O VIAJANTE DO ACASO
Aqui o «eu», é bom que se saiba, refere-se a mim, Haruki Murakami, o autor da história. Na sua maior parte, este texto é uma narrativa contada na terceira pessoa, mas tomei a liberdade de permitir que o narrador, logo a abrir, dissesse de sua justiça. Como numa peça de teatro de outros tempos, em que o narrador aparece à frente do palco e debita um monólogo, antes de se retirar com uma vénia. Agradeço desde já a vossa paciência e prometo ser breve.
A razão que me leva a entrar em cena prende-se com o facto de ter achado que ninguém melhor do que eu para relatar algumas das «estranhas ocorrências» que se passaram comigo. Para dizer a verdade, acontecimentos desse género passam a vida a acontecer-me. Alguns revestiram-se de grande significado para mim e, de uma maneira ou de outra, mudaram o rumo da minha existência. Outros não passam de incidentes sem grande significado, que pouco ou nenhum impacto tiveram. Pelo menos que eu tenha dado por isso.
Sempre que esses incidentes vêm à baila, por exemplo, numa discussão de grupo, quase nunca geram muita discussão. Quase sempre, as pessoas limitam-se a fazer um ou outro comentário que nada tem que ver com o assunto, e a conversa fica por ali. Nunca aparece alguém com vontade de agarrar no tema, capaz de se pôr para ali a desfiar uma experiência semelhante que lhe tenha acontecido. O tema que aqui vos proponho é como a água, que, em grande quantidade, corre pelo canal errado e acaba por ser engolida pela areia circundante e sugada para o fundo da terra. Durante um certo tempo ninguém diz nada, depois aparece alguém que se encarrega de mudar de tema.
De início, pensei que o problema se prendia com a maneira errada como eu contava a história, por isso houve um dia em que tentei passá-la para o papel e dar-lhe a forma de um ensaio. Imaginei que, ao dar esse passo, talvez as pessoas começassem a levar-me mais a sério. Porém, veio a provar-se que ninguém acreditara no que eu escrevera. «Inventaste tudo, certo?» Passo o tempo a ouvir esta ou uma frase parecida. Uma vez que eu sou romancista, as pessoas partem do princípio de que tudo o que digo ou escrevo tem forçosamente, em maior ou menor grau, um toque de ficção. Assumo aqui que a minha ficção tem a sua elevada quota-parte de efabulação, mas a verdade é que, a partir do momento em que não me encontro a escrever ficção, inventar a torto e a direito histórias sem pés nem cabeça é coisa que nem sequer me passa pela cabeça.
Em jeito de prefácio ao conto que se segue, gostaria assim de proceder ao breve relato de algumas estranhas experiências que aconteceram comigo. Ficar-me-ei pelas que considero mais insignificantes e banais. Caso começasse por aquelas que mudaram a minha vida, acreditem, iria muito para além do espaço que me é permitido.
Entre 1993 e 1995 vivi em Cambridge, Massachusetts. Era uma espécie de escritor-residente numa faculdade, ao mesmo tempo que trabalhava num romance intitulado Crónica do Pássaro de Corda30. Em Harvard Square, existia um clube de jazz chamado Regattabar Jazz Club31, onde era frequente haver actuações ao vivo. Tratava-se de um sítio simpático, com um ambiente calmo e descontraído. Ali tocavam nomes famosos do jazz, além de que os preços de entrada cobrados eram perfeitamente aceitáveis.
Uma noite, passou por lá o pianista Tommy Flanagan na companhia do seu trio. Como a minha mulher tinha outros planos, fui sozinho. Acontece que Tommy Flanagan é um dos meus pianistas de jazz preferidos. Regra geral, aparece na qualidade de acompanhante: as suas actuações fazem prova, sem excepção, de um calor, uma profundidade e uma segurança a todos os títulos espantosos. Confesso, porém, que ainda gosto mais dele como solista. Ansioso, como podem imaginar, sentei-me numa mesa junto ao palco, preparado para apreciar devidamente sua actuação com um copo de Merlot da Califórnia na mão. Para ser sincero, tenho de reconhecer que a sua prestação, nessa noite, ficou um bocado aquém do que eu esperava. Talvez não estivesse na sua melhor forma. Ou então podia dar-se o caso de ser demasiado cedo para apanhar o swing da coisa. Não que ele tivesse tocado mal, nada disso; faltou-lhe qualquer coisa, aquele elemento extra que tem o condão de nos fazer voar para outra dimensão. Talvez se possa dizer que lhe terá faltado o toque mágico. «Tommy Flanagan consegue ser melhor do que isto», pensava eu enquanto o ouvia tocar, «espera só que ele aqueça e vais ver.»
Mas o tempo foi passando e a coisa não melhorou. À medida que a actuação caminhava para o fim, comecei a sentir-me à beira de um ataque de nervos, esperando sinceramente que a noite não acabasse assim. Só desejava que as coisas corressem de outra maneira, a fim de não regressar a casa com aquela recordação desenxabida. Ou sem recordações de espécie alguma. Além de que poderia nunca mais voltar a ter a oportunidade de ver tocar Tommy Flanagan ao vivo. (De facto, confirmou-se a suposição.) De repente, ocorreu-me um pensamento: se me fosse dada a hipótese de escolher, ali e naquela hora, dois temas para ele tocar, quais seriam esses temas? Depois de reflectir um bom bocado, acabei por escolher «Barbados» e «Star-Crossed Lovers».
O primeiro é de Charlie Parker, o segundo, uma música de Duke Ellington. Lembrei-me deste último por causa das pessoas que não se encontram tão ligadas ao mundo do jazz, mas nem uma nem outra peça são muito populares ou interpretadas muitas vezes. Quando muito, talvez «Barbados», embora se trate de uma das melodias mais insípidas escritas por Charlie Parker, e quase aposto que a maioria nunca ouviu sequer «Star-Crossed Lovers». Isto para referir que nenhuma era uma escolha óbvia.
