A PEDRA EM FORMA DE RIM
QUE MUDAVA DE LUGAR TODOS OS DIAS

 

 

 

 

 

 

 

 

Junpei tinha dezasseis anos quando o seu pai lhe deu a conhecer o que a seguir se transcreve. Era um facto que tinham o mesmo sangue a correr-lhes nas veias e, sim, biologicamente eram pai e filho, mas não tinham um relacionamento assim tão próximo que lhes permitisse abrir o coração um ao outro, e olhem que era muito raro o pai de Junpei partilhar com ele algum aspecto da sua filosofia de vida (se é que se lhe pode chamar isso). Assim se explica a razão pela qual a troca de ideias verificada nesse dia ficou para sempre gravada na memória de Junpei, muito depois de o pretexto que lhe esteve na origem ter sido por completo esquecido.

«Entre as mulheres que um homem encontra na vida, só três é que têm significado para ele. Nem mais, nem menos», afirmou – ou, melhor dizendo, declarou o pai. Expressou-se no tom frio, mas peremptório, de quem proclama que a Terra demora um ano a completar a sua órbita à volta do Sol. Junpei escutou aquilo em silêncio. Em parte, a declaração do pai apanhara-o completamente desprevenido; na surpresa do momento, não se lembrara de nada para dizer.

«É provável que no futuro venhas a conhecer e te envolvas com muitas mulheres», prosseguiu o pai, «mas estarás a desperdiçar o teu tempo caso não seja a mulher certa para ti. Lembra-te do que te digo.»

Mais tarde, várias foram as perguntas que surgiram no espírito de Junpei. «Já terá o meu pai conhecido as “suas” três mulheres? Será a minha mãe uma delas? E, a ser esse o caso, o que terá acontecido às outras duas?» Contudo, não foi capaz de colocar as questões ao pai. Como já acima ficou dito, não existia entre os dois uma relação assim tão próxima que permitisse a cada um dizer o que lhe ia na alma.

Aos dezoito anos, Junpei saiu de casa e foi estudar para Tóquio. Na mesma altura em que começou a frequentar a universidade, começou também a envolver-se com mulheres, uma das quais veio a revelar-se «ter verdadeiro significado» para ele. Já na altura ele sabia disso, com a mesma certeza com que continua a afiançá-lo. Porém, antes que tivesse oportunidade de expressar os seus sentimentos amorosos, ela casou-se com o melhor amigo dele e tornara-se entretanto mãe de uma criança. Assim, de momento, não havia outro remédio senão eliminá-la da lista de possibilidades que a vida tinha para oferecer a Junpei. Pela parte que lhe tocava, ele teve de fazer das tripas coração e tirá-la da sua cabeça, daí resultando que o número de mulheres restantes que poderiam ter «verdadeiro significado» para a sua vida – partindo do princípio de que ele fazia sua a teoria do pai – ficou reduzido a duas.

A partir daí, sempre que Junpei travava conhecimento com uma mulher, colocava a si mesmo a questão: «Esta mulher tem verdadeiro interesse para mim?» Por seu turno, a pergunta levava directamente a um dilema: por mais que continuasse à espera (e quem não continua?) de encontrar alguém que tivesse «verdadeiro significado» para ele, ao mesmo tempo receava desperdiçar os seus trunfos demasiado cedo. Depois de ter perdido a oportunidade de unir o seu destino à primeira mulher muito importante na sua vida, Junpei perdeu confiança na sua capacidade – essa capacidade por demais importante – de exprimir o amor no momento certo e da maneira apropriada. «Posso muito bem ser aquele indivíduo que consegue deitar a mão todas as coisas que não servem para nada nesta vida, mas que deixa escapar as que são verdadeiramente importantes.» Sempre que aquele pensamento lhe passava pela cabeça, o que, acrescente-se, acontecia com alguma frequência, o seu coração afundava-se num lugar frio e escuro.

Acontecia então que, ao fim de ter andado com uma rapariga durante alguns meses, mal descobria qualquer coisa na maneira ou no comportamento dela, por mais banal, que não lhe agradava ou que mexia com o seu sistema nervoso, sentia, bem lá no fundo, uma pontinha de alívio. Em resultado disso, tornou-se, por assim dizer, um padrão de vida para ele, aquela história de manter relações indefinidas e baças com uma mulher atrás da outra. Namorava com uma rapariga durante um certo tempo, como se estivesse a proceder ao inventário da situação, até que, em chegando a um certo ponto, a relação quebrava-se por si só. As separações nunca se traduziam em violência nem discussões gritantes, provavelmente porque ele, à partida, nunca se envolvia com mulheres de quem não se pudesse livrar com facilidade. Com o tempo, Junpei acabou por desenvolver uma espécie de faro para escolher as parceiras que lhe convinham.

Ele próprio não sabia ao certo se essa capacidade era inata ou se a tinha adquirido ao longo dos anos, em contacto com o meio ambiente. Se estivéssemos na presença de uma capacidade adquirida, podia muito bem ter nascido em resultado da maldição lançada pelo pai. Quando estava prestes a concluir a licenciatura, ele teve uma violenta discussão com o pai que conduziu a um corte de relações entre ambos, mas o certo é que a «teoria das três mulheres», ainda que com a sua origem por explicar, permaneceu como uma espécie de obsessão que se apoderou da sua vida e nunca mais lhe deu tréguas. A dada altura, chegou a comentar, em tom de brincadeira, a hipótese de se tornar homossexual: talvez nessa circunstância ele pudesse libertar-se daquele estúpido jogo estatístico. Para o bem e para o mal, contudo, as mulheres eram o único objecto do interesse sexual por parte de Junpei.

