O MACACO DE SHINAGAWA
Volta e meia tinha dificuldade em recordar o seu próprio nome. Quase sempre acontecia quando havia alguém que lhe perguntava como é que ela se chamava. Podia acontecer numa boutique, por exemplo, quando estivesse a mandar fazer uma alteração nas mangas de um vestido, na altura em que a empregada lhe perguntasse: «E o seu nome, minha senhora, qual é?» Ou então podia dar-se o caso de estar no seu local de trabalho, ao telefone, e a pessoa do lado de lá querer saber o nome e ela ficar completamente em branco. A única maneira de se lembrar quem era implicava tirar para fora da carteira a carta de condução e verificar os dados, o que tinha grandes probabilidades de parecer um tudo-nada estranho aos olhos do seu interlocutor. Calhando estar ao telefone, o embaraçoso momento de silêncio enquanto ela vasculhava a mala de mão tinha, como não podia deixar de ser, o condão de levar a pessoa que se encontrava do outro lado a interrogar-se sobre que diabo estaria a acontecer.
Quando era ela que tomava a iniciativa de referir o seu nome, nada disto acontecia. Desde que ela soubesse de antemão o que aí vinha, nunca havia problema com a sua memória. Agora, imaginando que estava com pressa, ou que alguém lhe perguntava o nome do pé para a mão, era como se uma grande onda se abatesse sobre ela, deixando a sua mente vazia. Quanto mais se esforçava por recuperar a memória, mais o espaço em branco alastrava e nessa altura era quando ela não conseguia evocar o seu nome por nada deste mundo.
O esquecimento limitava-se ao seu próprio nome. De tudo o resto, lembrava-se perfeitamente. Nunca se esquecia do nome dos que a rodeavam. Nem da sua morada, número de telefone, data de nascimento, número do passaporte. Conseguia dizer de cor o número de telefone dos seus amigos mais próximos, bem como dos clientes mais importantes. Sempre tivera uma memória razoável – era tão-só o seu próprio nome que lhe escapava. O problema começara a notar-se há coisa de um ano, desde a primeira vez que lhe acontecera uma coisa do género.
O nome de casada era Mizuki Ando, o de solteira Ozawa42. Não se podia dizer que nenhum deles fosse especialmente original ou fascinante, o que não significa que isso sirva, de alguma forma, para explicar por que razão, no meio da sua luta diária, ela deixava de se conseguir lembrar do nome que era o seu.
Tinha passado a ser Mizuki Ando na Primavera de há três anos, ao casar-se com um homem chamado Takashi Ando. De início, não havia maneira de se habituar ao seu novo nome. Estranhava a forma como as letras se alinhavam no papel e a sonoridade do nome aos seus ouvidos. Mas depois, de tanto o repetir, e de o assinar vezes sem conta, aos poucos começou a achar que, afinal, não era assim tão mau como isso. Comparado com outras hipóteses – Mizuki Mizuki, por puro exemplo, Mizuki Miki ou algo do género –, não se podia dizer que Mizuki Ando fosse um nome feio de todo. A coisa demorou o seu tempo, mas ela acabou por se sentir confortável com o seu novo nome de casada.
Eis senão quando, um ano antes, aquele nome começara a falhar-lhe. Primeiro, acontecia uma vez por mês ou isso, mas à medida que o tempo passava começou a tornar-se mais frequente. Presentemente, acontecia pelo menos uma vez por semana. A partir do momento que o nome de «Mizuki Ando» começou a fugir-lhe da memória, ela ficou sozinha no mundo, uma maria apagada, uma mulher sem nome. Desde que tivesse a bolsa à mão, ainda a coisa passava – bastava-lhe sacar da carta de condução para se lembrar de quem era. Caso algum dia perdesse a mala, então é que ficaria sem uma pista. Não chegaria ao extremo de passar a ser uma não identidade assumida, obviamente – ficar sem o nome durante um tempo não negava o facto de continuar a existir, e é bom não esquecer que ela ainda se lembrava da morada e do número de telefone. Nem tão-pouco a situação tinha alguma coisa que ver com os filmes em que apareciam no enredo casos de amnésia total. Porém, isso não impedia a chatice que era uma pessoa – no caso, ela – esquecer-se do seu próprio nome. Uma vida sem nome era como um sonho do qual jamais se acorda. Isto era como ela analisava o problema.
Mizuki dirigiu-se a uma joalharia, comprou uma pulseira vulgar de Lineu e mandou gravar o nome dela: Mizuki (Ozawa) Ando. Nada de morada nem de número de telefone. Apenas o nome. «Tenho a sensação de ser um gato ou um cão», confessava ela, com um suspiro. Certificava-se de nunca sair de casa sem a dita pulseira. Caso se esquecesse do seu nome, bastava-lhe olhar para a pulseira como quem não quer a coisa. Acabavam-se o remexer frenético no interior da mala, bem como os olhares estranhos que as pessoas lhe lançavam.
Nada disto, porém, ela confiou ao marido. Sabia que ele se limitaria a dizer que só vinha provar que ela se sentia infeliz com a vida a dois. Era um homem muito dado a teorias, que aplicava a lógica a tudo e mais alguma coisa. Não fazia a coisa por mal: era esse o feitio dele, sempre pronto a exercitar o pensamento analítico. E, verdade seja dita, aquele modo de entender o mundo não era a especialidade dela. Para além disso, era um homem que gostava de falar e de ouvir, e quando pegava num tema tão depressa não saía dali. Essa a razão pela qual ela se calou muito bem caladinha.
Isso não a impedia de achar que as teorias do marido – ou acharia, caso ele tivesse sabido de alguma coisa – eram muitas vezes descabidas. Atenção, não quer isto dizer que ela estivesse descontente ou preocupada com o seu casamento. Tirando o facto de o marido ser por vezes um indivíduo excessivamente cerebral, ela não tinha nada a apontar-lhe, da mesma maneira que não tinha qualquer razão de queixa dos sogros. O sogro era médico e dirigia uma pequena clínica na cidade de Sakata, no extremo norte da prefeitura de Yamagata. Tanto do sogro como da sogra se podia dizer que eram porventura um bocadinho conservadores para o gosto dela, mas como o marido era o segundo filho, regra geral não interferiam nem com a vida de Mizuki nem com a do marido. Nascida e criada em Nagoya, Mizuki foi-se um bocado abaixo ao sentir na pele a intensidade dos Invernos gélidos em Sakata, mas, depois de ter feito uma ou duas viagens por ano até lá, aprendeu a gostar do sítio. Ao fim de dois anos de casamento, ela e o marido contraíram um empréstimo e compraram um apartamento num edifício acabado de construir, em Shinagawa. O marido, com 30 anos acabados de fazer, trabalhava num laboratório farmacêutico. Quanto a Mizuki, tinha 26 anos e estava empregada num escritório da Honda. Atendia o telefone, recebia os clientes à entrada e acompanhava-os à sala de espera, servia café, fazia fotocópias quando era preciso, encarregava-se do arquivo e inseria os dados actualizados no computador.
Tinha sido o tio de Mizuki, um dos administradores da firma, quem lhe arranjara emprego depois de ela ter acabado a licenciatura numa universidade feminina em Tóquio. Não se podia dizer que o trabalho em si fosse particularmente excitante, mas tinha uma certa responsabilidade sobre os seus ombros e era bem paga. As suas funções não incluíam a venda de automóveis, mas quando os vendedores andavam por fora e aparecia algum cliente, ocupava-se ela do assunto, respondia às perguntas que lhe eram feitas e, diga-se de passagem, desenvencilhava-se às mil maravilhas. Aprendeu os ossos do ofício através da observação directa e rapidamente começou a dominar toda a informação técnica necessária, tornando-se uma verdadeira especialista na arte de vender carros. Sabia de cor os respectivos modelos, o consumo de gasolina por quilómetro de cada modelo presente no salão de vendas e convencia qualquer pessoa, por exemplo, de que um Odissey tinha menos o comportamento de uma carrinha na estrada e parecia-se mais com um modelo mais utilitário. Mizuki falava bem e o seu sorriso cativante tinha o condão de deixar os clientes à vontade. Acresce que conseguia captar a personalidade de cada comprador, utilizando depois esse dom para introduzir subtis modificações no seu discurso. Com grande pena dela, contudo, não estava autorizada a fazer descontos, nem a negociar comissões; daí resultava que, mesmo com o potencial comprador prestes a assinar na linha pontilhada, ela acabava muitas vezes por ter de entregar o negócio aos membros da equipa de vendas. Apesar de ter sido ela a fazer o grosso do trabalho, entrava em cena o vendedor e arrebanhava a comissão. A única recompensa que ela poderia esperar era um ou outro jantar oferecido pelo vendedor para o lado de quem tinham soprado os ventos da sorte.
Volta e meia, punha-se a pensar que, se a deixassem ocupar-se das vendas, o negócio melhoraria a olhos vistos. Se ao menos aqueles jovens vendedores, acabadinhos de sair da universidade, se aplicassem mais, pensava ela, venderiam o dobro dos carros. A verdade, porém, é que ninguém lhe dizia que ela era mal empregada a fazer o trabalho burocrático e que todos ganhariam caso fosse transferida para as vendas. É esse o sistema que vigora na maior parte das empresas. O departamento de vendas é uma coisa, o pessoal administrativo outra e, excepto com raríssimas excepções, as fronteiras não se destinam a ser ultrapassadas. Por outro lado, ela não era ambiciosa ao ponto de querer triunfar na vida e fazer carreira a todo o custo. Preferia mil vezes cumprir o seu horário das nove às cinco, tirar os diazinhos de férias que lhe eram devidos e ficar com tempo livre para ela.
