TRAGÉDIA MINEIRA EM NOVA IORQUE

 

 

 

 

 

 

 

 

Conheço um homem que tem o hábito de se pôr a caminho do jardim zoológico sempre que se registam ameaças de tufão. Vai para dez anos que anda nisto. Numa altura em que as pessoas quase todas se apressam a fechar as persianas e correm a abastecer-se de grandes provisões de água mineral, ou se afadigam em torno dos aparelhos de rádio e das lanternas para verificar se está tudo a trabalhar, o meu amigo embrulha-se num corta-vento comprado numa loja de excedentes do exército norte-americano ao tempo da guerra do Vietname, enfia duas ou três latas de cerveja nos bolsos e faz-se à estrada. É preciso dizer que a casa dele fica a cinco minutos a pé do jardim zoológico.

Quando tem azar, encontra o jardim zoológico fechado – «devido ao mau tempo» – e os portões encerrados. Nesse caso, o meu amigo procura assento na base da estátua de pedra que representa um esquilo e ali fica a beber a sua cerveja morna até serem horas de voltar para casa.

Quando está com sorte e chega a tempo de encontrar os portões abertos, paga o bilhete de entrada, acende um cigarro amolecido pela humidade e passa revista aos animais, um a um. Na sua maioria, encontram-se recolhidos no fundo das respectivas jaulas. Alguns olham fixamente a chuva que cai. Também há os mais nervosos, que não param sossegados, sempre aos saltos de um lado para o outro, à medida que as rajadas de vento se fazem sentir. Outros, ainda, mostram-se aterrorizados pela queda repentina da pressão atmosférica. Sem esquecer aqueles que dão livre curso à sua fúria sanguinária.

O meu amigo faz questão de beber sempre a primeira cerveja defronte da jaula do tigre de Bengala. (É sabido que os tigres de Bengala reagem sempre com inusitada violência às tempestades.) A segunda, bebe-a à vista dos gorilas. Parece que os gorilas só muito raramente se deixam perturbar pela força dos tufões. Limitam-se a olhar para ele, ali sentado placidamente, como uma sereia na sua placa de cimento, a beber a sua cerveja, e uma pessoa quase é tentada a dizer que sentem por ele uma certa pena.

«É como ser apanhado dentro de um elevador que se avaria juntamente com uma quantidade de desconhecidos», costuma dizer o meu amigo.

Tirando a história dos tufões, o meu amigo é uma pessoa perfeitamente normal e igual a tantas outras. Trabalha para uma empresa de exportação e tem a seu cargo o departamento de investimentos estrangeiros. Não estamos a falar de uma firma de primeiro plano, mas ainda assim é uma empresa bastante sólida. Ele mora sozinho num apartamento pequeno e simpático e troca de namorada de seis em seis meses (e, atenção, quando digo seis meses são mesmo seis meses certos). Não sei se sou capaz de vos dizer porquê. As miúdas são todas parecidas umas com as outras, quase se poderia falar em perfeitos clones. Pelo menos eu, e falo por mim, nunca sou capaz de as distinguir.

O meu amigo é dono de um pequeno carro utilitário, possui a obra completa de Balzac, um fato preto, uma gravata preta e um par de sapatos pretos que são perfeitos para ir a funerais. Sempre que morre alguém, ligo para ele e peço-lhe que me empreste o fardamento completo, apesar de os sapatos serem um número acima do meu.

– Desculpa voltar a incomodar-te – disse-lhe eu da última vez que entrei em contacto com ele. – Tenho outro funeral.

– À vontade – retorquiu ele. – Imagino que estejas apertado de tempo. Não queres aparecer cá em casa para vir buscar as coisas?

Quando lá cheguei, o fato e a gravata encontravam-se em cima da mesa, muito bem passados a ferro, os sapatos tinham sido engraxados e o frigorífico estava a abarrotar de cerveja importada. Isto é só para verem o género de pessoa que ele é.

– No outro dia, vi um gato no jardim zoológico – disse ele, ao mesmo tempo que abria uma lata de cerveja.

– Um gato?

– Sim, aconteceu há coisa de duas semanas. Tive de me deslocar a Hokkaido em viagem de negócios e aproveitei para fazer uma visitinha a um jardim zoológico que ficava ao pé do hotel. Havia lá um gato que estava a dormir dentro de uma jaula com um letreiro a dizer «Gato».