A mulher que conheceu a seguir era, não tardou Junpei a descobrir, mais velha do que ele. Tinha 36 anos. Junpei tinha 31. Uma pessoa que ele conhecia inaugurou um restaurantezinho francês numa rua afastada do coração de Tóquio e Junpei foi convidado para a festa. Vestiu a sua camisa Perry Ellis de seda azul-escura e um casaco desportivo de Verão a condizer. Tinha combinado encontrar-se na festa com um amigo próximo, mas o amigo telefonou-lhe em cima da hora a dizer que não podia estar presente, o que deixou Junpei sozinho e com tempo de sobra para tudo e mais alguma coisa. Sentou-se ao balcão do bar e ali ficou sozinho, a beber calmamente um grande copo de Bordeaux. Quando achou que estava na hora de se ir embora e começou a olhar à sua volta para se despedir do dono do restaurante, aproximou-se dele uma mulher alta trazendo na mão um cocktail qualquer vagamente em tons de roxo. O primeiro pensamento de Junpei foi que ali estava «uma mulher com excelente postura».

– Houve alguém que me disse que era escritor. Confirma-se? – perguntou ela, pousando um cotovelo em cima do balcão.

– De certa maneira, pode dizer-se que sim – respondeu Junpei.

– Escritor de certa maneira.

Junpei anuiu.

– Quantos livros já publicou?

– Dois volumes de contos e uma tradução. Nenhum deles vendeu grande coisa.

Ela examinou-o de alto a baixo e sorriu com aparente satisfação.

– Em todo o caso, é o primeiro escritor a sério que conheço.

– Olhe que pode ficar desapontada – observou Junpei. – Os escritores não têm um talento especial para oferecer. Um pianista pode tocar uma melodia ao piano para si. Um pintor pode fazer-lhe um desenho. Um mágico pode executar um truque ou dois. Não há muita coisa que um escritor possa fazer.

– Sei lá, talvez me seja permitido apreciar a sua aura mística ou isso.

– Aura mística? – repetiu Junpei.

– Um brilho especial, algo que não se encontra nas pessoas vulgares.

– Vejo-me ao espelho todas as manhãs, quando faço a barba, mas nunca reparei em nada parecido com isso.

Ela fez um sorriso encantador e perguntou:

– Que tipo de histórias é que escreve?

–As pessoas gostam muito de perguntar isso, mas confesso que tenho dificuldade em olhar para as minhas histórias e classificá-las em «tipos». Não pertencem a nenhum género em especial.

Ela percorreu com o dedo o rebordo do copo de cocktail.

– Imagino que essa resposta queira dizer que escreve ficção literária?

– Acho que se pode dizer que sim. Mas da forma como diz isso até parece que está a falar de «correntes de cartas»39.

Ela tornou a sorrir.

– Ter-se-á dado o caso de já ter ouvido falar no seu nome?

– Costuma ler revistas literárias?

Ela abanou rápida e energicamente a cabeça.

– Nesse caso, provavelmente não. Eu não sou assim tão conhecido quanto isso.

– Alguma vez esteve nomeado para o Prémio Akutagawa?

– Duas vezes, em cinco anos.

– Mas nunca ganhou?

Junpei sorriu mas não disse nada. Sem lhe pedir licença, ela sentou-se ao lado dele no balcão e acabou de beber o seu cocktail.

– Isso também não interessa – comentou ela. – Esses prémios não passam de uma artimanha por parte da indústria.

– Ficaria mais convencido se a ouvisse dizer isso a alguém que tivesse conquistado o prémio alguma vez.

Ela disse qual era o seu nome. Chamava-se Kirie.

– Que estranho – reparou ele –, soa como «Kyrie»40 num serviço religioso.

Pareceu a Junpei que ela devia ser um ou dois centímetros mais alta do que ele. Usava o cabelo curto, estava bronzeada e tinha uma cabeça extraordinariamente bem feita. Vestia um casaco de linho verde-claro e uma saia de folhos que lhe dava pelo joelho. As mangas do casaco estavam enroladas até ao cotovelo. Debaixo do casaco trazia uma simples blusa de algodão realçada por um pequeno alfinete com uma turquesa. Não tinha o peito nem grande nem pequeno. A sua forma de vestir traduzia estilo e, apesar de não ter nada de afectado, o conjunto reflectia uma mulher de elevados princípios individuais. Os lábios eram carnudos, e ela tinha o hábito de os repuxar ou esticar sempre que chegava ao fim de uma frase. Este tique conferia-lhe particular vivacidade e frescura. Sempre que parava para reflectir, na sua testa formavam-se três vincos paralelos, e quando, por seu turno, acabava de pensar, os vincos desapareciam.

Junpei deu por si a sentir-se atraído por ela. Havia qualquer coisa nela, qualquer coisa de indefinido mas ao mesmo tempo concreto, que o deixava excitado. Sentia a adrenalina percorrer o seu corpo, direitinha ao seu coração, que começou a enviar sinais secretos na forma de pequenos sons. Dando-se de repente conta de que tinha a garganta seca, Junpei mandou vir uma Perrier a um empregado que ia a passar e, para não variar, começou a perguntar a si próprio: «Será que ela tem verdadeiro significado para mim? Será uma das duas que faltam? Ou estarei na presença do meu segundo falhanço? Devo mandá-la dar uma curva ou atirar-me de cabeça?»

– Sempre quis ser escritor? – perguntou Kirie.

– Hmm, digamos antes que nunca encontrei outra coisa melhor para fazer.

– Então o seu sonho realizou-se.

– Não tenho assim tanta certeza disso... Gostava de ser um escritor fora de série. – Ao dizer aquilo, Junpei afastou as mãos cerca de trinta centímetros. – Há uma grande distância entre uma coisa e outra.

–Toda a gente tem de começar de alguma maneira. Ainda tem muito tempo, o futuro todo à sua frente. A perfeição não se atinge assim do pé para a mão. – Depois perguntou: – Que idade tem?

Foi nessa altura que eles disseram as respectivas idades. Ser mais velha não parecia incomodá-la minimamente. A Junpei, também não. Preferia mulheres maduras a jovenzinhas. Na maioria dos casos, era mais fácil romper com uma mulher mais velha.

–Trabalha em que área? – perguntou ele.

Os lábios dela formaram uma linha perfeitamente direita, e a sua expressão ficou séria, o que acontecia pela primeira vez.

– Na sua opinião, em que área trabalho?

Junpei fez o vinho tinto dentro do copo rodar exactamente uma vez.

– Não me quer dar uma pista?

– Não. Nada de pistas. É assim tão difícil adivinhar? Vendo bem, capacidade de observação e de reflexão devem ser atributos de qualquer escritor que se preze.