No emprego, Mizuki continuou sempre a usar o nome de solteira. A mudança oficial implicaria que todos os dados relativos à sua pessoa inseridos no sistema informativo tivessem de ser alterados, tarefa essa de que teria de ser ela própria a ocupar-se. Como dava muita chatice, foi adiando, adiando, até que chegou um dia em que decidiu continuar a manter o nome de solteira. Para efeitos de impostos, estava inscrita como mulher casada, apenas o nome não conhecera alteração. Tinha consciência de que não era correcto proceder daquela forma, mas como no local de trabalho ninguém disse nada (estavam todos demasiado ocupados para se preocuparem com pormenores de lana-caprina), continuou a ser conhecida por Mizuki Ozawa. Se alguém se desse ao trabalho de proceder a todas as mudanças necessárias, nesse caso ela teria todo o gosto de adoptar o nome de Mizuki Andro. Era esse o nome que continuava a figurar nos cartões-de-visita, na placa identificativa que trazia ao peito, no cartão de ponto. Toda a gente lhe chamava Ozawa-san, Ozawa-kun, Mizuki-san ou até o mais familiar nome de Mizuki-chan.43
O marido estava a par do facto de ela continuar a responder pelo nome de solteira no emprego (até porque lhe telefonava de vez em quando) e não parecia ter qualquer problema com isso. Aos olhos dele, ela usava o nome que usava por uma questão de conveniência. Desde que ele conseguisse apreender a lógica da coisa, não havia problema. Nessa medida, não se pode dizer que fosse uma pessoa complicada.
A páginas tantas, Mizuki começou a perguntar a si própria se os seus esquecimentos não seriam sintoma de uma qualquer temível doença. Alzheimer, por exemplo. O mundo estava cheio de doenças desconhecidas, complicadas e fatais. Só relativamente há pouco tempo é que ela ficara a saber da existência de doenças como a miastenia e a doença de Huntington. Sem esquecer que devia haver uma quantidade de outras de que ela nem sequer ouvira falar. E algumas dessas maleitas até apresentavam de início sintomas muito ligeiros. Sintomas ligeiros e invulgares, como... uma pessoa esquecer-se do seu nome? A partir do momento em que começou a ter pensamentos destes, aumentaram as suas preocupações e Mizuki temeu que alguma doença desconhecida estivesse a espalhar-se pelo seu corpo.
Pegou nela e foi a um grande hospital e explicou os sintomas. Acontece, porém, que o jovem médico que estava de serviço – tão pálido e com um ar tão extenuado que dir-se-ia ser ele o paciente – não a levou a sério. «Para além do nome, costuma esquecer-se de mais alguma coisa?», perguntou-lhe ele. Ao que ela respondeu que não, que era só do nome. «Hmm, nesse caso parece-me mais um problema de ordem psiquiátrica», concluiu ele, numa voz que não traduzia o mínimo interesse nem ponta de simpatia. «Se vir que começa a esquecer-se de outras coisas para além do seu nome, venha ter connosco. Nessa altura logo faremos alguns exames.» Parecia estar a querer dizer que o hospital estava cheio de pessoas com doenças verdadeiramente graves, mais graves do que a dela. Uma pessoa esquecer-se do seu nome de quando em quando, que importância é que isso tem?
Certo dia, no boletim informativo da prefeitura distribuído com o correio, ela leu uma notícia sobre a inauguração de um centro de aconselhamento local. Tratava-se de um artigo pequeno, e normalmente ela nem sequer teria reparado nele. O centro estaria a funcionar duas vezes por mês e contaria com os serviços de um psicólogo que, a preços muito aceitáveis, prestaria apoio individual. Toda e qualquer pessoa residente na zona de Shinagawa que tivesse mais de dezoito anos poderia recorrer àquele serviço ao abrigo do mais rigoroso sigilo, dizia ainda o artigo. Apesar de ter as suas dúvidas e de não saber em que medida um centro de aconselhamento apoiado pela prefeitura a ajudaria a resolver o seu problema, decidiu experimentar. Em todo o caso, mal não faria. A empresa de venda de carros tinha sempre muito trabalho aos fins-de-semana, mas não lhe seria difícil tirar um ou outro dia de semana, pelo que a perspectiva de ajustar o seu horário de trabalho por forma a encaixar no horário de funcionamento do centro de aconselhamento nem sequer era complicada, o que se revelaria impensável para a maioria dos trabalhadores normais. Uma sessão de trinta minutos custava a modesta quantia de dois mil ienes, perfeitamente acessível para ela. Marcou uma consulta para a uma da tarde da quarta-feira seguinte.
Quando chegou ao centro de aconselhamento, situado no terceiro andar do edifício da prefeitura, Mizuki descobriu que era a única. «Este programa de aconselhamento começou de um momento para o outro», explicou a recepcionista, «e por isso são poucos os que estão devidamente informados.»
A conselheira, que dava pelo nome de Tetsuko Sakaki, era uma mulher cordial, dos seus quarenta e muitos, baixa e ligeiramente forte. Usava o cabelo curto, pintado de castanho-claro, tinha um rosto redondo e um sorriso simpático. Vestia um saia-e-casaco de Verão, de tons claros, uma blusa de seda branca, um colar de pérolas artificiais e calçava sapatos de saltos baixos. À primeira vista, parecia-se mais com a boa alma da vizinha do lado do que com uma terapeuta.
– Sabe, o meu marido é funcionário da prefeitura – avançou ela, emprestando um tom caloroso ao acto de apresentação formal. – Trabalha como chefe de secção do departamento de obras públicas. Foi assim que obtivemos apoio junto da prefeitura e pudemos abrir este gabinete. Para dizer a verdade, a senhora é a nossa primeira cliente, e alegra-nos muito que tenha vindo. Hoje não tenho mais nenhuma consulta, por isso podemos dar-nos ao luxo de ter uma boa conversa sem nos preocuparmos com o tempo. – A mulher falava extremamente devagar; de resto, poder-se-ia dizer que tudo nela era tranquilidade e lentamente deliberado.
– Muito gosto em conhecê-la – cumprimentou Mizuki. No seu íntimo, porém, tinha as suas dúvidas de que as competências da mulher lhe fossem de grande utilidade.
– Sou licenciada e tenho vasta experiência, por esse aspecto pode ficar descansada. Não se preocupe, deixe que seja eu a tratar de tudo – acrescentou ela, como se tivesse lido os pensamentos de Mizuki.
A Sr.ª Sakaki estava atrás de uma secretária vulgar, daquelas metálicas. Por sua vez, Mizuki escolhera sentar-se num pequeno e velho sofá que mais parecia ter saído directamente da arrecadação. As molas estavam gastas e o cheiro a bafio fez-lhe cócegas no nariz.
– Estava esperançada em arranjar um bonito sofá, daqueles que dão bom nome ao gabinete de qualquer terapeuta que se preze, mas por enquanto temos de nos contentar com este. É preciso não esquecer que estamos a trabalhar com a autarquia, por isso há que contar com o peso da burocracia. Um sítio horrível. Prometo que para a próxima teremos alguma coisa para lhe oferecer. Até lá, peço-lhe que tenha paciência.
Mizuki recostou-se no velho e precário sofá e começou a explicar que andava cada vez com mais frequência a esquecer-se do nome. A Sr.ª Sakaki escutava atentamente, sem interromper nem relevar surpresa, limitando-se a acenar com a cabeça. Quando muito, terá feito um ou outro som destinado a mostrar que estava atenta às palavras de Mizuki. Tirando uma ligeira ruga na testa, dando a ideia de que estaria a pensar em qualquer coisa, o seu rosto permaneceu imperturbável, e o seu sorriso discreto, que fazia lembrar uma Lua de Primavera ao anoitecer, nunca desapareceu.
– Foi uma excelente ideia, mandar gravar o seu nome na pulseira – observou ela depois de Mizuki ter acabado. – Agrada-me a maneira como lidou com isso. O mais importante é arranjar uma solução prática, reduzir ao mínimo os inconvenientes. É muito melhor abordar a questão de modo realista, em vez de se deixar consumir pelo sentimento de culpa, meter tudo para dentro ou ficar de cabeça perdida. Vejo que é uma mulher inteligente. E a pulseira, além disso, é muito bonita e fica-lhe a matar.
– Acha que o facto de uma pessoa se esquecer do seu nome pode ser o sinal de que tem alguma doença grave? Há outros casos assim? – perguntou Mizuki.
– Não creio que haja alguma doença com esse tipo de sintomas iniciais tão bem definidos – afirmou a Sr.ª Sakaki. – Contudo, preocupa-me que esses sintomas se tenham vindo a agravar no decorrer do último ano, ou que a sua falta de memória possa eventualmente alastrar a outras áreas. Por isso, vamos devagarinho, um passo de cada vez, a fim de se descobrir a origem do problema. Uma vez que trabalha fora de casa, imagino que o facto de não se lembrar de repente do seu nome possa dar azo a toda a espécie de situações menos agradáveis.
A Sr.ª Sakaki começou por fazer várias perguntas básicas acerca da vida actual de Mizuki. Estava casada há quanto tempo? Que género de emprego tinha? Que tal era a saúde? A seguir passou às questões que diziam respeito à infância e à família, aos tempos da escola. O que lhe dava prazer. O que lhe desagradava. Mizuki esforçou-se por responder a cada uma das perguntinhas tão honestamente, tão espontaneamente e tão rigorosamente quanto possível.
