UM CONTO POPULAR PARA A MINHA GERAÇÃO: NA PRÉ-HISTÓRIA DO CAPITALISMO TARDIO

 

 

 

 

 

 

 

 

Nasci em 1949. Comecei a frequentar o ensino secundário no ano de 1961 e entrei para a universidade em 1967. E quando finalmente chegou o tão aguardado dia dos meus vinte anos – que é como quem diz, a minha porta de entrada para a idade adulta –, viviam-se dias agitados no auge dos tumultos e manifestações organizadas pelo movimento estudantil. O que, segundo os meus cálculos, me classifica como o típico filho dos anos 60. E foi assim que vivi a fase mais vulnerável, mais imatura e, ao mesmo tempo, mais importante da minha existência, na altura em que decorria uma década gloriosa em que a palavra de ordem era viver para o momento, no auge da loucura colectiva promovida pelo movimento juvenil. Tudo o que então sabíamos era que pela frente havia uma quantidade de portas que era preciso derrubar, e podem crer que as deitámos todas abaixo. Uma verdadeira loucura, sempre ao som de Jim Morrison, dos Beatles e de Bob Dylan, convertidos numa espécie de banda sonora das nossas vidas.

Os anos 60 foram especiais. E se agora, olhando para trás, isso salta aos olhos, devo dizer que já naquela altura, apanhado no turbilhão dos acontecimentos, eu estava plenamente convencido disso. Agora, se me pedirem para entrar em pormenores, e quiserem saber concretamente o que foi que tornou a década de 1960 uma época tão especial, pelo menos para a minha geração, consigo alinhavar duas ou três banalidades e é tudo. Na altura, não passávamos de meros observadores, totalmente absorvidos num filme excitante, com as palmas das mãos suadas, para virmos a descobrir quando as luzes se acendiam, à saída da sala de cinema, que toda aquela sensação de euforia e arrebatamento afinal pouco ou nenhum significado tinha. Será que, de certa forma, isso nos impediu de aprender alguma valiosa lição de vida? Confesso que não sei. Não tenho ainda o distanciamento necessário para o afirmar em boa consciência.

O que aqui me traz, só para ficarem a saber, não é fazer propaganda pelo facto de ter vivido esses tempos. A única coisa que me interessa é relatar os factos. Dar conta de como foi viver nesse período e deixar aqui o meu testemunho em como «sim, aqueles tempos foram realmente especiais». E, contudo, sempre que me ponho a esmiuçar o que aconteceu de facto, a fim de chamar a atenção para algo que mereça destaque, em boa verdade não me parece que consiga. Aqui têm o que se me ofereceria a dizer, caso me propusesse a dissecar os acontecimentos dessa altura: o turbilhão e a energia dos tempos, o tremendo clarão da esperança. Acima de tudo, um sentimento de inevitável frustração, como acontece quando se olha pelo lado errado de um telescópio. Heróis e vilões, êxtase e desilusão, martírio e descrença, teoria geral e estudos especializados, silêncio e eloquência, pessoas ocupadas a matar o tempo da forma mais monótona – houve de tudo um pouco, naturalmente. Sempre assim foi e sempre assim há-de ser. A história repete-se. Acontece o mesmo nos tempos que correm e a cena repetir-se-á no futuro. Acontece, porém, que no nosso tempo (para usar uma imagem desproporcionada) as coisas adquiriram cores mais vivas e contornos mais nítidos, e era quase como se conseguíssemos, de facto, agarrar nelas. Era como se estivessem ali diante dos nossos olhos, literalmente alinhadas numa prateleira, à mão de semear.

Hoje em dia, quando se tenta captar a realidade seja do que for, apanhamos sempre por tabela com toda a espécie de situações complicadas. A saber, publicidade enganosa, talões de desconto de origem duvidosa, cartões de crédito oferecidos por lojas de oportunidades, que só têm à venda coisas que não nos servem para nada, mas que guardamos na carteira, bem como todas as oportunidades que nos são praticamente atiradas à cara sem que nos consigamos defender delas. No nosso tempo, não andava ninguém a ver se nos impingia uma enciclopédia de três volumes praticamente ilegíveis. Fosse o que fosse, limitávamo-nos a deitar-lhe a mão e a pormo-nos a caminho de casa – como pegar num frango, daqueles que se compram naqueles pequenos mercados abertos durante toda a noite, e levá-lo para casa. Tão simples e prático quanto isso. Causa e efeito andavam, por aqueles dias, sempre de mãos dadas; tese e realidade, idem idem, aspas aspas, como se fosse a coisa mais natural do mundo. E palpita-me que os anos de 1960 foram a última vez que isso aconteceu.

Inventei o nome de «Pré-história do Capitalismo Tardio» para designar esses tempos.

 

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Deixem-me que vos fale um bocadinho das raparigas daquela geração. E também de nós, rapazes, apetrechados com os nossos órgãos sexuais praticamente novinhos em folha, e do sexo selvagem, alegre e triste que praticávamos. É um dos assuntos que gostaria de partilhar.

Vejam o caso da virgindade, por exemplo – por uma qualquer razão insondável, esse vocábulo traz-me sempre à mente a imagem de uma bela e soalheira manhã de Primavera. Nos sixties, a virgindade era um assunto bastante mais sério do que nos dias que correm. Na minha opinião – e é evidente que estou a generalizar, uma vez que não realizei nenhuma sondagem nem nada que se pareça –, julgo que o número de raparigas da minha geração que terão perdido a virgindade antes de atingirem os vinte anos deve andar à volta de cinquenta por cento. Pelo menos entre as miúdas que eu conhecia, tudo aponta para essa percentagem. O que significa que pelo menos metade das raparigas, conscientemente ou não, ainda eram virgens.

Quer-me parecer que, para a maioria das raparigas da minha geração (pelo menos as mais moderadas, chamemos-lhes assim), fossem elas virgens ou não, essa revelava-se uma questão muito dolorosa e complexa. Por um lado, não clamavam que se tratava de um bem precioso, por outro, também não faziam questão de se referir à virgindade como uma estúpida relíquia do passado. Por isso, o que de facto aconteceu foi que – peço que me desculpem se lá estou eu a generalizar outra vez – deixaram as coisas seguir o seu curso natural. Tudo dependia das circunstâncias e do parceiro. Aos meus olhos, faz todo o sentido.

De cada lado da barricada, entre liberais e conservadores, existia uma maioria silenciosa, em que cabia de tudo um pouco – desde raparigas para quem o sexo era uma espécie de desporto até àquelas que acreditavam piamente em conservarem-se puras até ao dia do seu casamento. É óbvio que também havia rapazes para os quais era imperioso casar com uma rapariga virgem.

Como acontece em todas as gerações, havia todo o tipo de pessoas, adeptas de todo o tipo de valores. Mas a grande diferença entre os idos de 1960 e as décadas que os antecederam e vieram depois consiste no facto de as pessoas estarem convictas de que essas diferenças poderiam um dia ser ultrapassadas.

Paz!

