O HOMEM DE GELO
Sou casada com um Homem de Gelo. A primeira vez que o vi, foi no hotel de uma estância de esqui.
Haverá lugar mais apropriado para se travar conhecimento com um Homem de Gelo? O vestíbulo do hotel estava repleto de grupinhos de gente nova, e ele encontrava-se a um canto, sentado, o mais afastado possível da lareira, calmamente entretido a ler um livro. Era quase meio-dia, mas a luz fria e pura da manhã parecia incidir apenas sobre ele. «É um Homem de Gelo», sussurrou uma das pessoas que estavam comigo. Na altura, não fazia ideia do que poderia ser um Homem de Gelo, e a minha amiga também não. A única coisa que sabia era que lhe chamavam Homem de Gelo. «Provavelmente por ser feito de gelo», acrescentou ela, muito séria, como se estivesse a falar de um fantasma ou de alguém com uma doença contagiosa.
O Homem de Gelo tinha aspecto de pessoa bastante nova, apesar dos fios brancos que despontavam no seu cabelo espetado e hirsuto, e que davam a impressão de serem restos de neve. Era grande, tinhas as feições talhadas a escopro e martelo, como se fosse um penhasco de gelo, os dedos cobertos de geada que não derrete nunca. Tirando isso, possuía um aspecto perfeitamente normal. Não se podia dizer que fosse propriamente bonito, apesar de poder existir quem visse nele um homem atraente. Havia nele qualquer coisa que tocou fundo no meu coração. Sobretudo os olhos, com aquele seu olhar silencioso, transparente, que cintilava como um cristal de gelo numa manhã de Inverno – o único sopro de vida num corpo feito para não durar muito. Fiquei ali durante um certo tempo, a olhar de longe, fixamente, para o Homem de Gelo. Nitidamente absorvido na sua leitura, ele nem uma única vez se mexeu ou levantou os olhos do livro, como se quisesse convencer-se a si próprio da profunda solidão em que se encontrava.
Na tarde do dia seguinte fui encontrá-lo no mesmo sítio, a ler o seu livro. Sempre que eu ia almoçar à sala de jantar e, mais tarde, à noitinha, de regresso ao hotel depois de ter ido esquiar, lá estava ele, sentado na mesma cadeira, com a mesma expressão no olhar à medida que passava as folhas do mesmíssimo livro. No dia seguinte, a cena repetia-se. De manhã à noite, era possível ir dar com ele ali sentado e sozinho, fazendo, aos olhos do mundo, parte imutável de uma paisagem gelada de Inverno.
Na tarde do quarto dia, inventei uma desculpa e não acompanhei o restante grupo à pista de esqui. Em vez disso, fiquei no hotel e pus-me a deambular pelo vestíbulo. Uma vez que toda a gente parecia ter ido esquiar, o hotel parecia uma cidade abandonada. Respirava-se uma atmosfera quente e abafada e no ar notava-se um cheiro estranhamente pesado, desagradável – o cheiro da neve que vinha agarrada às botas das pessoas e que se derretera aos poucos com o calor da lareira. Ocupei o tempo a contemplar a paisagem da janela e a passar os olhos pelo jornal. Finalmente, enchi-me de coragem, fui ter com o Homem de Gelo e apresentei-me. Confesso que sou muito tímida, e que é muito raro meter conversa com desconhecidos, mas foi superior às minhas forças. Tinha de chegar à fala com ele. Era a última noite que passava no hotel e, caso deixasse passar a oportunidade, nunca mais voltaria a ter outra assim.
– Não pratica esqui? – perguntei como quem não quer a coisa. O Homem de Gelo levantou os olhos devagar, dando a impressão de estar a ouvir o barulho do vento ao longe. Olhou fixamente para mim e limitou-se a abanar tranquilamente a cabeça.
– Não faço esqui – disse ele. – Contento-me em ficar por aqui a ler e a ver a neve.
As suas palavras flutuaram no ar, formando uma espécie de balão de diálogo como os que se vêem nas tiras de banda desenhada, com todas as palavras perfeitamente desenhadas lá dentro. Com gestos delicados, ele sacudiu um bocadinho de geada dos seus dedos.
Fiquei sem saber o que dizer mais. Corei e deixei-me ficar ali plantada, agarrada ao chão. O Homem de Gelo olhou-me nos olhos e esboçou aquilo que me pareceu ser um ligeiro sorriso. (Não vou jurar.) Teria o Homem de Gelo de facto sorrido? Se calhar, tinha sido eu a imaginar.