Mizuki tinha sido criada numa família normalíssima, e crescera na companhia dos pais e de uma irmã mais velha. O pai trabalhava para uma grande companhia de seguros e, apesar de não andarem propriamente a nadar em dinheiro, ela não se lembrava de terem passado dificuldades. O pai era um homem sério, ao passo que a mãe era um tanto ou quanto frágil e um bocado chata. A irmã era sempre a primeira da classe, isto apesar de, na perspectiva de Mizuki, ser um bocado oca e vazia e nem sempre se poder confiar nela. Ainda assim, Mizuki nunca tinha tido problemas com a família e sempre se dera bem com toda a gente. Nunca se haviam registado grandes discussões. Pela parte que lhe tocava, Mizuki sempre fora uma criança que não dava nas vistas. Extremamente saudável, nunca ficava doente, o que não significava que fosse particularmente atlética – que não era. O seu aspecto não lhe causava complexos, se bem que ninguém lhe dissesse que era bonita. Mizuki tinha-se na conta de uma rapariga bastante inteligente, ainda que nunca se tenha destacado em nenhum campo específico. Tinha notas razoáveis (no caso de se ir à procura do nome dela na pauta afixada, era mais rápido começar por cima do que por baixo). Contava com duas ou três amigas do peito quando andava a estudar, mas todas elas se tinham mudado depois de casarem e nos dias que corriam pouco ou nenhum contacto ainda existia.
Não se podia dizer que ela tivesse grandes razões de queixa da sua vida de mulher casada. Nos primeiros tempos, tanto ela como o marido tinham cometido a sua quota-parte de erros previsíveis, mas, com o andar da carruagem, tinham conseguido pôr a coisa nos eixos e chegado a um bom entendimento. Naturalmente que o marido não era perfeito (basta dizer que, a juntar ao seu pendor analítico, não possuía qualquer noção do que era a moda), mas, ainda assim, tinha bons pontos a seu favor – era um homem bondoso, responsável, limpo, tinha boa boca e quase nunca se queixava. Parecia entender-se bem com toda a gente no emprego, tanto colegas como superiores hierárquicos. Como é óbvio, nem sempre as coisas corriam bem ao nível da empresa, consequência inevitável de trabalhar todos os dias com as mesmas pessoas, mas nem isso contribuía para lhe fazer dores de estômago.
Ao responder a todas aquelas questões, Mizuki deu-se conta da vida desinteressante que até aí sempre levara. Nunca fora, nem de longe nem de perto, surpreendida por algo de dramático. Se a vida dela desse um filme, seria forçosamente um daqueles documentários de baixo orçamento, que só servem para fazer sono. Nada a não ser uma paisagem monocórdica, a perder vista. Nem mudanças de cenário, nem grandes planos, nem momentos empolgantes, apenas uma experiência captada num registo linear, sem altos nem baixos. Nem uma sombra funesta, nem um elemento sugestivo. Volta e meia, mais por acidente do que por outra coisa, a câmara mudava lentamente de posição, como se lhe tivessem dado o toque para sair daquela sua complacência. Mizuki sabia que era a função da terapeuta, ouvir o que os clientes tinham para dizer, mas às tantas já estava a sentir pena da mulher, que não tinha outro remédio senão escutar atentamente um relato de vida tão desinteressante. Até quando conseguiria a outra disfarçar um bocejo? «Se eu estivesse no lugar dela e me obrigassem a prestar atenção a sagas intermináveis como esta», pensou Mizuki, «morria de puro aborrecimento.»
Tetsuko Sakaki, porém, ouvia atentamente as palavras de Mizuki e ia tomando pequenas notas. De vez em quando, fazia uma pergunta rápida, mas, durante a maior parte do tempo, manteve-se em silêncio, inteiramente concentrada na tarefa de apreender a história de Mizuki. Das poucas vezes em que sentiu necessidade de dizer alguma coisa, a sua voz não transmitiu sinais de estar maçada, mas antes um tom caloroso que denotava da sua parte um genuíno interesse. Ali sentada a ouvir falar a terapeuta no seu modo lento e arrastado, Mizuki sentiu-se estranhamente descontraída. «Nunca ninguém ouviu o que eu tinha para dizer com tanta atenção», apercebeu-se ela. Quando a sessão, passada uma hora e tal, chegou ao fim, pareceu a Mizuki que lhe tinham tirado um fardo de cima.
– Pode voltar na próxima quarta à mesma hora, Senhora Ando? – perguntou a Sr.ª Sakaki, com um grande sorriso.
– Sim, posso – respondeu Mizuki –, se não se importa.
– Claro que não. Desde que se sinta confortável com essa ideia. São precisas muitas sessões de aconselhamento antes de fazer alguns progressos. Não é bem a mesma coisa que se verifica naqueles programas de rádio tipo consultório, em que é tudo metido no mesmo saco e depois o locutor se despede com um «vai ver que corre bem». Pode demorar o seu tempo, mas é como se fôssemos vizinhas e morássemos ambas em Shinagawa. Por isso, vamos aproveitar a oportunidade e dar o nosso melhor.
– Lembra-se de alguma coisa que tenha acontecido consigo, na sua vida, e que se relacionasse com nomes? – indagou a Sr.ª Sakaki, no decorrer da segunda sessão. – Com o seu nome, com o nome de outra pessoa, com o nome de um animal, com o nome de um lugar que tivesse visitado? Ou, então, alguma alcunha? Tudo o que esteja relacionado com nomes. Se guarda alguma recordação que envolva um nome, gostaria que me contasse.
– Algo que tenha que ver com nomes?
– Nomes, identificação, assinatura, chamada... Pode ser um pormenor aparentemente insignificante, desde que diga respeito a um nome. Veja se consegue lembrar-se
Mizuki pensou durante muito tempo.
– Não me recordo de nada que tenha que ver com nomes – disse por fim. – Pelo menos assim de repente. Oh... afinal, sempre me vem à memória um episódio. Tem ver com um cartão de identificação.
– Um cartão de identificação. Muito bem.
– Mas não estamos a falar do meu cartão de identificação – atalhou Mizuki. – Estamos a falar do cartão que servia para identificar outra pessoa.
– Não interessa. Conte-me.
– Como lhe disse na semana passada, fiz o secundário médio e superior num colégio particular para raparigas – começou Mizuki. Morava em Nagoya e a escola era em Yokohama, por isso ficava instalada no dormitório do colégio e só ia casa aos fins-de-semana. Apanhava o shinkansen44 todas as sextas-feiras à noite e regressava no domingo à noite. Eram só duas horas de viagem, por isso não me fazia diferença nem me sentia particularmente sozinha.
A Sr.ª Sakaki assentiu.
– Mas não existem boas escolas femininas em Nagoya? Por que razão é que teve de sair de casa e de se deslocar até Yokohama?
– A minha mãe tinha estudado naquela escola e queria que pelo menos uma das filhas seguisse as suas pisadas. Além disso, eu própria fiquei contente com a perspectiva de viver longe dos meus pais. Era uma escola de freiras, mas ainda assim muito liberal. Fiz lá boas amigas. Eram tudo raparigas na mesma situação que eu, oriundas de outros lugares, com mães que se tinham licenciado na escola. Fiquei lá a estudar durante seis anos e posso dizer que, de uma maneira geral, me dei bem. Fora a comida, que era francamente má.
A Sr.ª Sakaki sorriu.
– Disse-me que tem uma irmã mais velha?
– Exactamente. Dois anos mais velha do que eu.
– E por que não frequentou ela essa tal escola?
– Ela sempre foi mais caseira. E também passou muito tempo adoentada, quando era pequena. Por isso, andou sempre na escola local e ficou a viver em casa, com os pais. Daí que a minha mãe tivesse querido que eu estudasse naquela escola. Desde miúda, fui sempre mais saudável e francamente mais independente do que a minha irmã. Quando acabei o secundário e me perguntaram se estava disposta a ir estudar para Yokohama, disse logo que sim. Confesso que a ideia de viajar no comboio-bala também me pareceu excitante.
– Desculpe tê-la interrompido – disse a Sr.ª Sakaki, sorrindo. – Por favor, continue.
– As outras repartiam na sua maioria o quarto com outra rapariga, mas quando se é mais velha, dão-nos um quarto individual. Eu estava instalada num desses quartos quando esta história aconteceu.
Como já deixara de ser caloira, nomearam-me porta-voz do dormitório. À entrada do edifício, havia um quadro afixado com as placas identificativas, uma para cada estudante. O verso da placa tinha o nosso nome a negro; o reverso estava escrito a vermelho. Sempre que nos ausentávamos, tínhamos de entregar a placa, e no regresso tornávamos a ficar na posse dela. Quando o nome da pessoa estava a negro, significava que se encontrava nas instalações; quando estava a vermelho era porque a pessoa tinha saído. Sempre que passávamos a noite fora ou estávamos ausentes mais tempo, o nosso nome era retirado do quadro. As estudantes faziam turnos na recepção e, caso alguém telefonasse, era fácil localizar a pessoa em questão, bastando para tal dar uma olhadela ao quadro. Era um sistema muito prático.
A Sr.ª Sakaki fez-lhe sinal, encorajando-a a continuar.