 

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Segue-se a história de um tipo meu conhecido, antigo colega meu dos tempos do secundário, em Kobe. Era uma daquelas pessoas «cinco estrelas» com tudo a seu favor: tinha boas notas, era bom no desporto, um líder natural. Não era propriamente uma estampa de homem, mas tinha bom aspecto e uma cara simpática. A voz também era agradável, o que fazia dele um bom orador em público, e pode mesmo dizer-se que até a cantar se safava. Nas discussões de turma era o nosso representante por excelência, e, quando nos defrontávamos com outros alunos, cabia-lhe sempre a ele apresentar o argumento final. Não se pode dizer que primasse pela originalidade, mas, também, quem é que vai para uma discussão de turma à espera de opiniões originais? De resto, o que há mais para aí são situações em que a originalidade não é tida nem achada. Pensando bem, isso acontece nas mais das vezes. Tudo o que pretendíamos era sair dali o mais depressa possível, e a verdade é que podíamos contar com ele para levar a sua avante e acabar de vez com a discussão. Nesse sentido, convenhamos que dava jeito ter um tipo como ele à mão.

Com ele, era sempre tudo certinho e feito segundo as regras. Caso alguém desatasse a fazer barulho na sala de aula, logo ele se levantava para mandar essa pessoa ficar calada, isto sem nunca perder a calma. O tipo era perfeito até dizer chega, mas confesso que havia uma coisa que me inquietava, e que era o facto de não conseguir perceber o que lhe ia na alma. Às vezes quase que me apetecia arrancar-lhe a cabeça pelo pescoço e abaná-lo bem para ver o que andava a chocalhar e a fazer barulho lá dentro. Também era muito popular com o sexo feminino. Bastava ele abrir a boca para dizer qualquer coisa, que de imediato os olhares de todas as raparigas recaíam sobre ele e o resto da malta deixava de existir.

Todo aquele que tenha alguma vez andado a estudar no ensino oficial sabe do que eu falo. Existe sempre algum aluno parecido com ele em cada turma, sem o qual nada parece funcionar. Os muitos anos passados na escola, agarrado aos manuais escolares, a aprender para a vida, ensinou-me uma data de coisas, e uma das lições foi precisamente esta: quer se goste quer não, em todos os grupinhos existe um exemplar desses.

Pessoalmente, não sou grande fã do género. Acontece que a relação não produz faísca, pelas mais variadas razões. Prefiro os tipos imperfeitos, são essas as pessoas que me ficam na memória. Isto para explicar que, apesar de andarmos a estudar na mesma turma, eu e ele nunca fomos unha com carne. O mais próximo que os dois tivemos de uma conversa decente foi depois de ter acabado os exames, durante as férias de Verão, já na nossa condição de caloiros na universidade. Andávamos a ter aulas de condução na mesma escola e trocámos algumas impressões. Por vezes aconteceu mesmo tomarmos uma chávena de chá juntos, enquanto estávamos à espera. Não deve existir lugar mais chato à face da Terra do que as escolas de condução, de modo que basta vermos uma cara conhecida para aproveitarmos logo a deixa. Não me lembro do que dissemos, mas sei que não fiquei nem com boa nem com má impressão.

Outra coisa de que me lembro acerca dele é da namorada. Andava numa turma diferente e pertencia ao grupo das raparigas espantosamente bonitas que se contavam pelos dedos. Não só era lindíssima como tinha boas notas e se revelava uma espécie de líder natural, daquelas que no fim dos debates dava sempre voz à opinião geral. Todas as turmas têm uma rapariga como ela.

Resumindo, faziam o par ideal. O Sr. Perfeito e a Sr.ª Perfeita. Saídos do anúncio a uma qualquer marca dentífrica.

Eram inseparáveis. Durante o intervalo da hora de almoço, ficavam sentados lado a lado, a um canto do recreio da escola, à conversa. Esperavam um pelo outro a fim de poderem regressar a casa no mesmo comboio, ainda que saíssem em estações diferentes. Ele fazia parte da equipa de futebol, ela nas aulas de conversação inglesa, e aquele que se despachasse mais cedo ficava na biblioteca a estudar, à espera do outro para regressar a casa. A ideia que dava era a de que passavam juntos todos os momentos livres que tinham. Além de que estavam sempre embrenhados na conversa. Ainda hoje não sei como é que faziam para terem sempre qualquer coisa para contar um ao outro, mas a verdade é assim acontecia.

Nós (e quando digo «nós», refiro-me aos membros do grupo com quem costumava andar) não tínhamos nada contra os dois. Nunca fazíamos troça nem dizíamos mal deles. Na realidade, nem se pode dizer que fizessem parte dos nossos pensamentos. Eram como o tempo, como algo que pura e simplesmente existia à nossa volta, mas que de forma alguma captava a nossa atenção.

Estávamos todos demasiado empenhados em perseguir os nossos ideais, os interesses verdadeiramente importantes que os tempos ofereciam à nossa disposição. Por exemplo? Sexo e rock’n’roll, os filmes de Jean-Luc Godard, os movimentos políticos, os romances de Kenzaburo Oe8. Mas sobretudo sexo.

Obviamente que não passávamos de uns miúdos ignorantes e convencidos, que não faziam a mínima ideia do que era a vida. No mundo real, não existia nada que se parecesse com o Sr. e a Sr.ª Perfeitos. Isso só na televisão. O género de ilusões que nós então ainda tínhamos e o tipo de ilusões que este rapaz e a sua namorada tinham não eram tão diferentes quanto isso.

Esta é a história deles. Não se pode dizer que seja uma história com final feliz, e, olhando para trás, torna-se difícil extrair dali alguma lição de vida. Apesar disso, é a história deles, ao mesmo tempo que é também a nossa história. Tudo isso faz com que seja uma espécie de folclore que me dei ao trabalho de recolher e que agora, na qualidade de narrador algo atabalhoado, me encarrego de vos transmitir.

 

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Dou-vos a conhecer a versão da história tal como ele ma vendeu, entre dois copos de vinho e outros tantos dedos de conversa. Por isso, falando bem e claro, não é de admirar que nem tudo corresponda à verdade. Houve partes que não apanhei e duas ou três coisas que graças à minha imaginação posso ter exagerado, mas não creio que isso tenha importância na narração em si. No fundo, estou em crer que as coisas se passaram mais ou menos como eu contei. E se digo isto, é porque, apesar de eventualmente se me ter varrido um ou outro pormenor, recordo-me perfeitamente do grosso da história. Quando ouvimos uma história contada por outra pessoa e a seguir tentamos passá-la para o papel, o importante é conseguir reproduzir o tom. Uma vez captado o tom, podem ter a certeza de ter nas mãos uma verdadeira história. Pouco importa que haja alguns episódios que não batam certo; nalguns casos, isso até pode servir para reforçar o grau de verosimilhança. E o contrário também se aplica; o que mais há para aí são histórias que batem certo em quase tudo e que não são verdade. Refiro-me a histórias que são, na sua maioria, uma seca monumental e que podem até, em certas circunstâncias, revelar-se perigosas. Consigo cheirá-las ao longe.

Uma outra coisa que me sinto ainda na obrigação de deixar claro é o facto de esse tal meu companheiro de escola ser um péssimo contador de histórias. Deus pode muito bem tê-lo contemplado generosamente com outros atributos, mas diga-se em abono da verdade que o talento para reproduzir uma história não se conta entre eles. (Não quero com isto dizer que a arte idílica do contador de histórias sirva para algo de concreto na vida real.) Por isso, era frequente eu deixar escapar um ou outro bocejo, sempre que ele era levado a efabular. Ele costumava perder o fio à meada e pôr-se para ali às voltas, demorando uma eternidade a lembrar-se dos factos que interessavam. Não era raro vê-lo interromper a narrativa, interrogando-se sobre um determinado aspecto em particular, para começar de novo a discorrer sobre o assunto mal conseguia dispor outra vez os factos e alinhavá-los em cima da mesa. Acontecia, porém, que muitas vezes não era esta a ordem pela qual as coisas se passavam. Por isso, na qualidade de romancista – um especialista na arte de contar histórias, se preferirem –, dei-me ao trabalho de dispor esses fragmentos cronologicamente e encadeá-los de maneira a dar forma a uma narrativa coerente.