Naturalmente que tinha as minhas razões para haver escolhido aqueles temas tão improváveis no que tocava aos pedidos da minha eleição – nomeadamente que existiam duas gravações inesquecíveis de um e de outro feitas por Tommy Flanagan. «Barbados» aparecia no álbum de 1975 Dial JJ 5, com ele ao piano a tocar na companhia do J. J. Johnson Quintet, enquanto «Star-Crossed Lovers» pertencia ao álbum Encounter!, lançado em 1968, que contou também com as participações de Pepper Adams e Zoot Sims. No decorrer da sua longa carreira, Tommy Flanagan interpretou e gravou uma quantidade impressionante de peças na qualidade de pianista convidado de vários agrupamentos, mas, confesso, eram sempre dos curtos solos marcantes e virtuosos, sobretudo nesses dois temas, que eu gostava acima de tudo. Daí que me tivesse posto a pensar que seria ouro sobre azul se ele os tocasse naquele momento. Nunca tirei os olhos dele, a imaginar que ele viria ter comigo à mesa para me dizer: «Viva, tenho estado a abservá-lo. Por acaso tem algum pedido especial a fazer? Teria todo o gosto em tocar os temas que gostasse de ouvir.» Apesar de saber, como é óbvio, que as hipóteses de isso acontecer eram mais do que reduzidas.
Foi então que, sem dizer uma palavra nem tão-pouco um único olhar na minha direcção, Tommy Flanagan finalizou a sua actuação tocando dois temas – precisamente aqueles em que eu tinha pensado. Arrancou com a balada «Star-Crossed Lovers», antes de atacar uma versão uptempo de «Barbados». Deixei-me ficar no meu lugar, incapaz de reagir, de copo de vinho em punho. Os amantes do jazz por certo compreenderão que as probabilidades de ele ter escolhido aqueles dois temas, dentre os milhões de melodias que existem no mundo do jazz, eram infinitas. Sem esquecer – e isto é que é o ponto fundamental – que as suas interpretações de um e outro tema eram espantosas.
O segundo incidente aconteceu mais ou menos na mesma altura, e também teve que ver com jazz, e teve por cenário uma loja de discos em segunda mão, nas imediações da Berklee School of Music. Deambular por entre prateleiras cheias de velhos LP é uma das poucas coisas desta vida que vale realmente a pena, na minha opinião. Nesse dia em concreto, tinha encontrado a cópia usada de uma gravação do quinteto de Pepper Adams feito para a Riverside, de seu título 10 to 4 at the 5 Spot. Tratava-se de um disco gravado ao vivo no clube de jazz The Five Spot, em Nova Iorque. Escusado dizer que «10 to 4» significa dez minutos para as quatro, e, verdade seja dita, a dita sessão aconteceu num ambiente tão quente que eles tocaram até de manhãzinha. Aquela cópia do álbum era uma edição original, e estava como nova. Se bem me lembro, o preço andava à volta dos sete ou oito dólares. Tinha na minha posse a versão japonesa do disco e, de tantas vezes a ouvir, estava toda riscada. O simples facto de encontrar um disco original em tão bom estado e a um preço tão convidativo adquiriu, aos meus olhos, e fazendo o devido desconto, os contornos de um pequeno milagre. Conheci um sentimento de exultação ao comprar o disco e, quando ia mesmo a sair da loja, passou por mim um rapaz que me perguntou: «Por acaso tem horas que me diga?» Olhei para o relógio e respondi automaticamente: «Tenho, são dez para as quatro.»
Dito aquilo, reparei na coincidência e engoli em seco. Que diabo se estaria a passar? Teria o deus do jazz pairado nos céus sobre Boston para me dizer, com uma piscadela de olho à mistura: «Yo, you dig it?»
Não se pode dizer que algum dos dois acontecimentos se tenha revestido de algum significado especial, nem que a minha vida tenha mudado. Acontece que fiquei pura e simplesmente espantado com aquelas duas estranhas coincidências. Que é como quem diz, com o facto de coisas desse género acontecerem de facto.
Não me interpretem mal. Pessoalmente, os fenómenos ocultos não me dizem rigorosamente nada. A leitura da sina não tem em mim um adepto. Em vez de deixar que alguém me leia a palma da mão, prefiro mil vezes puxar pelas meninges em busca de uma solução para os meus problemas. Longe de mim gabar-me de ter uma mente brilhante ou coisa parecida, o que acontece é que sempre me pareceu ser esse o caminho mais rápido para achar uma solução. Os poderes paranormais também não me dizem nada. Confrontado com coisas como a transmigração, a alma, premonições, telepatia, a teoria do fim de tempo, obrigado, mas passo ao lado. Não quero com isto dizer que não acredite nisto ou naquilo. Da mesma forma que acredito que da sua existência não vem mal ao mundo. Pessoalmente, repito, não estou interessado, mais nada. E, contudo, sou obrigado a reconhecer que não foram poucos os fenómenos bizarros e inesperados que de vez em quando têm dado cor à minha vida monótona.
A história que se segue foi-me contada por um amigo. Calhou em conversa ter-lhe falado naqueles dois meus episódios, após o que ele ficou sentado durante um grande bocado, com uma expressão séria, até que por fim disse: «Para dizer a verdade, também aconteceu comigo uma coisa parecida. Uma série de coincidências, a que fui conduzido pelo acaso. Apesar de não sido nada do outro mundo, o certo é que não consegui encontrar explicação.»
Alterei alguns dos factos, a fim de proteger a identidade das pessoas, mas, tirando isso, a história que me apresto a contar foi-me contada exactamente assim.
O meu amigo é afinador de pianos. Habita na parte ocidental da cidade de Tóquio, perto do rio Tama. Tem quarenta e um anos e é homossexual. Tem um namorado três anos mais novo. O namorado trabalha no ramo imobiliário e, por causa da sua profissão, sente dificuldade em sair do armário e assumir a sua homossexualidade, razão pela qual cada um vive na sua casa. Se bem que não passe de um mero afinador de pianos, o meu amigo frequentou uma academia de música e é ele próprio pianista de reconhecidos dotes. A sua especialidade são os modernos compositores franceses – Debussy, Ravel e Erik Satie, que interpreta com a mais profunda expressividade. Contudo, Francis Poulenc é o seu preferido.
