Sim, é como uma carta de amor. 
Três anos passaram desde que nos separámos e as minhas feridas estão a cicatrizar. Como tinhas previsto. Às vezes, quando a tensão se torna insuportável, tomo um autocarro e vou a Telavive ver-te. Ando pela praia, piso as conchas, as algas e as espinhas de peixe, e quando não há muita gente à volta, chego a falar em voz alta. Para te contar que o livro avança, que há três anos que dura este torag , a luta obstinada entre mim e o peixe Bruno. Entretanto consegui fazer umas quantas coisas. Gosto de repetir a lista. Gosto de listas: consegui – finalmente! – terminar a história do avô Anshel, a história que ele contou ao alemão Neigel; e também acabei de escrever a história do bebé Kazik, aquele disparate, aquela catástrofe, a que Ayala chamou o meu «crime contra a humanidade», que lhe faça bom proveito! 
Mas o principal é a história de Bruno. É por causa dela que eu vou ter contigo quase todas as semanas: para te ler ao ouvido mais um trecho que acrescentei e também, é claro, para extrair das tuas profundezas as informações frescas aí ocultas, para te seduzir e levar-te a revelar-me coisas, para poder sentir em ti a lembrança do cheiro de Bruno de que estás impregnada, pois a meus olhos vocês já são indissolúveis, e é por isso que tu entras na minha história e que te conto isto apesar de saber que te enfurece. É evidente que nunca confessarás que me reconheces quando eu chego à praia, mas eu conheço-te: ouço os teus rugidos de desprezo assim que ponho o pé no dique. Vejo o teu corpo arquear-se todo para me arrebatares. 
Mas eu sou prudente. Foste tu própria que o disseste. 
As pessoas ouvem dizer que eu me interesso por Bruno e mandam-me material sobre ele. Fica sabendo que escreveram imenso sobre ele. Principalmente em polaco, mas também noutras línguas. E descobri uma série de teorias sobre o manuscrito perdido d’ O Messias , que ninguém chegou a ler. Há quem afirme que Bruno procurava atrair o Messias ao gueto de Drohobycz pela força mágica da sua prosa. Outros, que escreveu sobre o Holocausto e os últimos anos da ocupação nazi. Mas nós os dois sabemos bem que não é assim. Que era a vida que lhe interessava. A vida normal, simples, a vida de todos os dias; para ele, o Holocausto era um laboratório que perdera a razão, que acelerava e intensificava todos os processos humanos… 
Seja como for, todos o louvam; dizem que é um dos maiores escritores do nosso século, que se compara a Kafka, Proust e Rilke. Não concordam que eu escreva sobre ele. Insinuam com tato que para tal tarefa exige-se no mínimo um escritor da sua envergadura. Mas eu não me importo. Não é sobre o Bruno deles que eu escrevo. Leio por delicadeza tudo o que eles escrevem e depois rasgo as cartas deles em mil pedacinhos, e quando vou ter contigo a Telavive, subo a este dique, vagueio pelos rochedos e, como deves saber, de repente reviro as algibeiras, sacudo-as como se estivessem sujas, e, plim-plum, os pedacinhos de papel caem à água – ninguém viu nada. Na verdade, é para ti que eles são importantes. E mesmo que odeies os discursos doutos como este, tenho a certeza de que vais colar os fragmentos todos e guardá-los numa gaveta esquecida do teu arquivo aquático. Não permitirás a ti própria renunciar a tais documentos. 
E ainda te quero dizer que reencontrei o meu eu antigo. Quero dizer que voltei ao meu estilo de escrita. Ao dos poemas que escrevia antes. E que Bruno vai largando aos poucos a minha pena. Como se eu estivesse a mudar da pele de Bruno. Só me restam dele alguns cadernos, e ninguém saberia dizer quem os escreveu, se foi ele ou eu. Mas tu e eu sabemos que eu fui apenas um instrumento, a mão que escreveu. O elo fraco através do qual a sua energia contida se libertou. 