– Não se quer sentar? – perguntou ele. – Talvez possamos conversar um bocado, noto que tem uma certa curiosidade a meu respeito. Gostaria de saber como é um Homem de Gelo, não é verdade? –Após ter dito aquilo, sorriu delicadamente. – É perfeitamente natural. Não tenha medo que não vai apanhar nenhum resfriado só por estar aqui a falar comigo.
Sentámo-nos num sofá a um canto do vestíbulo, a conversar timidamente, enquanto víamos os flocos de neve a rodopiar lá fora. Pela minha parte, pedi um chocolate quente, mas o Homem de Gelo não quis beber nada. Em timidez, não ficava atrás de mim. Além do mais, não tínhamos muitos assuntos sobre os quais pudéssemos conversar. Falámos do tempo, para começar, depois acerca do hotel.
– Encontra-se aqui sozinho? – quis eu saber. Que sim, respondeu-me.
– Gosta de fazer esqui? – perguntou ele por sua vez. Não especialmente, esclareci. Algumas das minhas amigas fizeram questão de que eu viesse, mas a verdade é que mal sabia esquiar.
Estava desejosa de saber como era, de facto, um Homem de Gelo. Seria realmente feito de gelo? E como é que se alimentava? Onde é que vivia quando chegava o Verão? Teria família? Tudo perguntas dessas. Infelizmente, o Homem de Gelo não adiantou praticamente nada acerca de si, razão pela qual não me atrevi a fazer-lhe as perguntas que tinha em mente. Imaginei que ele não tivesse vontade de falar de coisas desse género.
Em compensação, o tema da conversa recaiu sobre a minha pessoa. Por incrível que pareça, ele sabia tudo e mais alguma coisa acerca de mim. Quem pertencia à minha família, qual era a minha idade, quais os meus passatempos, como estava a minha saúde, que escola frequentava. Estava a par de tudo, até mesmo coisas que há muito tinham caído no esquecimento.
– Não estou a perceber – disse eu, vermelha como um pimentão. E a verdade é que me sentia como se tivesse ficado nua à frente de uma quantidade de pessoas. – Como é que sabe tanta coisa a meu respeito? – perguntei. – Por acaso consegue ler os meus pensamentos?
– Não, isso não. Não leio os pensamentos de ninguém. Simplesmente, sei esse tipo de coisas. É como se estivesse a olhar através de um bloco de gelo. Quando olho para si, consigo ver tudo.
– Consegue ver o meu futuro? – perguntei.
– Não, o futuro não – confessou ele com uma expressão ausente, ao mesmo tempo que abanava ligeiramente a cabeça. – O futuro não me interessa. Para ser franco, não consigo imaginar o futuro. Talvez porque o gelo não contenha futuro, apenas passado, selado dentro de si como se estivesse vivo; tudo o que acontece no mundo, toda a espécie de coisas, está conservado dentro do gelo – de uma forma visível e nítida. É essa a essência do gelo, é nisso que consiste a sua função.
Uma vez de regresso a Tóquio, encontrámo-nos umas quantas vezes, até que começámos a marcar encontro todos os sábados. Porém, não era nosso costume ir ao cinema e também não ficávamos sentados no café. Nem sequer íamos comer fora. Verdade seja dita, o Homem de Gelo quase não se alimentava. Em vez disso, passávamos o nosso tempo sentados num banco do parque, à conversa. Discutíamos toda a espécie de assuntos, apesar de nunca, nem uma vez, o Homem de Gelo ter falado de si.
– Por que é que nunca falas acerca de ti? – perguntei eu um dia. – Há tanta coisa que eu gostava de saber. Onde nasceste, quem eram os teus pais, como é que te tornaste um Homem de Gelo. – O Homem de Gelo ficou a olhar para mim durante muito tempo, até que abanou devagar a cabeça.
– Não sei responder a isso – confessou ele com toda a calma, sem com isso deixar de ser firme, ao mesmo tempo que a respiração dele formava no ar uma nuvem dura e branca. – Não tenho passado. Conheço muitos passados, e preservo-os, mas eu próprio não tenho um. Não faço ideia onde nasci. Desconheço o aspecto dos meus pais, nem sequer sei se eles existem. Desconheço quantos anos tenho, se é que tenho idade.
O Homem de Gelo era tão solitário como um icebergue a flutuar na escuridão.