– Que espécie de gato?

– Um gato vulgaríssimo, com malhas castanhas e cauda curta, como há para aí aos pontapés. A única coisa era o facto de ser incrivelmente gordo. Estava deitado de lado, todo enroscado, a dormitar.

– Se calhar em Hokkaido5 os gatos são uma raridade.

– Deves estar a gozar, não? – disse ele, fazendo cara de espanto. – Em Hokkaido há gatos a dar com um pau. Não acredito que seja uma coisa assim tão rara quanto isso.

– Nesse caso, analisa a questão por outro ângulo: por que é que não há-de haver gatos num jardim zoológico? – perguntei eu. – Que eu saiba, também são animais, não é verdade?

– É aí que chegamos à parte mais corriqueira na história. Afinal, não pode haver animais mais vulgares do que os gatos e os cães. Quem é que estaria disposto a pagar para os ver? – perguntou ele. – Basta que olhes, que eles estão à tua volta. Acontece o mesmo com as pessoas.

Quando acabámos a embalagem de seis cervejas, peguei no fato, na gravata e nos sapatos e enfiei tudo dentro de um saco de papel.

– Desculpa passar a vida a chatear-te com isto – disse eu. – Bem sei que por esta altura já deveria ter comprado o meu próprio fato, mas passo a vida a adiar. Dá-me a impressão de que comprar propositadamente roupa para ir a um funeral equivale, de certa maneira, a dar o meu aval à morte de outra pessoa qualquer.

– Não te preocupes com isso – disse ele. – São tudo coisas que eu praticamente nunca visto. Sempre faz mais sentido ter alguém que lhes dê uso do que estarem enfiadas no fundo do roupeiro, não te parece?

Verdade seja dita que, durante aqueles três anos desde que tinha o fato, ele quase nunca tivera oportunidade de o vestir.

– Não deixa de ser estranho, mas, a partir do momento em que comprei o fato, nunca mais soube de ninguém que tivesse morrido – referiu ele.

– As coisas são mesmo assim.

– Pois são – concordou ele.

 

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No meu caso, podia dizer-se que era o ano de todos os funerais. Entre amigos da altura e amigos de outros tempos, as mortes sucediam-se umas às outras, como espigas de milho definhando em tempo de seca. Tinha vinte e oito anos. Os meus amigos andavam quase todos pela mesma idade – vinte e sete, vinte e oito, vinte e nove. Não tinham idade para morrer.

Pode acontecer que um poeta morra aos vinte e um anos, um revolucionário ou uma vedeta do rock’n’roll pode morrer quando tiver vinte e quatro, mas depois disso parte-se do princípio de que vai tudo seguir o devido curso. Uma vez ultrapassada a lendária e fatídica Curva da Morte, é de esperar que esteja à vista o fim do escuro túnel e que uma pessoa se imagine a percorrer uma auto-estrada de seis pistas, rumo ao seu destino (quer se queira quer não). Cortamos o cabelo e fazemos a barba todas as manhãs. A fase em que éramos poetas, revolucionários, estrelas do rock and roll ficou para trás. Já não temos idade para nos deixarmos dormir, podre de bêbados, à porta de uma cabina telefónica nem de ouvir os Doors aos berros às quatro da matina. Em vez disso, compramos seguros a um conhecido que trabalha numa seguradora, tomamos a nossa bebida em barzinhos de hotéis e juntamos todas as contas do dentista para efeitos de redução nos impostos. Quando se tem vinte e oito anos, é normal.

Acontece, porém, que é precisamente nessa idade que o inesperado massacre começa, parecido com um ataque de surpresa num início de Primavera envergonhada. Como se alguém, colocado estrategicamente no cimo de uma montanha metafísica, empunhando uma metafísica metralhadora, desatasse a disparar sobre nós. Num minuto estávamos a mudar de roupa, e no minuto seguinte a roupa deixou de nos servir. As mangas estavam viradas para fora, e tínhamos uma perna enfiada numas calças e a outra perna num par diferente. Uma perfeita confusão.

