e pôr-se a espreitar os meus amigos por cima do meu ombro.
– Deixa-me nervoso – lembro-me de um deles confessar na altura.
– Não deixes que isso te afecte – disse eu. – Ela é inofensiva, não faz mal a uma mosca.
– Bem sei, mas, o que é que tu queres, deprime-me.
– Nesse caso tenta não olhar para lá.
– Pode ser que tenhas razão. – Depois suspirou. – Onde é que foste arranjar alguém que anda sempre atrelado a ti?
– Não se pode dizer que tenha ido a uma determinada parte. Limitei-me a pensar em certas coisas. Só isso.
Ele acenou com a cabeça e suspirou de novo.
– Estou a imaginar. Prende-se com a tua maneira de ser. Foste sempre assim.
– A-hã.
Passamos as horas seguintes a emborcar uísque atrás de uísque, sem grande entusiasmo.
– Diz-me uma coisa – perguntei eu. – O que é que ela tem que te deprime assim tanto?
– Fico com a sensação de que a minha mãe anda a vigiar-me.
– Como é?
–Ainda perguntas? O mais provável é teres a minha mãe à perna.
A julgar pela opinião de uma quantidade de pessoas (uma vez que eu próprio não a conseguia ver), a tia pobrezinha que eu trazia atracada às costas não possuía uma forma constante: pelos vistos, tratava-se de uma presença etérea que mudava de forma consoante as imagens mentais de cada observador.
Aos olhos de um amigo, tratava-se da sua cadela, de raça Akita16, que tinha morrido no Outono anterior de cancro no esófago.
– Imagino que ela estivesse a dar as últimas, na medida em que já era entradota, com os seus quinze anos. O que não impede que tenha tido uma morte pavorosa, a pobrezinha.
– Cancro do esófago, dizes tu?
– Sim. É extremamente doloroso. Tudo menos isso. Passava a vida a ganir, apesar de já quase ter perdido a voz. Queria tê-la mandado levar uma injecção para morrer durante o sono, mas a minha mãe não deixou.
– Porquê?
– Sei lá. Provavelmente porque ficaria com remorsos. Mantivemo-la viva durante dois meses, graças a um tubo de alimentação. Ficou sempre lá fora, num barracão que existe no alpendre. Homem, que fedor.
Durante algum tempo ficou em silêncio.
– Não era nada do outro mundo, como cadela. Parecia que tinha medo da própria sombra. Ladrava a toda a gente que passava por perto. Um animal que, a bem dizer, não servia para nada. Barulhento, coberto de sarna...
Concordei com a cabeça.
– Melhor seria ter nascido cigarra. Sempre podia ter-lhe arrancado a cabeça e ninguém se importaria. Além de que não saberia o que era ter cancro no esófago.
Mas ali estava ela, ainda e sempre às minhas costas, uma cadela com um tubo de plástico enfiado na boca.
Para outro, agente imobiliário de profissão, era a sua velha professora da primária.
– Deve ter sido por volta de 1950, no primeiro ano da guerra da Coreia – referiu ele, usando uma toalha espessa para limpar a transpiração do rosto. – Tive-a como professora dois anos seguidos. Tornar a vê-la faz-me sentir uma certa nostalgia, é como voltar ao passado. Não que eu tivesse saudades dela, atenção. Pode até dizer-se que me tinha esquecido que ela existia.
A julgar pela chávena de chá de cevada frio que me ofereceu, até parecia que eu era da família da tal professora que ele apanhara nos primeiros anos de escola.
– Era um caso bicudo, coitada, agora que penso nisso. Tinha casado há pouco tempo quando o marido foi mobilizado. Ele embarcou num navio de transporte de tropas e bum! Deve ter sido em 1943. Depois disso, ela continuou sempre a ser professora. Lembro-me de que ficou com queimaduras graves nos ataques aéreos do ano seguinte, em 44. Recebeu queimaduras graves no lado esquerdo, da cara até ao braço. – Ao dizer aquilo, ele descreveu com a mão um arco que ia da face ao braço esquerdo. Em seguida, bebeu de um só gole o chá que tinha na chávena e enxugou uma vez mais o suor. – Pobre criatura. Deve ter sido bonita antes de lhe acontecer aquilo. Além de lhe ter alterado a maneira de ser, segundo dizem. Se ainda estiver viva, deve ter os seus sessenta anos. Hmmm... 1950, não foi o que eu disse?
