A BAÍA DE HANALEI
Sachi perdeu o seu filho de dezanove anos quando este foi atacado por um tubarão enorme, andava ele a fazer surf nas águas da baía de Hanalei. Em boa verdade, não foi o tubarão o responsável pela sua morte. Sozinho, afastado da costa, no momento em que o tubarão lhe arrancou a perna direita, ele entrou em pânico e afogou-se. Daí que o afogamento tenha sido a causa oficial de morte. Além do mais, o tubarão deixou a prancha de surf praticamente em duas. Os tubarões não gostam de carne humana, para que se saiba. Após a primeira dentada, quase sempre libertam a presa e afastam-se. Essa a razão por que em muitos casos acontece a pessoa perder uma perna ou um braço mas sobreviver, desde que não entre em pânico. O filho de Sachi, contudo, teve uma paragem cardíaca, engoliu água em grandes quantidades e acabou por se afogar.
Quando Sachi soube do ocorrido através do consulado japonês em Honolulu, cederam-lhe as pernas e ficou prostrada no chão em estado de choque. Sentia a cabeça vazia e não conseguia raciocinar. Tudo o que queria era ficar ali, sentada, a olhar para um ponto algures na parede. Por quanto tempo aquela situação se prolongou, ela não sabia. A pouco e pouco, lá conseguiu arranjar forças para ir à procura na lista telefónica do número da companhia de aviação e reservar lugar num voo para o Havai. O funcionário do consulado instara-a a viajar o mais depressa possível, a fim de identificar a vítima. Havia ainda a remota hipótese de poder não se tratar do filho dela.
Atendendo ao facto de ser estação alta, todos os voos estavam cheios, tanto no próprio dia como no dia seguinte. Todas as agências de viagem por ela contactadas lhe deram a mesma resposta, mas quando ela explicou a situação, o senhor no balcão das reservas da United disse: «Dirija-se ao aeroporto o mais rápido possível. Vamos arranjar-lhe um lugar.» Após ter enfiado meia dúzia de coisas dentro de um saco pequeno, pôs-se a caminho do aeroporto de Narita, onde uma senhora que estava à espera dela lhe estendeu um bilhete em executiva. «É o único lugar que temos, mas só lhe debitamos o preço em turística», explicou a mulher. «Deve estar a ser uma altura terrível para si. Força, é o que eu lhe desejo.» Sachi mostrou-se grata pela ajuda recebida.
Ao chegar ao aeroporto de Honolulu, Sachi apercebeu-se de que, no meio de todo o seu desgosto, se esquecera de avisar o consulado japonês da hora de chegada. Em princípio, deveria ser acompanhada na sua deslocação por um membro do consulado. Na impossibilidade de entrar em contacto com o consulado, devido ao horário de expediente, ela tomou a decisão de não complicar mais as coisas e tratou de seguir viagem até Kauai pelos seus próprios meios. Partiu do princípio de que a situação logo se resolveria a partir do momento em que lá chegasse. Ainda não era meio-dia quando o avião que a transportava aterrou no aeroporto de Lihue, em Kauai. Alugou um carro ao balcão da Avis e foi direitinha para a esquadra de Polícia mais próxima. Chegando ali, contou que tinha acabado de chegar de Tóquio depois de ter sido informada da morte do seu filho na sequência do ataque perpetrado por um tubarão, na baía de Hanalei. Um agente da polícia com cabelo grisalho e óculos acompanhou-a à morgue, que mais parecia um armazém de frio, e mostrou-lhe o corpo do filho sem uma perna. Do joelho para baixo não existia nada – e o osso branco sobressaía horrivelmente do coto da perna direita. A partir dessa altura já não restavam dúvidas. Aquele era o seu filho. O rosto não mostrava qualquer expressão, exactamente como se estivesse a dormir profundamente. Ela nem queria acreditar que ele estivesse morto. Alguém devia ter feito qualquer coisa à cara dele, a fim de o tornar mais apresentável. Quase parecia que se alguém lhe tocasse no ombro com força, ele acordaria a resmungar como era seu costume todas as manhãs.
Numa outra sala, Sachi assinou um documento em como o corpo era o do filho. O polícia quis saber quais eram os seus planos.
– Não sei – confessou ela. – O que é que as pessoas fazem normalmente numa situação destas? – Ele disse-lhe então que o mais frequente era proceder à cremação e levar as cinzas para casa. Também podia fazer transportar o corpo até ao Japão, mas isso implicava ultrapassar uma série de questões burocráticas, o que se tornaria muito mais dispendioso. Outra possibilidade consistia em enterrar o filho em Kauai.
– Nesse caso, prefiro a cremação, por favor – replicou ela. – Levarei as cinzas para Tóquio comigo. – Afinal, o filho já estava morto. Nada o poderia trazer de novo à vida. Que diferença fazia se era cinzas ou ossos ou cadáver? Assinou o documento a autorizar a cremação e pagou a respectiva despesa.
– Só tenho o cartão American Express – disse ela.
– Serve perfeitamente – retorquiu o funcionário.
«Eis-me aqui a pagar a cremação do meu filho com um cartão American Express», pensou Sachi. Tão irreal como a morte do filho, às garras de um tubarão, era aquela situação. A cremação realizar-se-ia na manhã seguinte, disse-lhe o polícia.
– Fala muito bem inglês – referiu o agente enquanto punha a papelada em ordem. Chamava-se Sakata e era meio japonês e meio americano.
– Quando era nova, vivi durante algum tempo nos Estados Unidos.
– Então é por isso – observou o agente. A seguir entregou a Sachi tudo o que era do filho: roupa, passaporte, bilhete de regresso, carteira, Walkman, revistas, óculos escuros, estojo da barba, tudo dentro de uma pequena pasta de viagem. Sachi teve de assinar um documento para ficar na posse daqueles escassos haveres.
– Tem mais filhos? – quis saber o agente.
– Não, era o meu único filho – respondeu Sachi.
– O seu marido não pôde vir?
– O meu marido já morreu há muito tempo.
O polícia soltou um profundo suspiro.
– Lamento sinceramente. Se houver mais qualquer coisa que precise de nós, esteja à vontade.
– Gostaria de me deslocar até ao local onde o meu filho morreu, se fosse possível. E, já agora, de saber onde é que ele se encontrava hospedado. Calculo que seja preciso acertar a conta do hotel. Sem esquecer que preciso de entrar em contacto com o consulado japonês em Honolulu. Posso usar o telefone?
Ele foi buscar um mapa e usou um marcador para traçar um círculo à volta do sítio onde o filho dela andava a fazer surf e, ainda, onde ficava o hotel. Ela passou a noite num hotelzinho em Lihue, recomendado pelo polícia.