Encontrámo-nos por mero acaso em Lucca, uma cidadezinha no coração de Itália. Na altura, eu estava a morar num apartamento em Roma. Uma vez que a minha mulher tinha regressado ao Japão, decidira oferecer a mim próprio o prazer de uma viagem solitária, percorrendo de comboio a distância entre Veneza e Verona, depois o itinerário que vai de Mântua até Pisa, com paragem em Lucca. Era a segunda vez que visitava a simpática e tranquila cidade; lembrava-me de que, nos arredores, havia um restaurante magnífico onde serviam toda a espécie de pratos sofisticados e caríssimos à base de cogumelos.

Pelo que lhe dizia respeito, costumava deslocar-se a Lucca em negócios, e aconteceu ficarmos hospedados no mesmo hotel. O mundo é pequeno.

Naquela noite, tínhamos jantado no mesmo restaurante. Estávamos ambos cansados e maçados da viagem. À medida que os anos passam por nós, mais aborrecido se torna viajar sozinho. Quando se é novo, é tudo diferente – sozinha ou acompanhada, as viagens dão sempre prazer a uma pessoa. No entanto, com o passar dos anos, o factor divertimento começa a esmorecer, e só nos primeiros dois ou três dias é que a coisa dá gozo. Depois disso, o cenário torna-se monótono, e as vozes à nossa volta começam a arranhar nos ouvidos. Não há escapatória possível, basta uma pessoa fechar os olhos para ser de imediato assaltada por toda a espécie de recordações desagradáveis. Comer nos restaurantes dá um trabalho desgraçado, além de que damos por nós a olhar para o relógio vezes sem conta enquanto esperamos pelo carro eléctrico que nunca mais chega. Já para não falar na odisseia que representa uma pessoa tentar fazer-se entender numa língua estrangeira.

Foi por isso que, ao descobrirmos que os nossos caminhos se tinham cruzado, suspirámos os dois de alívio, tal como de resto acontecera da outra vez que déramos de caras um com o outro na escola de condução. Sentámo-nos a uma mesa junto à lareira, mandámos vir uma boa garrafa de vinho e encomendámos um jantar só de cogumelos: um prato de cogumelos a abrir, massa com cogumelos e arrosto com cogumelos.

Acontecia que ele era dono de uma empresa de mobiliário que importava móveis da Europa, razão pela qual se encontrava no continente europeu. Dava para ver que os negócios corriam bem. Não que ele se vangloriasse disso ou se armasse em bom (ao entregar-me o cartão-de-visita, limitou-se a dizer que estava à frente de uma pequena firma), mas saltava à vista que o indivíduo estava bem na vida. A forma como vestia, a sua maneira de falar, a sua atitude e os seus modos, tudo nele contribuía para tornar isso óbvio. Via-se que ele se sentia perfeitamente à vontade no papel de homem de sucesso, e tirava mesmo disso um certo prazer.

Tinha lido todos os meus romances, confidenciou-me ele. «A nossa maneira de pensar e os objectivos que perseguimos são muito diferentes», disse ainda, «mas acho uma coisa maravilhosa ser capaz de contar histórias às outras pessoas.»

Nada a objectar. «Isso caso uma pessoa seja capaz de contar bem uma história», acrescentei.

De início, limitámo-nos a trocar impressões sobre Itália. Queixámo-nos pelo facto de os comboios nunca andarem a horas, do tempo de espera nos restaurantes. Mas depois, não me lembro ao certo quando mas deve ter sido quando já íamos na segunda garrafa de vinho, ele engatilhou e começou então a contar a sua saga. E eu ali a ouvir tudo, fazendo de vez em quando sinal de estar com atenção. Julgo que ele terá querido deitar cá para fora tudo o que lhe ia na alma desde há muito, sem nunca ter tido oportunidade. Se não estivéssemos os dois sentados num simpático restaurantezinho numa pequena e bonita cidade do centro de Itália, a beber um suave Coltibuono de 1983 diante de uma bela lareira, duvido que ele se tivesse disposto a entrar em confidências. Mas a verdade é que lá acabou por me contar a história dele.

 

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«Sempre me tive na conta de uma pessoa desinteressante», começou ele. «Desde pequenino que nunca fui do género de me aventurar e correr riscos. Era como se eu sentisse que à minha volta existia como que uma espécie de barreira que eu me esforçava por não ultrapassar. Ou então como se eu seguisse por uma auto-estrada bem sinalizada que me indicava onde sair, qual a curva seguinte, quando não devia ultrapassar. Basta seguir as indicações, costumava eu pensar, que a vida haveria de correr bem. Toda a gente me elogiava por ser capaz de me manter no rumo traçado, e, verdade seja dita, quando eu era pequeno lembro-me de pensar que as outras pessoas também faziam o mesmo. Porém, com o andar da carruagem, não tardei a descobrir que não era esse o caso.»

Empunhando o copo de vinho à altura do fogo que ardia na lareira, deixou-se ficar a olhar para ele, ensimesmado, durante algum tempo.

«Num certo sentido, posso afirmar que a minha vida, pelo menos na sua fase inicial, decorreu sem acidentes de percurso. Mas também é preciso dizer que eu não fazia a mínima ideia de qual o sentido da minha vida. Só mais tarde, ao crescer, é que a vaga percepção do que isso significava se tornou mais forte. O certo é que não sabia o que pretendia. Se me perguntassem o que é que eu queria da vida, ficava sem resposta. Era bom a matemática, inglês, desporto, enfim, a quase tudo. Os meus pais não se cansavam de me elogiar, os meus professores sempre disseram que eu não podia ir melhor nos estudos, e tinha perfeita consciência de que as minhas notas me permitiriam entrar numa boa universidade. Só não sabia para onde ia nem o que fazer na vida. No que ao curso universitário dizia respeito, estava a zero. Deveria seguir Direito, Engenharia ou Medicina? Estava ciente de que me safaria em qualquer dos cursos, mas nenhum deles me interessava por aí além. Por isso, segui o conselho dos meus pais e professores e entrei para a faculdade de Direito da Universidade de Tóquio. Não se podia dizer que estivesse verdadeiramente vocacionado para isso – acontecia que toda a gente dizia que era o melhor que eu tinha a fazer.

Bebeu mais um gole de vinho.

– Lembras-te da namorada que eu tinha quando estávamos quase a acabar o secundário?

– Era uma que se chamava Fujisawa? – alvitrei eu, sem saber muito bem como o nome dela me tinha ocorrido. Apesar de não ter a certeza, acertei em cheio.

Ele fez que sim com a cabeça.

– Isso mesmo. Yoshiko Fujisawa. Com ela passava-se mais ou menos a mesma coisa. Gostava imenso dela, de estar com ela. Conversávamos sobre tudo e mais alguma coisa. Eu podia abrir-me com ela e dizer-lhe tudo o que me ia na alma, que ela compreendia os meus estados de espírito. Com ela, o assunto nunca se esgotava, o que era um sentimento maravilhoso. Pensando bem, antes de a conhecer nunca tinha tido alguém com quem conversar a sério.