«Poulenc era homossexual», explicou-me ele um dia. «E nunca tentou esconder esse facto. O que, na época, era bastante difícil. Uma vez, disse qualquer coisa como isto: “Sem a minha homossexualidade, nunca teria podido criar a minha música.” Compreendo perfeitamente o que ele queria dizer. Tinha de ser tão fiel à sua condição de homossexual como em relação à sua música. É assim a vida, e é assim a música.»
Também eu sempre apreciei a música de Poulenc. De todas as vezes que o meu amigo aparece cá em casa para vir afinar o piano, mal ele acaba o que veio fazer peço-lhe sempre que toque duas ou três pequenas peças de Poulenc. A «Suite Française» ou a «Pastoral».
Ele «descobriu» que era maricas depois de ter entrado para a escola de música. Antes disso, nunca se lhe colocara sequer essa possibilidade. Era um homem elegante, bem-educado, de temperamento calmo, e muito popular junto das raparigas nos tempos do secundário. Sem uma namorada fixa digna desse nome, teve, no entanto, a sua dose de encontros com raparigas. Gostava imenso de caminhar ao lado de uma rapariga, a fim de observar de perto o seu penteado, aspirar a fragrância junto ao seu pescoço, segurar na delicada mãozinha dela. Porém, nunca fez sexo com nenhuma. Após uma série de encontros com uma jovem, pressentia da parte dela uma certa vontade de que ele tomasse a iniciativa e fizesse alguma coisa, mas nunca foi capaz de dar o passo seguinte. Nunca sentiu dentro de si alguma coisa que o levasse a isso. Sem excepção, todos os outros rapazes à sua volta conviviam com os seus demónios sexuais, alguns deles indo ao ponto de lutar com eles, outros acabando por ceder. No caso dele, diga-se em abono da verdade que nunca sentiu esse tipo de compulsão. Se calhar, era daquelas pessoas que amadurecem mais tarde do que o normal, pensava ele. Ou, então, também podia dar-se o caso de ainda não ter encontrado a rapariga certa.
Na academia, começou a andar com uma rapariga do seu ano que andava a estudar percussão. Gostavam de conversar e, nos momentos que passavam juntos, sentiam uma certa proximidade. Passado não muito tempo, dormiram um com o outro no quarto dela. Foi ela a tomar a iniciativa. Já tinham bebido a sua conta. O sexo aconteceu sem sobressaltos, se bem que não tivesse sido nem metade tão excitante e gratificante como toda gente dizia. Pelo contrário, aos olhos do meu amigo a coisa assumiu contornos grosseiros e quase grotescos. Além de que o odor libertado pela rapariga em plena fase de excitação provocou nele o efeito contrário, fazendo-o sentir repulsa. Muito melhor do que dormir com ela, achava ele, era ficar à conversa, ouvirem música juntos, partilhar uma refeição. À medida que o tempo foi passando, fazer sexo com ela revelou-se um pesadelo.
Apesar de tudo, ele continuava a ter-se na conta de uma pessoa a quem o sexo era indiferente. Até que um belo dia... Não, mais vale saltar esta parte. Só serviria para demorar muito, além de que não tem uma relação directa com a história que eu quero contar. Digamos apenas que aconteceu uma coisa e que isso fez com que ele descobrisse, sem sombra de dúvida, que era homossexual. Não estando na sua maneira de ser inventar desculpas, assumiu o facto e contou à rapariga. Passada uma semana, a notícia chegara aos ouvidos de toda a gente. Ele perdeu alguns dos seus amigos, e o relacionamento com os pais conheceu uma fase de alguma tensão, mas, no cômputo geral, até foi bom ter-se sabido tudo. Ele não era pessoa de esconder a sua verdadeira natureza.
O que mais mágoa lhe causou, porém, foi a reacção da pessoa de quem se sentia mais próximo na família, a sua irmã, dois anos mais velha. Quando a família do noivo veio a saber que o irmão dela era gay, por pouco não desmancharam o noivado e cancelaram o casamento. Apesar de os pais do noivo terem sido convencidos a mudar de ideias e de o casalinho ter finalmente dado o nó, toda aquela história provocou na irmã dele um forte abalo nervoso, e ela, profundamente ressentida, acusou disso o irmão. «Por que é que foste logo escolher esta altura da minha vida para fazer ondas?», gritou-lhe ela. Naturalmente que o irmão se defendeu das acusações, mas depois desse episódio os dois acabaram por se afastar. Basta dizer que ele nem sequer foi ao casamento dela.
Do que ele mais gostava na sua vida de homossexual era o facto de viver sozinho. Tirando aquelas pessoas que nutriam pelos homossexuais uma certa repulsa física, quase toda a gente gostava dele – vendo bem, andava sempre impecavelmente vestido, era afectuoso e delicado, tinha sentido de humor e um sorriso sempre ao canto da boca. Era bom no seu ofício e por isso tinha uma longa lista de clientes e um rendimento muito razoável. Alguns pianistas famosos insistiam em tê-lo como afinador dos seus pianos. O T3 que tinha comprado nas imediações da universidade estava quase pago na totalidade. Possuía uma dispendiosa aparelhagem estereofónica, era mestre na arte de bem cozinhar refeições orgânicas e para se manter em forma ia cinco dias por semana ao ginásio. Depois de ter saído com uma série de homens, conheceu o seu presente companheiro, com o qual mantinha uma relação estável há dez anos.
Todas as terças-feiras atravessava o rio Tama, ao volante do seu Honda verde descapotável com mudanças manuais, e ia fazer as suas compras num outlet que ficava na prefeitura de Kanagawa. O centro comercial estava recheado das principais lojas de marcas – Gap, Toys R Us, The Body Shop e por aí fora. Ao sábado e ao domingo, o local ficava a abarrotar de gente e mal se conseguia lugar para estacionar, mas de manhã, nos dias de semana, estava quase deserto. Ele costumava dirigir-se a uma grande livraria que lá existia, comprava um livro que lhe chamasse a atenção e depois passava as horas seguintes calmamente a ler e a beber café numa cafetaria. Eram assim as suas terças-feiras.