Quando Sachi se preparava para abandonar a esquadra de Polícia, o agente de meia-idade Sakata virou-se para ela e disse:
–Tenho um favor pessoal a pedir-lhe. Acontece que a Natureza se encarrega de ceifar uma ou outra vida humana, aqui em Kauai. Como pode ver, a ilha é muito bonita, mas, por vezes, pode revelar-se bastante agreste, para não dizer mortífera. É com isso que temos de viver. Tenho muita pena do que aconteceu ao seu filho. E tenho muita pena da senhora. Por isso é que só espero que não fique a odiar a nossa ilha. Bem sei que este discurso lhe pode parecer algo despropositado e egocêntrico depois de tudo o que passou, mas garanto-lhe que estou a ser sincero.
Sachi anuiu com a cabeça.
– Sabe, minha senhora, o meu irmão morreu durante a guerra, em 1944. Aconteceu na Bélgica, perto da fronteira com a Alemanha. Era membro do Regimento 442, integrado na sua totalidade por voluntários sino-americanos. Encontravam-se ali estacionados a fim de resgatar um batalhão do Texas cercado pelos nazis quando sobreveio um ataque directo e morreram todos. Dele, não sobrou nada a não ser a chapa de identificação do seu cão e alguns pedaços de carne espalhados pela neve. A minha mãe adorava aquele filho, e dizem-me que nunca mais voltou a ser a mesma pessoa. Na altura, eu era muito novo, por isso só me lembro dela depois de tudo ter acontecido. Só pensar nisso é doloroso.
O agente Sakata abanou a cabeça e prosseguiu:
– Independentemente das «nobres causas» envolvidas, a verdade é que as pessoas morrem na guerra por causa do ódio e da ira de ambos os lados. Na verdade, porém, a Natureza não tem «lados». Bem sei que está a ser uma experiência dura para si, mas experimente pensar no seguinte: o seu filho regressou ao ciclo da Natureza; a morte dele não se ficou a dever ao ódio nem à fúria sanguinária, nem teve que ver com nenhuma «causa».
Sachi assistiu à cremação no dia seguinte e conservou as cinzas numa pequena urna de alumínio. Depois pôs-se a caminho da baía de Hanalei, na parte norte da ilha. A viagem de carro desde a esquadra de Polícia demorou pouco mais de uma hora. Alguns anos antes, um furacão tinha-se encarregado de derrubar literalmente quase todas as árvores que ali existiam, dando origem a uma paisagem deformada. Sachi reparou nos destroços de várias casas de madeiras com os telhados arrancados. Até mesmo algumas das montanhas circundantes mostravam sinais da devastação causada à passagem do tufão. A Natureza pode mostrar a sua face, a um tempo poderosa e mortífera.
Ela atravessou a sonolenta cidadezinha de Hanalei até chegar à praia dos surfistas onde o seu filho tinha sido atacado pelo tubarão. Estacionou o carro ali perto e foi sentar-se na praia, onde se deixou ficar a observar um grupo de surfistas – cinco, se tanto – que deslizavam sobre as ondas. Primeiro, flutuavam nas pranchas até longe da praia, a flutuar, onde esperavam que aparecesse uma onda grande. Depois, punham-se de pé em cima da prancha, dropavam a onda e apanhavam-na de regresso à praia. À medida que a força da onda diminuía, acabavam por perder o equilíbrio e caíam, após o que recuperavam a prancha e atravessavam as ondas sempre a remar até atingirem outra vez mar aberto, onde a aventura voltava a ganhar forma. Sachi sentia uma certa dificuldade em compreender a cena que se desenrolava à frente dos seus olhos. Acaso não receariam os tubarões? Não estariam a par da morte do seu filho, dias atrás, causada por um tubarão naquele mesmo local?
Sachi permaneceu ali sentada durante uma boa hora, a seguir com os olhos os gestos dos surfistas. O seu espírito não conseguia apreender rigorosamente nada. O passado parecia ter perdido todo e qualquer valor, enquanto o futuro se afigurava distante, esbatido na distância sombria. Aos olhos dela, tanto um como outro tinham deixado de fazer sentido. Deixou-se ficar sentada no presente em perpétuo movimento, seguindo mecanicamente com o olhar o monótono movimento das ondas e dos surfistas. A dado momento, ocorreu-lhe um pensamento: «Tempo é aquilo de que eu agora mais preciso.»
Em seguida, Sachi deslocou-se ao hotel onde o filho tinha ficado hospedado, um estaminé a cair aos bocados com um jardinzinho selvagem. Viam-se dois homens brancos de cabelo comprido, em tronco nu, sentados em cadeiras de lona a beber cerveja. Várias garrafas verdes de cerveja Rolling Rock, vazias, estavam caídas na erva aos seus pés. Um dos homens era loiro, o outro tinha cabelo preto. Fora isso, tinham o mesmo tipo de cara e compleição e exibiam o mesmo tipo de tatuagens floridas em ambos os braços. Sentia-se o cheiro de marijuana no ar, misturado com o vago odor a merda de cão. Os dois homens, que pareciam ter ficado com a pulga atrás da orelha, olharam-na com desconfiança ao vê-la aproximar-se.
– O meu filho encontrava-se aqui hospedado – começou ela. – Foi morto por um tubarão há três dias.
Os homens trocaram um olhar.
– Refere-se a Takashi?
– Sim – confirmou Sachi. – Takashi.
– Era um tipo cool – referiu o homem loiro. – Foi realmente azar.
– Nessa manhã, hum... havia uma quantidade de tartarugas na baía – tartamudeou o homem de cabelo escuro. Os tubarões vieram à procura das tartarugas. Mas sabe, regra geral, eles deixam os surfistas em paz. Com eles podemos nós bem. Não sei, imagino que deva haver vários tipos de tubarões...
Sachi referiu que se encontrava ali a fim de pagar a conta do hotel. De certeza que ainda ninguém tinha pensado em resolver esse assunto da conta por liquidar
O loiro franziu a testa e agitou a garrafa no ar.
– Está equivocada, minha senhora. Os surfistas são os únicos que ficam hospedados neste hotel, e é sabido que eles são uns pobretanas. Aqui, é preciso pagar à cabeça. Não temos cá «contas por liquidar»...
Nessa altura, o moreno interveio para dizer:
– Olhe lá, a senhora por acaso não quer levar consigo a prancha de Takashi? O maldito tubarão deu cabo dela e fê-la em duas. É uma velha Dick Brewer. Os polícias deixaram-na cá ficar. Acho que, hum... a temos guardada para aí...