– Aconteceu em Outubro. Estava quase na hora do jantar e eu encontrava-me no meu quarto, a estudar, quando Yuko Matsunaka, uma aluna mais nova, foi ter comigo. Era de longe a rapariga mais bonita do lar. Tinha a pele clara, cabelo comprido, feições perfeitas, de boneca. Os pais geriam uma estalagem tradicional japonesa45 em Kanazawa e estavam muito bem na vida. Ela não andava a estudar comigo, por isso não posso ter a certeza, mas ouvira dizer que tirava notas muito boas. Por outras palavras: destacava-se de uma quantidade de maneiras. Havia imensas raparigas mais novas que tinham praticamente uma adoração por ela. O que vale é que Yuko era cordial e nada convencida, isto para além de ser bastante sossegada e reservada. Uma miúda simpática, se bem que muitas vezes eu não fosse capaz de adivinhar o que lhe ia na mente. Apesar de haver quem a adorasse, duvido que ela tivesse uma amiga mais chegada.
Mizuki estava no seu quarto, sentada à secretária a ouvir rádio, quando ouviu alguém bater devagarinho à porta. Foi abrir e deu de caras com Yuko Matsunaka, de calças de ganga e camisola de malha rente ao pescoço. A outra disse que precisava de falar com ela, caso pudesse dispensar uns minutos. «Tudo bem», replicou Mizuki, apanhada de surpresa. «Não estou a fazer nada de especial.» Mizuki nunca tinha estado sozinha a conversar com Yuko, nem lhe passara alguma vez pela cabeça que Yuko algum dia iria entrar pelo quarto a fim de lhe pedir conselhos. Mizuki fez-lhe sinal para se sentar e preparou chá com a água quente que estava na garrafa-termo.
«Mizuki, alguma vez sentiste inveja?», perguntou Yuko de repente.
Mizuki ficou admirada com a pergunta inesperada, mas pensou um bocadinho antes de responder.
«Não, não se pode dizer que saiba o que isso é», confessou.
«Nem uma única vez?»
Mizuki abanou a cabeça.
«Pelo menos, que me lembre assim de repente, acho que não. Inveja... Queres dizer concretamente o quê?»
«Como quando tu gostas de uma pessoa, mas essa pessoa está apaixonada por outra. Como quando tu desejas uma coisa desesperadamente, e alguém se apropria dela. Ou quando tu aspiras a fazer bem uma coisa, e outra pessoa se mostra capaz de o fazer sem o mínimo esforço... Esse género de coisas.»
«Não me parece que alguma vez tenha sentido isso», afirmou Mizuki. «Já te aconteceu?»
«Muitas vezes.»
Mizuki ficou sem saber o que dizer. Como é que uma rapariga daquelas podia querer ainda mais da vida? Linda de morrer, rica, tinha boas notas e era popular. Os pais estragavam-na com mimos. Mizuki tinha ouvido dizer que ela andava a encontrar-se aos fins-de-semana com um colega que era um bonito rapaz. Que poderia ela querer mais?
«Dá-me um exemplo», pediu Mizuki.
«Prefiro não o fazer», disse Yuko, escolhendo cuidadosamente as palavras. «Além do mais, entrar em pormenor não adianta. Andava para te perguntar há uma data de tempo, Mizuki, se alguma vez sentiste inveja.»
«Palavra de honra?»
«Sim.»
Mizuki não sabia a que propósito vinha tudo aquilo, mas fez-lhe a vontade e decidiu responder o mais honestamente possível. «Julgo que nunca passei por semelhante experiência», começou por dizer. «Não sei porquê, e, pensando bem, acredito que possa até parecer estranho. Vendo bem, não se pode dizer que eu tenha confiança para dar e vender, nem que consiga tudo aquilo que me proponho. Lembro-me assim de repente de uma série de coisas que deveriam contribuir para me sentir frustrada, mas, por alguma razão, a verdade é que isso nunca me levou a ter inveja de outras pessoas. Porquê, não me perguntes.»
Yuko Matsunaka sorriu ligeiramente. «Acho que a inveja não tem muito que ver com a realidade, com as condições objectivas de vida. Tipo, és afortunado se não fores invejoso, mas se não tens sorte, és invejoso. A inveja não funciona assim. É mais como um tumor que se desenvolve cada vez mais dentro de nós, sem que ninguém saiba, sem uma justificação concreta. Mesmo sabendo que ele está ali, não há nada que possa ser feito para impedir o seu crescimento. É como dizer que as pessoas felizes não têm tumores, enquanto as que são infelizes têm mais probabilidade de ter um, o que não é verdade, pois não? É a mesma coisa.»
Mizuki ouviu tudo sem dizer nada. Era raríssimo Yuko ter tanta coisa para dizer de uma assentada.
«Torna-se difícil explicar o que é a inveja a uma pessoa que nunca sentiu isso na pele. Uma coisa te digo: não é fácil conviver com esse sentimento. É como andar com o nosso pequeno inferno atrás, todos os dias. Deves agradecer pelo facto de não saberes o que isso é.»
Yuko calou-se e olhou para a outra de frente. Mizuki não podia ter a certeza, mas pareceu-lhe ver a sombra de um sorriso no rosto dela. E voltou a pensar em como a outra era bonita. Sempre bem vestida, com um peito lindíssimo. Qual seria a sensação de ser como ela – uma daquelas beldades que fazem parar o trânsito? Seria coisa para alguém se sentir orgulhoso? Ou seria antes um peso?
Contrariando esses pensamentos, nem por uma vez Mizuki sentiu ciúmes de Yuko.
«Vou regressar a casa», anunciou Yuko, a olhar para as mãos pousadas no colo. «Morreu um familiar e tenho de ir ao funeral. Já tenho autorização do nosso director. Devo estar de volta na segunda de manhã, mas, enquanto estiver ausente, gostaria que ficasses a tomar conta da minha placa de identificação.»
Ela tirou do bolso a placa com o nome dela e entregou-a a Mizuki, que continuava visivelmente sem compreender o que se estava a passar.
«Não me importo de ficar com ela na minha posse», afirmou Mizuki, «mas por que carga de água te dás ao trabalho de me pedir isso? Não podias limitar-te a enfiá-la dentro da gaveta e pronto?»
Yuko olhou-a bem nos olhos, ao ponto de a outra se sentir pouco à vontade.
«Só quero que fiques com ela por esta vez», disse Yuko num tom decidido. «Há uma coisa que me perturba, e não quero deixá-la ficar no meu quarto.»
«Não me importo», disse Mizuki.
«Não quero que apareça algum macaco e que desapareça com ela enquanto eu estiver ausente», disse Yuko.
«Duvido que haja macacos por estas bandas», atalhou Mizuki num tom jovial. Nem parecia coisa da Yuko, fazer uma brincadeira daquelas. Depois disso, Yuko abandonou o quarto, deixando ficar a placa com a sua identificação, a chávena de chá por beber e um estranho espaço vazio no sítio onde tinha estado.
– Na segunda-feira seguinte, a verdade é que Yuko ainda não tinha regressado – contou Mizuki à terapeuta. – Então o professor encarregado da turma dela, que começava a ficar preocupado, telefonou aos pais e descobriu que Yuko nunca chegara a aparecer em casa. Nenhum membro da sua família havia morrido, e como tal não se realizara nenhum funeral em que ela tivesse de estar presente. Tinha mentido e depois desaparecera. Encontraram o corpo dela dias mais tarde. Soube da história ao regressar ao alojamento no domingo à noite, depois de ter ido a casa passar o fim-de-semana. Cortara os pulsos e pusera fim à própria vida numa floresta ali perto. Quando a encontraram, já estava morta, esvaída em sangue. Ninguém soube explicar as razões do seu acto. Não deixou uma nota de despedida, e os seus motivos permaneceram obscuros. A colega de quarto afirmou que ela parecia a mesma Yuko de sempre, e que não dera mostras de qualquer perturbação. Yuko suicidara-se sem dizer uma palavra a ninguém.
– E, no entanto, ela tentou dizer-lhe qualquer coisa a si, não foi? – perguntou a Sr.ª Sakaki. – Foi essa a razão que a levou a ir ter consigo ao quarto, a fim de depositar nas suas mãos o cartão de identificação. E falou consigo acerca da inveja.
– É certo que ela teve aquela conversa acerca da inveja. Na altura, não liguei muito ao assunto, mas depois aquilo deu-me que pensar. Ela deve ter querido fazer confidências a alguém antes de morrer.
– Contou a alguém que ela tinha ido ao seu quarto pouco antes de morrer?
– Não, nunca contei a ninguém.
– Porquê?
Mizuki inclinou a cabeça, pensativa.
– Se eu fosse contar isso a alguém, só serviria para criar mais confusão. Ninguém compreenderia. E ajudar, também não ajudaria.
– Está a insinuar que a inveja pode ter sido a razão que a levou ao suicídio?
– Exactamente. Se as pessoas viessem a saber, poderiam começar a pensar que havia qualquer coisa de errado comigo. Por que diabo iria uma rapariga como Yuko Matsunaka ter inveja de mim? Andava toda a gente às aranhas, para não dizer que andava tudo à beira de um ataque de nervos, de modo que achei por bem manter a coisa em segredo. De certeza que conhece o ambiente que se vive num dormitório feminino – uma revelação daquelas seria o suficiente para incendiar aquele lugar – seria o mesmo que atirar um fósforo aceso para um quarto cheio de gás.
– O que fez ao cartão de identificação?
– Ainda o tenho. Está guardado dentro de uma caixa, no fundo de um armário. Juntamente com o meu.
– Por que é que ainda o conserva na sua posse?