E além disso, há ainda a nossa história. Uma história com um princípio, um meio e um fim com mar ao fundo. A aventura amorosa que me deixaste espiar durante duas semanas na pequena aldeia de Narwia, perto de Danzig, hoje Gdansk, no mês de julho de 1981. E há ainda a minha Ruth que conseguiu chegar ao fim deste túnel. Que superou todos os que queriam arrancar-me a ela, bem como os meus estados de alma, as minhas angústias e o terrível período de que não quero lembrar-me, quando me afundei no paradoxo de Zenão; e também a minha crueldade com ela. E com Ayala. 
Não consigo deixar de voltar a ti. Eu, o grande especialista da reconstrução, que nada posso fazer por mim, volto vezes sem conta para te contar a história tal como realmente se passou, e que não consigo escrever como devia: não com a razão, mas com espírito de sacrifício. Do princípio ao fim. E agora vais escutar, por uma vez, coisas que não têm a ver contigo, escutar pacientemente e em silêncio (não estou a exigir que escutes por interesse, longe de mim) tudo o que aconteceu desde que regressei de Narwia, mas, por amor de Deus, vais mesmo escutar, quero dizer: deixa o Bruno que há em ti escutar. 
No dia 25 de maio de 1980 (lembro-me da data exata) recebi, como presente de despedida de Ayala, o livro de Bruno Schulz, As Lojas de Canela . Não só nunca tinha ouvido falar do autor, como o som germânico do nome me desagradou. Mas comecei logo a lê-lo, principalmente devido às condições amargas em que me fora oferecido e também por aquela que mo oferecera. 
Ao fim de dez páginas já tinha esquecido quer as circunstâncias quer Ayala e estava a ler o livro por ele próprio, como se lê uma carta que nos chega transviada, ou uma notícia incompleta sobre um irmão que há muito pensávamos morto. Foi o primeiro livro que reli imediatamente do princípio mal acabei de o ler. E desde então quantas vezes o reli! Durante imensos meses não senti necessidade de ler outro livro. Para mim, aquele era o «Livro», no sentido em que o próprio Bruno ansiara: « um volume imenso, sussurrante, uma bíblia agitada, através de cujas páginas o vento soprava devastando-a como uma grande rosa murcha… » e li-o, creio, como o mereceria uma carta perdida: sabendo que o que está escrito nas páginas é menos importante do que aquelas que se perderam ou rasgaram; como aquelas em que é proibido escrever claramente, por receio de poderem ir parar a mãos erradas… 
E fiz aquilo que nunca mais tinha feito desde a minha meninice: comecei a copiar parágrafos inteiros para um caderno, para melhor os compreender e reter e para sentir as palavras a deslizarem pela caneta e a agruparem-se na folha. Na primeira página escrevi, naturalmente, o seu testemunho indireto segundo o qual a mão de Deus havia aflorado o seu rosto durante o sono, transformando-o em alguém que sabia coisas sem o saber, alguém cheio de presságios, alguém que sob as pálpebras fechadas via desfilar reflexos de mundos longínquos… 
Uma noite, algumas semanas mais tarde, acordei de repente com a certeza de que Bruno não fora assassinado no ano de 42, no gueto de Drohobycz, mas que se evadira de lá. Digo «evadira» não na aceção comum e restrita da palavra, mas, digamos, na que Bruno teria dado a «reformado», para designar aquele que teria passado a fronteira do possível, do conhecido, e entrado dessa forma no campo magnético de uma dimensão outra da existência, viajante transportando uma bagagem particularmente leve… Quando acabava de copiar passagens inteiras do livro, a minha caneta agitava-se ainda um pouco, torcia-se sobre o papel e largava mais uma ou duas linhas que eram minhas, mas – como dizê-lo? – ditadas pela voz dele, como se, escutando-o atentamente, eu adivinhasse a sua necessidade imperiosa de se exprimir, agora que a mão lhe fora arrancada. Aliás eu conheço bem essa angústia, o sufoco do escritor exilado como ele, «exilado» no sentido mais vasto, porque eu, sabe-lo bem, apenas lhe emprestei a mão e a caneta. 