Sachi abanou a cabeça. A última coisa que queria era ver a prancha.
– Foi realmente azar – repetiu o homem aloirado, como se não se lembrasse de mais nada para dizer.
– Era um tipo fixe – mencionou o homem moreno. – Mesmo porreiro. E um surfista de primeira água. Agora que penso nisso, passou a sua última noite aqui connosco, a beber tequila. Foi isso...
Sachi acabou por ficar no Havai mais uma semana. Alugou a única vivenda decente que conseguiu encontrar e foi lá que cozinhou as suas refeições simples. De uma maneira ou de outra, precisava de se reencontrar antes de voltar para o Japão. Comprou uma cadeira de plástico, óculos de sol, um chapéu e creme protector solar, e começou a sentar-se todos os dias na praia, a observar os surfistas. Não passava um dia sem que chovesse – por vezes com violência, como se estivesse alguém no céu a despejar uma monumental vasilha de água sobre a Terra. Na costa norte de Kauai, o tempo que se fazia sentir no Outono era extremamente instável. Sempre que uma bátega se abatia, ela sentava-se dentro do carro, a ver cair a chuva. E logo que parava de chover, ia sentar-se na praia, a ver o mar.
A partir daí, Sachi começou a visitar Hanalei todos os anos, sempre por volta daquela altura. Chegava poucos dias antes do aniversário da morte do filho e ali ficava durante três semanas, a seguir com os olhos os surfistas sentada numa cadeira de plástico em pleno areal. Não fazia mais nada durante todo o santo dia. Isto prolongou-se por dez anos. Ficava sempre instalada na mesma casinha e comia no mesmo restaurante, enquanto lia o seu livro. À medida que as suas visitas começaram a seguir um padrão regular, encontrou algumas pessoas com quem adquiriu o hábito de trocar dois dedos de conversa. Muitos dos habitantes da pequena cidade conheciam-na de vista. Aos poucos, passaram a chamar-lhe a mãe japonesa, cujo filho tinha sido morto por um tubarão naquelas águas.
Um dia, na viagem de regresso do aeroporto de Lihue, onde tinha ido trocar um carro de aluguer que não estava em condições, descortinou dois jovens japoneses a pedir boleia à entrada da cidade de Kapaa. Encontravam-se diante da porta do restaurante Ono Family, com grandes mochilas desportivas às costas, enfrentado o trânsito automóvel com o polegar em riste mas o ânimo em baixo. Um era alto e magro, o outro pequeno e atarracado. Usavam ambos o cabelo pelo ombro com mechas de um vermelho-ferrugem e T-shirts desbotadas, calções largos e sandálias. Sachi passou por eles, mas depois mudou de ideias e deu meia-volta.
Abrindo a janela, perguntou aos japoneses:
–Vão para muito longe?
– Olha, alguém que fala japonês! – disse o mais alto.
– Claro, uma vez que sou japonesa. Vão para longe?
– Para um sítio chamado Hanalei – mencionou o alto.
– Querem boleia? Também sigo nessa direcção.
– Bestial! Mesmo a calhar – exclamou o atarracado.
Colocaram os sacos e mochilas no porta-bagagem e entraram para o banco de trás do Neon de Sachi.
– Esperem aí – disse ela. – Não vos quero aos dois sentados aí atrás. Vendo bem, isto não é nenhum táxi. Um de vocês tem de passar para a frente. Faz parte das mais elementares normas de boas maneiras.
Eles decidiram que seria o mais alto a sentar-se à frente.
– Que carro é este? – perguntou ele com uma certa timidez, ao mesmo tempo que procurava encaixar as pernas no espaço que havia disponível.
– É um Dodge Neon, da Chrysler – referiu ela.
– Quer então dizer que na América também existem carrinhos apertados. O Corolla da minha irmã é capaz de ter mais espaço do que isto.
– Bom, que eu saiba os Americanos não andam todos de Cadillac.
–Tudo bem, mas este é realmente mini.
– Podem sair já aqui, se não lhes agrada – atalhou Sachi.
– Não disse o que disse com intenção nenhuma – desculpou-se ele. – Só manifestei o meu espanto por ser tão pequeno, mais nada. Pensava que todos os carros americanos fossem modelos grandes.
– Com que então, a caminho de Hanalei? – interessou-se Sachi durante o percurso.
– Para fazer surf, principalmente.
– Onde é que têm as vossas pranchas?
– Planeamos arranjá-las por lá – explicou o rapaz mais encorpado.
– É isso. Não dá muito jeito carregar com elas às costas desde o Japão. Além de que nos constou que por estas bandas se compram pranchas por tuta-e-meia – acrescentou o esgalgado.
– E a senhora? De férias?
– A-hã.
– Sozinha?
– Sozinha – disse Sachi baixinho.
– Não me diga que é uma dessas lendas do surf?
– Claro que não! – respondeu Sachi num tom que traduzia indignação. – Já sabem onde é que vão ficar em Hanalei?
– Não. Quando lá chegarmos, logo vemos – disse o mais alto.
– Pois é, em último caso podemos sempre dormir na praia – disse o mais baixo e atarracado. – Mais a mais, não andamos propriamente a nadar em dinheiro.
Sachi abanou a cabeça.
– À noite, arrefece muito nas praias a norte nesta altura do ano. Até dentro de casa uma pessoa tem de usar camisola. Se ficarem a dormir ao relento, o mais certo é arranjarem uma constipação.
– Então não faz sempre Verão no Havai? – perguntou o alto.
– O Havai fica situado no hemisfério norte, não sei se sabem. Quer dizer que tem quatro estações. Os Verões são quentes, mas os Invernos podem ser bastante frios.
– Nesse caso, o melhor que temos a fazer é arranjar um tecto – alvitrou o baixote.
– Talvez a senhora nos possa ajudar nesse capítulo – pediu o mais alto. – Escusado será dizer que o nosso inglês é um bocado rudimentar.
– É isso – sublinhou o rapaz atarracado. – Ouvimos dizer que podíamos falar japonês e que seríamos entendidos, mas até ao momento isso ainda não funcionou minimamente.
– É evidente que não – afirmou Sachi exasperada. – O único sítio onde entendem japonês é em Oahu e, mesmo aí, só na zona de Waikiki. É lá que ficam instalados todos os japoneses que andam de malas Louis Vuitton atrás e encharcados em Chanel N.º 5, daí que só contratem empregados que saibam falar japonês. No Hyatt e no Sheraton, a mesma história. Mas fora dos hotéis, o inglês é a única língua falada. Afinal, estamos na América. Fizeram o caminho todo até Kauai e não sabiam disso?