E foi desta forma que toda a espécie de listas de lugares marcados e de mapas das redondezas se materializaram. As minhas costas tornaram-se o centro do cada vez mais alargado círculo em torno da pobre tia.
Ao mesmo tempo, porém, verifiquei que os meus amigos, um a um, se afastavam de mim. À imagem e semelhança de um pente que começa a perder dentes.
«Ele não é mau tipo», diziam eles acerca da minha pessoa, «sou eu que não quero ver-me obrigado a encontrar pela frente a minha deprimente mãe (ou o velho cão que morreu de cancro no esófago ou a professora com as marcas da queimadura) sempre que der de caras com ele.»
Começava a sentir-me cada vez mais como se estivesse na cadeira do dentista – ninguém me odiava, mas todos evitavam a minha companhia. Quando encontrava por mero acaso alguma pessoa amiga na rua, ela logo tratava de arranjar uma desculpa para se pôr a andar o mais depressa possível. «Não sei explicar bem», confidenciou-me uma rapariga muito honestamente, não sem uma certa dificuldade, «mas nos últimos tempos torna-se mais difícil para mim conviver contigo. Não me importava tanto se andasses antes com um bengaleiro às costas ou coisa que o valha...»
Um bengaleiro.
«Ora, que se danem», dizia eu com os meus botões. «Assim como assim, nunca fui um animal social por excelência. E de certeza que não ia querer andar com um bengaleiro às costas o resto da vida.»
Ao contrário dos meus amigos, que evitavam a minha presença, os meios de comunicação demonstravam por mim um interesse desmedido. Sobretudo as revistas semanais. Dia sim, dia não, aparecia alguém para me fotografar, a mim e à pobre tia, manifestando o seu desagrado quando a imagem dela não ficava nítida e bombardeando-me com perguntas absurdas. Pela minha parte, confesso que estava sempre à espera que a minha cooperação com as revistas daquele género conduzisse a uma nova descoberta ou permitisse mais desenvolvimentos no que à pobre tia dizia respeito, mas tal não se verificou. A única coisa que apanhei foi uma seca monumental.
Um dia, cheguei a aparecer no programa da manhã. Tiraram-me da cama às seis da matina, arrastaram-me até ao estúdio de televisão e deram-me a beber doses de um café intragável. À minha volta, só via toda a espécie de pessoas inconcebíveis a correr de um lado para o outro, ocupadas com tarefas não menos inconcebíveis. Ainda pensei em escapulir-me dali como quem não quer a coisa, mas, antes que pudesse passar da teoria à prática, chamaram-me e disseram que era a minha vez. Quando as câmaras estavam desligadas, o apresentador do talk show mostrava-se um tipo petulante, mal-humorado e arrogante até dizer chega, que só sabia berrar com toda a gente. Porém, mal a luzinha vermelha da câmara se acendia, revelava-se todo sorrisos, simpatia e inteligência, transformando-se no exemplo acabado de perfeito cavalheiro de meia-idade e trato cordial.
«E agora está na hora de darmos início à nossa emissão diária – «As coisas que o mundo tem para nos oferecer», anunciou ele para a câmara. «Hoje temos connosco em estúdio o Sr. ..., que descobriu de um dia para o outro que acartava com uma pobre tia às costas. Não se pode dizer que haja muita gente com o mesmo problema, daí que eu gostasse de começar por perguntar ao nosso entrevistado como é que isso aconteceu e quais as dificuldades que ele tem de enfrentar.» Virando-se para mim, continuou: «É muito incomodativo andar com uma pobre tia às costas?»
«Não», respondi eu, «de facto não se pode dizer que seja incomodativo nem difícil. Ela não é pesada e, além disso, não precisa de ser alimentada.»
«Portanto, nada de dores nas costas?»