Apaixonei-me perdidamente por ele, e ele por mim, pelo meu eu presente, sem passado nem futuro. Quanto a mim, aprendi a amar o Homem de Gelo pela pessoa que é, sem passado nem futuro. Uma sensação maravilhosa. Por fim, começámos a falar em casamento. Eu tinha acabado de fazer vinte anos, e o Homem de Gelo era o primeiro homem por quem eu sentira amor de verdade. Que significado tinha esse amor, confesso que na altura era uma coisa que me ultrapassava. No entanto, tinha a certeza dos meus sentimentos, mesmo que não fosse pelo Homem de Gelo que estivesse perdida de amores.
A minha mãe e a minha irmã mais velha eram totalmente contra o nosso casamento. Diziam elas que eu era demasiado nova para me casar. Mais, que não estava a par do passado dele, nem sabia onde ou quando nascera. Como é que uma pessoa pode explicar certas coisas à família? Além disso, argumentavam, tratava-se do Homem de Gelo. E se ele começar a derreter? Achavam todos que eu não sabia que o casamento implicava certas responsabilidades. Pensando bem, como poderia alguma vez um Homem de Gelo cumprir os seus deveres conjugais?
Na verdade, porém, nenhum desses receios tinha razão de ser. O Homem de Gelo não era verdadeiramente feito de gelo. Era apenas frio como o gelo. Por isso, mesmo que fizesse calor, não corria o perigo de derreter. Era frio, tudo bem, mas não se tratava de um tipo de frio que pudesse roubar o calor das outras pessoas.
E assim casámos. Motivos de celebração foi coisa que não existiu. Entre amigos, pais e restante família – ninguém ficou contente com a notícia do matrimónio. Não se realizou tão-pouco a tradicional cerimónia22. Uma vez que o Homem de Gelo não estava devidamente registado, a ocasião não teve sequer direito a cerimónia civil. Ambos decidimos simplesmente que estávamos casados. Comprámos um bolo e comemo-lo, os dois sozinhos. Foi essa a nossa cerimónia. Alugámos um pequeno apartamento, e o Homem de Gelo arranjou emprego num armazém frigorífico destinado a carne. Como o frio nunca o incomodava, trabalhava que se desunhava. Também não era de muito alimento. Por tudo isso, o patrão gostava muito dele e pagava-lhe um ordenado superior ao dos outros funcionários. Levávamos uma vida tranquila, só os dois, sem incomodar ninguém e sem sermos incomodados por ninguém.
Quando fazíamos amor, costumava imaginar um pedaço de gelo perdido algures, no meio do silêncio. O gelo era rijo, mais duro não podia ser, o maior bloco de gelo no mundo inteiro. Situava-se longe, muito longe, mas o Homem de Gelo sabia onde ficava e transportava consigo recordações desse gelo. Nas primeiras vezes que dormi com ele, aquilo fez-me confusão, mas depois habituei-me. Aprendi a gostar dos seus abraços. Como sempre, ele nunca falou de si, nem explicou como é que se transformara no Homem de Gelo, e eu também não perguntei. Ficávamos os dois deitados nos braços um do outro, às escuras, partilhando aquele enorme bloco de gelo, no interior do qual todo o passado, milhões de anos de recordações, se encontrava preservado.
A nossa vida de casados corria às mil maravilhas. Amávamo-nos e vivíamos só para nós. De início, as pessoas tiveram uma certa dificuldade em habituar-se à presença do Homem de Gelo, mas com o tempo começaram a trocar impressões com ele e chegaram à conclusão de que, afinal, o Homem de Gelo não era assim tão diferente do resto. Lá no fundo, porém, eu sabia que eles não o aceitavam, da mesma forma que não me aceitavam a mim, pelo facto de ter casado com ele. Aos seus olhos, éramos diferentes deles, e esse abismo entre nós nunca seria ultrapassado.