– Eu não sabia. A minha mãe disse-me que no Havai toda a gente falava japonês.
Sachi resmungou qualquer coisa.
– Bom, nesse caso podemos ficar no hotel mais barato que encontrarmos – referiu o rapaz atarracado. – Tal como já disse, não temos muito dinheiro.
— Não é recomendável que os recém-chegados fiquem instalados no hotel mais barato em Hanalei – avisou Sachi. – Pode ser perigoso.
– Perigoso como? – quis saber o mais alto.
– Drogas, sobretudo – respondeu Sachi. – Alguns surfistas são pessoas não muito recomendáveis. Marijuana, ainda vá que não vá, mas é preciso ter cuidado com o Ice.
– Ice? O que é isso?
– Nunca ouvi falar – afirmou o rapaz alto.
– Andam mesmo a leste, não andam? Jovens incautos como vocês os dois constituem um alvo perfeito para alguns tipos que por aí andam. Ice é uma droga dura e muito poderosa, facílima de encontrar no Havai, vende-se a pontapé. Não estou bem certa, mas é uma espécie de droga sintética, uma metanfetamina cristalina ou coisa que o valha. É barata, fácil de encontrar e de consumir, e faz uma pessoa sentir-se bem. O problema vem depois: se se ficar agarrado, é meio caminho andado para a morte.
– Parece uma coisa mesmo perigosa – comentou o mais alto.
– E marijuana, pode-se fumar? – perguntou o mais baixo.
– Se é permitido, não sei dizer, mas pelo menos não mata ninguém. Não é como o tabaco. Pode provocar alguns danos no cérebro, mas também não é coisa que vos possa tirar o sono.
– Essa foi forte – exclamou o atarracado.
– Por acaso pertence à geração de sessenta? – inquiriu o mais alto.
– Refere-se a quê?
– Estou a falar dos membros da chamada baby boom generation...33
– Não sou «membro» de geração nenhuma. Sou eu, mais nada. Não comecem a colar-me rótulos nem a misturar-me em grupos, tenham santa paciência.
– Ora aí está! Está-se mesmo a ver que pertence a essa geração! – regozijou-se o rapaz atarracado. – Leva tudo a sério, é igualzinha à minha mãe.
– E não me venha fazer comparações com a sua mãezinha, ainda por cima – insurgiu-se Sachi. – Seja como for, o melhor que têm a fazer é procurar um sítio decente quando chegarem a Hanalei, não vá o diabo tecê-las. Já não era a primeira vez que apareciam pessoas mortas.
– Não se trata, portanto, do paraíso bucólico que dizem – opinou o mais entroncado.
– Não – concordou Sachi. – Os tempos do Elvis já lá vão.
– Não faço ideia do que estão para aí a dizer, mas Elvis Costello já tem uns anitos.
Depois daquela tirada, absteve-se de fazer mais comentários durante o resto da viagem.
Graças a Sachi, que falou com o gerente do hotel a que pertencia a vivenda, os dois rapazes arranjaram quarto, por sinal com um desconto apreciável. Ainda assim, era mais caro do que eles tinham calculado.
– Nada feito – começou por dizer o mais alto. – Não temos dinheiro para isso.
– Nem de perto, nem de longe – acrescentou o atarracado.
– Devem ter algum dinheiro de parte para uma emergência, não? – insistiu Sachi.
O rapaz alto e esgalgado coçou a orelha e disse:
– Bom, de facto tenho comigo um cartão Diner’s Club, mas o meu pai recomendou-me que não o usasse a não ser no caso de uma emergência verdadeiramente grave. Receia que, uma vez usado, eu não seja capaz de me conter e vá por aí fora, sempre a fazer despesa. Só numa situação de emergência, senão arrisco-me a ouvir das boas quando regressar ao Japão.
– Não sejas parvo – disse Sachi. – Isto é uma emergência. Trata mas é de dar uso ao cartão, se tens amor à pele. A última coisa que deves querer é ir parar com os costados à prisão e apanhares com um latagão havaiano a fazer de ti a namorada dele por uma noite. Claro que se tu gostas disso, é outra história, mas fica sabendo que dói muito.
O rapaz mais alto tirou o cartão da carteira e entregou-o ao gerente. Sachi perguntou o nome da loja onde se vendiam pranchas de surf baratas. O gerente indicou-lho, não sem acrescentar:
– Quando se forem embora, eles voltam a comprá-las.
Os rapazes pousaram a bagagem no chão do quarto e foram a correr à loja.
Sachi estava sentada na praia, a observar o oceano como era seu costume todas as manhãs, quando viu os dois jovens japoneses começarem a surfar. Dominavam as ondas e sabiam o que estavam a fazer, o que contrastava visivelmente com a imagem por eles deixada em terra no dia anterior. Assim que descobriam uma onda mais alta, faziam-se a ela e enfrentavam-na com destemor, conduzindo as respectivas pranchas em direcção à praia com elegância e em pleno controlo dos seus movimentos. Estiveram naquilo durante horas a fio, sem dar mostras de cansaço. Tinham todo o ar de quem se sentiam verdadeiramente vivos, cavalgando as ondas. Os olhos brilhavam, mostravam-se donos e senhores do seu destino. A timidez anteriormente evidenciada tinha desaparecido. Em terras do Japão, o mais provável era passarem os dias dentro de água e longe da escola – tal como acontecera com o filho de Sachi.
Sachi tinha começado a aprender piano no secundário – um começo tardio para um pianista. Antes, nunca tinha sequer tocado piano. Primeiro fizera-o em tom de brincadeira, dedilhando o piano que havia na sala de música depois das aulas, e não tardou a aprender sozinha a tocar. Acontecia que ela tinha o chamado ouvido absoluto, que consiste em identificar notas musicais. Bastava-lhe ouvir uma melodia apenas uma vez, e logo tratava de a reproduzir nas teclas do piano. Sem que ninguém lhe tivesse ensinado, aprendeu a deixar os seus dedos deslizar suavemente pelo teclado. Saltava aos olhos de toda a gente que possuía um talento natural para o piano.