No fim de contas, a Morte é isso mesmo. Um coelho é um coelho, quer saia de dentro de um chapéu ou salte de um campo de trigo. Um fogão quente é um fogão quente, e o fumo preto que sai de uma chaminé não passa disso mesmo – fumo preto a sair de uma chaminé.

A primeira pessoa que vi dar um passo no sentido de ultrapassar o profundo abismo entre realidade e não-realidade (ou não-realidade e realidade) foi um amigo da universidade que dava aulas de Inglês no ensino secundário. Estava casado há três anos e a mulher tinha regressado a casa dos pais, em Shikoku, a fim de dar à luz o filho do casal.

Certa tarde de um domingo de Janeiro invulgarmente quente, ele entrou num armazém para comprar duas embalagens de creme para a barba e uma navalha alemã que, a julgar pelo tamanho, daria para decepar a orelha de um elefante. Depois, voltou para casa e pôs um banho a correr. A seguir foi ao frigorífico buscar gelo, esvaziou uma garrafa de uísque escocês, meteu-se na banheira e cortou os pulsos. O corpo foi encontrado pela mãe dele, passados dois dias. A Polícia pôs-se em campo e foi lá a casa tirar uma quantidade de fotografias. A água do banho estava vermelha, da cor do tomate, por causa do sangue. A Polícia arquivou o caso como suicídio. Vendo bem, as portas estavam todas fechadas à chave por dentro, além de que tinha sido o próprio defunto a comprar a navalha da barba. Nesse caso, por que motivo teria ele comprado o creme de barbear que não fazia tenções de usar? Duas embalagens, ainda por cima. Isso ninguém sabia explicar.

 

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Talvez ele não tivesse sequer imaginado, na altura em que se encontrava na loja, que daí a algumas horas estaria morto. Ou então teve medo que o empregado pudesse pensar que ele ia matar-se.

Não deixou testamento nem bilhete de despedida. Em cima da mesa da cozinha ficaram apenas um copo, a garrafa de uísque vazia e o balde do gelo, sem esquecer as duas embalagens de espuma de barbear. Enquanto esperava que a banheira enchesse, foi aviando um copo de Haig atrás do outro, a dada altura o seu olhar deve ter recaído sobre as ditas embalagens e quem sabe se ele não terá pensado qualquer coisa como «a partir de agora nunca mais terei de fazer a barba».

A morte de um homem aos vinte e oito anos é triste como a chuva no Inverno.

 

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Durante os doze meses seguintes, registaram-se mais quatro mortes.

Uma dessas pessoas faleceu em Março, num acidente num campo petrolífero na Arábia Saudita, e duas delas morreram no mês de Junho, uma vitimada por um ataque de coração e a outra num acidente de viação. De Julho a Novembro, viveram-se dias de paz, até que em Dezembro foi a vez de morrer outra pessoa das minhas relações, também num desastre de automóvel.

Ao contrário do meu primeiro amigo, que tirara a sua própria vida, os restantes não tiveram tempo para se aperceber de que iam morrer. No caso deles, foi como subir uma escada por onde já tinham subido mil vezes e de repente falhar um degrau.

– Importas-te de seres tu a fazer a cama? – tinha perguntado à mulher o meu amigo que morreu em Junho de ataque cardíaco. Era desenhador de móveis de profissão. A cena passou-se às onze da manhã. Ele levantara-se por volta das nove, estivera a trabalhar durante um bocado no seu quarto, e depois tinha dito que se sentia cansado. Foi até à cozinha fazer café e bebeu uma chávena, mas o café não surtiu efeito. «Acho que me vou deitar um bocadinho», disse ele. «Estou sempre a ouvir um zumbido esquisito na parte de trás da cabeça.» Foram as suas últimas palavras. Enroscou-se na cama, adormeceu e nunca mais acordou.

Quanto à pessoa que morreu em Dezembro, era a mais nova de todas, e a única mulher do grupo. Tinha vinte e quatro anos, como qualquer revolucionário ou músico conhecido de rock que se preze. Numa noite fria e chuvosa, a poucos dias do Natal, ficou esmagada no espaço trágico (que existir, existe) entre um camião de cervejas e um poste de cimento.

 

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Uns dias mais tarde, já depois do funeral, apareci no apartamento do meu amigo a fim de lhe devolver o fato, que tinha ido levantar à tinturaria, e também para lhe oferecer uma garrafa de uísque.