– Isso não é totalmente correcto – corrigiu ele. – O trabalho de um escritor consiste em observar, observar, observar ainda e sempre, e deixar o juízo crítico para o último momento possível.

– E depois? – replicou ela. – Nesse caso, trate de observar, observar e continuar a observar e depois use a sua imaginação. Ou isso vai contra a sua ética profissional?

Junpei levantou os olhos e estudou o rosto de Kirie uma vez mais, com uma dose de concentração renovada, na esperança de encontrar algum sinal secreto. Ela olhou-o bem nos olhos, e ele olhou-a bem nos olhos.

Depois de uma pequena pausa, ele disse:

– Muito bem, é assim que eu vejo as coisas, com pouco ou nada em que me basear: estou na presença de uma especialista em qualquer coisa. Não estamos a falar de uma pessoa que exerce o seu ofício, mas sim de alguém que possui, de certa forma, um talento especial.

– Em cheio! Tem toda a razão. Não é toda a gente que consegue fazer o que eu faço. Experimente agora ser um bocadinho mais concreto.

–Tem que ver com música?

– Não.

– Moda?

– Não.

– Ténis?

– Não – disse ela.

Junpei abanou a cabeça.

–Você tem uma bela cor, está em boa forma física, os seus braços têm um certo músculo. Tudo aponta para que faça alguma actividade desportiva ao ar livre. Não me palpita que seja pessoa para ter um emprego à secretária e passar o dia dentro de portas.

Kirie puxou as mangas para cima, pousou os braços em cima do balcão e revirou-os, como se estivesse a inspeccioná-los.

– Está quase lá.

– Mas ainda não atinei com a resposta certa.

– É importante manter alguns segredos – defendeu ela. – Não quero privá-lo do prazer profissional que consiste em observar e dar largas à imaginação... Apesar disso, aqui fica uma pista. Acontece comigo o mesmo que acontece consigo.

– O mesmo como?

– Quero dizer, a minha profissão é exactamente aquela que sempre quis ter, desde pequena. Tal como no seu caso. E garanto-lhe que não foi fácil chegar onde cheguei.

– Bom – observou Junpei. – Isso é importante. O trabalho deve ser um acto de amor e não um casamento de conveniência.

– Um acto de amor – disse Kirie. As palavras pareciam tê-la impressionado. – É uma metáfora espantosa.

– Entretanto, sabe dizer-me se poderei já ter ouvido falar em si? – voltou à carga Junpei.

– Não creio – respondeu ela, abanando a cabeça. – Não sou assim tão conhecida.

–Toda a gente tem de começar de alguma maneira.

– Exactamente – disse Kirie com um sorriso. Depois ficou séria. – O meu caso é diferente do seu num aspecto. De mim, espera-se perfeição desde o início. Não são permitidos erros. Tudo ou nada. Não há meios-termos nem segundas oportunidades.

– Imagino que essa seja outra pista.

– Provavelmente.

Um empregado que andava por ali a circular com uma bandeja de taças de champanhe aproximou-se dela. Ela ficou com dois e entregou um a Junpei.

– À nossa – disse ela.

– Às respectivas áreas de especialização – disse Junpei.

Tocaram os copos um no outro, produzindo um suave e secreto tinido.

– A propósito – indagou ela –, é casado?

Junpei respondeu que não com a cabeça.

– Nem eu – disse Kirie.

 

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Nessa noite, ela ficou a dormir no quarto de Junpei. Beberam vinho – oferta do restaurante, fizeram sexo e adormeceram. Quando Junpei acordou na manhã seguinte, por volta das dez, já ela se tinha ido embora. A pequena amolgadela deixada na almofada, ao lado dele, avivou-lhe a memória. Mas também havia um bilhete: «Tenho de ir trabalhar. Entra em contacto comigo, se quiseres.» Seguia-se o número do telemóvel.

Ele telefonou-lhe e foram jantar os dois a um restaurante no sábado seguinte. Beberam vinho, fizeram sexo no quarto de Junpei e foram dormir. Na manhã seguinte, ela tinha desaparecido. Era domingo, mas a nota que deixou ficar dizia o seguinte: «Tenho de trabalhar, vou-me eclipsar.» Junpei continuava sem saber rigorosamente nada acerca do trabalho dela, mas pelos vistos começava cedo. Além disso – pelo menos de vez em quando –, também trabalhava aos domingos.

Aos dois nunca faltavam temas de conversa. Ela era inteligente e dona de uma perspicácia aguda, e denotava conhecimentos sobre uma vasta gama de assuntos. Gostava de ler, se bem que menos romances e mais outro género – biografias, História, psicologia e livros virados para a ciência popular. Era impressionante a quantidade de informações que dali extraía. Houve até uma vez em que Junpei ficou de boca aberta com os conhecimentos técnicos dela na história da construção de pré-fabricados.

– Casas pré-fabricadas? Quer isso dizer que o teu trabalho está de alguma forma relacionado com construção ou arquitectura?

– Não – referiu ela. – Acontece apenas que me sinto particularmente atraída por assuntos mais práticos. Só isso.

No entanto, não deixou de ler as duas colectâneas de contos que Junpei publicara, e teceu o seguinte comentário:

– São maravilhosos, muito mais interessantes do que poderia ter imaginado. Para te dizer a verdade, estava preocupada. E se, ao ler a tua obra, chegasse à conclusão de que não gostava? O que é que havia de te dizer? Afinal, não tinha razões para estar preocupada. Gostei de tudo o que li.

– Fico contente por saber isso – confessou ele, aliviado. Também ele partilhara das mesmas angústias, quando, a pedido dela, lhe dera os livros a ler.

Contudo, não era motivo de preocupação.