«O centro comercial é horroroso», disse-me ele, «mas aquele café não tem nada que ver com o resto. Trata-se, de facto, de um sítio muito agradável. Descobri-o por mero acaso. Não têm música de fundo, é proibido fumar, e as cadeiras são ideais para ler. Nem demasiado duras, nem demasiado moles. Além de que quase nunca tem ninguém. Imagino que às terças de manhã não haja muita gente que tenha disponibilidade para ir tomar café. E mesmo que isso acontecesse, o mais provável era essas pessoas irem antes ao Starbucks do lado.»
Era vê-lo, às terças-feiras de manhã, a partir das dez e quase até à uma da tarde, sentado no tal cafezinho, mergulhado na leitura. Por volta da uma, escolhia um restaurante ali perto, almoçava uma salada de atum e uma Perrier, e depois ia até ao ginásio fazer um bocado de exercício. A típica terça-feira dele era passada assim.
Naquela terça-feira em questão, encontrava-se ele a ler, como de costume, no café praticamente sem ninguém. O livro era A Casa Abandonada32, de Charles Dickens. Ele tinha lido o romance anos antes e, assim que o descobriu numa estante da livraria, decidiu pegar nele outra vez. Lembrava-se perfeitamente de ter achado a história interessante, mesmo que não pudesse jurar que se lembrava de certos pormenores do enredo. Dickens era um dos seus escritores preferidos, desde sempre. Ler as obras de Dickens tinha o sortilégio de fazer com que os leitores se esquecessem do mundo à sua volta. Bastou-lhe ler a primeira página para ficar completamente absorvido pela história.
No entanto, após uma hora de aturada leitura, sentiu um certo cansaço. Fechou o livro, pousou-o em cima da mesa, fez sinal à empregada e mandou vir mais café, e foi à casa de banho no exterior do café. Quando regressou ao seu lugar, a mulher que estava na mesa ao lado, por sinal também a ler, dirigiu-lhe a palavra.
– Desculpe, posso fazer-lhe uma pergunta?
Ele olhou para ela sem disfarçar um sorriso. Devia ser da mesma idade.
– Claro que sim – respondeu.
– Bem sei que pode parecer deselegante meter assim conversa, mas há uma coisa que me faz confusão – referiu ela, corando ligeiramente.
– Por mim, tudo bem. Pode falar à vontade, não estou com pressa.
– Esse livro, que por acaso está a ler, é de Dickens?
– Sim, é – respondeu ele, pegando no livro e mostrando-lho. – A Casa Abandonada.
– Bem me parecia – observou ela, parecendo nitidamente aliviada. – Reparei na capa e pensei que pudesse tratar-se desse livro.
– Também gosta do romance A Casa Abandonada?
– Gosto. Não deixa de ser uma coincidência interessante. Quero dizer, estar sentada praticamente ao seu lado, e a ler o mesmo livro. – Ela tirou a cobertura de papel, daquelas que os livreiros oferecem se o cliente deseja, e mostrou a capa.
Tratava-se, de facto, de uma coincidência espantosa. Imaginem – na manhã de um dia de semana, num café vazio em pleno centro comercial deserto, calha haver duas pessoas sentadas ao lado uma da outra que estão a ler precisamente o mesmo livro. E, mais, não estamos a falar de um bestseller a nível mundial, mas de Charles Dickens. E nem sequer se pode dizer que o referido romance seja das suas obras mais conhecidas. O certo é que aquele estranho e improvável encontro apanhou ambos de surpresa, ao mesmo tempo que os ajudava a ultrapassar os sentimentos desordenados de um primeiro encontro.
A mulher vivia numa urbanização que não ficava longe do complexo comercial. Tinha comprado o romance A Casa Abandonada havia cinco dias, naquela mesma livraria, e, mal se sentou no café para beber uma chávena de chá e abriu o romance na primeira página, nunca mais conseguiu parar de ler. Sem dar por isso, passaram duas horas. Desde os seus dias de estudante universitária que não sabia o que era ficar absorvida pela leitura.
Era pequena e, apesar de não se poder dizer que fosse gorda, começara a ganhar gordurinhas nos sítios habituais. Tinha o peito grande e um rosto atraente. As roupas que trazia vestidas denotavam bom gosto e não deviam ter sido baratas. No decorrer da conversa, ele ficou a saber que a mulher fazia parte de um clube de leitura e que o livro do mês era precisamente A Casa Abandonada. Uma das senhoras que integravam o clube era uma grande leitora de Dickens e tinha sugerido que a sessão seguinte fosse preenchida com aquele romance. A mulher no café tinha dois filhos (duas raparigas, uma no primeiro ano e outra no terceiro) e normalmente tinha pouco tempo para ler. Ainda assim, de vez em quando conseguia dar uma escapadela e arranjar algum tempo para si. As pessoas com que se dava no dia-a-dia eram quase todas mães das colegas das suas filhas, e os temas de conversa não fugiam muito aos programas que passavam na televisão e às bisbilhotices sobre os professores. Daí que ela tivesse tomado a decisão de entrar para um clube de leitura. O marido também costumava ler muito, mas nos últimos tempos o volume de trabalho mantinha-o sempre tão ocupado que já era uma sorte se, de quando em quando, conseguia passar os olhos por um ou outro livro de natureza comercial.
Por seu turno, ele também entrou em confidências com a mulher acerca da sua pessoa. Contou-lhe que ganhava a vida como afinador de pianos, que vivia numa casa com vista para o rio Tama, e que era solteiro. Disse-lhe que gostava tanto daquele café que uma vez por semana pegava no carro e ia até ali só para ficar sentado a ler. Quando ao facto de ser homossexual, deixou-se ficar calado. Não que estivesse a escamotear a questão, apenas achava que não era o género de coisa para anunciar a qualquer pessoa.