– Muito agradecido. Tens sido de uma grande ajuda – disse eu.

Para não variar, o frigorífico dele estava a abarrotar de cerveja bem fresca, e um raio de sol tímido entrava pela janela e derramava-se sobre o seu confortável sofá. Em cima da mesinha de café havia um cinzeiro limpo e um vaso com estrelas-de-natal. Com gestos lentos, fazendo lembrar um urso a sair do período de hibernação, o meu amigo tirou-me das mãos o fato, ainda metido dentro da cobertura de plástico, e guardou-o sem pressas no armário.

– Espero que o fato não venha ainda a cheirar a funeral – observei.

– A roupa não tem importância. O que interessa é o que está lá dentro.

– A-hã – murmurei.

– Este ano tens tido funerais que nunca mais acabam – comentou ele, estendendo-se no sofá e deitando a cerveja para um copo. – Quantos, ao todo?

– Cinco – respondi, esticando os dedos da mão esquerda. – Mas parou aí.

– Tens a certeza?

– Já chega de mortes.

– É como na história da maldição das pirâmides ou coisa que o valha – continuou ele. – Lembro-me de ter lido qualquer coisa acerca disso. A maldição só acaba quando tiver morrido um determinado número de pessoas. Ou é isso ou até que uma estrela vermelha apareça no céu ou a sombra da Lua se projecte sobre o Sol.

Depois de termos emborcado a embalagem de seis cervejas, passámos para o uísque. A luz suave do Sol de Inverno infiltrou-se de mansinho na divisão onde nos encontrávamos.

– Noto-te um bocado abatido por estes dias – observou ele.

– Achas? – disse eu.

– Deve ser por andares a pensar demasiado nas coisas pela noite dentro – adiantou ele. – Pela parte que me toca, deixei de pensar quando cai a noite.

– Como é que consegues?

– Assim que começo a sentir-me deprimido, desato a fazer limpezas. Nem que sejam duas ou três da manhã, ponho-me a lavar pratos. Limpo o fogão, passo um pano pelo chão, ponho os panos da loiça em lixívia, organizo as gavetas da minha secretária, passo a ferro todas as camisas que há para engomar – referiu ele, ao mesmo tempo que agitava o gelo da sua bebida com o dedo. – Entretenho-me com isso até já não poder mais de cansaço, depois tomo uma bebida e vou dormir. De manhã, acordo, levanto-me e, quando chega a altura de calçar as meias, nem sequer me lembro de nada.

Voltei a passar revista à sala. Como de costume, estava tudo impecavelmente limpo e arrumado.

– Às três da manhã, passa tudo e mais alguma coisa pela cabeça das pessoas. Acontece aos melhores. Daí que cada um de nós se veja na necessidade de encontrar a sua própria maneira de lutar contra isso.

– É muito possível que tenhas razão – comentei.

– Até os animais começam a ruminar nas coisas às três da madrugada – acrescentou ele, com todo o ar de quem se tinha acabado de lembrar de uma coisa. – Alguma vez foste ao jardim zoológico por volta das três da manhã?

– Não – respondi distraído. – Não, obviamente que não.

– Pois eu já experimentei uma vez. Tenho um amigo que trabalha no jardim zoológico e pedi-lhe para me deixar entrar quando ele estivesse a fazer o turno da noite. Não sei se sabes, mas é proibido. – Ao dizer aquilo, agitou o copo. – Foi uma experiência muito estranha. Não sei explicar bem, mas tive a sensação de que o chão se abrira abruptamente e que havia qualquer coisa a trepar para sair daquele buraco. E depois foi como se aquela coisa invisível desatasse a esbracejar no meio das trevas. Parecia que o ar frio da noite tinha coagulado. Não vi, mas senti, e os animais também sentiram o mesmo. Aquilo deu-me que pensar, recordando-me que o chão que pisamos vai direito até ao centro da terra, e, de repente, tornou-se claro para mim que o coração da terra é responsável por sugar uma incrível quantidade de tempo.

Fiquei calado.

– Isto para te dizer que nunca mais quero repetir a experiência. Quero dizer, ir até ao jardim zoológico, a coberto da noite.