 

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Ele e Yoshiko eram almas gémeas. De resto, era espantoso, para não dizer inquietante, constatar como os dois tinham sido educados da mesma maneira. Tal como disse, eram ambos bem-parecidos, inteligentes e nascidos para liderar. As estrelas das respectivas turmas. Provinham de boas famílias, com pais que não se entendiam. Nos dois casos, as mães eram mais velhas do que os pais, e tanto o pai de um como do outro tinham uma amante e procuravam manter-se afastados de casa o mais tempo possível. Só não se divorciavam com medo do que as pessoas pudessem dizer. Lá em casa, eram as respectivas mães quem mandava e escusado será dizer que esperavam dos filhos que fossem os melhores em tudo. Yoshiko e ele eram, de facto, bastante populares, mas não sabiam o que era ter amigos. Nenhum deles sabia explicar porquê. Talvez porque as pessoas vulgares e imperfeitas escolhessem de preferência pessoas imperfeitas para fazer amizade. Em todo o caso, os dois andavam quase sempre sozinhos e raramente pareciam usufruir de um momento de descontracção.

Apesar disso, um dia os dois tornaram-se amigos. Almoçavam sempre juntos, iam para casa juntos. Passavam na companhia um do outro todos os momentos livres, à conversa. Assunto era coisa que não lhes faltava. Aos domingos, aproveitavam para estudar juntos. Sentiam-se mais à vontade quando se encontravam sozinhos. Cada um conhecia os sentimentos do outro tão bem como os seus. Eram capazes de estar horas infinitas a falar acerca da solidão que sentiam, do sentimento de perda, dos seus medos e dos seus sonhos.

Faziam amor uma vez por semana. Geralmente, ou no quarto de um ou no quarto do outro. Ficarem sozinhos não era difícil, uma vez que, com os pais metade do tempo ausentes, quase sempre nunca estava ninguém nas respectivas casas. Durante as sessões de marmelada, havia duas coisas que eles seguiam à regra: ficavam com a roupa vestida, e só usavam os dedos. Entretinham-se com aquelas brincadeiras amorosas durante dez ou quinze minutos, a explorar o corpo um do outro, após o que se sentavam outra vez à secretária e continuavam a estudar juntos.

«Já chega», costumava ela dizer, ao mesmo tempo que alisava a bainha da saia. «Vamos estudar um bocado?» Como tinham os dois quase sempre as mesmas notas, para eles o estudo era uma espécie de jogo, passando o tempo em competição para ver quem era capaz de resolver os problemas de matemática mais cedo. Estudar nunca era um sacrifício; era como se fosse uma espécie de segunda natureza. Contou-me ele que lhes dava um gozo tremendo. «Podes achar estúpido, mas a verdade é que gostamos os dois realmente de estudar. Imagino que, se calhar, é preciso ser como nós para compreender isso.»

Apesar de tudo, não se podia dizer que ele estivesse totalmente satisfeito com a natureza da relação deles. Faltava ali qualquer coisa. Dito de outro modo, faltava o sexo propriamente dito. «O sentimento de serem um só, fisicamente», dizia ele. Depois, costumava acrescentar, sentia que tinham de dar esse passo para a liberdade. «Se formos capazes disso, passaremos a estar mais próximos um do outro, poderemos compreender-nos melhor.» Para ele, seria essa a ordem natural das coisas.

Aos olhos dela, porém, era diferente. Com os lábios cerrados, punha-se a abanar ligeiramente a cabeça. «Gosto muito de ti», dizia ela com toda a naturalidade, «mas quero permanecer virgem até ao casamento.» Por mais que ele se esforçasse por ver se lhe dava a volta, ela recusava-se a ouvir os seus argumentos.

«Gosto imenso de ti, a sério», dizia ela, «mas estamos a falar de duas coisas diferentes. Não vou mudar de ideias. Tenho muita pena. Habitua-te à ideia. Se gostas realmente de mim, vais ver que consegues viver com isso.»

– Quando ela punha as coisas naquele pé, não tinha outro remédio senão respeitar a sua vontade. A questão é que se tratava da vida dela e não havia nada que pudesse dizer ou fazer. Para mim, era igual ao litro que a minha parceira fosse virgem ou não. Se viesse a descobrir que a mulher com quem me ia casar não era virgem, não ligaria muito a isso. Não sou uma pessoa radical, acho eu, nem tão-pouco nenhum romântico sonhador, mas também não se pode dizer que seja conservador. Sou apenas realista, mais nada. Na minha maneira de ver as coisas, a virgindade de uma mulher não é assim tão importante. Para mim, é muito mais importante que um homem e uma mulher se conheçam e se entendam. Seja como for, é apenas a minha opinião, e não é minha intenção impô-la a ninguém. Ela tinha a sua ideia de como a vida deveria ser, por isso só me restava pôr cara alegre e contentar-me em tocar nela com a roupa vestida. De certeza que tens uma ideia de como as coisas se passavam.

– Imagino, sim – concordei. Também eu tinha recordações parecidas que andavam lá perto.

Ele corou ao de leve e sorriu.

– Não era tão mau quanto isso, atenção, mas como nunca passávamos dali, nunca chegava a descontrair-me. Achava que a coisa ficava sempre a meio caminho. O que eu queria era estar com ela, sem que nada se interpusesse entre nós. Possuí-la e ser possuído. Precisava de receber um sinal. Claro que o desejo sexual também entrava em cena, mas não era o principal. Do que mais sentia falta era do sentimento de comunhão física. Nunca experimentara isso com ninguém. Tinha estado sempre sozinho, sempre tenso, esmagado de encontro a uma parede. Tinha a certeza de que a partir do momento em que nos tornássemos um, conseguiria derrubar esse muro que me oprimia e libertar-me, descobrir o meu verdadeiro eu, de que até então apenas me apercebera vagamente.

– E a coisa não foi avante? – perguntei.

– Não – confirmou ele, sem tirar os olhos, estranhamente vazios, dos troncos que ardiam na lareira. – Nunca fomos até ao fim.

Contou-me ele que estava a pensar seriamente em casar com ela, e que lhe comunicara isso mesmo. Tinha-lhe dito que podiam casar-se mal acabassem a licenciatura, sem o mínimo problema. Podiam até ficar noivos mais cedo. As suas palavras fizeram-na muito feliz, como se viu pelo sorriso perfeitamente radioso que transpareceu no olhar dela. Ao mesmo tempo, aquele sorriso deixava entrever alguma tristeza, com um certo cansaço à mistura, emoções próprias de uma pessoa mais velha e mais experiente, que se prestasse a escutar as ideias imaturas de um jovem. «Não podemos casar», disse ela. «Faço tenções de me casar com um homem alguns anos mais velho e tu, tu vais casar-te com uma mulher mais nova. É assim que as coisas são. As mulheres são mais maduras do que os homens, e envelhecem rapidamente. Tu ainda não tens qualquer experiência de vida. Mesmo que nos casássemos logo a seguir à faculdade, não daria certo. Nunca seríamos tão felizes como somos agora. É evidente que gosto de ti, e que nunca amei mais ninguém. Mas estamos a falar de duas coisas diferentes. («Mas estamos a falar de duas coisas diferentes» era a frase preferida dela.) Ainda estamos a estudar e vivemos as nossas vidas resguardadas. É preciso ver que o mundo lá fora é diferente, maior, mais complexo, e nós temos de estar preparados para o enfrentar.»

Ele sabia onde é que ela queria chegar. Comparado com os outros rapazes da sua idade, era caso para dizer que ele tinha os pés assentes no chão. Se alguém tivesse usado esse mesmo argumento num outro contexto, o mais provável era ele mostrar-se de acordo. Mas, atenção, estamos a entrar no campo das generalizações abstractas. Afinal, era da vida dele que se tratava.