– Não estou a dizer isto para te agradar – afirmou ela –, acho realmente que tu tens qualquer coisa de especial: aquela qualquer coisa de especial que faz a diferença e permite a um escritor tornar-se excepcional. Nas tuas histórias perpassa uma certa tranquilidade, mas muitas revelam-se extremamente vivas, e tens um estilo bonito, mas, acima de tudo, considero a tua escrita equilibrada. Aos meus olhos, isso é quase sempre o mais importante: na música, na ficção, na pintura. Quando me deparo com um trabalho ou, na qualidade de espectadora, observo um espectáculo onde o desequilíbrio está patente – que é o mesmo que dizer, quando dou de caras com uma obra má ou inacabada –, fico doente. Talvez por isso, vou muito pouco a concertos e leio muito poucos romances.

– Porque não queres encontrar nada desequilibrado.

– Exactamente.

– E para evitares correr esse risco, não lês romances nem vais a concertos?

– Isso mesmo.

– Há um bocado de exagero nisso, não te parece?

– Sou Balança. Não suporto coisas pouco equilibradas. Não suporto é capaz de ser... – Ela não acrescentou mais nada, visivelmente à procura da palavra certa. Incapaz de o fazer, contentou-se em suspirar umas quantas vezes. – Para o caso, não interessa – continuou. – Só queria frisar um aspecto: acredito que um dia serás capaz de escrever grandes romances. E quando tal acontecer, tornar-te-ás um romancista importante. Pode demorar o seu tempo, mas é esse o meu sentimento.

– Não é verdade, nasci para escrever contos – afirmou Junpei secamente. – Não sou um escritor de romances.

– Mesmo assim – comentou ela.

A Junpei não se lhe ofereceu dizer mais nada sobre o assunto. Permaneceu quieto, a escutar o zumbido que se escapava do aparelho de ar condicionado. Verdade seja dita, ele já tentara por mais de uma vez escrever um romance, mas parava sempre a meio caminho. Pura e simplesmente, não conseguia manter o nível de concentração necessário para escrever uma história durante um longo período de tempo. Quando arrancava, tinha plena convicção de que ia ser capaz de escrever algo de maravilhoso. O estilo revelar-se-ia de uma vivacidade a todos os títulos impressionante, e o seu futuro parecia assegurado. A história, essa fluiria quase por si própria. Porém, quanto mais avançava, mais a energia e o brilho começavam a esmorecer – a princípio de uma forma gradual, mas depois, tal como acontece inexoravelmente com a máquina de um comboio quando começa a perder velocidade e pára de vez, acabando por se extinguir.

Estavam deitados na cama. A cena passou-se no Outono. Continuavam despidos, depois de terem feito amor apaixonadamente, durante muito tempo. O ombro de Kirie estava encostado a Junpei, que tinha os braços à volta dela. Viam-se dois copos de vinho branco em cima de mesa-de-cabeceira.

– Junpei?

– A-hã.

– Estás apaixonado por outra mulher, não estás? Alguém que não consegues esquecer?

– É verdade – admitiu Junpei. – Consegues ver isso?

– Naturalmente que sim – retorquiu ela. – As mulheres têm uma espécie de sexto sentido para coisas deste género.

– Nem todas, quer-me parecer.

– Não disse que eram todas.

–Também me pareceu – sublinhou Junpei.

– Não podes vê-la?

– Existem alguns problemas.

– E esses problemas não têm possibilidade de se resolver?

– Não – afirmou Junpei, com um abanar de cabeça categórico.

– Devem ser muito profundos, não?

– Não sei até que ponto são profundos, mas que existem, existem.

Kirie bebeu um pouco de vinho.

– Eu não tenho ninguém – murmurou ela, quase como se estivesse a falar consigo mesma. – Gosto muito de ti, Junpei. Sinto por ti uma imensa ternura. Mas isso não significa que deseje ter uma relação séria contigo. Que sentimento é que isso provoca em ti? Ficas aliviado?

Junpei passou os dedos pelo cabelo. Em vez de responder à pergunta dela, fez ele uma.

– E porquê, não me queres dizer?

– Por que é que não quero ficar contigo?

– A-hã.

– Incomoda-te?

– Um bocadinho.

– Não consigo ter uma relação séria com ninguém, nos tempos que correm. Não estou a falar de ti, acontece com toda a gente – explicou ela. – Preciso de estar totalmente concentrada no que faço presentemente. Caso vivesse com alguém, que é como quem diz, se existisse um profundo elo emocional que me ligasse a alguém, poderia não ser capaz de fazer o que faço. Por isso é que desejo que as coisas fiquem como estão.

Junpei reflectiu naquilo por momentos.

– Para não seres distraída, é isso?

– Exacto.

– Se te distraísses com alguma coisa, poderias perder o tal equilíbrio, e isso revelar-se-ia um obstáculo à tua progressão na carreira.

– Exactamente.

– E a fim de não correres qualquer risco, optaste por não viver com ninguém.

Ela assentiu.

– Pelo menos enquanto for esta a minha profissão.

– E continuas sem me querer dizer qual é.

– Adivinha.

– Assaltante.

– Não – respondeu Kirie com um ar sério, que não demorou a transformar-se numa expressão divertida. – É uma ideia deliciosa, mas uma ladra não tem de se levantar cedo para ir trabalhar.

– Nesse caso, um assassino?

– Uma assassina – corrigiu ela. – Mas não. Onde é que vais desencantar essas ideias pavorosas?

– Afirmas então que o que fazes é perfeitamente legal?

– Não podia ser mais.

–Agente secreto infiltrado?

– Não. Olha, vamos deixar o assunto por hoje. Prefiro conversar acerca do teu ofício. Conta-me: o que é que estás a escrever agora? Sim, porque estás a escrever alguma coisa, certo?

– Sim, um conto.

– De que género?

–Ainda não o acabei. Decidi fazer uma pausa.

– Nesse caso, gostaria de ser o que é que aconteceu até aqui.

Junpei ficou calado. Tinha por norma nunca falar com ninguém acerca do trabalho em desenvolvimento. Podia dar azar. Se ele traduzisse a história em palavras e essas palavras saíssem da sua boca, algo de importante poderia evaporar-se no percurso, como o orvalho na manhã. Delicados matizes de sentido seriam uniformizados e correriam o risco de se transformarem num banal pano de fundo. Os segredos deixariam de ser segredos. No entanto, ali deitado, entretido a passar os dedos pelo cabelo curto de Kirie, Junpei sentiu-se tentado a contar-lhe. Afinal, enquanto escritor, encontrava-se em fase de bloqueio e há já alguns dias que não se mostrava capaz de fazer progredir a história.