– Preferias um tufão?

– Sem dúvida que sim – disse ele. – Mil vezes.

 

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O telefone tocou entretanto e ele foi atender a chamada no quarto. Era a interminável chamada da ordem feita por uma clone da sua namorada. A minha vontade era dizer-lhe que eu ia andando para casa, mas a verdade é que não havia maneira de ele largar o telefone. Às tantas, desisti de esperar e liguei o televisor. Era um aparelho a cores de 27 polegadas, daqueles que mal é preciso tocar no controlo remoto para mudar de canal. O aparelho de televisão estava ligado a seis colunas e tinha um som fora de série. Nunca na minha vida tinha visto um televisor assim tão espectacular.

Fiz a ronda por todos os canais, isto por duas vezes, antes de me decidir por um canal de notícias. Confrontos na fronteira, um fogo, a dança das taxas de juro para cima e para baixo, novos limites à importação de carros, um encontro de natação realizado ao ar livre no Inverno, um suicídio colectivo por parte de membros da mesma família. Todas aquelas notícias pareciam ter, de certa forma, ligação umas às outras, como um grupo de pessoas reunidas para uma fotografia de fim de curso.

– Alguma coisa de jeito? – perguntou o meu amigo, de regresso à sala.

– Nem por isso – respondi.

– Vês muita televisão?

Abanei a cabeça.

– Não tenho televisão em casa.

– Uma coisa boa a televisão tem – afiançou ele depois de reflectir sobre o assunto. – Uma pessoa pode desligá-la sempre que lhe apetecer, que ninguém se queixa.

Ele próprio pegou no controlo remoto e desligou o televisor. Acto contínuo, a imagem desapareceu do ecrã. A sala mergulhou no silêncio. Lá fora, distinguiam-se através da janela as luzes que aos poucos começavam a acender-se nos outros edifícios.

Ficámos ali sentados uns bons cinco minutos, a beber o nosso uísque, sem trocarmos uma palavra. O telefone voltou a tocar, mas o meu amigo fez como se não fosse nada com ele. Assim que o telefone deixou de tocar, carregou na tecla On e ligou o televisor de repente. A imagem regressou acto contínuo e apareceu um comentador junto a um gráfico a explicar aos telespectadores, com a ajuda de um ponteiro, as oscilações no preço do petróleo.

–Vês? O homem nem sequer deu por nós o termos desligado durante cinco minutos.

– É um facto.

– Porque será?

Dava muito trabalho pensar no assunto, por isso limitei-me a abanar a cabeça.

– Quando desligas, um dos lados deixa de existir. Ou ele, ou nós. Basta premir o botão e a comunicação deixa de existir. Tão fácil quanto isso.

– Essa é uma maneira de ver as coisas – observei.

– Há milhares de maneiras de analisar o problema. Na Índia plantam-se coqueiros. Na Argentina, prisioneiros políticos são atirados dos helicópteros – disse ele, e desligou o televisor. – Não me está a apetecer pôr-me para aqui a falar dos outros – prosseguiu –, mas é bom não esquecer que existem maneiras de morrer que não acabam necessariamente em funerais. Mortes que ninguém consegue detectar pelo cheiro.

Fiz o gesto de quem concordava com a cabeça. Por um lado, palpitava-me que sabia onde ele queria chegar. Ao mesmo tempo, porém, tinha a impressão de não estar a perceber rigorosamente nada. Sentia-me cansado e vagamente confuso. Continuei sentado no mesmo sítio, a alisar com o dedo uma das folhas verdes das flores natalícias.

– Ainda tenho para aí o resto de uma garrafa de champanhe – referiu ele com ar sério. – Trouxe-a da minha última viagem de negócios a França, já lá vai algum tempo. Não percebo muito de champanhe, mas tudo indica que se trata de uma boa marca. Apetece-te? Imagino que champanhe seja a melhor coisa depois de todos esses funerais de uma enfiada.

Ele tratou de ir buscar a garrafa de champanhe que estava no frigorífico e dois copos lavados e depositou tudo em cima da mesa. Depois esboçou um sorrisinho cúmplice.

– O champanhe é uma daquelas bebidas sem história, como sabes – referiu ele. – A única coisa boa é o momento em que se faz saltar a rolha.