É tão estranho. E um pouco assustador. 
Com efeito, pensa num poeta hebraico como eu, que já escreveu quatro livros num estilo muito particular, estilo esse que um dos críticos mais conceituados, dos que escrevem com o dedo mindinho levantado, chamou de «escrita de lábios contraídos» – Ayala dizia muito simplesmente «forreta e medricas» – e de repente aqui, no caderno, uma profusão de cores e de palavras ofegantes, em suor, como uma dança nupcial de pavões, ou uma nuvem irisada de colibris, escreveu Bruno um dia. 
(Ou fui eu que escrevi?) 
Bruno Schulz. Judeu. Provavelmente o escritor polaco mais importante do período entre as duas guerras. Filho de um comerciante de tecidos excêntrico. Professor de pintura e de desenho técnico no Liceu de Drohobycz. Um homem solitário. 
E o pai de Bruno. Uma cabeça de profeta cheia de sonhos, que se transformou em caranguejo gigante à força de querer atingir pela magia os limites da existência humana. O pai, ao contacto de quem todas as coisas volviam às suas raízes originais, como à ideia primeira, para logo as negarem, aspirando às regiões mais incertas e ambíguas a que Bruno chamava regiões da grande negação. 
E o tio Eduardo que, para satisfazer a sua paixão pelos arrepios metafísicos, deixara o pai de Bruno desmontar peça a peça o mecanismo complexo do seu ser e ficar nu e idêntico a si mesmo até aos limites do possível. O pai, escrevia Bruno, ligara-o – ou talvez seja melhor dizer, ligara o sopro do seu ser – à campainha elétrica baseada na invenção de Neef; desde então, o tio passou a funcionar de forma perfeitamente responsável: a própria mulher, Teresa, não conseguia deixar de estar sempre a carregar no botão da campainha a fim de ouvir o som forte e gritante no qual ela reconhecia a sua voz antiga quando estava zangado…  
Ou então a louca Tłuia que vivia no meio do esterco, fonte da vitalidade feminina, pagã, do lixo; ou o tio Hieronim que, liberto das complexidades da vida, se retirara com a tia Retycja para um pequeno quarto, e aí levava a cabo um combate incessante e cheio de ódio contra o leão gigante e furibundo, para sempre aprisionado na tapeçaria do quarto do casal. Todos, realmente todos. 
E em 1941, quando os alemães entraram em Drohobycz, Bruno foi obrigado a deixar a sua casa, e mudou-se para uma casa da Rua Stolarska. Por ordem das autoridades pintou frescos gigantes nas paredes da escola de equitação, e organizou o catálogo dos livros censurados pelos alemães. Para sobreviver foi ainda obrigado a trabalhar como «judeu doméstico» (pequenos trabalhos de carpintaria, pintura de letreiros, retratos de família, etc…) em casa do oficial das SS Félix Landau. 
Félix Landau tinha um rival – outro oficial das SS, que se chamava Karl Günther. No dia 19 de novembro de 1942, à esquina das ruas Czacky e Mickiewicz, Karl Günther deu um tiro em Bruno e depois, segundo consta, foi ter com Landau e disse-lhe o seguinte: «Matei o teu judeu.» E Landau respondeu: «Se assim é, vou já matar o teu judeu.» 
Tu ainda estás comigo, sei-o: a superfície da água ficou por instantes petrificada. Duas gaivotas chocaram com um barulho de vidro. Tu estás aqui. 
Matei o teu judeu. Se assim é, eu vou matar… 
Assim. 
Magoei-te. Sei-o. Também me magoo a mim próprio com essas palavras. 