Almoçaram juntos num restaurante do centro comercial. A mulher tinha um espírito aberto, próprio de uma pessoa honesta. Assim que ultrapassou o nervosismo inicial, e quebrou o gelo, fartou-se de rir. O seu riso era comedido e muito natural. Nem foi preciso ela entrar em pormenores para ele ficar a par do estilo de vida que ela levara até aí. Era uma menina mimada, filha de boas famílias, nascida e criada em Setagaya, tinha frequentado um bom colégio, onde obteve sempre boas notas e uma certa popularidade (porventura, mais junto das outras raparigas do que dos rapazes), antes de ter casado com um homem três anos mais velho que ganhava bem e de ter sido mãe de duas filhas. As meninas andavam a estudar num colégio privado. Ao longo dos doze anos de casada, nem tudo tinham sido rosas, mas também não se podia dizer que tivesse razões de queixa. No decorrer de um almoço ligeiro, os dois conversaram acerca dos livros que tinham lido recentemente e sobre a música da sua preferência.
– Gostei muito deste bocadinho – referiu ela, depois de terem estado à conversa cerca de uma hora, e corou. – Não há muita gente com quem eu possa falar.
–Também gostei – disse ele. E não era mentira nenhuma.
Na terça-feira seguinte, quando ele se encontrava sentado no café a ler, ela apareceu outra vez. Cumprimentaram-se com um sorriso e ficou cada um sentado à sua mesa, em silêncio, cada um entretido a ler o seu exemplar de A Casa Abandonada. Pouco antes do meio-dia, ela foi até à mesa dele e meteu conversa, e, tal como acontecera na semana anterior, foram os dois almoçar. «Conheço um simpático restaurantezinho francês aqui perto», sugeriu ela, «e pensei que gostasse de experimentar, uma vez que no centro comercial não existem sítios decentes para comer.» Ele disse que estava bem e lá foram no carro dela, um Peugeot 306 automático, de cor azul. Mandaram vir salada de agriões e perca grelhada, e a acompanhar beberam um copo de vinho branco. À mesa, enquanto comiam, discutiram o romance de Dickens.
Depois de almoço, no caminho de regresso ao centro comercial, ela parou o carro no parque de estacionamento e pegou nas mãos dele. Gostaria de ir com ele até um sítio calmo e tranquilo, disse ela. Ele mostrou-se algo surpreendido com a forma rápida como as coisas se estavam a desenrolar.
– Nunca fiz nada deste género desde que sou casada – referiu ela. – Mas confesso que não tenho pensado noutra coisa desde a semana passada. Juro que não farei qualquer exigência nem é minha intenção causar-te alguma espécie de problemas. É evidente que se não me achares atraente...
Ele apertou-lhe a mão com suavidade e explicou-lhe calmamente a situação.
– Se eu fosse um tipo normal – começou ele –, teria todo o prazer em ir contigo para esse tal «sítio calmo e tranquilo». És uma mulher atraente e de certeza que seria maravilhoso passar alguns momentos na tua companhia. Porém, acontece que sou homossexual. O que significa que não vou para a cama com mulheres. Outros na mesma situação fazem-no, mas não é o meu caso. Espero que consigas compreender isso. Estou disposto a ser teu amigo, mas infelizmente não teu amante.
Ela demorou o seu tempo a compreender o que ele estava a tentar dizer (era o primeiro homossexual que conhecia) e, quando por fim entendeu a mensagem, começou a chorar. Com o rosto encostado ao ombro do afinador de pianos, chorou durante muito tempo. Deve ter sido um grande choque para a pobre mulher, pensou ele, ao mesmo tempo que punha os braços em volta dela e lhe fazia festas no cabelo.
– Desculpa isto – acabou ela por dizer. – Obriguei-te a falar de um assunto sobre o qual não querias falar.
– Não faz mal. Não ando propriamente a tentar esconder-me do mundo. Eu é que devia ter sido mais sensível e ter-te avisado na altura devida, para evitar mal-entendidos. Receio bem que tenha sido eu o culpado por te ter colocado numa situação incómoda.
Com os seus dedos longos e elegantes, ele acariciou o cabelo dela sem parar, até que, aos poucos, aquele gesto logrou ter um efeito tranquilizador. Ela tinha um sinal, reparou ele, no lóbulo da orelha direita. O sinal acordou nele recordações da sua infância. A sua irmã mais velha tinha um sinal parecido, no mesmo sítio. Quando ele era pequeno, costumava pôr-se a esfregar o sinal da irmã quando ela estava a dormir, para ver se saía. Depois a irmã acordava e zangava-se com ele.
– Tenho andada excitada desde o dia em que te conheci – disse ela. – Não sabia o que isso era desde há muito tempo. E garanto-te que foi uma sensação óptima, fez-me regressar aos tempos da adolescência. Por isso só tenho a agradecer-te, não te preocupes. Fui ao cabeleireiro, fiz uma dieta daquelas rápidas, comprei roupa interior italiana...
– Estou a ver que te obriguei a deitar o dinheiro pela janela – observou ele a rir.
– Pois, mas acho que estava a precisar disso.
– A precisar de quê?
– Precisava de fazer qualquer coisa a fim de dar voz aos meus sentimentos.
– E para isso foi preciso comprar roupa interior sexy italiana? Ela corou até às orelhas.
– Não era sexy, nada disso. Era muito bonita, mais nada.
Ele tornou a sorrir e olhou-a nos olhos, para lhe fazer ver que estava a brincar só para quebrar a tensão. Ela retribuiu-lhe o sorriso. Durante um grande bocado, ficaram os dois a olhar um para o outro.
Ele pegou no lenço que tinha e limpou-lhe as lágrimas. Ela sentou-se e rectificou a maquilhagem com a ajuda do espelho que existia na pala do sol.
– Depois de amanhã tenho de ir à cidade, ao hospital, para fazer um segundo exame ao cancro do peito – disse ela, parando o carro no parque de estacionamento do centro comercial e usando o travão de mão. – Encontraram uma sombra esquisita na mamografia e querem que eu faça mais testes. Caso se venha a confirmar que é mesmo cancro, possivelmente terei de ser logo operada. Se calhar, foi por isso que eu hoje tive este comportamento. Quero com isto dizer que...
Por momentos calou-se, ao mesmo tempo que abanava a cabeça com força.
– Nem eu própria consigo compreender.