– É uma história contada na terceira pessoa, e a principal personagem é uma mulher – começou ele. – Tem trinta e poucos anos, é médica, interna num grande hospital. Solteira, tem um caso com um cirurgião que trabalha no mesmo hospital. Ele tem quarenta e muitos anos, mulher e filhos.

Kirie deixou-se por momentos envolver pela história e pôs-se a imaginar a heroína.

– É bonita?

– Acho que sim. Muito bonita – afirmou Junpei. – Mas não tão bonita como tu.

Kirie sorriu e beijou Junpei no pescoço.

– Ora aí tens a resposta certa – referiu ela.

– Dou sempre as respostas certas, quando é preciso.

– Sobretudo na cama, imagino.

– Sobretudo na cama – concordou ele. – Como eu estava a dizer, ela tira férias e vai de viagem, sozinha. Passa-se no Outono, precisamente como acontece agora. Ela fica instalada numas pequenas termas de água quente nas montanhas e, a páginas tantas, vai passear para junto de um riacho. Gosta de se dedicar à observação de pássaros, sobretudo pica-peixes. Ao aproximar-se do leito seco do riacho, uma pedra com uma estranha forma desperta a sua atenção. É preta, com laivos de vermelho, e tem uma forma familiar. Parece um rim, apercebe-se ela de imediato. É bom não esquecer que estamos a falar de uma médica. A pedra em tudo faz lembrar um rim: no tamanho, na coloração, na espessura.

– E é então que ela agarra na pedra e a leva para casa.

– Exactamente. Leva a pedra para o escritório que tem no hospital e usa-a como pesa-papéis. Tanto o peso como o tamanho são perfeitos.

– E a forma ideal, atendendo a que o sítio é um hospital.

– Exactamente – concordou Junpei. – Alguns dias mais tarde, porém, ela repara numa coisa estranha.

Em silêncio, Kirie esperou que ele retomasse o fio à meada. Junpei fez uma pausa, como se fosse sua intenção deliberada manter a interlocutora em suspenso, mas, de facto, deliberado era um termo que não podia andar mais longe da verdade. Acontecia que ele ainda não havia escrito o resto da história. Tinha sido precisamente naquele ponto que interrompera a sua narrativa. Encontrava-se numa encruzilhada, sem marcos sinalizadores de espécie alguma, a matar a cabeça e a olhar em todas as direcções para ver se encontrava uma ideia que permitisse à sua trama seguir em frente. E foi então que pensou numa maneira para dar continuidade à história.

– Todas as manhãs, ela encontra a pedra num lugar diferente. À noite, quando sai do hospital e vai para casa, deixa a pedra exactamente no mesmo sítio, em cima da secretária, como pessoa metódica que é. Porém, na manhã seguinte, vai dar com ela no assento da cadeira giratória, ou ao pé do vaso com plantas, ou no chão. A princípio, julga que fez confusão. Depois, às tantas, começa a pensar se a sua memória não andará a pregar-lhe partidas. A porta fica trancada, e mais ninguém ali pode entrar. É evidente que o segurança do turno da noite tem a chave, mas o homem trabalha no hospital há anos e nunca se atreveria a entrar no gabinete de outra pessoa. Além disso, que levaria um homem como ele a entrar no seu espaço de trabalho só para mudar de lugar uma pedra que é por ela usada como pesa-papéis? No gabinete continua tudo igual, não falta nada, nada foi mexido. A única coisa que muda é a posição da pedra. Não há maneira de ela atinar com aquilo. Qual é a tua opinião? Por que é que tu achas que a pedra se move durante a noite?

– A pedra em forma de rim tem as suas razões para que isso aconteça – retorquiu Kirie com toda a simplicidade.

– Que tipo de razões pode uma pedra em forma de rim ter?

– Pretende mexer com ela. Abaná-la aos poucos, durante um longo período de tempo.

– Muito bem. E, nesse caso, que razões tem para querer abaná-la?

– Não sei – respondeu ela. Depois acrescentou com um risinho: – Talvez esteja apenas apostada em abalar41 o mundo em que ela se move.

– Esse foi o pior trocadilho que já ouvi – resmungou Junpei.

Tu é que és o escritor. Logo, és tu quem decide. Eu limito-me a ouvir.

Junpei enrugou a testa. Começava a sentir a cabeça a latejar, mesmo atrás das têmporas, devido ao esforço de concentração. Ou então tinha bebido demasiado vinho.

– As ideias não surgem todas em catadupa – explicou ele. – Os meus enredos não progridem a não ser a partir do momento em que eu me sento à secretária, meto mãos à obra e construo frases. Importas-te de esperar mais um pouco? Depois desta conversa que tivemos, começo a sentir que o resto da história se vai resolver por si.

– Por mim, não há problema – disse Kirie. Esticou a mão para o copo e bebeu um gole de vinho. – Posso esperar. Devo dizer que a história começa a ficar cada vez mais interessante. Estou ansiosa por saber o que acontece à pedra em forma de rim.

Ela virou-se e fez pressão com os seios de encontro à pele dele. Depois, como quem partilha um segredo, disse:

– Sabes uma coisa, Junpei, todas as coisas neste mundo têm uma razão para fazerem o que fazem. – Junpei entretanto adormecera e não lhe pôde responder à letra. Na atmosfera da noite, as frases por ela proferidas perderam a forma de construções gramaticais e misturaram-se com o delicado aroma do vinho, penetrando nos interstícios da sua consciência. – Por exemplo, o vento tem as suas razões. Acontece, simplesmente, que nós não damos por isso, ocupados como estamos com as nossas vidas. Mas, às tantas, chega uma altura em que somos obrigados a reparar. O vento agarra-nos com um propósito bem definido em mente e abana-nos. O vento sabe tudo o que escondes dentro de ti. E não é só o vento. Tudo, incluindo a pedra. Todos eles, todos os elementos nos conhecem muito bem. De trás para a frente e da frente para trás. Nós é que só nos lembramos disso de quando em vez. A única coisa a fazer é deixarmo-nos ir. Absorver todas essas coisas e fazê-las nossas. Só então poderemos sobreviver e ganhar profundidade.