– Na altura, as coisas na escola estavam fora de controlo e deixei escapar a oportunidade de o fazer. Depois, quanto mais tempo passava, mais difícil a situação se tornava. Mas também nunca fui capaz de me livrar daquilo. Quanto mais não fosse, porque entretanto me passara pela cabeça que talvez Yuko tivesse querido que eu guardasse a identificação dela. Por isso, teria ido procurar-me ao quarto, pouco antes de morrer. Agora, qual a razão por que fui eu a escolhida, não sei dizer.
– Não deixa de ser um bocado estranho. A Mizuki e a Yuko não eram muito chegadas, pois não?
– Vivíamos no mesmo alojamento, por isso era natural que nos cruzássemos de vez em quando – referiu Mizuki. – Chegámos a trocar meia dúzia de palavras. Contudo, estávamos em turmas diferentes, e nunca partilhámos confidências. Se calhar, ela foi ter comigo pelo facto de ser eu a representante das alunas. Não estou a ver outra razão.
– Ou, então, talvez Yuko estivesse interessada em si por outro motivo. Talvez se sentisse atraída por si. Talvez tivesse visto algo em si.
– Isso não lhe sei dizer – confessou Mizuki.
A Sr.ª Sakaki ficou em silêncio, sem tirar os olhos de Mizuki, como se quisesse ter a certeza de alguma coisa.
– Mudando de assunto. É verdade que nunca sentiu inveja? Nunca, jamais, em toda a sua vida?
Mizuki não respondeu logo.
–Julgo que não. Nunca.
– O que significa que não está em condições de avaliar o que é a inveja.
– De uma forma geral, acho que sou capaz... pelo menos, o que poderá levar à inveja. Mas não sei o que é sentir inveja, isso não. Até que ponto é um sentimento forte, quanto tempo dura, o sofrimento que causa.
–Tem razão – afirmou a Sr.ª Sakaki. – A inveja, por assim dizer, conhece vários estádios. Acontece com todas as emoções humanas, segundo sei. Quando na sua forma mais suave, chama-se a isso despeito ou inveja. Existem diferentes graus de intensidade, mas a maior parte das pessoas sente na pele esses sentimentos menos intensos, na sua vida de todos os dias. Por exemplo, quando um colega de trabalho é promovido no nosso lugar, ou aparece um aluno que se torna o menino querido do professor. Ou quando um vizinho ganha a sorte grande. Isso é inveja pura. A situação revela-se injusta e uma pessoa fica danada. Uma reacção perfeitamente natural. Tem a certeza de nunca ter sentido isso?
Mizuki reflectiu naquilo.
– Não creio. Naturalmente que existem pessoas muito mais afortunadas do que eu, mas isso não significa que alguma vez tenha sentido inveja delas. Da forma como eu vejo as coisas, somos todos diferentes e cada um tem a sua vida.
– E, na medida em que somos todos diferentes, torna-se difícil estabelecer comparações?
– É mais ou menos isso.
– Um ponto de vista interessante... – observou a Sr.ª Sakaki, com as mãos cruzadas em cima da secretária, e a sua voz arrastada traindo um certo regozijo. – Na verdade, porém, essas são apenas as situações em que a inveja se manifesta na sua forma mais ligeira. Nos casos mais graves, de inveja assolapada, as coisas não são assim tão simples. Aloja-se um verme no coração e, tal como a sua amiga disse, transforma-se num tumor que devora a alma. Casos há em que pode levar à morte. Quando os homens não são capazes de controlar a inveja, a vida torna-se um verdadeiro inferno.
Depois de Mizuki ter regressado a casa, foi ao fundo do armário buscar uma velha caixa de cartão colada com fita adesiva, onde conservara a placa identificativa de Yuko, bem como a sua, tudo guardado dentro de um sobrescrito para não se perder. No interior daquela caixinha misturavam-se cartas antigas dos tempos da escola, diários, álbuns de fotografias, relatórios de notas, enfim, toda uma parafernália de bugigangas que dizia respeito à existência de Mizuki. Ela andava há muito tempo a pensar em livrar-se daquele baú de recordações, mas acabava sempre por ter outras coisas em que pensar, e ia adiando, adiando sempre. Porém, fartou-se de procurar e não conseguiu encontrar o pacote com as placas. Virou a caixa de pernas para o ar e vasculhou no meio daquela tralha, sem conseguir dar com ele. Ficou perfeitamente desnorteada. Na altura da mudança para aquela casa, lembrava-se de ter feito um pequeno inventário e a imagem do pequeno sobrescrito ficara gravada na sua cabeça. «Com que então», pensara, «ainda o tenho.» Voltou a guardar os cartões dentro do sobrescrito e não mais voltara a abrir a caixa. Por isso, o sobrescrito tinha de estar ali. Como é que podia ter desaparecido? E onde estaria escondido?
Desde que começara a frequentar, uma vez por semana, as sessões de aconselhamento com a Sr.ª Sakaki, Mizuki já não se mostrava tão preocupada com a história de se esquecer do nome. Verdade seja dita que a situação ainda se verificava, e com a mesma frequência de anteriormente, mas os sintomas pareciam ter estabilizado, além de que, fora o nome, mais nada se lhe varrera da memória. A sua pulseira continuava a salvá-la de uma outra situação mais embaraçosa. Começava até a pensar que o facto de uma pessoa se esquecer do seu nome fazia parte da vida.
Mizuki fez segredo das sessões de terapia e não contou ao marido. A sua intenção não era esconder isso dele, mas só de pensar em ter uma conversa com ele sobre o assunto ficava nervosa, até porque imaginava logo que lhe daria mais trabalho do que valia a pena. Conhecendo-o bem, sabia que o marido haveria de lhe pedir uma explicação pormenorizada. Além disso, esquecer-se do nome e ir à terapeuta uma vez por semana eram coisas que não interferiam em nada com a vida dele. E os gastos eram mínimos.
Passaram-se dois meses. Todas as quartas-feiras, lá ia Mizuki a caminho do gabinete no terceiro andar do edifício estatal, para mais uma sessão de aconselhamento. O número de clientes aumentara ligeiramente, por isso as suas sessões tiveram de ficar reduzidas à meia hora que estava inicialmente prevista. O que, de resto, não fez diferença, na medida em que as duas já se encontravam no mesmo comprimento de onda e tiravam o máximo partido do tempo. Por vezes, Mizuki gostaria de poder ficar à conversa durante mais um bocado, mas, pelo pouco dinheiro que desembolsava, não se podia queixar.
– É a nossa nona sessão em conjunto – afirmou a Sr.ª Sakaki, cinco minutos antes de o tempo chegar ao fim. – Não deixou por completo de se esquecer do nome, mas não está pior, pois não?
– Não, não está – confirmou Mizuki. – A situação mantém-se.
– Maravilhoso – exclamou a Sr.ª Sakaki. – Guardou a esferográfica preta às riscas dentro do bolso do casaco, juntou as mãos e deixou-as cair sobre a mesa. Por momentos, calou-se. – É muito possível – atenção, disse «possível» –, da próxima vez que vier à sessão, que estejamos em condições de fazer grandes progressos, relativamente à resolução do seu problema.
– O de me esquecer do meu nome?
– Exactamente. Se tudo correr bem, talvez seja possível determinar a causa definitiva do problema e, quem sabe, talvez eu lhe possa mostrar.
– A razão por que me esqueço do meu nome?
– Precisamente.
Mizuki não compreendia onde a outra queria chegar.
– Quando fala em causa definitiva... refere-se a algo de concreto?
– Claro que é concreto – afirmou a Sr.ª Sakaki, esfregando as mãos de satisfação. – Por vezes, temos o ensejo de servir a solução numa bandeja e podemos dizer: «Aqui está ela.» Infelizmente, só posso adiantar mais qualquer coisa para a semana. Nesta fase, ainda não tenho a certeza se a coisa irá resultar. Espero bem que sim. Caso isso aconteça, não se preocupe, explico-lhe tudo.
Mizuki fez que sim com a cabeça.
– Em todo o caso, o que interessa é que, apesar de todos os nossos altos e baixos, as coisas começam finalmente a caminhar para uma solução. Sabe o que dizem, não sabe?, acerca da vida: três passos para a frente, dois passos para trás. Por isso, não se preocupe. Tenha confiança na boa velha Senhora Sakaki. Encontramo-nos para a semana, então. E não se esqueça de marcar a consulta quando sair.
Ao dizer aquilo, a Sr.ª Sakaki piscou-lhe o olho.
Na semana seguinte, em sendo uma da tarde, quando Mizuki entrou no gabinete de aconselhamento, a Sr.ª Sakaki estava sentada à secretária com o maior sorriso que se possa imaginar.
– Descobri por que razão tem andado a esquecer-se do seu nome – anunciou ela, toda ufana. – E do que poderemos fazer a fim de resolver o problema.
– Quer então dizer que vou deixar de me esquecer do meu nome? – perguntou Mizuki.
– Correcto. Nunca mais se esquecerá do seu nome. Está tudo tratado e resolvido.
– E por que diabo é que isso acontecia? Qual era a causa? – inquiriu Mizuki, meio desconfiada.
De uma malinha de verniz preto, a Sr.ª Sakaki tirou uma coisa que colocou em cima da mesa.
– Creio que isto lhe pertence.
Mizuki levantou-se do sofá e foi até junto da secretária. Em cima do tampo, viam-se dois cartões de identificação. Num deles, estava escrito «Mizuki Ozawa», no outro «Yuko Matsunaka». Mizuki ficou branca. Voltou para o sofá, e ali se deixou ficar, em silêncio. Tinha ambas as palmas das mãos a fazer pressão sobre a boca, como se quisesse impedir as palavras de saírem.