O afinador de pianos avaliou o silêncio dela. Escutou atentamente, como se quisesse captar o mais ínfimo som.
– Podes encontrar-me aqui quase todas as terça de manhã – disse ele. – Aqui mesmo, a ler. Não posso fazer grande coisa, mas estarei aqui se precisares de alguém com quem falar. Isto é, se não te importares de falar com uma pessoa como eu.
– Não disse nada a ninguém acerca disto. Nem sequer ao meu marido.
Ele pousou a sua mão sobre as dela, por cima do travão de mão.
– Tenho medo – confessou ela. – Às vezes o medo é tanto que nem me deixa pensar.
Uma carrinha azul parou no espaço de estacionamento ao lado deles, e lá de dentro saiu um casal de meia-idade com ar infeliz. Estavam a discutir por uma parvoíce qualquer. Assim que eles se afastaram, voltou a haver silêncio. Ela tinha os olhos fechados.
– Não estou em posição de dar conselhos – murmurou ele –, mas existe uma regra que me esforço por seguir sempre que não sei o que fazer.
– Uma regra?
– Se tiveres de escolher entre uma coisa que tenha forma e outra sem forma, opta pela segunda hipótese. É essa a minha regra. Sempre que vou de encontro a um muro, sigo essa regra e a coisa funciona sempre. Mesmo que na altura faça doer.
– E foste tu quem inventou essa regra?
– Fui – replicou ele, de olhos postos no indicador da distância percorrida pelo Peugeot. – É o resultado da minha própria experiência.
– Se tiver de escolher entre uma coisa que tenha forma e outra informe, opto pela que não tem forma – repetiu ela.
– Isso mesmo.
Ela ficou a matutar naquilo.
– Contudo, se me fosse dado escolher agora, neste preciso momento, não sei se saberia a diferença. Quero dizer, entre uma coisa com forma e outra sem.
– Talvez não, mas algures ao longo do percurso serias obrigada a fazer essa escolha.
– Como é que sabes?
Ele abanou lentamente a cabeça.
– Um homossexual experiente como eu possui toda a espécie de superpoderes.
Ela riu-se.
– Obrigada.
Seguiu-se um longo silêncio. Mas não se revelou tão denso e sufocante como antes.
– Adeus – disse a mulher. – Estou-te muito agradecida por tudo. Ainda bem que te conheci e que tive oportunidade de falar contigo. Sinto que agora estou em condições de encarar a situação com mais coragem.
Ele sorriu e apertou-lhe a mão.
– Toma conta de ti.
Ficou parado, a ver o Peugeot azul dela afastar-se. Fez um último sinal de adeus na direcção do espelho retrovisor, antes de se dirigir calmamente para o sítio onde tinha deixado o Honda estacionado.
Na terça-feira seguinte estava um dia de chuva. A mulher não apareceu no café. Ele deixou-se ficar a ler até ser uma da tarde e depois foi-se embora.
Nesse dia, o afinador de pianos decidiu faltar ao ginásio. Exercício físico? Não estava para aí virado. Em vez disso, foi direito para casa, sem parar sequer para almoçar, e deitou-se no sofá, a ouvir as baladas de Chopin interpretadas por Arthur Rubinstein. De olhos fechados, conseguia ver o rosto da mulher, o toque do seu cabelo. Até recordava com nitidez a forma do sinal que ela tinha no lóbulo da orelha. Passado algum tempo, a imagem dela e do seu Peugeot acabaram por se desvanecer, mas o sinal continuou gravado na sua mente, como um ponto final esquecido.
Por volta das duas e meia, decidiu telefonar à irmã. Passara muito tempo desde a última vez que haviam falado. Quantos anos? Dez? Só confirmava até que ponto se tinham afastado. Em parte, isso devia-se às coisas desagradáveis que, no calor do momento, haviam dito um ao outro, quando acontecera a tal história do noivado. Outra razão prendia-se com o facto de ele não gostar do marido dela. Era um homem arrogante e cruel, que encarava a orientação sexual do afinador de piano como se fosse uma doença contagiosa. A não ser em caso de absoluta necessidade, o afinador de pianos não gostaria de estar mais perto do que a cem metros do indivíduo.
Hesitou por mais de uma vez antes de pegar no auscultador, mas acabou por marcar o número. O telefone tocou para aí umas dez vezes e ele estava quase a desligar – não sem um certo alívio, verdade seja dita – quando a irmã atendeu, e ele ouviu a voz familiar dela. Quando percebeu que era ela, fez-se um silêncio profundo do outro lado da linha.
– Por que razão é que me estás a ligar? – perguntou ela, numa voz sem expressão.
– Não sei – admitiu ele. – Achei que devia. Estava preocupado contigo.
Silêncio outra vez. Um longo silêncio. «Pode ser que ela ainda esteja zangada comigo», pensou ele.
– Não liguei por nenhuma razão especial. Só queria saber se está tudo bem contigo.
– Podes esperar um segundo? – pediu a irmã. Pela voz, ele soube que ela tinha estado a chorar. – Desculpa, dá-me só um momento.
O silêncio voltou a fazer-se sentir. Durante todo aquele tempo, ele manteve sempre o auscultador encostado ao ouvido. Não conseguia ouvir nada, rigorosamente nada.
– Estás ocupado agora? – perguntou ela por fim.
– Não, estou livre – retorquiu ele.
– Posso ir ter contigo?
– Claro que sim. Vou buscar-te à estação.
Uma hora mais tarde, passou pela estação e levou a irmã para o seu apartamento. Já não se viam há coisa de dez anos, e ele tinha de admitir que tinham ambos envelhecido. Cada um funcionava como um espelho onde o outro podia observar o que nele próprio mudara. A irmã continuava magra e elegante e parecia cinco anos mais nova do que na realidade era. Apesar disso, as suas faces ocas possuíam uma expressão severa que ele nunca antes lhe vira, e os seus impressionantes olhos negros haviam perdido algo do brilho de outros tempos. Também ele parecia mais novo, se bem que se tornasse difícil esconder o facto de o seu cabelo começar a rarear. Ainda dentro do carro, falaram das mesmas coisas de sempre: o trabalho, os filhos dela, os amigos em comum, o estado de saúde dos pais.