Não podíamos ter filhos, porventura devido a alguma diferença genética entre uma mulher da raça humana e um elemento dos Homens de Gelo que tornava difícil a concepção. Sem uma criança para tomar conta, tinha todo o tempo do mundo para mim. De manhã arrumava a casa, mas depois ficava sem nada para fazer. Não tinha amigos nem pessoas conhecidas com quem me pudesse encontrar para trocar dois dedos de conversa, e também não conhecia ninguém nas redondezas. A minha mãe e a minha irmã ainda estavam melindradas por causa do meu casamento com o Homem de Gelo e não falavam comigo. Eu era a ovelha ronhosa da família, motivo de vergonha para todos. Não podia comunicar com ninguém, nem sequer pelo telefone. Enquanto o Homem de Gelo estava a trabalhar no armazém de frio, eu ficava em casa, a ler ou a ouvir música. De resto, era uma pessoa caseira por natureza e não me importava de passar tanto tempo sozinha. Verdade seja dita, porém, que ainda era muito nova, razão pela qual às tantas aquela rotina começou a pesar-me. Não era da chatice em si que me queixava. O que me parecia difícil de suportar era fazer as mesmas tarefas e repetir os mesmos gestos todos os dias. Às tantas, comecei a pensar em mim como uma mera sombra enclausurada dentro daquele ramerrão.
Por essa razão, a fim de quebrar a rotina, um dia sugeri ao meu marido que fizéssemos uma viagem.
– Uma viagem? – perguntou ele, semicerrando os olhos com ar pensativo. – Viajar para onde? Não és feliz aqui comigo?
– Claro que sim – respondi. – Damo-nos lindamente e sinto-me muito feliz. Não é disso que se trata. Aborreço-me um bocadinho, mais nada. Gostava de me afastar daqui e ir para longe, ver coisas que nunca vi antes, viver novas experiências. Além disso, nunca tivemos a nossa lua-de-mel. Temos algum dinheiro posto de parte, sem esquecer que ainda te sobram dias de férias. Seria agradável ir de férias calmamente até um sítio qualquer.
O Homem de Gelo soltou um longo suspiro gélido, que formou audivelmente no ar um balão de gelo, antes de cruzar os dedos, longos e cobertos de neve, em cima do colo.
– Bom – disse ele –, se queres mesmo fazer essa tal viagem, por mim tudo bem. Não creio que viajar seja nada do outro mundo, mas estou disposto a fazer tudo e a ir onde desejares, se isso contribuir para a tua felicidade. Tenho trabalhado duramente no armazém de frio e devo conseguir tirar uns dias de férias.
– Que me dizes ao Pólo Sul? – perguntei. Tinha escolhido o Pólo Sul porque ali fazia frio e isso de certeza que captaria o interesse do Homem de Gelo. Além disso, verdade seja dita, sempre tivera vontade de ir até lá. A fim de observar a aurora boreal e os pinguins. Já me estava perfeitamente a ver, enfiada dentro de uma parca acolchoada, daquelas com capuz, debaixo da luz polar e a brincar com os pinguins.
O Homem de Gelo olhou-me bem nos olhos, sem pestanejar. O olhar dele atingiu-me como um afiado estilete de gelo, capaz de penetrar nas profundezas do meu cérebro. Por momentos deixou-se ficar calado, enquanto reflectia. Depois, com uma modulação diferente na voz, disse:
– Está bem. Se gostavas assim tanto de ir ao Pólo Sul, vamos. Tens a certeza de que é mesmo para aí que queres ir?
Eu disse que sim com a cabeça.
– Daqui a umas duas semanas, posso dar-me ao luxo de tirar umas férias grandes – anunciou ele. – Até lá, podes tratar dos preparativos para a viagem. Está bem assim?
Não fui capaz de responder na hora. O seu olhar penetrante como uma lâmina deixara-me gelada e eu não conseguia pensar.
À medida que os dias foram passando, comecei a arrepender-me de ter falado ao meu marido na viagem ao Pólo Sul. Nem eu própria sei explicar bem porquê. Era como se ele tivesse mudado, depois de me ter ouvido falar no Pólo Sul. Os seus olhos tornaram-se mais penetrantes e parecidos com punhais, o vapor da sua respiração mais branco, os dedos foram ficando cobertos de uma camada de gelo cada vez mais grossa. Mostrava-se calado e obstinado como nunca. Ainda por cima, deixou praticamente de se alimentar. Tudo isso me deixou preocupada. Cinco dias antes do início da viagem, ganhei coragem e abordei a questão.
– Acho que afinal não devíamos seguir viagem até ao Pólo Sul – alvitrei. – O clima é demasiado frio e pode não ser bom para nós. Antes queria ir para um sítio vulgar – até Espanha, na Europa, ou assim. Podíamos beber vinho, comer paella e, quem sabe, assistir a uma tourada ou duas. – No entanto, o meu marido fingiu que não era nada com ele. Continuou com aquela expressão distante, depois virou-se para mim e olhou-me fundo nos olhos, tão fundo que tive a sensação de me dissolver.