Mas agora escuta. Vamos falar de outras coisas. Mudemos de assunto. Não quero fazer mal a ninguém. Tenho de te contar uma outra coisa. Escuta: 
Durante anos, após o desaparecimento do avô Anshel, continuei a balbuciar a melopeia da história que ele contava ao alemão. Tentei escrevê-la duas ou três vezes antes da minha viagem à Polónia, mas falhei. A cólera e a frustração foram-se acumulando dentro de mim, bem como as saudades dele, do velho que vivia há anos encerrado na sua história, navio fantasma escorraçado de todos os portos, enquanto eu, o único que podia salvá-lo, libertá-lo da sua história, não conseguia nem ousava. 
Por conseguinte comecei a procurar as obras do avô. Espiolhei nos velhos arquivos, nas bibliotecas poeirentas dos kibutzim mais distantes, nos velhos jornais que se desfaziam ao mínimo toque e me faziam lembrar as pinturas rupestres que se esvaem à luz das lanternas dos exploradores. No espólio de um escritor iídiche que morreu num lar para idosos no monte Carmel, em Haifa, encontrei um verdadeiro tesouro: quatro números amarelecidos do jornal Luzinhas (chefe de redação: Shimon Zalmanson), que saíram no ano de 1912, em Varsóvia. Continham quatro capítulos inteiros de mais uma aventura dos meninos de coração de oiro, em que eles arrancavam o gladiador romano ( O Gladiador Anton ) das garras do leão. Li avidamente: agora já era capaz de detetar algumas fraquezas no talento de narrador de Anshel Wasserman, mas isso em nada diminuiu o meu prazer e as grandes saudades que sentia dele e da sua prosa arcaica, essa língua inspiradora dos profetas de outrora, e da guerra que ele parece ter levado a cabo durante toda a sua vida, «a única guerra que existe», para citar o chefe do bando, Otto Brieg, nesse mesmo fragmento da história. 
Foi assim que consegui reunir algumas das suas obras: uns quantos episódios publicados no jornal infantil Os Rebentos (Cracóvia, 1920; seria interessante saber se o avô recebeu direitos de autor pela publicação das suas histórias noutros periódicos), entre os quais, a narrativa da luta que os meninos de coração de oiro levaram a cabo ao lado de Louis Pasteur na luta contra os micróbios da raiva; uma tradução polaca da história em que os membros do bando ajudam as crianças vítimas da fome e das inundações na Índia, na viragem para o século XX ; e outros fragmentos de aventuras à volta do mundo. Percorri o país inteiro para espiolhar os sótãos bolorentos de velhos já falecidos, na esperança de aí encontrar algo. Era muito importante para mim, e por isso dediquei-lhe todos os meus tempos livres. 
Nessa época encontrei por acaso um estudo sobre a imprensa infantil do princípio do século na Polónia que o citava: «Anshel Wasserman, contista iídiche.» Segundo o estudo, «as opiniões divergem» quanto à qualidade e importância da sua obra, e «deteta-se uma influência muito forte, que chega a ser embaraçosa, de escritores contemporâneos», apontando ainda, com a ênfase habitual dos especialistas, que «o valor literário das suas obras é mínimo, sendo o seu objetivo principal o de incutir no jovem leitor alguns conceitos básicos sobre acontecimentos e personalidades históricos»; mas o autor do artigo via-se obrigado a reconhecer, ainda que por meias-palavras, que «aquelas historietas simples, conhecidas pelo título de Os Meninos de Coração de Oiro , conquistaram um sucesso surpreendente entre os jovens leitores, chegando a ser traduzidas para o polaco, o checo e o alemão, e publicadas numa série de jornais ilustrados infantis de vários países europeus». 
O investigador apontava ainda – não sem uma certa crítica – que o avô fora «um dos raros autores que, embora escrevendo numa época de efervescência nacional e linguística (o princípio do século XX ), tratou principalmente de assuntos universais e gerais, sem dar relevo à questão nacional judaica, ou ignorando-a pura e simplesmente, o que poderia explicar o seu sucesso entre as crianças dos vários países, e uma popularidade que outros escritores hebreus muito superiores, conscientes da sua missão nacional sionista, nunca conseguiram conquistar». 