Quando chegaram a casa, ele foi à cozinha pôr água ao lume.
– Continuas a tocar piano? – perguntou ela ao ver o piano de cauda que havia na sala.
– Só para meu prazer pessoal. E apenas peças mais pequenas. Deixei de ser capaz de tocar as mais difíceis.
A irmã levantou a tampa do piano e pousou os dedos sobre as teclas, amareladas de anos e anos de uso. – Sempre pensei que um dia virias a ser um concertista famoso.
– O mundo da música é onde as crianças-prodígios vão morrer – declarou ele, enquanto punha os grãos de café a moer. – Não estou a dizer que tenha sido fácil. Desistir de ser pianista de carreira constitui um grande desgosto. Tive a sensação de que toda a minha vida até essa data não passara de um enorme desperdício. Só me apetecia desaparecer. Acontece, porém, que os meus ouvidos acabaram por se revelar superiores às minhas mãos. Existem muitas pessoas com mais talento do que eu, mas ninguém tem um ouvido como o meu. Apercebi-me disso pouco depois de ter entrado para a universidade. E com o tempo vim a saber que mais vale ser um afinador de pianos de primeira do que um pianista de segunda ordem.
Ele pegou numa embalagem de natas que estava dentro do frigorífico e deitou o seu conteúdo para dentro de um jarrinho de porcelana.
– Pode parecer estranho, mas depois de ter mudado para a licenciatura em Afinação, comecei a tirar mais prazer do piano. Desde pequeno, sempre pratiquei piano em doses industriais. Achava graça à história de registar a minha evolução, mas tocar nunca me deu um gozo por aí além. O piano era apenas a maneira que eu tinha de resolver certos e determinados problemas. Tentar não cometer deslizes com os dedos nem deixar que os meus dedos se entrelaçassem – e tudo isso para impressionar as outras pessoas. Só quando abandonei a ideia de ser pianista é que compreendi como tocar piano podia dar gozo. E como a música era maravilhosa. Foi como se me tirassem um peso dos ombros, um peso enorme do qual nunca me dei conta a não ser quando me livrei dele.
– Nunca me disseste nada acerca disto.
– Não?
A irmã abanou negativamente a cabeça.
– Aconteceu no mesmo ano em que descobri que era maricas – continuou ele. – Foi quando uma data de coisas que eu não havia maneira de perceber se resolveram. A vida tornou-se muito mais fácil para mim, desde então. Senti que as nuvens se afastavam e que podia enfim ver. Tenho a certeza de que transtornei a vida de muita gente, quando desisti da carreira de pianista e assumi o facto de ser homossexual. Mas foi a única forma de regressar às origens, de me reencontrar com o meu verdadeiro eu. Gostaria que percebesses isso.
Ele colocou uma chávena de café diante da irmã. Depois pegou na sua caneca e foi sentar-se ao lado dela, no sofá.
– Se calhar, devia-me ter esforçado mais para compreender os teus pontos de vista – confessou a irmã. – A verdade, porém, é que antes de teres tomado a atitude que tomaste, devias ter vindo falar connosco, a fim de explicares a situação. Só queríamos que tivesses confiado em nós e que tivesses partilhado connosco o que na altura pensavas e...
– Mas eu é que não estava interessado em explicar coisa nenhuma
– interrompeu-a ele. – Queria, isso sim, que compreendessem a minha posição sem ser preciso explicar nada. Tu, especialmente.
Ela não disse nada.
– Antigamente não tinha por hábito levar em consideração os sentimentos dos outros. Nem sequer conseguia tolerar essa ideia.
A voz dele tremeu ligeiramente ao recordar aquela época da sua vida. Esteve à beira de começar a chorar, mas fez os possíveis por se recompor e prosseguiu:
– A minha vida mudou por completo num curto espaço de tempo. Não sei como, mas lá fui capaz de me equilibrar a fim de não perder o comboio. Fiquei com tanto medo, tão assustado. Na altura, vi-me impossibilitado de explicar o que quer que fosse a alguém. Tive a sensação de resvalar e desaparecer da face da Terra. A única coisa que queria era que tu fosses capaz de me compreender. E que me abraçasses. Sem nenhuma razão lógica nem explicações de espécie alguma. Mas ninguém...
A irmão tapou a cara com as mãos. Os ombros estremeceram e ela começou a chorar baixinho. Ele pousou a mão no ombro dela.
– Desculpa – disse ela.
– Não faz mal – replicou ele. Deitou um pouco de leite no café, mexeu e bebeu devagar, para ver se conseguia manter a calma.
– Não há motivos para chorar. A culpa também foi minha.
– Diz-me uma coisa – voltou ela à carga –, por que razão te lembraste de me ligar hoje, ao fim de dez anos?
– Hoje?
– Sim, estiveste dez anos sem dizer nada e gostava de saber por que escolheste precisamente este dia.
– Aconteceu uma coisa – explicou ele – que me fez pensar em ti. Disse a mim próprio que gostaria de saber como é que tu estavas. Apeteceu-me ouvir a tua voz. Só isso.
– Ninguém te disse nada?
Ele notou uma mudança esquisita na voz dela, que o levou a ficar de pé atrás.
– Não, ninguém me disse nada. Aconteceu alguma coisa?
A irmã ficou calada por momentos, procurando controlar os seus sentimentos. Ele esperou pacientemente pela explicação dela.
– Amanhã tenho de me apresentar no hospital – disse ela.
– No hospital? Que hospital?
–Vou ser operada a um cancro na mama. Vão tirar-me a mama direita. Toda. Apesar de não saberem ainda se isso evitará que o cancro se espalhe. Só poderão ter a certeza quando me operarem.
Os minutos passaram e ele não soube o que dizer. Sem nunca tirar a mão do ombro dela, percorreu com o olhar tudo o que havia na sala sem se fixar em nada. O relógio, uma bugiganga decorativa, o calendário, o controlo remoto da aparelhagem estereofónica. Objectos que lhe eram familiares numa sala familiar, se bem que se sentisse incapaz de distinguir uma coisa da outra.