– Não – rejeitou liminarmente o meu marido, o Homem de Gelo.– Espanha não interessa. Lamento, mas para mim é demasiado quente e há poeira por todo o lado. Sem falar na comida, demasiado picante. Além do mais, já comprei bilhetes para o Pólo Sul, e um casaco de peles e umas botas forradas para ti. Seria um desperdício. Não podemos voltar atrás.
Para falar com franqueza, fiquei muito assustada. Se fôssemos até ao Pólo Sul, receava que nos acontecesse algo de terrível. Todas as noites, tinha sempre o mesmo pesadelo. Vejo-me a andar e caio num buraco. Ninguém me encontra e congelo. Fico petrificada, dentro do gelo, a olhar o céu. Estou consciente, mas não consigo mexer um dedo. Trata-se de uma sensação estranhíssima. A cada momento que passa, torno-me parte do passado. Não há futuro para mim, apenas o passado cada vez mais presente. E toda a gente vê o que me está a acontecer. Também as pessoas só têm olhos para o passado, ao mesmo tempo que me vêem afastar cada vez mais.
Foi então que acordei. Ao meu lado, dormia o Homem de Gelo. Ele não faz barulho a dormir, como acontece com algo congelado e sem vida. Apesar disso, amo-o. Começo a chorar; as minhas lágrimas caem-me pela cara e molham as minhas faces. Ele acorda e aperta-me com força nos seus braços. «Tive um sonho mau», digo-lhe. Ele abana a cabeça devagarinho no escuro. «Foi apenas um sonho», diz-me em jeito de consolação. «Os sonhos vêm do passado, não do futuro. Não deixes que eles te dominem – deves ser tu a dominá-los. Compreendes?»
«Tens razão», digo eu, mas no fundo não estou convencida.
Finalmente, lá acabámos por apanhar o avião para o Pólo Sul. Não consegui encontrar uma razão para impedir a viagem. Os pilotos e assistentes de bordo mal abriram a boca durante o voo. Estava esperançada em poder contemplar a paisagem da janela, mas as nuvens eram tão espessas que não consegui ver nada à frente do nariz. Os vidros não tardaram a ficar cobertos por uma espessa camada de gelo. Durante o tempo que durou a viagem, o meu marido foi sempre calado, a ler um livro. Nem por um momento soube o que era a excitação e a alegria que surgem normalmente associadas à realização de uma viagem. Só ficara a sensação de estarmos a levar por diante o que nos tínhamos proposto fazer.
Assim que descemos do avião e pusemos o pé pela primeira vez no Pólo Sul, senti o corpo do meu marido ser percorrido por um calafrio. Aconteceu enquanto o diabo esfregava um olho, em meio segundo, por isso escapou ao olhar de todos. A verdade, porém, é que eu dei por isso. Alguma coisa provocou dentro dele um sobressalto, tão silencioso quanto intenso. Observei-o de esguelha. Ali parado, olhou para o céu, depois para as mãos, até que deixou escapar um profundo suspiro. Virando-se para mim, sorriu.
– Com que então, era aqui que estavas desejosa de vir? – perguntou.
– Exactamente – repliquei. Sabia que o Pólo Sul devia ser um lugar solitário, mas veio a revelar-se ainda mais isolado do que alguma vez imaginara. Quase ninguém vivia ali. Existia apenas uma pequena cidade sem interesse, com um hotel também ele sem história. O Pólo Sul não é nenhum destino turístico. Pinguins era coisa que não se via, já para não falar da aurora boreal. Quando eu perguntava o que era feito dos pinguins, as pessoas na rua limitavam-se a abanar a cabeça. Como não percebiam as minhas palavras, acabava por pegar numa folha de papel e num lápis e desenhava um pinguim, mas a resposta não se alterava – um abanar de cabeça silencioso. Sentia-me muito sozinha. Para lá da cidade, a única paisagem era de neve e gelo. Não se viam árvores, nem flores, nem rios nem lagos. Apenas gelo por todo o lado. Até onde o olhar alcançava, estendia-se terra desolada, um deserto de gelo a perder de vista.