Nos cinco dias que se seguiram, Junpei quase não saiu de casa. Sentou-se à secretária e escreveu o que faltava da história sobre a pedra em forma de rim. Tal como Kirie tinha vaticinado, a pedra continua sempre a abanar a médica, aos poucos, lenta mas inexoravelmente. Certa noite, encontra-se ela a fazer sexo à pressa com o amante num quarto de hotel anónimo quando se apercebe da existência de uma massa nas costas dele e sente distintamente a forma de um rim. Reconhece a pedra em forma de rim, tem consciência de que está ali alojada. O rim é um informador secreto que ela própria introduziu no corpo do amante. Por entre os seus dedos, contorce-se como um insecto, enviando-lhe mensagens no seu código próprio. Ela entra em diálogo com o rim, regista-se uma troca de informações. Ela consegue sentir a superfície escorregadia e viscosa contra a palma da sua mão.

Com o tempo, a médica habitua-se cada vez mais à existência da pedra em forma de rim que muda de lugar todos os dias. Acaba por aceitá-la como natural. Deixa de ficar surpreendida, ao descobrir que ela trocou de sítio, durante a noite. Quando entra todas as manhãs no hospital, ao encontrar a pedra num outro sítio qualquer, pega nela e volta a colocá-la em cima da secretária. Aquele gesto tornou-se parte integrante da sua rotina. Enquanto a médica se encontra presente, a pedra não se mexe. Fica ali quieta, sem se mexer, como um gato a dormir ao sol. Só acorda e começa a mover-se depois de ela se afastar e fechar a porta atrás de si.

Ela aproveita todos os momentos livres para estender o braço e acariciar a superfície da pedra suave e escura. À medida que o tempo vai passando, torna-se cada vez mais difícil à médica tirar os olhos da pedra. Como se estivesse hipnotizada, perde gradualmente o interesse em tudo o mais. Deixa de conseguir ler livros. Deixa de ir ao ginásio. Reserva os escassos poderes de concentração que ainda lhe restam para ver os seus doentes, mas, no que diz respeito às restantes tarefas, leva-as por diante graças à força do hábito e a uma certa dose de improviso. Perde o interesse em conversar com os colegas. Deixa de ligar ao seu próprio aspecto. Perde o apetite. Até mesmo os abraços do amante constituem uma fonte de aborrecimento. Quando não tem mais ninguém à volta, fala com a pedra em voz baixa, e escuta o discurso sem palavras que a pedra lhe devolve, à imagem do modo como as pessoas solitárias conversam com um cão ou um gato. A escura pedra em forma de rim controla grande parte da sua vida.

Naturalmente que a pedra não é um objecto vindo de fora. À medida que a narrativa progride, Junpei apercebe-se desse facto. Alguma coisa no interior da médica activa a escura pedra em forma de rim, impelindo-a a tomar medidas concretas. Por isso continua sempre a enviar sinais – sinais que se revelam através dos movimentos nocturnos da pedra.

Enquanto escreve, Junpei pensa em Kirie. Pressente que ela (ou algo dentro dela) faz avançar a história; nunca foi sua intenção escrever algo tão surreal e divorciado da realidade. A história que Junpei tinha vagamente em mente antes de se lançar ao trabalho era mais tranquila, uma abordagem de pendor psicológico. No fio daquela outra narrativa, não havia lugar para pedras que andavam a trocar de sítio sozinhas.

Junpei imaginava que a médica cortaria relações com o cirurgião casado. Com o tempo, poderia até muito bem ficar a odiá-lo. Era provavelmente o que no seu íntimo desejava, sem ter consciência disso.

Assim que o resto da história se lhe tornara evidente, passá-la para o papel revelou-se tarefa relativamente fácil. Junpei sentou-se ao computador e escreveu o resto a um ritmo que era, para ele, verdadeiramente acelerado, enquanto escutava as Lieder de Mahler com o volume no mínimo. A médica toma a decisão de se separar do cirurgião que era seu amante. «Não posso continuar a ver-te», diz-lhe ela. «Não podemos ao menos falar sobre o assunto?», pergunta ele. «Não», diz ela com firmeza, «isso é impossível.» No primeiro dia livre que tem, ela apanha o ferry no porto de Tóquio e, durante a viagem, lança a pedra em forma de rim ao mar. A pedra afunda-se nas águas profundas e negras do oceano, até atingir o coração da Terra. Ela decide começar de novo. Depois de se ter desfeito da pedra, sente-se invulgarmente leve.

No dia seguinte, contudo, ao regressar ao hospital, encontra a pedra em cima da secretária, à espera dela. Está precisamente no sítio onde pertence, escura e com o formato de um rim, tal como dantes.

Mal acabou de escrever a história, Junpei telefonou a Kirie, que por certo quereria ler a obra, entretanto acabada e que, de certa maneira, tinha sido inspirada por ela. Porém, não conseguiu ligação. «A sua chamada não pode ser atendida», repetia a voz electrónica. «Por favor, confirme o número e tente mais tarde.» Junpei continuou a tentar vezes sem conta, mas o resultado era sempre o mesmo. «Ela deve ter qualquer problema técnico com o telefone», pensou ele.

Junpei deixou-se ficar por casa, à espera que Kirie entrasse em contacto com ele, mas isso nunca se verificou. Passou um mês. Depois esse mês transformou-se em dois meses, em três meses. Veio o Inverno e começou um novo ano. A história foi publicada no número de Fevereiro de uma revista literária. Num anúncio a chamar a atenção para a dita revista, aparecia o nome de Junpei e o título «A Pedra em Forma de Rim que Mudava de Lugar Todos os Dias». Podia ser que Kirie visse a referência no jornal e isso a levasse a comprar a revista e, uma vez lida a história, a ligar para ele dando-lhe conta das suas impressões – pelo menos era o que ele esperava. Contudo, tudo o que chegou até ele foi o silêncio, camada em cima de camada.