– Andei tempos infinitos sem saber se havia de entrar em contacto contigo – retomou a irmã o fio à meada. – Acabei por me decidir que era melhor não o fazer, por isso é que nunca te disse mais nada. A verdade, porém, é que sentia uma grande vontade de te ver. Nem que fosse para termos uma conversa decente. Há coisas pelas quais tenho de te pedir desculpa. Mas... não era assim. Percebes o que eu quero dizer?
– Percebo – respondeu o irmão.
– Gostava que nos pudéssemos ter reencontrado em circunstâncias mais felizes, quando eu fosse capaz de olhar o futuro com mais optimismo. Por isso achei melhor não te dizer nada. E logo foi acontecer que tu decidiste ligar para mim...
Sem palavras, ele pôs os braços à volta da irmã e abraçou-a. Sentia os seios dela de encontro ao seu peito. Ela encostou a face ao ombro dele e chorou. Irmão e irmã ficaram assim durante muito tempo.
Por fim ela quebrou o silêncio.
– Disseste que aconteceu qualquer coisa e que por causa disso te tinhas lembrado de mim. O que foi? Se é que me podes contar.
– Não sei como te dizer. É difícil explicar. Foi uma coisa que aconteceu, uma sucessão de coisas, melhor dizendo. Uma série de coincidências...
Ele abanou a cabeça. O sentimento de distância continuava a fazer-se sentir. Vários anos-luz separavam o artefacto decorativo do controlo remoto.
– Não consigo explicar – confessou ele.
– Não tem importância – murmurou ela. – Fico contente na mesma pelo simples facto de ter acontecido. Muito contente.
Ele tocou no lóbulo direito dela e passou o dedo ao de leve pelo sinal. E então, como se fosse sua intenção enviar um sussurro mudo para um sítio muito especial, inclinou-se para a frente e beijou-a.
– O peito direito da minha irmã foi-lhe retirado no decorrer da operação, mas felizmente o cancro não tinha metástases e ela conseguiu safar-se com um ciclo de quimioterapia leve. Nem chegou a perder cabelo. Encontra-se completamente restabelecida, presentemente. Fui vê-la ao hospital quase todos os dias. Deve ser horrível para uma mulher, ficar assim sem o peito. Depois de ela ter regressado a casa, comecei a visitá-la com mais frequência. Afeiçoei-me bastante ao meu sobrinho e à minha sobrinha. Até comecei a dar aulas de piano à minha sobrinha. Não é para me gabar nem nada que se pareça, mas a garota tem talento. Da mesma forma, não se pode dizer que o meu cunhado seja tão mau como eu o pintava, agora que comecei a conhecê-lo um bocadinho melhor. Claro que não deixa de ser uma pessoa convencida e um bocado agreste, mas farta-se de trabalhar e é bom para a minha irmã. Além de que lá meteu finalmente naquela cabeça que ser homossexual não é uma doença que eu possa pegar aos filhos. Um pequeno mas significativo passo.
Ele riu-se.
– Desde que voltei a dar-me com a minha irmã, tenho a sensação de que a minha vida deu um passo em frente. Mais do que nunca, é como se sentisse que posso levar a vida que sempre quis. Se calhar isso era uma coisa em que devia ter pensado mais cedo. No fundo, sempre tive esperanças de que fizéssemos as pazes e que nos voltássemos a abraçar, eu e a minha irmã.
– Mas foi preciso acontecer qualquer coisa para isso, não é verdade?
– Isso mesmo – reiterou ele, anuindo por mais de uma vez. – A chave reside nisso. E, deixa-me que te diga, essa ideia passou-me pela cabeça na altura: talvez a sorte seja um fenómeno muito mais corriqueiro do que se imagina. Basta pensar nas inúmeras coincidências que passam a vida a acontecer à nossa volta, mas a que nós não ligamos nenhuma e deixamos escapar por entre os dedos. Como fogo-de-artifício em pleno dia. Mesmo que oiças o barulho e olhes para o céu, não consegues ver nada. No entanto, se estivermos cheios de vontade que uma determinada coisa se torne realidade, pode muito bem acontecer que ela se materialize, como uma mensagem que aparece à superfície. E nessa altura cabe-nos a nós tomar claramente posição e decifrar o seu significado. E ao vermos isso à frente dos nossos olhos, não podemos deixar de nos mostrar surpreendidos e de nos interrogarmos sobre as coisas estranhas que acontecem. Coisas essas que, afinal, não são assim tão estranhas. Que te parece? Achas que estou a exagerar?
Fiquei a matutar nas palavras dele.
«Pode ser que tenhas uma certa razão», tive vontade de responder, mas, pensando bem, não tinha a certeza se as questões poderiam ser colocadas daquela maneira assim tão simples.
– Prefiro acreditar em coisas mais simples, como num deus do jazz – afirmei.
Ele riu-se.
– Gosto disso. Seria bom se também houvesse um deus dos homossexuais.
Não faço a menor ideia do que terá sido feito da tal mulher pequena que ele conheceu no café da livraria. Há mais de seis meses que não mando afinar o piano, o que significa que não tenho tido oportunidade de falar com ele. Ainda assim, imagino que ele continue a meter-se no carro e a atravessar para o outro lado do rio Tama e a frequentar aquele café. Quem sabe se não voltará a cruzar-se com ela? Todavia, não me chegou mais nada aos ouvidos, o que significa que a história acaba aqui.
Não quero saber se é o deus do jazz, o deus dos gays ou outro deus qualquer, só espero que, algures lá em cima, discretamente, como quem não quer a coisa, esteja alguém a olhar por aquela mulher. É o que desejo, do fundo do coração. Um desejo muito simples.
30 Casa das Letras, Lisboa, 2006. (N. da T.)
31 Considerado por apreciadores e críticos a melhor sala de Boston (e dos Estados Unidos) para ouvir jazz e blues, ainda hoje com um programa permanentemente recheado de grandes nomes. (N. da T.)
32 Bleak House. Tradução de Mário Domingues, Lisboa, Romano Torres, 1964. (N. da T.)