Certo dia, o professor ouviu-a tocar, gostou do que ouviu e ajudou-a a corrigir certos erros básicos na posição dos dedos. «Podes tocar assim, mas se tocares desta maneira consegues ser mais rápida», dizia ele, juntando o gesto à palavra. Ela apreendeu tudo imediatamente. Profundo apreciador de jazz, o professor iniciou-a nos mistérios do jazz enquanto disciplina, no que tocava à formação e progressão de acordes, ao uso do pedal, ao conceito de improvisação. Ela captou tudo avidamente. Ele emprestou-lhe os discos que tinha em casa: Red Garland, Bill Evans, Wynton Kelly. Ela ouvia-os vezes sem conta até ser capaz de tocar o que ouvia. Assim que começou a dominar a técnica, imitar o que ouvia tornou-se fácil. Conseguia reproduzir a sonoridade e o ritmo sem ter uma nota à frente. «Tens um talento único», disse-lhe o professor. «Se te esforçares, podes alcançar o profissionalismo.»
Sachi, porém, não acreditava nas palavras dele. Sentia que aquilo que produzia não passava de uma imitação perfeita, mas nada que se comparasse com música criada por ela. Quando instada a dar livre curso à sua inspiração, ficava sem saber o que tocar, acabando invariavelmente por copiar o solo original de outra pessoa. Ler música era outro calcanhar de Aquiles. À vista de uma pauta devidamente assinalada diante de si, sentia dificuldade em respirar. Era muito mais fácil transportar o que ouvia directamente para as teclas. «Não», pensava ela, «nunca haveria de se tornar uma pianista digna desse nome.»
Em vez disso, depois de abandonar a escola secundária decidiu frequentar uma escola de cozinha. Não se podia dizer que se interessasse especialmente por isso, mas o pai era dono de um restaurante, e, uma vez que não havia mais nada que ela quisesse fazer, sempre podia continuar com o negócio mais tarde. Em Chicago, frequentou uma escola de cozinha para profissionais. Chicago não era uma cidade conhecida pelo requinte da sua cozinha, mas tinha lá familiares que se predispuseram a apoiá-la.
Às tantas começou a tocar num pequeno piano-bar, onde tinha sido levada pela mão de uma colega. A princípio, encarou aquilo como uma ocupação em tempo parcial que lhe permitiria ganhar algum dinheiro. O pouco dinheiro que os pais lhe mandavam de Tóquio mal dava para se aguentar, por isso todos os dólares a mais era bem-vindos. O dono do bar mostrava-se entusiasmado com a facilidade que ela tinha de tocar tudo e mais alguma coisa. Bastava ouvir uma canção, mesmo uma canção que nunca tivesse ouvido, bastando para tal que alguém assobiasse a melodia, para nunca mais se esquecer dela e, mais, reproduzi-la acto contínuo. Apesar de não ser nenhuma beldade, tinha feições interessantes e a sua presença começou a atrair um número crescente de pessoas ao bar. As gorjetas que lhe davam também começaram a aumentar. Com o tempo, desistiu da escola de cozinha. Estar sentada à frente do piano era muito mais fácil – e muito mais divertido – do que temperar um naco sanguinolento de carne de porco, raspar queijo rijo como pedra ou lavar a gordura incrustada numa pesada frigideira.
Por isso, quando mais tarde veio a descobrir que o seu filho passava a vida a faltar às aulas para ir surfar, Sachi não teve outro remédio senão resignar-se. «Pensando bem, também eu fiz a mesmíssima coisa quando era nova», pensou ela. «Não posso deitar as culpas para cima dele. O mais provável é estar-lhe no sangue.»
Durante um ano e meio tocou piano no bar. Melhorou o seu inglês, conseguiu juntar uma belo pecúlio e arranjou um namorado – um afro-americano bem-parecido com aspirações a ser actor (Sachi deu por ele mais tarde num papel secundário no filme Assalto ao Aeroporto/Die Hard 2). Um dia, porém, apareceu no bar, de cartão de identificação ao peito, um funcionário dos Serviços de Imigração. Segundo parecia, ela tinha dado demasiado nas vistas. O agente em questão ficou-lhe com o passaporte e deu-lhe voz de prisão ali mesmo, sob a acusação de trabalho ilegal. Dias mais tarde, ela encontrou-se a bordo de um Jumbo, recambiada para Narita – e com a agravante de ter sido ela a pagar o bilhete do seu bolso. Assim terminou a vida de Sachi em terras da América.
De regresso a Tóquio, Sachi analisou todas as perspectivas no que ao seu futuro dizia respeito, mas tocar piano era a única forma de vida que conseguia idealizar. Apesar das dificuldades que sentia no que dizia respeito à música escrita, ainda assim não foi difícil encontrar alguns sítios onde o seu talento para tocar de ouvido era muito apreciado – átrios de hotéis, clubes nocturnos e pianos-bares. Ela conseguia interpretar todos os estilos, quer exigidos pelo espírito do lugar quer pelo tipo de frequentadores. Da mesma forma, também os pedidos dos clientes não representavam qualquer problema. Podia ser um verdadeiro «camaleão musical», mas o certo é que conseguia arranjar sempre trabalho.
Casou-se aos vinte e quatro anos e, passados dois anos, deu à luz um rapaz. O marido era um guitarrista de jazz um ano mais novo do que ela. O que ele ganhava nem para as despesas chegava. Era viciado em drogas e andava enrolado com outras mulheres. Passava o tempo fora de casa, e quando aparecia mostrava-se muitas vezes violento. Toda a gente se opôs ao casamento e, depois de consumado, toda a gente aconselhou Sachi a divorciar-se dele. Apesar dos seus defeitos, o marido de Sachi possuía um certo talento original, razão pela qual não tardou a conquistar as atenções e a ser anunciado como uma estrela em ascensão no universo do jazz. Talvez tenha sido por isso que Sachi se sentiu atraída por ele. O casamento durou apenas cinco anos. Uma noite, quando se encontrava em casa de outra mulher na cama com ela, teve um ataque de coração e morreu a caminho do hospital, nu como veio ao mundo.