«Não há meio de entender», confessou-lhe ele. «Amo-te. Gostaria tanto que fôssemos um. Isso para mim é mais do que evidente, além do grande significado que tem. Pouco me rala que seja ou não realista. É só para veres o amor que tenho por ti.»

Ela tornou a abanar a cabeça, em sinal de que estava fora de questão. Ao mesmo tempo, tocou-lhe no cabelo e disse-lhe: «Sempre gostava de saber o que cada um nós sabe realmente acerca do amor. O nosso amor nunca foi posto à prova. Nunca tivemos de nos responsabilizar por nada. Somos duas crianças, tu e eu.»

Aquele argumento deixou-o sem resposta. O que mais o entristecia era o facto de não ser capaz de derrubar aquele muro à volta dele. Até ali sempre olhara para o muro como uma protecção, mas agora via nele um obstáculo, uma barreira que obstava à sua progressão. Apoderou-se dele um sentimento de impotência. «Não há nada que eu possa fazer», pensou. «Estou condenado a ficar escondido por este muro alto e grosso e a envelhecer sem nunca me aventurar a pôr o pé do lado de lá. Para o resto da minha vida insípida e desprovida de significado.»

 

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O relacionamento entre os dois continuou na mesma até ao fim do secundário. Tinham por hábito encontrar-se na biblioteca, estudarem juntos, fazerem marmelada com a roupa no corpo. Ela não parecia minimamente incomodada com o facto de nunca levarem a coisa até ao fim. Pelo contrário, quase parecia gostar que o acto ficasse assim, por consumar. Toda a gente pensava que o Sr. e a Sr.ª Perfeitos viviam uma juventude alegre e sem problemas. Na verdade, porém, ele continuou sempre a debater-se com as suas emoções por resolver.

Na Primavera de 1967, ele entrou para a Universidade de Tóquio, ao passo que ela foi aceite na universidade para mulheres de Kobe. Era sem dúvida uma excelente escola, mas a verdade é que, com as suas notas, ela poderia ter-se candidatado a uma instituição muito melhor. Em querendo, até mesmo a Universidade de Tóquio estaria ao seu alcance. Pelos vistos, ela contudo não achou que isso fosse necessário e nunca fez o exame de admissão. Explicou que não tinha uma vontade por aí além de prosseguir os estudos superiores, da mesma forma que não estava nos seus planos entrar para os quadros do Ministério das Finanças. «Sou uma rapariga», dizia ela. «A minha situação é diferente da tua. Tu estás apostado em ir longe, mas eu quero é passar os próximos quatro anos a gozar a vida. Uma vez casada, acabou-se.»

Ele ficou seriamente desapontado. Tinha alimentado esperanças de irem os dois para Tóquio, a fim de recomeçarem do zero. Bem se fartou de lhe pedir que o acompanhasse, mas, como de costume, ela ficou-se por um abanar de cabeça.

Nas férias grandes daquele seu primeiro ano na Universidade de Kobe, ele regressou a Kobe, e os dois passaram a encontrar-se quase todos os dias. (Foi no decorrer desse Verão que eu me cruzei com ele na escola de condução.) Ela levou-o a passear de carro por tudo quanto era sítio e as sessões de marmelada continuaram, tal como dantes. Apesar disso, o meu amigo deu por si a desconfiar que algo mudara na relação entre eles. Aos poucos, sorrateiramente, a realidade começara a interpor-se e a ganhar terreno entre os dois.

A mudança não aconteceu de forma repentina. De facto, o problema consistia precisamente na ausência de mudança. Tudo o que a ela dizia respeito – a maneira de falar e de vestir, os temas de conversa, as opiniões – continuava rigorosamente igual. A relação deles era uma espécie de pêndulo, que, a pouco e pouco, com o passar do tempo, diminuía a amplitude de oscilação, ameaçando parar, e ele sentia que já não estavam em sintonia.

A vida em Tóquio era solitária. A cidade estava suja, a comida não prestava para nada, as pessoas mostravam-se vulgares e incultas. Pelo menos era o que ele achava. Passava o tempo todo a pensar em Yoshiko. À noite, fechava-se no seu quarto e escrevia-lhe cartas. Ela respondia-lhe, mais espaçadamente, aproveitando para o pôr ao corrente de todos os pormenores da sua vida de todos os dias, e ele devorava as missivas. Eram as cartas dela que o impediam de dar em maluco. Tinha entretanto começado a fumar e a beber. Volta e meia, baldava-se às aulas.

Quando as férias de Verão chegaram, e ele pôde finalmente regressar a Kobe, esperavam-no desilusões em catadupa. Apesar de só ter estado ausente três meses, a cidade natal parecia-lhe abandonada e sem vida. As conversas com a sua mãe revelaram-se a coisa mais aborrecida do mundo. Até mesmo a paisagem à sua volta, que ele costumava recordar com nostalgia quando estava em Tóquio, se tornara aos seus olhos profundamente insípida. Vendo bem, Kobe não passava de uma cidadezinha de província sem história. Não lhe apetecia falar com ninguém, e até uma simples ida ao barbeiro que lhe cortava o cabelo desde miúdo se anunciava deprimente. A zona à beira-mar, onde costumava levar o cão a passear, estava às moscas e cheia de entulho.

Que se desengane quem pense que os seus encontros com Yoshiko ainda provocavam nele uma certa titilação. De todas as vezes que se despediam, ele ia para casa e amuava. Os seus sentimentos não tinham mudado e continuava apaixonado por ela – isso era um facto. Ao mesmo tempo, porém, já não era suficiente. «Tenho de fazer alguma coisa», pensou ele. A paixão alimenta-se a si mesma, mas não dura para sempre. Se não fizermos qualquer coisa de drástico, a nossa relação chegará a um impasse e toda a paixão acabará por morrer asfixiada.

Um dia, decidiu voltar à carga e trazer de novo à baila a história do sexo, que andava desde há muito arredada das conversas. Pela última vez, decidiu.

«Passei estes últimos três meses em Tóquio a pensar em ti», disse ele. «Gosto muito de ti e não é por estarmos longe um do outro que os meus sentimentos vão mudar. Mas tenho de confessar que, no decorrer da nossa longa separação, comecei a ser assaltado por toda a espécie de pensamentos negros e negativos. Provavelmente terás dificuldade em entender esta minha posição, mas o facto é que a solidão torna as pessoas fracas. Nunca na minha vida me senti tão sozinho. Tem sido muito duro para mim. É por isso que gostaria que houvesse algo que nos aproximasse mais. Preciso de sentir com toda a certeza que pertencemos um ao outro, mesmo quando não estamos juntos.»

 

Contudo, a namorada deu-lhe para trás. Suspirou e beijou-o ternamente.

«Tenho muita pena», afirmou ela, «mas não te posso dar a minha virgindade. Estamos a falar de duas coisas diferentes. Sinto-me disposta a tudo por ti, excepto isso. Se me amas, não tornes a falar no assunto, peço-te encarecidamente.»

Ele aproveitou então para abordar a questão do casamento.

«Conheço raparigas da minha turma que já são comprometidas», referiu ela. «Duas, para ser exacta. Mas é preciso ver que os noivos delas têm empregos como deve ser. É isso que significa ficar noivo. O casamento implica responsabilidade. Tornamo-nos independentes e aceitamos partilhar a vida com outra pessoa. Se não formos responsáveis pelos nossos actos, não chegaremos a lado nenhum.»