«Não, nada disso.»
«Quando é que deu por ela aí em cima?»
Contei resumidamente a minha tarde passada no lago com os unicórnios de bronze, mas o moderador não deu mostras de perceber a mensagem.
«Quer então dizer», observou ele, pigarreando, «que a pobre tia se encontrava a vaguear pelas imediações desse tal lago, onde o meu amigo estava sentado, e apropriou-se das suas costas? É isso?»
Não, disse eu com a cabeça, não era nada daquilo. Ó valha-me Deus, quem me mandara a mim meter-me naquelas andanças? Tudo o que aquela gente queria era piadas fáceis ou histórias horripilantes. Não sabia quanto tempo mais conseguiria aguentar.
«A tia pobre não é nenhum fantasma», esforcei-me por explicar. «Ela não anda por aí a deambular, oculta na sombra, à espera de se “apoderar” do corpo de alguém. A pobre tia é apenas uma força de expressão», expliquei eu. «Uma entidade abstracta.» Ninguém disse nada. Não tinha outro remédio senão tentar ser mais concreto.
«As palavras são como eléctrodos que se encontram ligados à cabeça. Se uma pessoa enviar sempre o mesmo estímulo, gera-se uma determinada resposta e, por seu turno, assiste-se a uma reacção. Claro está que cada indivíduo tem uma resposta diferente e, no meu caso, a resposta funciona como uma espécie de existência independente. É o mesmo que sentir a língua inchar e ficar intumescida passando a formar um volume dentro da boca. Isto para dizer que o que eu tenho às costas é apenas a expressão “pobre tia” – precisamente essas palavras, sem significado nem forma. Se eu tivesse de lhe pôr um rótulo, diria que se trata de um “sinal conceptual”, um conceito ou uma coisa do género.»
O apresentador do programa apresentava uma expressão algo confusa, para não dizer aflita.
«Diz que não tem forma nem conteúdo», observou ele, «mas a verdade é que podemos nitidamente ver... qualquer coisa... uma imagem real nas suas costas. Imagem essa que desperta em cada um de nós um significado...»
Encolhi os ombros.
«Claro», disse eu, «é isso que acontece com os sinais.»
«Nesse caso», interrompeu a jovem assistente do meu anfitrião, na esperança de quebrar o clima de impasse que ameaçava o desenrolar do programa, «podia muito bem pegar nessa imagem, ou nesse ser ou lá o que é, e fazê-la desaparecer, se assim quisesse.»
«Não, isso não é possível», disse eu. «A partir do momento em que uma coisa ganha consistência e se materializa, continuará sempre a existir independentemente da minha vontade. Acontece o mesmo com a memória. Por exemplo, todos temos uma ou outra recordação que preferíamos não ter, mas que não conseguimos esquecer. É assim que as coisas se passam.»
Sem se dar por convencida, ela prosseguiu:
«Esse processo de que falou, que consiste em transformar uma palavra num símbolo, acha que é uma coisa que está ao meu alcance?»
«Não lhe sei dizer como é que a coisa funciona, mas, em princípio, acredito que sim, que existe essa possibilidade.»
Depois foi a vez de o apresentador meter a sua colherada.
«Imaginando que eu me punha a repetir a palavra «ideia» ao longo do dia, a configuração de “ideia” poderia a dada altura colar-se às minhas costas, é isso?»
«Pelo menos, em princípio, existe essa possibilidade», ouvi-me repetir mecanicamente.
«Quer então dizer que a palavra “ideia” passaria a ser um símbolo conceptual.»
«Exactamente», respondi eu, mas as luzes agressivas e o ambiente abafado do estúdio começavam a dar-me dores de cabeça. As vozes penetrantes dos outros convidados intervenientes no programa só contribuíam para tornar a dor ainda mais aguda.
«E qual poderia ser o aspecto de uma “ideia”?», quis saber o moderador do programa, despertando o riso na plateia.