– Não admira que esteja surpreendida – disse a Sr.ª Sakaki. – Mas não se preocupe, vou explicar-lhe tudo, tintim por tintim. Não há motivo para ter medo.
– Como é que...? – balbuciou Mizuki.
– Como é que as placas de identificação vieram parar às minhas mãos?
– Sim, é isso que eu não...
– Não compreende?
Mizuki assentiu.
– Recuperei-as para lhas devolver – explicou a Sr.ª Sakaki. – As ditas placas foram-lhe roubadas e é por essa razão que tem dificuldade em lembrar-se do seu nome.
– Mas quem é que...?
– Quem é que entrou em sua casa e lhas roubou? E com que finalidade? – prosseguiu a Sr.ª Sakaki. – Em vez de ser eu a responder a isso, creio que o melhor é fazer essa pergunta directamente ao responsável.
– Quer dizer que a pessoa responsável por isso se encontra aqui?
– Naturalmente que sim. Capturámo-lo e apreendemos-lhe as placas de identificação. Repare, não fui eu que fiz isso pessoalmente, foram o meu marido e um dos seus empregados. Acho que cheguei a dizer-lhe que o meu marido era chefe de secção no departamento de obras públicas na prefeitura de Shinagawa.
Mizuki respondeu mecanicamente que sim com um aceno de cabeça.
– Nesse caso, que me diz a irmos ter com o culpado? Para o confrontar e dizer-lhe o que pensa, frente a frente?
Mizuki seguiu a Sr.ª Sakaki para fora do gabinete de aconselhamento e, lado a lado, percorreram o corredor e apanharam o elevador. Saíram na cave, atravessaram um longo corredor deserto até chegarem a uma porta. A Sr.ª Sakaki bateu, ouviu-se a voz de um homem a dizer «entre» e ela então abriu a porta.
Lá dentro estavam um homem alto, dos seus 50 anos, e um outro ainda maior, na casa dos 20, os dois vestidos com um uniforme verde-caqui. O mais velho tinha ao peito uma placa identificativa que dizia «Sakaki»; na placa do mais novo lia-se «Sakurada». Sakurada empunhava um chicote preto.
– Mizuki Ando, não é verdade? – perguntou o Sr. Sakaki. – O meu nome é Yoshio Sakaki e sou o marido de Tetsuko. Trabalho aqui como chefe do departamento de obras públicas. E este é o Senhor Sakurada, que trabalha comigo.
– Muito gosto – disse Mizuki.
– Ele tem dado muito trabalho? – perguntou a Sr.ª Sakaki ao marido.
– Não, parece ter-se conformado com a situação – informou ele. – Sakurada tem estado de olho nele durante toda a manhã, e tudo leva a crer que não tem havido problemas.
– Sim, ele tem estado calmo – atalhou Sakurada, parecendo desapontado. – Vinha preparado, para o caso de ele começar a ficar violento, mas pelos vistos tem-se comportado.
– Sakurada foi em tempos capitão da equipa de karaté da Universidade de Meiji. Estamos a falar de um jovem muito promissor – acrescentou Sakaki.
– Mas então quem é que foi responsável pelo arrombamento e por me ter roubado de casa as duas placas identificativas? – inquiriu Mizuki.
– Sim, por que é que não apresentam o malfeitor?
Existia outra porta ao fundo da sala. O Sr. Sakurada abriu-a e acendeu a luz no interruptor. Varreu rapidamente a sala com o olhar e virou-se para os outros:
– Não há problema. Podem vir.
O Sr. Sakaki foi o primeiro a entrar, seguido da esposa, com Mizuki a fechar o cortejo.
A divisão parecia uma espécie de sala de arrumos. Não tinha mobiliário, apenas uma cadeira, e nela estava sentado um macaco. Era grande para macaco – mais pequeno do que um humano adulto, mas maior do que um aluno dos primeiros anos de escola. Tinha o cabelo um bocado mais comprido do que era habitual ver nos primatas japoneses, aqui e ali salpicado de fios cinzentos. Era difícil dizer que idade teria, mas já não devia ser novo, isso era mais que certo. Tinha os braços e as pernas amarrados por uma corda fina à cadeira de madeira, e a comprida cauda a arrastar no chão. Quando Mizuki entrou na sala, o macaco disparou um olhar na direcção dela e voltou a pôr os olhos no chão.
– Um macaco? – exclamou Mizuki espantada.
– Exactamente – disse a Sr.ª Sakaki. – Quem roubou as placas do seu apartamento com os nomes inscritos foi um macaco.
«Não quero que apareça um macaco e que desapareça com ela enquanto eu estiver ausente», tinha dito Yuko. «Com que então, não se tratava de uma brincadeira», pensou Mizuki. Yuko sabia do que estava a falar. Sentiu um calafrio na espinha.
– Mas como é que...?
– Como é que descobri? – perguntou a Sr.ª Sakaki. – Como lhe disse da primeira vez que nos vimos, sou uma profissional. Tenho licença profissional e uma vasta experiência. Não se deve julgar as pessoas pelas aparências. Não pense que pelo facto de uma pessoa oferecer aconselhamento psicológico numa instituição oficial, isso a torna menos habilitada do que outra que desempenha as mesmas funções num prédio de luxo.
– Não, claro que não. O que acontece é que fiquei tão admirada que...
– Não se preocupe. Estou a meter-me consigo! – afirmou a Sr.ª Sakaki com uma gargalhada. – Para dizer a verdade, até eu própria acho que os meus métodos não são lá muito ortodoxos. Por isso é que ando sempre de candeias às avessas com tudo o que sejam organizações e academias. Prefiro mil vezes praticar o meu ofício num lugar destes. Até porque, tal como acabei de dizer, tenho uma maneira própria de fazer as coisas.
– Mas muito eficaz – acrescentou o marido.
– Quer então dizer que foi este macaco que roubou os cartões de identificação.
– Sim, ele penetrou no seu apartamento e roubou-lhe os cartões de dentro do armário. Aconteceu há cerca de um ano, mais ou menos na altura em que a Mizuki começou a esquecer-se do seu nome, lembra-se?
– Sim, deve ter sido por essa altura.
– Lamento muito – disse o macaco, abrindo a boca pela primeira vez. Falava em tom baixo, mas, ao mesmo tempo, dir-se-ia que a sua voz tinha uma certa musicalidade.
– Ele sabe falar – exclamou Mizuki, estupefacta.
– Pois sei – ripostou o macaco, sempre no mesmo tom. – E ainda tenho de pedir desculpa por outra coisa. Quando entrei em sua casa para roubar as placas identificativas, trouxe comigo duas bananas. Não era minha intenção trazer mais nada, mas estava cheio de fome e, apesar de saber que não devia, acabei por deitar a mão às bananas que estavam em cima da mesa. Tinham um aspecto tão apetitoso que era um desperdício não aproveitar.
– A lata deste indivíduo – disse o Sr. Sakurada, fazendo estalar o chicote preto nas mãos um par de vezes. – Sabe-se lá que mais terá ele surripiado. Quer que eu aperte com ele?
– Vamos com calma – disse o Sr. Sakaki. – Afinal, ele próprio confessou a história das bananas de sua livre e espontânea vontade. Além disso, não me parece ser um espécime violento. Não queremos embarcar num processo violento até estarmos devidamente informados. Se alguém nos serviços administrativos viesse a saber que tínhamos maltratado um animal no interior das instalações da prefeitura, ficávamos metidos num grande sarilho.
– Por que é que roubaste a chapa de identificação? – perguntou Mizuki ao macaco.
– É o que eu faço. Sou um macaco que rouba os nomes das pessoas – respondeu o macaco. – É uma doença como outra qualquer. Assim que vejo um nome à frente, tenho de ficar com ele. Nem todos os nomes, atenção. Agora, quando descubro um nome que me diz alguma coisa, sobretudo se for nome de gente, nesse caso tenho de me apropriar dele. Entro à socapa na casa das pessoas e roubo esse género de nomes. Bem sei que está errado, mas a verdade é que não me consigo controlar.
– Foste tu que tentaste assaltar o nosso dormitório a fim de roubar a placa identificativa com o nome de Yuko?
– Correcto. É preciso ver que eu estava apaixonado e totalmente apanhado pela Menina Matsunaka. Nem antes nem depois voltei alguma vez a sentir-me tão atraído por alguém na minha vida. Contudo, atendendo à minha condição de macaco, não consegui lograr os meus intentos, por isso decidi que tinha pelo menos de me apropriar do nome dela, desse lá por onde desse. O simples facto de possuir o nome dela já seria suficiente para satisfazer o meu desejo. Que mais pode um macaco querer? Porém, antes que eu pudesse levar o meu plano por diante, ela morreu.
– Estiveste de alguma forma implicado no suicídio de Yuko?
– Não – respondeu o macaco, abanando a cabeça com veemência. – Não tive rigorosamente nada que ver com isso. Ela encontrava-se à mercê de uma escuridão interior e nada nem ninguém poderia tê-la salvado.
– E como é que sabias que, ao fim de todos estes anos, a placa identificativa com o nome dela estava na minha posse?