Pouco tempo depois de o marido ter morrido, Sachi inaugurou o seu próprio piano-bar no cosmopolita bairro de Roppongi. Para além das suas poupanças, contou com o dinheiro recebido de um seguro de vida que tinha feito ao marido sem ele saber. A juntar a isso, obteve ainda um empréstimo bancário. Ajudou ao caso o facto de o director da filial do dito banco ser cliente habitual no barzinho onde Sachi tocava. Ela arranjou um grande piano usado e mandou construir um balcão que prolongava a forma do instrumento. Para a ajudar a gerir o negócio, contratou um gerente que também fazia as vezes de barman e pagou-lhe um bom ordenado, depois de o ter ido buscar a outro bar. Ela tocava todas as noites, correspondia aos pedidos do público presente e fazia coro com eles se lhes dava para cantar. Em cima do piano existia um aquário vazio destinado às gorjetas. Alguns dos músicos que tocavam nos outros bares das redondezas apareciam de vez em quando e interpretavam um tema ou dois. O bar não demorou muito a granjear clientes habituais e o negócio ia de vento em popa, melhor do que ela esperara. E tanto assim foi, que conseguiu pagar pontualmente o empréstimo. Farta de saber o que era a vida de casada, não tornou a contrair matrimónio, mas tinha os seus amantes. Homens casados, na sua maioria, o que aos olhos dela tornava as coisas mais simples. Com o passar dos anos, o filho foi crescendo, tornou-se surfista e anunciou que estava de partida para Hanalei, no Havai. Ela não gostou da ideia. Mas estava cansada das eternas discussões e lá acabou por lhe dar dinheiro para a viagem. Longas batalhas verbais não eram a sua especialidade. Até que, enquanto esperava por uma onda perfeita na baía de Hanalei, o seu filho foi atacado por um tubarão que logrou penetrar naquelas águas em perseguição de tartarugas, e assim chegou ao fim a curta vida daquele rapaz de dezanove anos.
Nos tempos que se seguiram à morte do filho, Sachi trabalhou mais do que nunca. Durante esse primeiro ano, tocou, tocou sempre, quase sem parar, sem uma interrupção que fosse. E assim que o Outono estava quase a acabar, fazia uma pausa de três semanas, comprava um bilhete em executiva na United Airlines e voava para Kauai. Enquanto se encontrava ausente, era substituída por outro pianista no bar.
Por vezes, também acontecia Sachi tocar em Hanalei. Havia um restaurante que tinha um pequeno piano, ao qual todos os fins-de-semana se sentava um pianista alto e esgalgado que devia andar na casa dos cinquenta. Na maior parte do tempo, ele entretinha-se a interpretar melodias inofensivas como «Bali Hai» e «Blue Hawai». Como pianista, não era nada de especial, mas o seu modo de tocar traduzia a sua personalidade calorosa. Sachi tornou-se sua amiga e volta e meia tocava em vez dele. Fazia-o pelo prazer de tocar e sem receber nada por isso, mas o dono arranjava sempre maneira de a presentear com um prato de massa e um copo de vinho. Sabia-lhe bem pousar as mãos sobre o teclado: sentia o coração abrir-se. Não era uma questão de talento nem de saber se esse talento se revestia de alguma finalidade prática. Sachi imaginava que o filho devia ter-se sentido da mesma maneira, enquanto surfava na crista das ondas.
Para dizer com toda a franqueza, Sachi tinha de reconhecer que nunca tinha amado o filho de verdade. Naturalmente que gostava muito dele – era a pessoa mais importante do mundo para ela –, mas, individualmente, enquanto ser humano, ela sentia dificuldade em simpatizar com ele, uma conclusão a que, de resto, demorou muito tempo a chegar. Se não se desse o caso de ele ser sangue do seu sangue, o mais provável era ela não ter nada que ver com ele. Ele era egocêntrico, não se aplicava em nada e parecia incapaz de levar fosse o que fosse até ao fim. Ela via-se e desejava-se para ter uma conversa séria com ele; sempre que tentava, ele aparecia logo com uma desculpa esfarrapada e punha-se a milhas. Pouco ou nada aprendia na escola, razão pela qual as suas notas eram miseráveis. O surf parecia ser a única coisa capaz de despertar o seu interesse, e diga-se em abono da verdade que ninguém sabe durante quanto tempo assim teria continuado a ser. Com a carinha amorosa que tinha, namoradas era coisa que nunca lhe faltava, mas depois de se divertir um bocado e obter o que queria, punha-as de parte como se faz a um brinquedo velho. «Se calhar, fui eu que o estraguei com mimo», pensava Sachi. «Talvez a culpa seja minha, por lhe ter dado uma mesada demasiado grande. Devia ter sido mais rigorosa com ele.» A verdade, porém, é que ela não sabia ao certo o que poderia ter feito no sentido de ser mais «rigorosa» com ele. O trabalho sempre lhe ocupara o tempo todo, e pouco ou nada percebia acerca de rapazes – tanto no que tocava à alma como ao corpo.
Certa noite, Sachi encontrava-se a tocar piano quando apareceram no restaurante os dois jovens surfistas. A cena passou-se no sexto dia a contar da chegada deles a Hanalei. Estavam bastante bronzeados e pareciam até com um aspecto mais vigoroso.
– Olha, a tocar piano, quem havia de dizer! – exclamou o mais atarracados dos dois.
– E que bem que toca, como uma verdadeira profissional – fez coro o mais alto.
– Toco apenas para fazer o gosto ao dedo – disse ela.
– Sabe tocar alguma canção dos B’z34?
– Música pop, não, obrigada – respondeu Sachi. – Pensava que os meninos estavam tesos. Como é que se explica que tenham dinheiro para vir comer a um restaurante destes?
– É bom não esquecer que tenho o meu cartão Diner’s – anunciou o alto.
– Sim, mas é só para emergências...
– Ora, isso não me preocupa. Quem tinha razão era o meu velho: basta usar uma vez e a malta habitua-se.
– Por isso mesmo é que deves ter cuidado e ir devagar – observou Sachi.
– Estávamos aqui a dizer que devíamos convidá-la para jantar – atalhou o atarracado. – Como forma de lhe agradecer. A senhora ajudou-nos, e não foi pouco. Além disso, depois de amanhã voltamos para casa.
– Isso! – exclamou o mais alto. – Que tal se nos sentássemos agora mesmo a uma mesa? Podemos até mandar vir uma garrafa de vinho. Fica por nossa conta.
– Já jantei – disse Sachi, erguendo o copo de vinho tinto. – E este é por conta da casa. Mas agradeço na mesma, fica a intenção.
Nesse momento, um homem grande, de raça branca, aproximou-se da mesa e colocou-se ao lado de Sachi, com um copo de uísque na mão. Devia andar pelos quarenta e usava o cabelo cortado curto. Tinha os braços esguios, parecidos com postes de telefone, e num dele via-se um enorme dragão tatuado por cima das letras «USMC» – United State Marine Corps35. A julgar pelo tom deslavado das cores, a tatuagem devia ter uns anitos valentes.
– Olhe, minha senhora, devo dizer-lhe que gosto de a ouvir tocar – atirou.
Sachi olhou de relance para ele e disse:
– Obrigada.
– Japonesa?
– Óbvio.
– Uma vez estive no Japão. Há muito tempo. O destacamento a que pertencia passou dois anos estacionado em Iwakuni. Isto há séculos.
– A-hã. E eu, já lá vai um tempo, passei dois anos em Chicago, que me diz a isso? Ficamos quites.