Respondi que não sabia. Não me estava nada a apetecer pensar no assunto. A existência de uma pobre tia que possuía uma existência separada já me dava preocupações de sobra. Nenhuma das pessoas ali presentes queria saber disso para nada. A única coisa que lhes interessava era manter acesa a fofoquice até ao intervalo seguinte.
O mundo inteiro é uma farsa, escusado será dizer. Quem é que consegue escapar a isso? Desde o brilho artificial de um estúdio de televisão até à escura e sombria cabana de um eremita, a raiz do mal é a mesma. E eu, condenado a passear com a minha pobre tia às costas por este mundo de loucos, era o maior palhaço de todos. Se calhar, quem tinha razão era a rapariga: quem sabe se não ficaria melhor com um bengaleiro em cima das costas. Talvez então as pessoas me acolhessem de braços abertos no seu círculo. Era uma questão de pintar o bengaleiro de outra cor duas vezes por mês e ir a todas as festas.
«Fantástico! O varão do teu bengaleiro esta semana é cor-de-rosa», parece-me que já estou a ouvir alguém dizer.
«Elementar», respondo eu, «na próxima semana vou experimentar no tradicional verde-britânico.»
Existe até mesmo a possibilidade de as raparigas que por aí andam estarem ansiosas de se meter na cama com um rapaz que anda com um bengaleiro rosa às costas.
Infelizmente, porém, o que eu tinha nas minhas costas não era nenhum bengaleiro mas sim uma pobre tia. À medida que o tempo passava, o interesse do mundo na minha pessoa e na minha pobre tia esmoreceu. Ultimamente ninguém queria saber das pobres tias: nisso a minha companheira tinha razão. Uma vez esgotada a curiosidade inicial, tudo o que ficava era um silêncio pesado como no fundo do mar. Tão profundo como se a pobre tia e eu fôssemos apenas um.
3
– Vi-te na televisão – disse a minha amiga.
Encontrávamo-nos de novo sentados à beira do lago. Não nos víamos há coisa de três meses. Estávamos no princípio do Outono. O tempo passara a correr. Nunca tínhamos ficado tanto tempo sem nos vermos.
– Estavas com um ar bastante cansado.
– Sentia-me completamente esgotado.
– Nem parecias tu.
Concordei com a cabeça. De facto, nem parecia eu.
Ela estava sempre a pôr e a tirar a camisola sobre os joelhos. Põe e tira. A dobrar e a desdobrar. Como se estivesse a fazer o tempo andar para trás e para a frente.
– Pelos vistos, conseguiste finalmente arranjar a tua pobre tia. – Parece que sim.
– E qual é a sensação?
– Sinto-me como uma melancia que caiu a um poço.
Ela sorriu, sem deixar de afagar a camisola fofa e impecavelmente dobrada sobre os joelhos, como se estivesse a fazer festas a um gato.
– E agora já a compreendes melhor?
– Um bocadinho – respondi. – Pelo menos, acho que sim. – E inspirou-te a escrever alguma coisa acerca disso?
– Não. – Abanei a cabeça ao de leve. – Rigorosamente nada.
Não sinto desejo de escrever. Se calhar nunca serei capaz de deitar mãos à obra e escrever.
– Desistente crónico.
– Foste tu que um dia me disseste que a minha escrita nunca serviria para salvar o mundo ou o que quer que fosse. Nesse caso, que sentido faz escrever acerca da pobre tia?
Ela mordeu o lábio inferior e ficou calada.
–Tenho uma ideia. Faz-me perguntas. Talvez isso ajude. – Na qualidade de especialista na pobre tia?
–A-hã. – Ela sorriu. – Vá lá, pergunta. Olha que podes não voltar nunca mais a apanhar-me na disposição de responder a perguntas acerca de tias probrezinhas.
Demorei algum tempo, sem saber por que ponta pegar.
– Às vezes pergunto a mim mesmo como é que se chega a pobre tia. Será que já se nasce assim? Ou será que uma pessoa tem de preencher certas «condições» – como, por exemplo, ser preciso que um insecto gigante passe por uma determinada esquina, arrebanhe os que por ali passam na altura e os transforme em pobres tias?
Ela acenou várias vezes com a cabeça, como que a dizer que a minha pergunta era francamente boa.