– A coisa demorou o seu tempo a descobrir. Pouco depois de a Menina Matsunaka ter morrido, ainda tentei deitar a mão à placa identificativa, mas acontece que entretanto tinha desaparecido, e ninguém sabia onde poderia estar. Dei cabo do canastro a procurar por toda a parte, mas, apesar dos meus esforços, não a consegui encontrar em parte alguma. Nunca me passou pela cabeça que a Menina Matsunaka se lembrasse de a deixar contigo, uma vez que não eram assim tão amigas quanto isso.
– Bate certo – confirmou Mizuki.
– Um dia, porém, num momento de inspiração, fez-se luz e passou-me pela cabeça que ela talvez – apenas talvez – pudesse ter deixado ficar a placa contigo. Aconteceu isto na Primavera do ano passado. Demorei um bom bocado a encontrar-lhe o rasto, e foi nessa altura que fiquei a saber que tinhas casado entretanto, e que a partir daí adoptaras o nome de Mizuki Ando e habitavas em Shinagawa. Como deves imaginar, não é fácil a um macaco levar por diante uma investigação deste tipo. Em todo o caso, foi assim que acabei por entrar no teu apartamento a fim de roubar a dita placa.
– Mas por que é que também roubaste a minha placa de identificação, e não levaste contigo apenas a de Yuko? Olha que o teu gesto me causou muitas maçadas. Até do meu próprio nome me esqueci.
–Tenho realmente muita pena – afirmou o macaco, baixando a cabeça envergonhado. – Quando me aparece à frente um nome de que gosto, não tenho outro remédio senão deitar-lhe a mão e ficar com ele. Acredita que se torna embaraçoso para mim confessar-te isto, mas o teu nome mexeu com o meu pobre coração, e não foi pouco. Tal como já disse antes, trata-se de uma doença que eu tenho. Sou acometido por impulsos que não consigo controlar. Sei perfeitamente que não devo fazer aquilo, mas faço-o na mesma. Lamento sinceramente todos os problemas que te causei.
– Este macaco andava escondido no meio dos esgotos, em plano bairro de Shinagawa – disse a Sr.ª Sakaki –, por isso pedi ao meu marido que pegasse nos seus colegas mais novos e tratasse de o apanhar. Calhou bem, visto ele ser chefe do departamento das Obras Públicas e ter a seu cargo a rede de esgotos.
– Foi aqui o jovem Sakurada que realizou grande parte do trabalho – acrescentou o Sr. Sakaki.
– O departamento de Obras Públicas agora tem de se reunir e apurar de quem é a responsabilidade pelo facto de os nossos esgotos esconderem uma figura dúbia como esta – afirmou Sakurada orgulhosamente. – Pelo que tudo indica, o macaco tinha arranjado uma verdadeira base de operações por baixo de Takanawa, e era dali que partia para os actos de pilhagem um pouco por toda a cidade de Tóquio.
– Numa cidade grande como a nossa, não são muitos os lugares onde se possa viver – observou o macaco. – Existem tão poucas árvores que é raro encontrar um sítio onde haja sombra durante o dia. Se andarmos à superfície, as pessoas organizam-se em grupos e começam à nossa procura. As crianças atiram-nos coisas ou então põem-se a disparar com armas a fingir. Cães enormes andam à nossa cata. Se pararmos para descansar no cimo de uma árvore, aparecem logo as equipas de exterior das televisões e encandeiam-nos com os focos de luz intensos dos seus projectores. Nunca nos dão tréguas, daí que tenhamos de andar escondidos debaixo de terra. Peço que me perdoem.
– Mas como é que sabia que o macaco estava escondido nos esgotos? – perguntou Mizuki à Sr.ª Sakaki.
– Nos últimos dois meses, ao longo das conversas que fomos tendo, houve muitas coisas que se foram tornando claras aos meus olhos, como acontece quando o nevoeiro de repente começa a levantar – explicou a Sr.ª Sakaki. – Tomei consciência de que havia alguém ou alguma coisa que andava a roubar os nomes das pessoas, e que, fosse o que fosse, só podia estar escondido aqui por perto, algures debaixo de terra. E é preciso ver que, quando falamos de uma cidade, as possibilidades ficam naturalmente reduzidas: só podia ser no metropolitano ou nos esgotos. Foi então que contei tudo ao meu marido e lhe disse que, a meu ver, andava uma criatura, e não um ser humano, a viver nos esgotos, ao mesmo tempo que lhe pedia que procedesse a uma busca. E, na realidade, eles vieram a descobrir este macaco.
Mizuki ficou sem palavras por longos minutos.
– E a senhora percebeu tudo isso através das histórias que eu lhe contava?
–Talvez não seja da minha competência dizer o que vou dizer a seguir – interrompeu o Sr. Sakaki –, mas a minha esposa é uma pessoa muito especial, dotada de poderes pouco vulgares. Foram muitas as vezes, no decorrer dos nossos vinte e dois anos de casados, que me foi dado observar as coisas mais espantosas. Por isso é que me desunhei até conseguir que ela inaugurasse o seu centro de aconselhamento aqui nas instalações da prefeitura. Sabia à partida que, a partir do momento em que ela tivesse um lugar onde pudesse pôr as suas capacidades em prática, os residentes de Shinagawa iriam ser os primeiros a beneficiar. Daí que me congratule com o facto de ela ter resolvido todo este mistério. Devo mesmo confessar que me sinto aliviado.
– O que é que vai acontecer ao macaco? – quis saber Mizuki.
– Não o podemos deixar vivo – afirmou Sakurada com indiferença. – Diga ele o que disser, a partir do momento em que esta raça adquire maus hábitos, não tardará muito que os seus elementos voltem ao mesmo, podem tirar o cavalinho da chuva. Por isso, digo: vamos acabar com ele. É o melhor a fazer. Atirem-lhe com uma mangueirada de desinfectante em cima do bucho e acaba-se com a coisa em dois tempos.
– Aguente aí os cavalos – refreou o Sr. Sakaki. – Caso se viesse a saber que nós, fosse por que razão fosse, tínhamos liquidado um macaco, surgiriam de imediato protestos vindos de toda a parte e caíam-nos logo em cima os grupos defensores dos direitos dos animais. Entravam com uma queixa junto das instâncias oficiais e tínhamos de pagar. Podem apostar que arranjávamos sarilho dos antigos. Lembram-se do que aconteceu quando matámos aqueles corvos todos, a gritaria e a confusão generalizada que aquilo deu? Pois bem, gostaria de evitar a repetição de tal desmando.
– Não me matem, peço-vos – rogou o macaco feito prisioneiro, curvando a cabeça quase até ao chão. – Sei que o que fiz estava errado. Tenho consciência disso. Causei aos homens muitos problemas. Não quero com isto pôr em causa a vossa decisão, mas sempre digo que dos meus actos também resultou algo de bom.
– E que benesse poderia resultar, do facto de teres andado a roubar os nomes das pessoas? Explica-te de uma vez por todas – disse o Sr. Sakaki num tom cortante.
– É certo que roubo o nome às pessoas, não contesto isso. Ao fazer isso, porém, mostro-me capaz de remover alguns dos elementos negativos associados a esses nomes. Não é para me gabar, mas, se na altura me tivesse sido dada a oportunidade de roubar o nome de Yuko Matsunaka, poderia muito bem ter acontecido que ela não se tivesse matado.
– Por que é que diz isso?
– Se eu conseguisse roubar-lhe o nome, poderia, quem sabe, ter afastado alguma da escuridão que se escondia dentro dela – disse o macaco.
– Ao mesmo tempo que lhe tirava o nome, aliviava-a da escuridão e devolvia-a ao mundo subterrâneo.
– Essa história é demasiado conveniente, a mim não me convence – afirmou Sakurada. – É bom não esquecer que este macaco tem a vida em jogo; por isso, como é óbvio, trata de recorrer a todos os truques de que é capaz a fim de explicar as suas acções.
– Não obrigatoriamente – interveio a Sr.ª Sakaki, cruzando os braços e reflectindo. – Ele tem uma certa razão. – Depois, virando-se para o macaco, perguntou-lhe: – Quando tu roubas os nomes às pessoas, levas os bons e os maus?
– Isso mesmo – respondeu o macaco. – Não tenho escolha possível. Caso haja coisas más associadas a um determinado nome, nós, macacos, não temos outro remédio senão aceitar também isso. Ficamos com tudo por atacado, como é bom de ver. Por favor, não me mate, peço-lhe encarecidamente. Não passo de um pobre macaco, sem emenda, mas sem querer posso ter-vos feito um favor.
– Muito bem... e não me queres dizer quais as coisas más a que o meu nome estava associado?
– Prefiro não dizer à frente da senhora – confessou o macaco. – Por favor, diz-me – insistiu Mizuki. – Se me disseres, perdoo-te. E peço aos aqui presentes que façam o mesmo.
– Estás a falar a sério?
– Se este macaco me contar a verdade, concede-lhe perdão? – perguntou Mizuki à Sr.ª Sakaki. – Ele não é mau por natureza, e já amargou bastante. Proponho que escutemos o que ele tem para dizer e, depois, podem levá-lo até ao cimo do monte Takao 46 ou sítio parecido e deixam-no à solta. Se isso acontecer, não creio que ele volte a reincidir. Que lhes parece?
– Pela minha parte, não ponho objecções, desde que os outros também se manifestem a favor – opinou o Sr. Sakaki. Depois voltou-se para o macaco: – Tu! Se te levarmos até às terras altas e te deixarmos partir em liberdade, prometes nunca mais regressar a Tóquio nem ultrapassar os limites da cidade?