«Sou perfeitamente capaz de assumir as minhas responsabilidades», declarou ele. «Não te esqueças que ando a estudar numa boa universidade e que tenho obtido um bom aproveitamento. Se quiser, posso arranjar emprego em qualquer empresa ou escritório governamental. Diz o nome de uma firma ou de uma entidade e garanto-te que estarei à altura. Sinto-me capaz de tudo, desde que me proponha a isso. Por isso, não vejo qual é o problema.»

Ela fechou os olhos, encostou-se para trás no assento do carro e ficou calada durante algum tempo.

«Tenho medo», confessou por fim. Depois tapou a cara com as mãos e começou a chorar. «Tenho um medo atroz. A vida é uma coisa assustadora. Daqui a dois ou três anos, não tenho outro remédio senão mergulhar na realidade e só de pensar nisso fico aterrada. O que é que te custa compreender isso? Por que é que não te esforças por entender o meu estado de espírito? Por que razão me atormentas assim?»

Ele embalou-a nos seus braços.

«Enquanto me tiveres ao teu lado, não precisas de ter medo», disse ele. «Para ser sincero, também eu tenho medo. Tal como tu. Mas desde que estejamos juntos, nada há a recear.»

Ela abanou outra vez a cabeça.

«Não entendes. Sou mulher. Comigo é diferente. Não há maneira de entenderes.»

Era escusado ele insistir no assunto. Ela chorou tudo o que tinha para chorar e quando finalmente parou, saiu-se com uma tirada verdadeiramente espantosa:

«Se alguma vez nos separarmos, quero que saibas que estarás sempre no meu pensamento. É pura verdade. Nunca te esquecerei. Amo-te sinceramente. Foste o primeiro homem que amei e sinto-me feliz pelo simples facto de estar a teu lado. Tens consciência disso, não tens? Mas estamos a falar de duas coisas diferentes. Se for preciso jurar, juro. Um dia havemos de dormir juntos, mas não para já. Depois de casada, vou para a cama contigo, prometo.»

 

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– Na altura, não fazia a mínima ideia do que ela queria dizer com aquilo – confidenciou-me ele, sem despegar os olhos da lenha que ardia na lareira. O empregado trouxe as nossas entradas e aproveitou enquanto ali estava e juntou mais algumas achas de madeira para espevitar o lume. Faúlhas incandescentes saltaram estrepitosamente e voaram pelo ar. Na mesa ao lado, o casal de meia-idade debruçava-se sobre a ementa e via-se e desejava-se para escolher a sobremesa.

– O que ela disse foi como uma espécie de enigma para mim. Depois de chegar a casa, dei voltas e mais voltas à cabeça a pensar nas palavras dela, mas sem chegar a conclusão alguma. E tu, entendes o que ela queria dizer?

– Bom, acho que se calhar ela estava a querer dizer que pretendia ficar virgem até ao casamento. Depois de casada, uma vez que a história da virgindade deixava de fazer sentido, não se importaria de ter um caso contigo. Foi a maneira de ela te dizer que terás de esperar até lá.

– Pode ser que tenhas razão. Não estou a ver que possa ser outra coisa.

– Não deixa de ser uma ideia um tanto fora do vulgar – comentei –, mas tem lógica.

A sombra de um sorriso dançou-lhe nos lábios.

– Podes crer. Tem a sua lógica.

– Ela casa virgem. E a partir do momento em que passa a ser mulher de alguém, tem um caso. Até parece um daqueles clássicos franceses da literatura, mas sem os vestidos de baile sofisticados nem as criadas de quarto a cirandar de um lado para o outro.

– Foi a única solução prática que ela se lembrou de engendrar – referiu ele.

– Uma vergonha danada – disse eu.

Ele ficou um bocado a olhar para mim e depois abanou a cabeça.

– Podes crer. Ainda bem que percebeste. – Acenou outra vez com a cabeça. – Consigo ver claramente as coisas – agora que estou mais velho. Mas naquela altura não estava ao meu alcance. Era apenas um miúdo. Não tinha condições de entender as mais ínfimas e subtis flutuações do coração humano. Daí que a minha reacção tenha sido de puro choque. Para ser franco, sentia-me completamente desorientado.

– É compreensível – afirmei.

Durante um grande bocado, continuámos a nossa refeição calados.

 

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– Como deves imaginar – continuou ele –, acabámos por nos separar. Nenhum de nós precisou de falar sequer no assunto, a coisa chegou ao fim naturalmente, sem grande alarido. Julgo que estávamos demasiado cansados para levar a relação por diante. Na minha perspectiva, a forma como ela encarava a vida não era – como hei-de dizer? – muito honesta. Não, não é isso... Melhor dizendo, eu é que desejava uma vida melhor para ela. Confesso que aquilo me deixou um bocadinho decepcionado. Gostaria que ela não ligasse tanta importância às questões da virgindade ou do casamento, e que, em vez disso, aproveitasse para levar a vida com mais naturalidade e em toda a sua plenitude.

– Não me parece que ela tivesse podido fazer as coisas de outra maneira – observei.

Ele assentiu.

– Pode ser que tenhas razão – admitiu, cortando um bocadinho de um grande cogumelo e levando-o à boca. – Passado um tempo, tornamo-nos menos flexíveis e deixamos de ser capazes de voltar atrás nas nossas decisões. Falo por experiência própria, uma vez que isso até a mim me podia ter acontecido. Desde pequenos que as pessoas passaram a vida a pressionar-nos no sentido de fazermos tudo bem. E, pela nossa parte, nós sempre correspondemos a essa expectativa, na medida em que éramos inteligentes e estávamos à altura do desafio. Mas, às tantas, há um dia em que o grau do nosso desenvolvimento não consegue progredir e é então que descobrimos que não se pode voltar atrás. Pelo menos no que diz respeito às questões morais.

– Mas isso não aconteceu contigo, pois não? – perguntei.

– De certa maneira, pode dizer-se que eu consegui contornar o problema – disse ele depois de pensar. Pousou a faca e o garfo e limpou a boca com o guardanapo. – Depois de nos separarmos, comecei a andar com outra rapariga que conhecia em Tóquio. Vivemos juntos durante algum tempo. Para dizer a verdade, não me tocava fundo como Yoshiko, mas gostava bastante dela. Entendíamo-nos bem e éramos sempre honestos um com o outro. Com ela aprendi muito acerca de nós – ensinou-me como os seres humanos podem ser maravilhosos e a reconhecer os seus pontos fortes e as suas fraquezas. Acabei por fazer alguns amigos e comecei a interessar-me por política. Não vou dizer que mudei de personalidade nem nada que se pareça. Sempre me tive na conta de uma pessoa com os pés bem assentes na terra, e continuo a pensar que nada mudou. Não escrevo romances, e tu não importas mobiliário. Sabes do que eu estou a falar. Na faculdade aprendi que, neste mundo, existem várias realidades. É um mundo vasto, o nosso, onde coexiste toda a ordem de valores, e não é preciso ser sempre o melhor. E foi assim que me aventurei no mundo.

– E safaste-te muito bem.

–Acho que se pode dizer isso – comentou ele, suspirando. Depois encarou-me com um olhar cúmplice. – Comparado com outras pessoas da minha geração, levo uma boa vida. Por isso, de um ponto de vista prático, sim, acho que se pode dizer que tive êxito.

Dito aquilo, calou-se. Sabendo que a história dele ainda não tinha chegado ao fim, deixei-me estar pacientemente sentado, à espera que ele retomasse o fio à meada.