A dor que Junpei sentiu quando Kirie desapareceu da sua vida revelou-se mais intensa do que ele imaginara. Para trás, ela deixara ficar um vazio, e esse vazio perturbou-o verdadeiramente. Ao longo do dia, por mais de uma vez ele deu por si a pensar: «Se ao menos ela aqui estivesse.» Tinha saudades do sorriso dela, das palavras que se desenhavam nos seus lábios, do contacto com a sua pele quando se abraçavam. Nem na sua música favorita encontrava qualquer consolo, da mesma forma que a chegada de um novo livro dos autores da sua eleição não ajudava a minorar a tristeza. Sentia que tudo estava longe e distante. «Se calhar era Kirie a segunda mulher», pensou Junpei.

 

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O próximo encontro de Junpei com Kirie ocorre depois de almoço, num dos primeiros dias de Primavera – se bem que talvez não seja o mais correcto chamar àquilo um «encontro». Ele ouviu a voz dela.

Ia de táxi e encontrava-se parado no meio do trânsito. O jovem motorista estava a ouvir uma estação de rádio em FM. De repente, a voz de Kirie chegou-lhe aos ouvidos. A princípio, Junpei não tinha a certeza de ser a voz de Kirie. Limitou-se a pensar que se tratava de uma voz parecida com a dela. Porém, à medida que a emissão prosseguia, mais parecia a voz de Kirie, a maneira de ela falar – a mesma entoação subtil, o mesmo estilo descontraído, a maneira muito própria que ela tinha de fazer uma pausa, aqui e ali.

Junpei perguntou ao motorista se podia aumentar o volume.

– Claro que sim – respondeu o outro.

Tratava-se de uma entrevista feita em directo do estúdio. A entrevistadora estava a fazer uma pergunta: «... quer então dizer que sempre gostou de sítios altos, desde pequena?»

«É um facto», respondeu Kirie, ou alguém com uma voz igualzinha à dela. «Desde que me lembro, sempre gostei das alturas. Quanto mais alto, mais em paz comigo mesmo me sentia. Estava sempre a dar cabo da cabeça aos meus pais, para ver se eles me levavam. Era uma criaturinha muito estranha», disse a voz ao mesmo tempo que soltava uma risada.

«Assim se explica que tenha ido parar ao trabalho que actualmente desempenha.»

«Comecei por trabalhar como analista numa empresa de seguros. Mas soube logo que aquilo não era para mim. Passados três anos, abandonei a firma e a primeira coisa que fiz foi arranjar emprego a lavar janelas em edifícios altos. O que eu queria era ser um daqueles operários que se movimentam lá no alto, consertam toda a espécie de torres e chaminés altas, mas trata-se de um mundo machista, onde não deixam entrar mulheres com essa facilidade toda. Por isso, comecei por aceitar trabalho como lavadora de janelas.»

«Foi um grande salto – de analista de mercados para lavadora de janelas!»

«Para ser franca, lavar janelas revelou-se muito menos stressante para mim: a haver alguma coisa em queda, somos nós, e não as acções.» Mais risos.

«Diga-me uma coisa, quando diz “lavadora de janelas”, calculo que se esteja a referir àquelas pessoas que andam para cima e para baixo, numa plataforma, na parte lateral dos grandes edifícios.»

«Exactamente. É evidente que estamos presos, mas há sítios onde não conseguimos chegar se não desprendermos o cabo. Isso não me preocupava rigorosamente nada. Por mais alto que me encontrasse, medo foi coisa que nunca senti. Isso fez de mim uma funcionária preciosa.»

«Imagino que goste de fazer escalada e subir às montanhas?»

«As montanhas interessam-me muito pouco. Tentei escalar montanhas duas ou três vezes, mas confesso que não me diz nada. As montanhas não me atraem, por mais altas que sejam. A única coisa que me interessa são as estruturas de muitos andares erguidas pelos homens e construídas a partir do chão. Não me pergunte porquê.»

«Actualmente encontra-se à frente dos destinos de uma empresa especializada em edifícios muito altos e arranha-céus, com sede na zona metropolitana de Tóquio.»

«Correcto», disse ela. «Consegui poupar algum dinheiro e fundei a minha própria empresa, há coisa de seis anos. Claro que ainda continuo a trabalhar no exterior, com os operários, mas basicamente pode dizer-se que dirijo o negócio. Não tenho de receber ordens de ninguém, além de que posso ser eu a ditar as regras. Dá muito jeito.»

«Quer então dizer que pode soltar o cabo quando lhe dá na real gana?»

«Numa palavra, é isso.» (Risos.)

«Não gosta mesmo de se sentir amarrada, pois não?»

«É um facto. Tenho a sensação de não ser eu. É como se estivesse a usar espartilho apertado.» (Risos.)

«Gosta realmente de sítios altos, não é verdade?»

«Gosto. As alturas são a minha vocação. Não me consigo imaginar a desempenhar outro ofício. O nosso trabalho deve ser um acto de amor, e não um casamento de conveniência.»

«E agora está na altura de ouvirmos uma canção», interrompeu a menina da rádio. «Vamos ouvir James Taylor no tema “Up on the Roof”. Voltaremos a conversar sobre artistas funâmbulos logo a seguir.»

Enquanto estava a passar a canção, Junpei recostou-se no assento e perguntou ao motorista: «O que é que esta mulher faz na vida?»

«Ela diz que põe cordas entre edifícios muito altos e atravessa de um lado para o outro», explicou o motorista. «Com a ajuda de uma grande vara na mão, a fim de manter o equilíbrio. É uma espécie de artista, pelos vistos. Pela parte que me toca, fico logo em pânico só de pensar em subir num daqueles elevadores de vidro. No caso dela, parece que esse é que é o gozo. Deve ter um parafuso a menos. Além de que também já não deve ser nova.»

«Diz-me você que é a profissão dela?», indagou Junpei. Ao dizer aquilo, deu-se conta do tom seco da sua voz, como se não fosse ele a controlá-la. Parecia que a voz de outra pessoa tinha penetrado por uma fenda no tejadilho do táxi.