O homem ficou a reflectir nas palavras dela, sem saber muito bem o que pensar, mas depois percebeu que era uma piada e riu-se.
– Toque qualquer coisa para mim. Uma coisa que dê para dançar. Conhece aquela canção de Bobby Darin: «Beyond the Sea»? Apetece-me cantar.
– Não trabalho aqui – replicou ela. – Além disso, neste momento estou a conversar com estes dois jovens. Vê aquele senhor magrinho com pouco cabelo, sentado ao piano? É ele o pianista da casa. Talvez seja melhor dirigir-se a ele e fazer o seu pedido. E não se esqueça de deixar gorjeta.
O homem abanou a cabeça.
–Aquele marmelo só sabe tocar música para maricas. E eu quero é ouvi-la tocar a si... não sei, qualquer coisa animada. Dou-lhe dez dólares.
– Nem por quinhentos.
– Com que então, é assim? – redarguiu o homem.
– Exactamente.
– Nesse caso, talvez me consiga explicar porque é que vocês, os Japoneses, não estão dispostos a lutar para defender o vosso país? E por que razão temos de ser nós a mexer o cu até Iwakuni para proteger o coiro de vossas excelências, não me dirá?
– E é por isso que eu devo ficar de boca calada e tocar piano?
– Agora é que acertou – ripostou o homem. Em seguida lançou um olhar na direcção dos dois jovens. – Olhem só para estes dois surfistas de merda, estes «japões» que vêm todos lançados do Japão até ao Havai, e para quê? No Iraque, nós...
– Deixe-me fazer uma pergunta – interrompeu Sachi. – Uma dúvida que me assaltou desde que o senhor aqui chegou.
– Força. Às ordens.
Com o pescoço todo torcido, Sachi olhou para o homem.
– Tenho estado aqui a perguntar a mim própria como é que alguém pode ser assim como o senhor. Já nasceu assim, ou foi uma coisinha má que o traumatizou e que o levou a ficar assim? Ora esclareça-me lá.
O homem perdeu uns instantes a pensar naquilo e depois bateu com o copo de uísque com toda a força na mesa.
– Agora passou das marcas...
Ao ouvir o homem levantar a voz, o dono do restaurante apareceu a correr. Não sendo um homem grande, pegou no braço musculado do ex-marine e levou-o dali para fora. Pelos vistos, eram velhos conhecidos, e o antigo fuzileiro não ofereceu resistência, tirando ter dito uma ou duas asneiras.
Pouco depois, o proprietário apareceu junto da mesa e desculpou-se junto de Sachi.
– Lamento muito. Ele não costuma ser mau tipo, mas quando bebe fica alterado. Não se preocupem, dele trato eu. Entretanto, deixem-me oferecer-vos qualquer coisa. Para esquecermos que isto aconteceu.
– Não faz mal – afirmou Sachi. – Já estou habituada a que estas coisas aconteçam.
O rapaz atarracado dirigiu-se a Sachi e quis saber o que o outro tinha dito.
– Sim, também eu não percebi patavina – acrescentou o alto –, a não ser «japões».
– Nem queiras perceber – disse Sachi. – Esquece. Vamos mudar de assunto: têm passado uns dias bons, aqui em Hanalei? Imagino que esteja a ser um gozo danado, com surf a todas as horas.
– Espectáculo! – exclamou o mais baixo.
– Na crista da onda – acrescentou o mais alto. – Mudou a minha vida. A sério.
– Isso é maravilhoso – opinou Sachi. – Aproveitem agora para tirar partido da vida. Qualquer dia, quando menos estiverem à espera, aparece-vos a conta à frente.
– Não tem problema – atalhou o jovem alto. – Tenho o meu cartão comigo.
– Assim é que é falar – disse Sachi, abanando a cabeça. – Fácil e prático.
Foi então que o atarracado disse:
–Tenho andado com uma coisa para lhe perguntar.
– O que é?
– Por acaso, conhece aquele surfista japonês que só tem uma perna?
– Um surfista japonês só com uma perna? – Sachi olhou de frente para ele e franziu os olhos. – Não, não posso dizer que o tenha visto.
– Nós vimo-lo por duas vezes. Estava na praia, a olhar para nós. Tinha uma prancha Dick Brewer vermelha, e faltava-lhe um pedaço de perna daqui até aqui. – O atarracado desenhou uma linha com o dedo que ia uns dez centímetros acima do joelho. – Como se tivesse sido arrancada à dentada. Desapareceu mal entrámos dentro de água. Como queríamos muito falar com ele, procurámo-lo por tudo quanto era sítio, mas não o encontrámos em lado nenhum. Cheira-me que deve ter a nossa idade.
– Qual era a perna que lhe faltava? A direita ou a esquerda? – indagou Sachi.
O rapaz mais baixo pensou um bocadinho e depois disse:
– Tenho quase a certeza que era a direita. Right?
– A direita, sem qualquer dúvida – afirmou o alto.
– A-hã – disse Sachi, ao mesmo tempo que molhava a boca com um gole de vinho. Conseguia ouvir o coração a bater violentamente dentro do peito. – Têm a certeza de que ele era japonês? Podia ser americano e ter uma costela japonesa.
– Nada disso – afirmou o alto. – Dá para ver logo a diferença. Não, este tipo veio do Japão para fazer surf aqui, tal como nós.
Sachi mordeu o lábio inferior com força e por momentos fixou o olhar nos dois. Depois, num tom seco, disse:
– É estranho. Numa cidade tão pequena como esta, não se perde alguém de vista, a não ser que se queira, claro. Um surfista japonês perneta.
– Sim, bem sei que é estranho. Um indivíduo desses deveria dar nas vistas como uma unha encravada. Mas ele estava mesmo ali, tenho a certeza. Nós os dois vimo-lo com estes que a terra há-de comer.
O jovem alto olhou para Sachi e disse:
– Você passa muito tempo sentada na praia, certo? Pois ele encontrava-se de pé, apoiado na única perna que tem, um bocadinho mais ao lado do sítio onde costuma estar. E olhava fixamente para nós. Era como se estivesse encostado ao tronco de uma árvore. Por baixo dos eucaliptos, do outro lado das mesas de piquenique.
Sachi deu um gole no seu vinho e continuou em silêncio.
O mais baixo insistiu:
– Bem gostava de saber como é que ele faz para se aguentar em cima da prancha de surf só com uma perna. Se com duas já é difícil...