– Depois disso fiquei sem ver Yoshiko durante muito tempo – prosseguiu ele. – Muito, muito tempo. Acabei o meu curso e comecei a trabalhar para uma firma de exportações. Trabalhei ali quase cinco anos, e algum desse tempo vivi no estrangeiro. Os meus dias eram passados a trabalhar. Dois anos depois de me ter licenciado, soube que Yoshiko tinha casado. Foi a minha mãe que me deu a notícia. Não lhe perguntei com quem. A minha primeira reacção, ao receber aquela informação, ao saber da história, foi pensar se ela teria conseguido manter a virgindade até ao casamento. Confesso que isso me fez ficar um bocadinho triste. No dia seguinte, a tristeza era ainda maior. Tinha a sensação de que algo de importante chegara ao fim, sem apelo nem agravo, como uma porta que se tivesse fechado atrás de mim para sempre. O que era de esperar, uma vez que gostava dela a sério. Tínhamos andado juntos durante quatro anos e, no fundo, acho que sempre me tinha agarrado à esperança de que um dia viéssemos a casar. Ela desempenhara um importante papel na minha vida, por isso era muito natural que me sentisse triste. Ao mesmo tempo, porém, desejei que ela fosse feliz. A sério, foi o que senti. O que não me impedia de ter um bocadinho de medo por ela. Havia algo nela de uma extrema fragilidade.

 

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O empregado aproximou-se para levantar os pratos, trazendo com ele o carrinho dos doces. Recusámos sobremesa e pedimos só café.

– Casei-me tarde, com trinta e dois anos. Por isso, quando Yoshiko me ligou, ainda estava solteiro. Tinha na altura vinte e oito anos, o que significa que já foi há mais de dez anos. Tinha acabado de me despedir da empresa e estabelecera-me por conta própria. Convencido de que o sector de importação de mobiliário iria crescer, pedi ao meu pai dinheiro emprestado e fundei a minha pequena empresa. Porém, apesar dos meus palpites, as coisas não correram lá muito bem nos primeiros tempos. As entregas registavam atrasos, havia mercadoria que ficava em armazém, os custos de armazenagem não paravam de aumentar, era preciso amortizar os empréstimos. Para ser franco, sentia-me sobrecarregado e sem saber para onde me virar, e nunca a minha confiança andara tão por baixo. Foi sem dúvida a fase mais difícil da minha vida. E precisamente durante esse período negro Yoshiko entrou em contacto comigo, um dia, já perto das oito da noite. Não sei como é que ela terá arranjado o meu número de telefone, mas a verdade é que ela me telefonou. Reconheci de imediato a sua voz. Como é que a poderia ter esquecido, quando me trazia tantas recordações boas? Estava de tal maneira em baixo, que me soube maravilhosamente bem tornar a ouvir a voz da minha antiga namorada.

Ele olhou fixamente para a lenha que ardia na lareira, como se procurasse reunir as recordações. Entretanto, o restaurante enchera-se de gente e só se ouvia as vozes e o riso das pessoas, o barulho dos pratos e talheres. Pelos vistos, tratava-se na sua maioria de clientes habituais, habituados a tratar os empregados pelo nome próprio: Giuseppe! Paolo!

– Quem lhe teria contado, não sei, mas a verdade é que ela estava a par de tudo relativamente à minha pessoa. A história de eu continuar solteiro e de ter ido trabalhar para fora do país. De me ter despedido há cerca de um ano a fim de criar a minha própria empresa. Sabia tudo. «Não te preocupes», disse-me ela, vais ver que consegues. «Tem confiança nas tuas capacidades. Tenho a certeza de que vais conseguir o que pretendes. Só podes.» Ouvi-la dizer aquilo deixou-me feliz da vida. Falava com tanta ternura. «Vou conseguir», pensei, «vou ter êxito naquilo que me proponho.» A voz dela fez-me recuperar a confiança. «Desde que continue a ser realista», pensei ainda, «sei que vou conseguir. Sinto que lá fora o mundo espera por mim.» – Ao dizer aquilo, sorriu.

«Depois foi a minha vez de fazer perguntas acerca da vida dela. Com quem estava casada, se tinha crianças, onde morava e por aí fora. Não tinha filhos. O marido era quatro anos mais velho e trabalhava como realizador num canal de televisão. Fiz um comentário qualquer acerca de ele ser com certeza uma pessoa muito ocupada. Tão ocupado que nem sequer tempo tinha para fazer filhos, confirmou ela, com uma risadinha. Viviam em Tóquio, num apartamento no distrito de Shinagawa. Na altura eu vivia em Shiroganedai. Sem se poder dizer que fôssemos vizinhos, até vivíamos relativamente perto um do outro, o que não deixava de ser uma coincidência. Comentei esse aspecto com ela. Em todo o caso, a nossa conversa andou à roda dessas e de outras coisas do género que duas pessoas que andaram a estudar juntas costumam falar. Por vezes caía em mim e ficava com uma sensação estranha, mas até me soube bem ter estado à conversa com ela. Conversámos como dois amigos que há muito não se viam e que seguiam agora por diferentes caminhos. Há muito tempo que não me lembrava de falar assim tão livremente e tão abertamente com alguém. Estivemos à conversa tempos infindos. Depois de termos dito um ao outro tudo o que havia para dizer, ficámos em silêncio. Estamos a falar – como é que hei-de dizer – de um silêncio extremamente profundo. Um daqueles silêncios que, mal uma pessoa fecha os olhos, faz com que lhe venham à cabeça toda a espécie de imagens. – Ele deixou-se estar um bocado sem tirar os olhos das suas mãos, em cima da mesa. Depois levantou a cabeça e olhou-me de frente. – Quando me dei conta, só me apeteceu desligar. Obrigado por teres telefonado, foi muito bom falar contigo passado tanto tempo. Essas coisas todas, tu sabes.

– Se quisermos ser práticos, isso teria sido a atitude mais realista – alvitrei.

– Mas a verdade é que ela não desligou. Em vez disso, convidou-me para ir a casa dela. «Podes vir cá ter?», perguntou. «O meu marido está fora em viagem de trabalho e eu aborreço-me sozinha.» Como não sabia o que dizer, deixei-me ficar calado. E ela a mesma coisa. Durante algum tempo fez-se silêncio, até que ela disse: «Ainda não me esqueci da minha promessa.»

 

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Ainda não me esqueci da minha promessa, tinha ela dito. A princípio, ele não percebeu a insinuação. Foi então que lhe voltou tudo à memória. Ela tinha-lhe prometido dormir com ele depois de estar casada. Nunca lhe passara pela cabeça que a promessa fosse para cumprir; tinha mais aspecto de ser uma daquelas frases desgarradas que ela deixava escapar num momento de desvario.

Na verdade, porém, ela não proferira a dita frase num momento de desatino. Aos olhos dela, tratava-se de uma promessa a sério, uma obrigação a que se comprometera.

Por momentos, ele ficou sem saber o que pensar, quanto mais o que fazer. Olhou em volta, completamente perdido, mas em parte alguma encontrou um sinal que lhe indicasse a direcção a seguir. Naturalmente que ele gostaria de ir para a cama com ela – isso nem se pergunta. Depois de se terem separado, ele deitava-se muitas vezes a imaginar como seria fazer amor com ela. Mesmo quando se encontrava deitado com outras raparigas, às escuras, punha-se a imaginá-la nos seus braços. Não que ele a tivesse alguma vez visto nua – o que conhecia do seu corpo, era o que as suas mãos lhe tinham permitido sentir por baixo da roupa.