O meu marido, por seu turno, com a sua respiração branca, os dedos cobertos de neve e uma expressão distante nos seus olhos de cristal, não se cansava de deambular por aqui e por ali. Aprendeu rapidamente a falar a língua e passou a entender-se naquele tom duro e glacial com os locais. Mantinham longas conversas durante horas a fio, sempre com um ar sério, mas eu não fazia a mínima ideia do que poderiam estar a falar. O meu marido encontrava-se perfeitamente tocado pelo espírito daquele lugar. Havia ali qualquer coisa que o atraía sobremaneira. De início, aquilo perturbou-me, fazendo-me sentir que estava a ser posta de parte, traída e abandonada.
Até que, por fim, no meio de todo aquele cenário silencioso e gélido, toda a energia foi sugada de mim, ao ponto de chegar uma altura em que já estava demasiado fraca para me preocupar sequer com a situação. A bússola dos sentimentos deixou de existir. Perdi todo e qualquer sentido de orientação, de tempo, e até o significado da minha existência. Não sei quando é que isso começou, nem se teria fim, mas o certo é que, antes que me desse conta, dei por mim sozinha e desorientada, perdida no Inverno sem fim daquele mundo gelado. Mesmo depois de ter perdido todos os sentimentos, sabia isto: O Homem de Gelo que se encontra aqui comigo no Pólo Sul não é o marido que eu conheço. Não saberia dizer ao certo o que ele tinha de diferente, na medida em que continuava a ser atencioso e a ter sempre uma palavra de ternura em relação a mim. E eu sabia que tudo o que ele dizia vinha do fundo do coração. Ao mesmo tempo, contudo, também sabia que o Homem de Gelo que tinha diante de mim não era o Homem de Gelo que aprendera a conhecer na estância de desportos de Inverno. Mas junto de quem é que me poderia lamentar? Toda a gente no Pólo Sul dava mostras de gostar muito dele, além de que não compreenderiam uma palavra do que eu dissesse.
Todos eles deixavam sair nuvens de respiração branca quando conversavam, os rostos cobertos de geada, exprimindo-se animadamente e entoando cânticos naquela linguagem tão própria das gentes do Pólo Sul. Quanto a mim, tranquei-me no quarto de hotel, a olhar para o céu permanentemente cinzento que durante meses não havia maneira de levantar, esforçando-me por aprender a complexa gramática da língua falada no Pólo Sul (coisa que nunca haveria de dominar).
Já não existem aviões no aeroporto. O avião que nos trouxe até cá foi o último a aterrar. Por esta altura, a pista encontra-se soterrada debaixo de um espesso manto de gelo. Tal como o meu coração.
– Chegou o Inverno – anunciou o meu marido. – Um Inverno muito longo. Os aviões e os navios não podem cá chegar. Está tudo coberto de uma camada sólida de gelo. Só nos resta esperar que chegue a Primavera.
Três meses depois de termos chegado ao Pólo Sul, percebi que estava grávida. Soube, desde a primeira hora, que iria dar à luz um pequeno Homem de Gelo. O meu útero estava congelado, e pequenas lascas de gelo flutuavam juntamente com o líquido amniótico. Podia sentir a frialdade na minha barriga. Soube, também, que a criança teria os olhos em forma de cristal de gelo herdados do pai, os mesmos dedinhos cobertos de geada. E soube mais uma coisa: a nossa pequena família nunca mais voltaria a abandonar o Pólo Sul. O eterno passado abatera-se sobre nós com o seu peso incomensurável, de forma a nunca mais nos libertarmos.
O meu coração quase parou de bater. O calor humano que me caracterizava há muito que se havia dissipado. Por vezes, até me esqueço de que ele alguma vez existiu. No entanto, ainda sou capaz de chorar. Estou completamente sozinha no sítio mais frio e mais solitário do mundo. Sempre que choro, o meu marido beija-me as faces, e as minhas lágrimas transformam-se em gelo. Então ele arranca-as e coloca-as na sua língua. «Sabes que te amo», diz ele. E eu sei que não é mentira nenhuma. O Homem de Gelo ama-me de verdade. O vento, porém, encarrega-se a cada dia que passa de levar as suas palavras em direcção ao passado. Continuo a chorar e as lágrimas escorrem-me sem parar pelo rosto. Na nossa pequena casa feita de gelo, algures na paisagem distante do Pólo Sul.
22 Geralmente, a cerimónia civil e o copo-d’água realizam-se no mesmo local, por razões eminentemente práticas. Na presença de parentes e amigos, trocam-se alianças e juras de amor, e aplica-se o devido selo no documento oficial. Também pode haver cerimónia religiosa, segundo os preceitos xintoístas. (N. da T.)