A partir daí, todos os dias, de manhã à noite, Sachi percorria a praia da baía de Hanalei de uma ponta à outra, sem contudo nunca ter encontrado sinais de um surfista só com uma perna. Bem perguntava aos habitantes locais se o tinham visto, mas todos eles olhavam para ela com uma expressão estranha estampada na cara e respondiam que não com a cabeça. «Um surfista japonês só com uma perna? Nunca tal coisa vi nos dias da minha vida. Se tivesse visto, de certezinha que me lembraria. Como pode alguém fazer surf com uma perna apenas?»
Na véspera de regressar ao Japão, Sachi acabou de fazer as malas e foi para a cama. Ouviam-se os gritos dos gecos misturados com o som das ondas. Só quando reparou que a almofada estava molhada é que ela percebeu que estava a chorar. «Porque será que não consigo ver o meu filho?», perguntou a si mesma. Por que é que ele aparece àqueles dois surfistas – que não lhe são nada – e a mim não? É tão injusto.» Veio-lhe à memória a imagem do filho, deitado na morgue. Se tivesse podido, tê-lo-ia abanado até ele acordar, e então ter-lhe-ia gritado: «Diz-me porquê! Como é que pudeste fazer isto comigo?»
Durante muito tempo, Sachi enterrou o rosto na almofada húmida e procurou abafar os soluços. «Será que me falta alguma qualidade que não me permita vê-lo?», era o que perguntava repetidamente a si própria, sem contudo saber a resposta. Sabia, isso sim, que independentemente do que a partir daí fizesse, só lhe restava aceitar aquela ilha. Tal como aquele polícia de trato suave, meio japonês meio americano, lhe sugerira, tinha de aceitar as coisas que aconteciam na ilha tal como elas eram. Como elas eram: justas ou injustas, apta ou não apta, para o caso tanto fazia. Sachi acordou na manhã seguinte transformada numa saudável mulher de meia-idade. Transportou a mala para o assento traseiro do seu Dodge e abandonou Hanalei.
Oito meses depois do seu regresso ao Japão, deu de caras com o jovem atarracado numa rua de Tóquio. A fim de escapar a um aguaceiro, refugiara-se no interior de um Starbucks, perto da estação de Roppongi, para beber uma chávena de café. Na mesa ao lado estava o rapaz. Parecia outro, vestido como deve ser, com uma camisa Ralph Lauren e calças de algodão novas. A seu lado estava uma bonita rapariga, pequena e elegante.
– Mas que coincidência! – exclamou ele, acercando-se da mesa dela com um grande sorriso.
– Como é que estás? – perguntou ela. – Isso é que foi cortar o cabelo.
– Bom, é preciso ver que estou quase a acabar a licenciatura.
– Não acredito. Tu?
– A-hã. Pelo menos isso tenho controlado – replicou ele, sentando-se na cadeira à frente dela.
– Fartaste-te do surf?
– Volta e meia, ao fim-de-semana ainda faço, mas não por muito tempo. Está na altura de as empresas começarem a contratar pessoal.
– E que é feito do teu amigo esgalgado?
– Está safo. Esse é que está bem na vida, sem ter de pensar em colocações e empregos. O pai é dono de uma grande empresa de confeitaria ocidental, com sede em Akasaka. Parece que lhe vão dar um BMW quando assumir funções. Tem cá uma sorte.
Sachi olhou lá para fora. À passagem pelas ruas da cidade, o aguaceiro de Verão deixara o asfalto negro. O trânsito continuava parado e ouvia-se a buzina de algum motorista de táxi mais impaciente.
– É a tua namorada? – perguntou Sachi.
– A-hã... Acho que se pode dizer que sim. Ainda estou a trabalhar nisso – confessou ele, coçando a cabeça.
– É gira. Demasiado gira para ti. O mais provável é não teres sorte nenhuma.
Ele revirou os olhos involuntariamente.
– Essa é boa. Estou a ver que continua sem papas na língua, a dizer sempre aquilo que pensa. Mas acertou, como não podia deixar de ser. Tem algum bom conselho para me dar? Quer dizer, para ver se tenho sorte...
– Só existem três maneiras de dar a volta a uma rapariga: primeira, calares-te muito caladinho e ouvires com atenção o que ela tem a dizer; segunda, dizeres-lhe que gostas da roupa que ela tem vestida, e terceira, levá-la a um bom restaurante. Fácil, não é? Se nem assim, depois de tudo isso, obtiveres os resultados esperados, o melhor que tens a fazer é desistir.
– Parece-me bem. Simples e fácil de pôr em prática. Importa-se que tome nota?
– Claro que não me importo. Quer dizer que nem isso consegues memorizar?
– Sou como as galinhas. Dou três passos e já não sei a quantas ando. Por isso tomo nota de tudo e mais alguma coisa. Consta que já Einstein também fazia o mesmo.
– A-hã, Einstein.
– Ser esquecido não me rala – explicou ele. – Não gosto é de me esquecer de coisas que não me agradam.
–Tu lá sabes – comentou Sachi.
O atarracado sacou do bloco de notas e escreveu o que ela lhe tinha dito.
– Obrigado, posso contar sempre com os seus bons conselhos.
– Oxalá funcione.
– Vou fazer por isso – disse ele, levantando-se para regressar à sua mesa. Depois de hesitar por instantes, estendeu-lhe a mão. – Consigo a mesma coisa – disse ele. – Espero que funcione.
Sachi apertou-lhe a mão.
– Ainda bem que na baía de Hanalei não foste comido pelos tubarões.
– O quê? Existem tubarões ali? A sério?
– Sim – disse ela. – A sério.
Sachi senta-se todas as noites ao piano e deixa que os seus dedos afaguem mecanicamente as teclas, sem pensar em rigorosamente nada. No seu espírito apenas penetra o som produzido pelo piano – entra por uma porta e sai por outra. Quando não se encontra a tocar, pensa nas três semanas que tem por hábito passar em Hanalei, quando o Outono começa a aproximar-se do fim. Recorda-se do rumor das ondas, no seu perpétuo movimento de vaivém, e no sussurro dos eucaliptos. Recorda as nuvens, ao sabor dos ventos alísios, os albatrozes que cruzam o céu com as suas enormes asas. E ela pensa na certeza do que a espera. Não existe mais nada em que ela possa pensar. A não ser na baía de Hanalei.
33 Geração nascida no final da Segunda Guerra Mundial, em plena fase de explosão demográfica, responsável pelo movimento hippie. (N. da T.)
34 Popular banda japonesa de J-Rock e hard rock. Formada em 1988 por Koshi Inaba e Tak Matsumoto, mudou o panorama musical e continua ainda hoje a manter-se na crista da onda. (N. da T.)
35 Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos da América. (N. da T.)