– Nesse ponto, dou-te razão – concordei eu.

Fizemos saltar a rolha e ficámos durante algum tempo entretidos a conversar sobre o jardim zoológico em Paris e os animais que lá viviam. O champanhe era de facto excelente.

 

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No final do ano, como manda a tradição, realizou-se uma pequena festa num barzinho, em Roppongi, expressamente alugado para a ocasião. Havia um trio de pianistas contratado para tocar, e boa comida e bebida à discrição foi coisa que não faltou. Sempre que encontrava pela frente alguém conhecido, ficava um bocadinho à conversa. O meu trabalho exigia que eu fizesse uma aparição em público uma vez por ano. Não sou grande defensor dos partidos, mas esta incumbência não era desagradável de todo, e além disso rapidamente ficava despachado. Não tinha nada combinado para a noite de fim do ano, além de que sempre era pretexto para ficar descontraidamente sentado a um canto, a beber e a ouvir música. Sem ter de encontrar pela frente gente desinteressante que nunca se viu na vida que nos obriga a ter de ficar ali durante meia hora a ouvir discorrer sobre as vantagens de uma dieta vegetariana na prevenção de alguns tipos de cancro.

Naquela noite, porém, fui apresentado a uma mulher. Depois da habitual dose de conversa de circunstância, fiz os possíveis por voltar para o meu canto, mas acontece que a mulher foi atrás de mim, sem nunca largar o copo de uísque.

– Fui eu que pedi para lhe ser apresentada – confessou ela, cordialmente.

Não era propriamente mulher de fazer virar as cabeças, mas nem por isso deixava de ser atraente. Vestia um elegante vestido de seda verde que devia ter custado os olhos da cara. A julgar pelo aspecto, devia ter os seus trinta e dois anos. Podia facilmente parecer mais nova, mas era óbvio que isso não era importante aos seus olhos. Três anéis enfeitavam-lhe os dedos, e nos lábios desenhava-se um sorriso discreto.

– É extremamente parecido com uma pessoa que eu conheço – adiantou ela. – As suas expressões faciais, a postura das suas costas, o modo de falar... enfim, é espantoso como se parece com ele em tudo. Digo isto com conhecimento de causa, visto que tenho estado sempre a observá-lo desde que entrou nesta sala.

– Bom, se ele é assim tão parecido comigo, então gostaria de o conhecer – disse eu. Na altura não me lembrei de mais nada para dizer.

– Está a falar a sério?

– A sério. Gostaria de saber qual é a sensação de conhecer alguém que é a minha cara chapada.

Por uma fracção de segundos, o sorriso dela tornou-se mais aberto, para logo a seguir se desvanecer.

– Infelizmente, não é possível – referiu ela. – A pessoa em questão morreu há cinco anos. Devia ter mais ou menos a sua idade.

– Não me diga.

– Fui eu que o matei.

O trio de músicos estava a acabar a segunda actuação, e ouviram-se na sala alguns aplausos de circunstância.

– Gosta de música? – perguntou-me ela.

– Se estivermos a falar de música agradável num mundo aprazível, gosto – respondi.

– Música agradável é coisa que não existe num mundo aprazível – retorquiu ela, como se estivesse a revelar um grande segredo. – Num mundo aprazível ideal, o ar não vibra.

– Estou a ver – disse eu, sem saber que mais havia de dizer. –Alguma vez viu o filme em que Warren Beatty aparece a tocar piano num clube nocturno?

– Confesso que não.

– Elizabeth Taylor, uma das frequentadoras do dito clube, é uma pobre rapariga, a quem a vida não corre bem.6

– Estou a ver.

– E então a personagem interpretada por Warren Beatty pergunta a Elizabeth Taylor se gostaria de ouvir alguma música em especial. – E então, ela tem algum desejo especial?

–Já não me lembro. Estamos a falar de um filme muito antigo. – O anel dela cintilava, ao sabor dos movimentos que fazia a beber o uísque. – Detesto esse género de situações que metem pedidos pelo meio. Fazem-me sempre sentir melancólica. Acontece o mesmo quando trago um livro da biblioteca. Assim que o começo a ler, só penso em chegar ao fim.

Ela levou um cigarro à boca, e eu, pela minha parte, risquei um fósforo e acendi-lho.