– As duas – respondeu. – É tudo a mesma coisa.
– A mesma coisa?
– Exacto. Repara, uma pobre tia pode ter uma infância e uma juventude típicas de «pobre tia». Ou não. Para o caso, vai dar ao mesmo. No mundo existem milhões de razões que explicam outros tantos resultados. Mil e uma razões para viver e mil e uma razões para morrer. Mil e uma razões para apresentar razões. Explicações desse género, há-as a dar com um pau. Basta um telefonema e vão entregá-las ao domicílio, por tuta-e-meia. No entanto, creio que não é disso que precisas, pois não?
– Não – disse eu. – Acho que não.
– Ela existe. Mais nada. Tens de admitir esse facto e aceitá-lo. As razões ou as causas não vêm ao caso. A pobre tia existe, e é quanto basta. É isso que significa ser uma pobre tia. A sua própria existência é a sua razão de ser. Tal como acontece connosco. Estamos aqui e agora, sem que exista alguma razão ou alguma causa especial para que isso aconteça.
Ficámos muito tempo ali sentados, na borda do lago, sem que nenhum de nós dissesse alguma coisa ou se mexesse.
A clara luz outonal projectava uma sombra suave no perfil dela.
– E então – disse ela. – Não me perguntas o que vejo eu nas tuas costas?
– O que tu vês nas minhas costas?
– Rigorosamente nada – afirmou ela com um sorriso. – Só tenho olhos para ti.
– Obrigado – disse eu.
Obviamente que o tempo se encarrega de deitar abaixo todos os homens, sem excepção – tal como o cocheiro espancou a sua velha montada, até abandonar o velho cavalo meio-morto à beira da estrada. Na verdade, porém, as tareias que apanhamos caracterizam-se pela sua extrema benevolência. Com efeito, poucos de nós chegam a perceber que estão a ser fustigados.
No caso de uma pobre tia, porém, conseguimos ver diante dos nossos olhos a tirania do tempo, como se estivéssemos a espreitar pela janela de um aquário. Naquela estreita cela de vidro, o tempo foi comprimindo a pobre tia como se ela fosse uma laranja, até à última gota de sumo. O que me atrai nela é a sua integridade, a sua absoluta perfeição interior.
Acreditem – até à última gota!
Sim, a perfeição. É nela que reside o cerne da existência da pobre tia, como acontece a um corpo sem vida encerrado dentro de um glaciar – um magnífico glaciar feito de gelo que parece aço inoxidável. Seriam precisos dez mil anos de luz solar para derreter um semelhante glaciar. Mas como é sabido que não existe nenhuma pobre tia que viva dez mil anos, ela está condenada a viver paredes-meias com a sua perfeição, a morrer em toda a sua perfeição e a ser enterrada em toda a sua perfeição.
A perfeição e a pobre tia jazem debaixo da terra.
Passam entretanto dez mil anos. Nessa altura, quem sabe, pode muito bem acontecer que o glaciar se derreta no meio das trevas e a perfeição irrompa do seu túmulo e se revele em toda a sua plenitude à superfície da Terra. Tudo à face do mundo conhece então uma completa mudança, e se, por mero acaso, a cerimónia que dá pelo nome de «casamento» ainda existir, poderá acontecer que a perfeição deixada para trás pela pobre tia seja convidada a tomar aí o seu lugar. O mais certo é que se sente à mesa e coma a refeição até ao fim comportando-se irrepreensivelmente, sendo de imaginar que se levante a fim de proferir sinceras palavras de felicitações.
Não se preocupem. Estes acontecimentos não deverão ocorrer antes do ano 11 980.
4
Chegado o fim do Outono, a minha tia desamparou-me as costas. Devido a um trabalho que ainda me faltava entregar antes do Inverno, meti-me no comboio na companhia da minha pobre tia. Era de tarde e, como sempre, o comboio suburbano ia praticamente vazio. Tratava-se da minha primeira viagem para fora da cidade nos últimos tempos, de modo que me deu especial gozo sentar-me tranquilamente à janela a ver desfilar os campos. O ar estava frio e límpido, estimulante. As colinas de um verde quase demasiado vivo para ser natural recortavam-se na paisagem, e aqui e acolá, ao longo da via-férrea, viam-se árvores carregadinhas de bagas vermelhas.