– Sim, senhor chefe de secção. Juro que nunca mais cá porei os pés – prometeu o macaco, com uma expressão humilde. – Nunca mais me hão-de apanhar a vaguear junto das sarjetas. Já não sou novo, por isso esta é uma boa oportunidade para começar de novo.
– Só para que não restem dúvidas, por que é não o marcamos com ferro em brasa no traseiro, a fim de o podermos sempre identificar? – alvitrou Sakurada. – Acho que temos para aí um ferro de soldar com o selo oficial de Shinagawa.
– Por favor, não façam isso! – implorou o macaco, com os olhos cheios de lágrimas. – Se me marcarem com um sinal distinto, os outros macacos votar-me-ão ao ostracismo. Estou disposto a abrir-vos o meu coração e a contar tudo o que sei, mas, por favor, não me marquem com ferro quente.
– Bom, vamos esquecer essa ideia do ferro de marcar gado – disse o Sr. Sakaki, tentando mostrar-se conciliador. – Além do mais, se utilizássemos o selo oficial de Shinagawa, mais tarde teríamos de responder por isso.
– Temo bem que tenha razão – referiu Sakurada, desapontado. – Muito bem, nesse caso, por que é que não começas por me dizer quais as coisas más que se prendem ao meu nome? – perguntou
Mizuki, olhando para os olhinhos vermelhos do macaco bem de frente. – Se te disser, corro o risco de te magoar.
– Não importa. Desembucha.
Durante o tempo que o macaco demorou a pensar naquilo, rugas profundas formaram-se na sua testa.
– Se calhar era melhor continuares na ignorância.
– Já te disse que não faz mal. Preciso mesmo de saber.
– Muito bem – disse o macaco. – Nesse caso, vou dizer o que sei. A tua mãe não gosta de ti. Nunca teve amor por ti, nunca, desde que nasceste. Ela mandou-te estudar para uma escola longe de Yokohama porque queria ver-se livre de ti. Tanto a tua mãe como a tua irmã só pensavam em manter-te afastada, tão longe quanto possível. O teu pai não é má pessoa, mas não tem aquilo a que se pode chamar uma personalidade forte, razão pela qual nada pôde fazer por ti. Pelas razões apontadas, desde pequenina que nunca recebeste o amor que te era devido. Julgo, de resto, que terás tido percepção disto, mas escolheste fechar os olhos, encerrar esta dolorosa realidade num pequeno lugar escuro, no fundo do teu coração, e colocar uma tampa por cima, tentando não pensar muito no assunto. Esforçando-te por suprimir quaisquer sentimentos negativos. Essa atitude defensiva acabou por se tornar parte integrante de ti. Por tudo isso, nunca foste capaz de amar alguém profundamente, incondicionalmente.
Mizuki continuou em silêncio.
– À primeira vista, dir-se-ia que a tua vida de mulher casada corre sobre rodas e sem acidentes de percurso. E talvez até estejas convencida disso. A verdade, porém, é que não sentes pelo teu marido verdadeiro amor. Tenho razão? Mesmo que tivesses um filho, isso não iria alterar nada e as coisas continuariam na mesma.
Mizuki não disse uma palavra. Deixou-se deslizar até ao chão e fechou os olhos. Todo o seu corpo parecia à beira de desmoronar. A sua pele, as suas entranhas, os seus ossos, tudo parecia prestes a fragmentar-se. A única coisa que ouvia era o som da sua própria respiração.
– É preciso descaramento, um macaco arrogar-se o direito de falar assim – grunhiu Sakurada, abanando a cabeça. – Chefe, não aguento mais. Vamos dar-lhe um enxerto de porrada.
– Esperem aí – pediu Mizuki. – O que o macaco acabou de dizer não é mentira nenhuma. Sei-o desde há muito, mas sempre procurei fugir à verdade. Sempre preferi fechar os olhos, tapar os ouvidos. O macaco diz a verdade, por isso merece ser perdoado. Levem-nos até às montanhas e deixem-no partir em liberdade.
Tetsuko Sakaki pousou docemente a mão no ombro de Mizuki.
–Tem a certeza de que é isso que quer?
– Sim, desde que recupere o meu nome. Só isso me importa.
A partir de agora, faço tenções de viver e de tirar partido de tudo o que me rodeia. E o meu nome faz parte integrante da minha vida.
A Sr.ª Sakaki virou-se para o marido.
– Querido, que me dizes a pegar no carro no próximo fim-de-semana e a irmos dar um passeio até ao monte Takao, aproveitando nessa altura para soltar o macaco?
– Não vejo qualquer problema nisso – retorquiu o Sr. Sakaki. – Vem mesmo a calhar, sempre podemos testar a resistência do carro que acabámos de comprar.
– Fico-vos eternamente grato. Nem sei como vos posso agradecer – confessou o macaco.
– Não enjoa, pois não? – perguntou a Sr.ª Sakaki ao macaco.
– Não se preocupem – retorquiu o macaco. – Prometo não vomitar nem urinar nos estofos novos do carro. Vou portar-me como um senhor e nunca mais ninguém terá razões de queixa da minha pessoa.
Quando Mizuki estava a dizer adeus ao macaco, passou-lhe para a mão a placa de identificação de Yuko Matsunaka.
– Deves ser tu a ficar com isto, e não eu – disse ela. – Gostavas muito de Yuko, não gostavas?
– Sim, gostava.
– Nesse caso, vela pelo seu nome. E não deixes que ninguém o roube.
– Vou honrar o nome de Yuko. E não voltarei a roubar, prometo – afirmou o macaco com uma expressão séria.
– Só gostava de saber por que razão Yuko foi ter comigo e me confiou a placa com a sua identificação. Por que carga de água me escolheu?
– Não sei responder a isso – confessou o macaco. – Mas sei que por causa disso nos encontrámos e pudemos chegar à fala e conversar um com o outro. Por um mero capricho do destino, quem sabe?
– Provavelmente – concordou Mizuki.
– Ficaste magoada com as minhas palavras?
– Fiquei – confessou Mizuki. – E muito.
–Tenho muita pena. Preferia não o ter feito.
– Não faz mal. No fundo, acho que já sabia. Mais cedo ou mais tarde, tinha de enfrentar a verdade.
– Fico aliviado ao ouvir isso – afirmou o macaco.
– Adeus – disse Mizuki. – O mais provável é nunca mais nos voltarmos a encontrar.
– Toma bem conta de ti – recomendou o macaco. – E obrigado por salvares a vida de um ser da minha espécie.
–Aconselho-te a nunca mais mostrares o focinho em Shinagawa e arredores – ameaçou Sakurada, fazendo estalar o chicote na palma da sua mão. – Desta vez, safaste-te, porque foi essa a vontade de quem manda, mas se torno alguma vez a apanhar-te por estas bandas, vais desejar ter morrido.
O macaco sabia que não se tratava de uma ameaça vã.
– Bom, como é que vamos fazer no próximo fim-de-semana? – perguntou a Sr.ª Sakaki, depois de ter regressado na companhia de Mizuki ao centro de aconselhamento. – Ainda continua a precisar dos meus conselhos?
Mizuki abanou a cabeça.
– Não. Agradeço-lhe, mas estou em crer que os meus problemas ficaram resolvidos. Estou imensamente agradecida por tudo o que a senhora fez por mim.
– Não quer aproveitar para falar acerca das coisas que o macaco lhe disse?
– Não, prefiro ser eu própria a tratar disso. É uma coisa que exige muita reflexão da minha parte.
A Sr.ª Sakaki concordou com um gesto de cabeça.
– Vai ver que é capaz. Basta que se esforce a sério e tenho a certeza de que será capaz de crescer e ficar mais forte.
– Mas se por acaso isso não se verificar, posso ir ter de novo consigo e contar com a sua ajuda?
– Naturalmente – disse a Sr.ª Sakaki. Um grande sorriso espalhou-se o seu rosto. – Podemos sempre ir apanhar qualquer coisa juntas.
Apertaram as mãos e despediram-se.
Ao chegar a casa, Mizuki pegou na placa de identificação com o nome «Mizuki Okawa» escrito e na pulseira que tinha gravado «Mizuki (Okawa) Ando», meteu as duas coisas dentro de um vulgaríssimo sobrescrito castanho e, por seu turno, guardou tudo dentro da caixa de cartão, no seu armário. Finalmente, recuperara o seu nome e estava em condições de retomar a vida normal. Podia ser que as coisas corressem bem. E, daí, também podia ser que não. Em todo o caso, o que interessava era que agora ela tinha um nome, um nome que lhe pertencia, que era só seu e de mais ninguém.
42 Os nomes e apelidos japoneses costumam ser escritos em kanji (caracteres chineses). Porém, alguns nomes femininos podem também ser escritos em katakana, que, juntamente com o silabário hiragana e os caracteres chineses, compõem a escrita japonesa. (N. da T.)
43 Acrescentado ao nome, san significa senhor ou senhora; no caso dos bebés e dasr aparigas, usa-se chon, e no dos rapazes, kun. (N. da T.)
44 Comboio-bala é o termo que os Ocidentais usam para designar a rede de comboios de alta velocidade no Japão. (N. da T.)
45 Chamam-se ryokan e ficam muitas vezes situadas nas imediações de uma fonte termal, cuja água é utilizada pelos clientes para se banharem. (N. da T.)
46 A dois passos de Tóquio, com o Fuji ao fundo, faz parte integrante da paisagem (e dos cartões-postais). A par da vista, espectacular, tem um altar xintoísta com um espelho: a pessoa que reza vê-se reflectida no momento de recolhimento. (N. da T.)