– Onde é que nós íamos? – voltou ela à carga. – Estávamos a falar do tal homem que era parecido consigo.

– Como foi que o matou?

– Atirei-o para o meio de uma colmeia.

– Está a brincar, não é verdade?

– Sim – confessou ela.

Em vez de suspirar, bebi mais um gole de uísque. O gelo tinha derretido e o meu uísque já quase não sabia a nada.

– Claro está que, do ponto de vista legal, não se pode dizer que seja uma criminosa. Nem moralmente falando, já agora.

–Juridicamente e moralmente, não é uma criminosa. – Sem querer, repeti o juízo de valor que ela acabara de formular. – O que não a impediu de ter matado uma pessoa.

– Sim – confirmou ela, acenando com uma expressão aliviada. – Uma pessoa que era extremamente parecida consigo.

Do outro lado da sala alguém soltou uma sonora gargalhada. As pessoas à volta riram-se também. Copos que se entrechocam. O barulho chegava aos nossos ouvidos, vindo de longe, mas, ao mesmo tempo, extraordinariamente nítido. Não sei explicar porquê, mas o meu coração batia desalmadamente e andava aos saltos para cima e para baixo, como se estivesse prestes a fugir-me do peito. A sensação que tinha era de que o chão por baixo dos meus pés flutuava sobre a água.

– Nem chegou a cinco segundos – referiu ela. – Para acabar com ele.

Continuámos calados durante algum tempo. Ela parecia saborear o silêncio.

– Alguma vez pensou na liberdade? – perguntou ela.

– Às vezes – respondi. – Por que é que pergunta?

– Sabe desenhar uma margarida?

– Acho que sim. Trata-se de algum teste de personalidade?

– Quase – replicou ela a rir-se.

– Nesse caso, quer dizer que passei?

– Sim – respondeu ela. – Correu bem, não há motivo para se preocupar. Diz-me a minha intuição que o senhor tem uma longa vida pela frente.

– Obrigado – disse eu.

A banda recomeçou a tocar. «Auld Lang Syne».

– Faltam cinco minutos para a meia-noite – referiu ela, depois de ter olhado para o relógio de ouro que trazia ao pescoço. – Gosto imenso do tema «Auld Lang Syne». E você?

– Prefiro «Nome on the Range». Por causa dos veados e antílopes.

Ela sorriu.

– Deve gostar muito de animais.

– Pois gosto – disse eu, lembrando-me do meu amigo, que tanto gosta de jardins zoológicos, e do seu fato para ir aos funerais.

– Tive muito gosto em conversar consigo. Adeus.

– Adeus – repliquei.

 

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Apagaram as lanternas a fim de poupar ar, e a escuridão envolveu-os. Ninguém disse nada. A única coisa que se ouvia no escuro era o som da água a pingar do tecto, de cinco em cinco segundos, sem parar.

«Atenção, respirem o mais devagar que for possível», disse um velho mineiro. «Não temos muito ar.» A voz dele estava reduzida a um murmúrio, o que não impediu que as traves do tecto rangessem ligeiramente. No meio do escuro, os mineiros juntaram-se, encostados, a um canto, esforçando-se por ouvir um som que fosse. O som das picaretas. O som da vida.

Esperaram durante horas a fio. A realidade começou aos poucos a desvanecer-se e a perder contornos definidos. Era como se tudo tivesse acontecido muito tempo antes, num mundo longínquo. Ou dar-se-ia o caso de estar a acontecer no futuro, num outro mundo distante?

Lá fora, as pessoas escavavam um túnel, na esperança de conseguir chegar até eles. Parecia uma cena de um filme.

5 Remota ilha do Norte do Japão, pátria do povo indígena aino (os homens são normalmente grandes, com barba e cabelo ondulado). De uma beleza gélida e agreste (ver Em Busca do Carneiro Selvagem, Casa das Letras, Lisboa, 2007), convida ao turismo de Inverno durante quase todo o ano. (N. da T.)

6 Realizado em 1970 por George Stevens, com base na peça (e argumento) de Frank D. Giluy, Quando o Jogo é o Amor conta a história de uma corista e de um pianista viciado no jogo que apostam em levar por diante uma relação baseada no sexo. (N. da T.)