Sentada no banco à minha frente na viagem de regresso estavam uma mulher magra dos seus trinta e tal anos e os seus dois filhos. A criança mais velha, uma rapariga, ia sentada à esquerda da mãe e tinha um vestido de sarja azul-marinho que devia ser o uniforme da escola. Na cabeça levava posto um chapéu novo em folha, de feltro cinzento, com uma fita vermelha – por sinal, um bonito chapéu com aba estreita. À direita da mãe seguia viagem um rapazinho que devia andar pelos três anos. À primeira vista, não havia nada que chamasse a atenção na figura da mãe e dos seus filhos. Tinham uma cara normalíssima e estavam vestidos de forma extremamente vulgar. A mãe tinha em cima dos joelhos um grande pacote e mostrava sinais de cansaço – mas, vendo bem, todas as mães têm um aspecto cansado. Confesso que não dei por eles embarcarem, e depois devo ter olhado de relance para eles quando se sentaram à minha frente, após o que voltei a concentrar a minha atenção no livro de bolso que trazia comigo.
No entanto, passado pouco tempo, comecei a ouvir a menina, que tinha na voz uma urgência que era quase uma súplica.
Foi então que ouvi a mãe ralhar com ela: «Está quieta. Já te disse que deves ir sossegada quando andas de comboio.» Tinha uma revista aberta em cima do pacote que levava ao colo e parecia pouco inclinada a interromper a leitura.
«Mas, Mamã, olha o que ele está a fazer ao meu chapéu», queixou-se a menininha.
«Está calada.»
A rapariguinha fez menção de falar, mas lá acabou por engolir as palavras e ficar calada. Separado dela pela mãe, o rapaz tinha nas mãos o chapéu que a irmã trouxera na cabeça e entretinha-se a brincar com ele e a amassá-lo. A menina esticou o braço e tentou agarrá-lo, mas ele lá se contorceu todo e conseguiu esquivar-se, decidido a não deixar que ela lhe deitasse a mão.
«Ele vai estragar-me o chapéu todo», disse a menina, à beira das lágrimas.
A mãe levantou os olhos da revista com um ar aborrecido e esboçou o gesto de pegar no chapéu, mas o rapazinho fincou nele as mãos com toda a força e recusou-se a entregá-lo. Às tantas, a mãe lá acabou por desistir. «Deixa-o brincar com ele um bocado», disse ela à filha. «Vais ver que não tarda a aborrecer-se.» Apesar da expressão pouco convencida, a rapariga não protestou. Com os lábios cerrados, não tirava os olhos do chapéu que o irmão apertava nas mãos. A mãe continuou a ler a sua revista. Encorajado pela indiferença da mãe, o rapaz experimentou puxar pela fita vermelha. Era mais do que óbvio que fazia aquilo por pura maldade, sabendo perfeitamente que o gesto só serviria para fazer zangar ainda mais a irmã. Naquela altura até eu me sentia tentado a levantar-me do meu lugar a fim de lhe arrancar o chapéu das mãos.
A rapariga olhava fixamente para o irmão, muito calada, mas saltava aos olhos que tinha um plano. Foi então que se levantou de repente e pregou uma estalada com toda a força no irmão, aproveitando os momentos que se seguiram para lhe tirar o chapéu e regressar ao seu lugar. A rapariga fez tudo isto de uma forma tão rápida e despachada, que demorou o tempo de uma respiração profunda até a mãe e o irmão se darem conta do que acontecera. O rapaz deixou escapar um protesto, enquanto a mãe dava uma palmada no joelho nu da menina. Depois virou-se e fez uma festa na cara do rapazinho, para ver se o consolava, mas ele continuava sempre a lamuriar-se.
– Mas, Mamã, ele estava a estragar o meu chapéu – disse a menina.
– Não fales comigo – ripostou a mãe. – Não quero conversas com quem se porta tão mal no comboio.