Ele sabia perfeitamente até que ponto dormir com ela, naquela conjuntura, representaria um perigo para ele. Podia significar um grande desgosto. Além do mais, não tinha vontade nenhuma de reacender aquilo que em tempos deixara para trás, enterrado na escuridão do passado. No fundo, sabia que não era uma coisa de que se pudesse orgulhar. Havia ali qualquer coisa de pouco realista, qualquer coisa que destoava da pessoa que ele era.

Apesar de tudo, acedeu a encontrar-se com ela. Acaso poderia ser de outra maneira? Pensando bem, todo aquele episódio tinha o seu quê de conto de fadas, daqueles que só acontecem uma vez na vida. A sua antiga namorada, por sinal uma princesa, com quem ele passara os melhores dias da sua juventude, acabara de lhe dizer que estava interessada em ir para a cama com ele e que gostaria que ele aparecesse lá em casa o mais cedo possível – sem esquecer que ela morava muito perto. Se mais não fosse, havia ainda a considerar aquela mítica promessa, trocada há muito, muito tempo, no coração de um bosque misterioso.

Ele manteve-se durante muito tempo de olhos fechados, sem falar. Dava-lhe a impressão de ter perdido a fala.

«Ainda aí estás?», quis saber ela.

«Sim estou», respondeu ele. «Tudo bem, vou aí ter. Devo chegar dentro de meia hora, se tanto. Dá-me a morada.»

Assentou a morada do condomínio onde ela morava e o número do apartamento. Fez a barba rapidamente, mudou de roupa e desceu à rua para apanhar um táxi.

 

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– Se estivesses no meu lugar, terias feito o quê? – perguntou-me ele. Abanei a cabeça. Não tinha resposta para uma pergunta difícil como aquela.

Ele riu-se e pôs-se a olhar para a chávena de café.

– Quem me dera a mim ter-me safado sem responder, também. Infelizmente não pude. Vi-me obrigado a ter de tomar uma posição, ali mesmo. Ou ia ter com ela ou não ia. Era uma das duas coisas, não havia lugar para meios-termos. De maneira que lá acabei por ir ter a casa dela. Estava eu a bater à porta e a pensar como seria bom se ela não estivesse em casa. Mas estava. Tão bonita como dantes. Cheirava maravilhosamente bem, tal como me lembrava. Tomámos duas ou três bebidas e conversámos acerca dos velhos tempos, enquanto ouvíamos velhos discos de vinil. E o que é que aconteceu a seguir, não me dizes?

Disse-lhe que não fazia a mínima ideia.

– Há muito tempo, quando era criança, li uma vez uma história – contou ele, sem nunca deixar de olhar fixamente para a parede da frente. – Já não me lembro bem de tudo, mas nunca me esqueci da última frase. Se calhar, por ser a primeira vez que lia um conto de fadas com um final tão fora do vulgar. Rezava assim: «E quando acabou, o rei e os seus conselheiros escangalharam-se a rir que nem uns perdidos.» Não achas este final um tanto estranho?

– Achar, acho.

– Adorava lembrar-me do resto, mas não há maneira de atinar. A única coisa que me ficou foi aquela estranha frase final. «E quando acabou, o rei e os seus conselheiros escangalharam-se a rir que nem uns perdidos.» Que género de história poderia ter sido?

Entretanto já tínhamos acabado de beber os nossos cafés.

– Ficámos nos braços um do outro – continuou ele –, mas não tivemos relações sexuais. Não lhe tirei a roupa. Tal como nos bons velhos tempos, limitei-me a explorar o corpo dela com os meus dedos. Achei que era a melhor coisa a fazer, e pelos vistos ela também era dessa opinião. Deixámo-nos ali estar durante muito tempo, a tocar no corpo um do outro. Foi a única maneira que encontrámos de enfrentar uma situação que visivelmente nos escapava. Se a cena se tivesse passado há mais tempo, teria sido diferente – e nós teríamos dormido juntos e, quem sabe, começado a sentirmo-nos mais próximos. Talvez até tivéssemos sido mais felizes. A verdade, porém, é que já tínhamos passado essa fase. Essa hipótese encontrava-se encerrada e definitivamente arquivada. E nunca mais voltaria a ser abordada.

Ele dava voltas e mais voltas à chávena de café na mão, de tal maneira que o empregado apareceu para ver se era preciso alguma coisa. Por fim, voltou a pousar a chávena, chamou outra vez o empregado e mandou vir mais um expresso.

– Devo ter estado para aí umas duas horas no apartamento dela. Não me lembro. Se por lá tivesse ficado mais tempo, o mais certo era passar-me da cabeça – confessou ele com um sorriso. – Despedi-me dela e vim-me embora. Foi a última vez que nos vimos. Eu sabia disso, e ela também. Quando olhei para trás pela derradeira vez, estava ela parada à porta, de braços cruzados. Parecia querer dizer alguma coisa, mas não o fez. Ela não precisava de dizer as coisas em voz alta – eu sabia perfeitamente o que tinha para dizer. Aquilo fez-me sentir muito mal... extremamente vazio. Oco. Os sons chegavam até mim de forma estranha, tudo à minha volta parecia distorcido. Vagueei ali por perto sem rumo certo envolto numa espécie de torpor, a pensar em como a minha vida até aí não tivera qualquer sentido. Queria voltar para trás, regressar a casa dela, apertá-la nos meus braços e possuí-la, mas não consegui. Nunca seria capaz de semelhante coisa.

Ele fechou os olhos e abanou a cabeça. Depois bebeu o seu segundo café expresso.

– Não me é fácil contar-te isto, mas nessa noite fui até à cidade e dormi com uma prostituta. Foi a primeira vez na minha vida que paguei para ter sexo. E provavelmente também a última.

Fiquei durante algum tempo a olhar para a minha chávena de café, enquanto reflectia sobre mim e pensava em como até aí costumava ser tão orgulhoso. Bem gostaria de lhe ter falado nesse aspecto, mas não me quis parecer que conseguisse encontrar as palavras certas.

– Agora que desabafei contigo e te contei tudo, parece-me uma história daquelas que só acontecem aos outros – confessou ele, a sorrir. Nos minutos seguintes ficou calado, perdido nos seus pensamentos. Pela minha parte, também não acrescentei nada.

– «E quando acabou, o rei e os seus conselheiros escangalharam-se a rir que nem uns perdidos» – rematou ele. – Esta frase vem-me logo à cabeça sempre que me lembro do que aconteceu. É uma espécie de reflexo condicionado. Tenho para mim que tudo o que acontece de triste tem sempre qualquer coisa de cómico.

 

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Tal como eu avisei logo ao princípio, não há qualquer moral a extrair desta história. Acontece que isto foi uma coisa que se passou de facto comigo. Uma coisa que se passou com todos nós. Por isso é que não me deu vontade de rir quando ela me foi contada. Ainda hoje não lhe consigo achar graça.

8 Um dos mais destacados escritores japoneses, agraciado com o Nobel da Literatura em 1994. Em início de carreira, Murakami foi por vezes comparado com ele, quando os críticos pretendiam acusá-lo de ceder aos interesses de uma população eminentemente jovem, em detrimento dos valores de uma escola literária mais antiga e profunda, representada pelos romances de Oe. Por ironia do destino, coube-lhe entregar a Murakami o mais alto galardão japonês (Prémio Literário Yomiuri). (N. da T.)