«Isso. Provavelmente consegue arranjar uma data de patrocinadores e lá vai dando os seus espectáculos. Pelos vistos, acabou de fazer um numa famosa catedral da Alemanha. Diz ela que ainda quer subir a edifícios mais altos, mas que não consegue obter a devida autorização. Porque a uma altura daquelas, a rede de protecção já não serve de nada. Ela esforça-se por ir melhorando o seu recorde, e é por isso que escolhe sempre edifícios cada vez mais altos. Como é óbvio, não é disso que vive, por isso... bom, o senhor ouviu quando ela disse que era dona de uma empresa de limpeza industrial de vidros. Aquela não ia trabalhar para um circo nem mesmo que a deixassem fazer malabarismos na corda. Só lhe interessam os edifícios muito altos. Uma tipa esquisita.»

 

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«O mais espantoso de tudo é que, pelo facto de andarmos lá por cima, isso nos transforma enquanto seres humanos», declarou Kirie à entrevistadora. «Uma pessoa muda, ou, melhor dizendo, vê-se obrigada a mudar, se quiser sobreviver. Quando me encontro num lugar alto, só existo eu e o vento. Nada mais existe. O vento envolve-me, abana-me. Compreendo quem sou. Ao mesmo tempo, compreendo o vento. Aceitamo-nos um ao outro e decidimos viver juntos. Apenas eu e o vento: não há espaço para mais ninguém. É esse o momento de que eu mais gosto. Não, não tenho medo. Mal pouso o pé nas alturas e me abandono por completo a esse estado de concentração, o medo desaparece por completo. Estamos ali, sozinhos no nosso vazio aconchegante. Esse é o momento que eu adoro acima de tudo.»

Kirie falava com uma segurança impressionante. Junpei não tinha a certeza se a entrevistadora compreendia as palavras dela. Quando a conversa chegou ao fim, Junpei mandou parar o táxi e apeou-se, percorrendo a pé o resto do caminho até ao seu destino. Volta e meia, punha-se a olhar para um outro edifício mais alto e observava as nuvens que passavam. Aos seus olhos, tornara-se claro que ninguém se podia interpor entre ela e o vento, e sentiu um violento acesso de ciúmes. Mas ciúmes de quê? Do vento? Quem se lembraria alguma vez de ter ciúmes do vento?

Durante meses a fio, Junpei esperou por uma chamada de Kirie. Gostaria muito de a ver e de conversar com ela a propósito de uma quantidade de coisas, incluindo a pedra em forma de rim. A chamada, porém, nunca veio, e os telefonemas que ele tentava fazer experimentavam sempre dificuldade em «obter ligação». Quando chegou o Verão, ele perdeu a esperança que ainda tinha e desistiu de vez. Era óbvio que ela não tinha qualquer intenção de voltar a vê-lo. E foi assim que a relação chegou ao fim calmamente, sem discussões nem gritarias – da mesma forma que tinham terminado as relações dele com tantas outras mulheres. Chegando a uma determinada altura, as chamadas telefónicas deixam de acontecer, e acaba tudo, naturalmente.

«Devo acrescentá-la à minha lista? Poderei considerá-la uma das três mulheres com verdadeiro significado?» Junpei ainda viveu atormentado durante algum tempo com estas questões, incapaz de chegar a uma conclusão. «Vou esperar mais seis meses», pensou ele. «Depois logo vejo.»

Durante esses seis meses, trabalhou na sua escrita com grande afinco e produziu um número apreciável de contos. Sempre que se sentava à secretária, aplicando-se na tarefa de polir o estilo, pensava: «Neste momento, Kirie deve estar algures num lugar alto, em companhia do vento. E eu, eu aqui estou, sozinho, sentado à minha escrivaninha, a escrever as minhas histórias, ao passo que ela se encontra sozinha, mais alto do que toda a gente – e sem nada que a prenda à terra. Mal ela atinge aquele estado de concentração, o medo desaparece por completo: “Só eu e o vento”.» Junpei costumava pensar muitas vezes nas palavras dela e, às tantas, tornou-se claro aos olhos dele que acabara por sentir algo de especial por ela, algo que nunca sentira por nenhuma outra mulher. Tratava-se de uma emoção profunda, que possuía contornos distintos e um peso real. Apesar de tudo, Junpei ainda hesitava em dar nome a esse sentimento. Em todo o caso, era um sentimento que não podia ser objecto de troca. Mesmo que ele nunca mais tornasse a ver Kirie, aquele sentimento ficaria para sempre consigo, gravado no seu corpo (talvez na medula dos ossos). Sabia que continuaria a sentir na pele a ausência dela para sempre.

Com o ano a chegar ao fim, Junpei tomou uma decisão. Passaria a considerá-la como sendo a número dois. Era uma das mulheres que tinham tido «verdadeiro significado» para ele. Número dois, riscado. Só faltava uma, mas a partir dali ele já não sentia medo. «Os números não são o que importa. A contagem decrescente não tem significado.» A partir dali, ele sabia: «O que importa é tomar a decisão de aceitar a outra pessoa totalmente, do fundo do coração. E tem sempre de acontecer como se fosse a primeira e a última vez.»

 

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Uma manhã, a médica repara que a pedra escura em forma de rim tinha desaparecido de cima da sua secretária. E ela sabe: para nunca mais voltar.

39 As cartas em cadeia são mensagens que têm por objectivo levar o destinatário a enviar um x número de cópias a outras pessoas, apelando à «solidariedade» e invocando toda a espécie de azares caso a corrente seja quebrada; antigamente chegavam pela mão do carteiro, nos tempos que correm invadem as caixas de correio electrónico. (N. da T.)

40 Kyrie eleison é uma expressão grega que significa «Senhor, tende misericórdia de mim» ou «Senhor, tende piedade de mim». Kyrie é o vocativo da palavra grega kúpioç (kyrios – Senhor) e significa «Ó Senhor». É originário do salmo penitencial 51 (50 na versão LXX), usado como começo de uma antiga oração cristã repetida nas liturgias de denominações católicas, luteranas, ortodoxas e anglicanas. Em contexto litúrgico, «o Kyrie» evoca essa parte da celebração. (N. da T.)

41 Rock em inglês, de pedra, mas também de música rock (sem esquecer a expressão rock the world). (N. da T.)