A menina mordeu o lábio e baixou a cabeça, sem tirar os olhos do chapéu.
– Sai de ao pé de mim – ordenou a mãe. – Vai para ali. – Ao dizer aquilo, apontou para o lugar vago junto a mim.
A menina olhou para o outro lado, fingindo não ver a mãe de dedo em riste, mas a verdade é que o dedo continuava a apontar para a minha esquerda, como se estivesse petrificado no ar.
–Vamos – insistiu a mãe. – Já não és minha filha.
Resignada ao seu destino, a menina levantou-se com o chapéu e a pasta na mão, atravessou a coxia e veio sentar-se ao meu lado, cabisbaixa. Sempre com o chapéu ao colo, esforçava-se por alisar a aba com os seus dedos. «Quem teve a culpa foi ele», pensava ela de certeza, «que se preparava para rasgar a fita do meu chapéu.» As lágrimas escorriam-lhe pela cara.
Era quase noite. Projectada pelos faróis dos carros, via-se uma claridade amarelada, como poeira sacudida ao esvoaçar das asas de uma lúgubre traça. Pairava no espaço à nossa volta, no meio do silêncio, condenada a ser inalada através da boca e do nariz dos passageiros. Fechei o livro. Com as mãos pousadas nos joelhos, deixei-me ficar ali a olhar para as mãos durante muito tempo. Desde há muito tempo que não me lembrava de observar as minhas mãos com tanta atenção. Àquela luz baça, pareciam escuras, quase sujas – dir-se-ia que não eram as minhas mãos. A visão encheu-me de tristeza: aquelas mãos nunca fariam ninguém feliz, nunca salvariam ninguém. Só me apetecia colocar a mão, num gesto reconfortante, sobre o ombro da rapariguinha que soluçava junto a mim, dizer-lhe que a razão estava do lado dela, que tinha feito muito bem em reaver o seu chapéu. Escusado será dizer que nunca lhe toquei nem cheguei à fala com ela. Só teria servido para a deixar ainda mais confusa e assustada. Ainda por cima, com aquelas mãos tão negras e sujas que tinha.
Quando saí do comboio, soprava um vento frio e invernoso. Chegava ao fim a estação das camisolas, começava a ser tempo dos espessos casacões de Inverno. A história dos casacos ocupou por momentos a minha atenção, enquanto pensava se deveria ou não comprar um novo. Mal acabei de descer as escadas e passar a cancela, apercebi-me de que a pobre tia tinha desaparecido das minhas costas.
Não fazia ideia do que tinha acontecido. Tal como aparecera, evaporara-se. Regressara às suas origens, fosse ela qual fosse, e eu voltara a ser eu.
Tinha a impressão de já não saber, de me ter transformado num novo ser, ainda que o meu novo eu fosse bastante parecido com o meu eu original. E agora, que fazer? Encontrava-me completamente sozinho, como um letreiro em branco no meio do deserto. Perdera por completo o sentido de orientação. Levei a mão ao bolso e enfiei todas as moedas trocadas que encontrei na ranhura do telefone público. Deixei tocar oito vezes. Ao nono toque, ela atendeu.
– Estava a dormir – queixou-se com voz de sono.
– Às seis da tarde?
– Passei a noite acordada, a trabalhar. Só acabei o que estava a fazer há duas horas.
– Desculpa, não era minha intenção acordar-te – disse eu. – Bem sei que te pode parecer estranho, mas só liguei para confirmar se estavas viva. Só isso. Mais nada.
Tive a sensação de que, do outro lado do fio, ela sorria.
– Obrigada, perguntar foi simpático da tua parte – disse ela. – Tudo em ordem. Estou viva e a trabalhar que nem um animal para ver se continuo viva. Por isso é que me sinto morta de cansaço. Chega? Ficaste mais descansado?
– Fiquei.
– Não sei se sabes – continuou ela, como se estivesse prestes a contar-me um grande segredo –, mas esta vida é muito dura.
– Bem sei – respondi. E, de facto, assim era. – Que tal vires jantar comigo?
– Desculpa, mas estou sem fome. A única coisa que tenho vontade de fazer é desligar e ir dormir.
– Não se pode dizer que esteja realmente com fome – confessei. – Só queria falar contigo. Por causa destas coisas todas que aconteceram.
No silêncio do outro lado da linha, eu sabia que ela estava a morder o lábio e a passar com o dedo mínimo pela sobrancelha.
– Agora não – disse ela, pronunciando destacadamente cada sílaba. – Mais tarde. Agora deixa-me dormir. Só um bocadinho. Depois de eu dormir um bocado, vais ver que tudo se compõe. Telefono quando acordar, pode ser?
– Tudo bem – disse eu. – Boa noite.
Ela hesitou por instantes.
– Era alguma coisa urgente, aquilo que me querias dizer?
– Não, não – disse eu –, não era nada urgente. Pode ficar para mais tarde. – E era verdade, tínhamos muito tempo. Dez mil anos, vinte mil anos. Podia perfeitamente esperar.
– Boa noite – disse ela, e desligou. Durante um tempo, fiquei a olhar para o auscultador amarelo que tinha na mão, até que acabei por pousá-lo no descanso. Assim que fiz esse gesto, senti uma fome devoradora. Se não comesse, se não metesse qualquer coisa à boca, enlouquecia. Qualquer coisa, fosse o que fosse. Se alguém naquele preciso momento me desse que comer, punha-me de gatas no chão e até lhe lambia os dedos.
Exactamente, até capaz de lhes lamber os dedos seria. E a seguir adormeceria que nem uma pedra debaixo de forte temporal. Não acordaria nem que levasse com uma trancada em cima. Nem o pontapé mais violento conseguiria acordar-me. Dormiria profundamente durante dez mil anos.
Encostei-me ao telefone, esvaziei a cabeça e fechei os olhos. A seguir ouvi passos. Os passos de milhares de pessoas abateram-se sobre mim como uma onda. Continuam a andar, sempre em frente, cavalgando o tempo com raiva e determinação.
Por onde andaria a minha pobre tia? Sempre gostava de saber. Para onde teria regressado?
E eu, ao que teria voltado?
Imaginando que, daqui a dez mil anos, a sociedade fosse única e exclusivamente composta de tias pobres, será que estariam dispostas a abrir os portões da cidade a fim de me deixarem entrar? Nessa cidade, haveria um governo e uma câmara municipal eleitos pelas pobres tias e ao serviço das pobres tias, uma linha de eléctricos conduzidos por pobres tias e destinados a pobres tias, romances escritos por pobres tias para serem lidos por pobres tias.
Ou então, quem sabe, elas não precisariam de nada disso – nem do governo nem do eléctrico nem dos romances.
Se calhar, quereriam antes fabricar o seu próprio vinagre, guardá-lo em garrafas gigantes e levarem uma vida tranquila fechadas lá dentro. Do ar, poder-se-iam então ver milhares – centenas de milhares – de garrafas de vinagre todas ao lado umas das outras, abarcando toda a superfície da Terra, até onde a vista alcança. Uma visão invulgarmente bela, de cortar a respiração.
Exactamente, é isso mesmo. E se, por mero acaso, nesse mundo houvesse lugar para um só poema, gostaria de ser eu a escrevê-lo. Ter a honra de me tornar o primeiro poeta laureado no mundo habitado pelas pobres tias.
Nada mau. Nada mau.
E nesse poema cantaria o brilho do Sol reflectido nas verdes garrafas, louvaria o imenso mar de erva aos nossos pés, cintilando sob o manto de orvalho matinal.
Mas já me estou a adiantar, a projectar o meu olhar sobre o ano de 11 980, e dez mil anos é muito tempo, demora uma eternidade a passar. Até lá, ainda tenho de sobreviver a muitos Invernos.
16 Reconhecido como património nacional do Japão. Excelente cão de guarda, manso e leal, na era Edo apenas os nobres podiam ser donos de um, enquanto na era Meiji era usado como cão de combate. Acerca deles contam-se muitas lendas. (N. da T.)