Fiquei furioso contra aquele «investigador» tão cheio de si: não se pode estudar Anshel Wasserman com os lugares-comuns da crítica literária. Como é que ele não percebeu? 
Mas a história, a história singular e única do avô Anshel e de Herr Neigel, ainda não a escrevi. 
Quando voltei de Narwia, recomecei a escrever. Por causa de Bruno. Por causa do que me dissera, ou se calhar, apesar do que me dissera. Julga-o por ti própria, se é que queres ouvir-me. Não consegui escrever a história. Comecei a juntar documentação: citações de obras sobre o Holocausto, fragmentos de testemunhos das vítimas, análises psicológicas dos assassinos, registos dos processos de instrução. Ruth dizia: mas tu não precisas disso tudo. Porque teimas em tornar tudo mais difícil? Afogas-te nesses pormenores inúteis. Afinal de contas, o teu avô e Neigel eram apenas duas pessoas, dois seres humanos; um contou ao outro uma história, eis tudo. Ruth estava a tentar ajudar-me, como sempre. Mas tínhamos chegado a um ponto da nossa vida em comum em que o mínimo comentário se transformava em provocação. 
Ainda estás aí? 
Estás a abanar a cabeça de piedade perante as minhas tentativas infrutíferas de contar a história. Consigo ouvir-te murmurar, se é assim que ele escreve, mais vale que não escreva sobre mim, que não me seque nas suas páginas, que não faça de mim um ser insípido nos seus cadernos. Porque comigo, meu querido, há que escrever com paixão selvagem, com a tinta destilada por seres únicos, extraída das secreções mais fortes de machos e fêmeas, e do desejo vital, não assim, meu querido… 
Mas escuta! Seja como for, escuta. 
Enquanto tentava escrever a história de Anshel Wasserman, a minha vida ia-se tornando cada vez mais circunscrita. O filósofo grego Zenão afirma num dos seus conhecidos paradoxos que o movimento é impossível, e que uma coisa que se move no espaço nunca poderá chegar de um ponto a outro, porque o espaço entre os dois pontos se divide e subdivide, até ao infinito, de forma que a coisa terá de transpor um espaço cada vez mais pequeno para avançar até não poder mexer-se mais. Foi precisamente o que me aconteceu: escrevia, mas não conseguia avançar de uma palavra para a seguinte, de uma ideia para a outra. A caneta entrincheirava-se no papel com um gaguejar horrível. Nessa época tinha uma mesa reservada na biblioteca do Yad Vashem, e as bibliotecárias já me conheciam. Todos os dias às dez da manhã fechava os livros e ia comer alguma coisa na cafetaria. Um pãozinho com um ovo cozido e um tomate. E depois um café e um bolo seco ótimo que lá costumam servir. Escutava os trabalhadores, que falavam sobre os filhos e o último salário. E pensava com desespero: algures neste gigantesco edifício há um quarto branco e vazio cujas paredes são feitas de uma membrana particularmente fina, e eu não o encontro. 
Às cinco da tarde Ruth voltava do trabalho e, de caminho, ia buscar-me no nosso Mini Minor todo amachucado. Dava-me uma olhadela quando eu entrava no carro, percebia logo e apertava os lábios para não dizer alguma coisa que desse azo a uma discussão. Ainda não tínhamos um filho. Yariv ainda não era deste mundo. Ela fizera vários tratamentos repugnantes e caros de que eu não queria saber nada. Estava disposto a pagar, claro, tudo o que fosse preciso, e a fazer amor com ela todas as manhãs às seis e meia em ponto; mas ouvir os pormenores terapêuticos das injeções e dos seus efeitos, isso não, obrigado. De qualquer maneira, ela não tinha qualquer razão de queixa: eu tinha-a avisado antes do casamento de que não podia contar comigo em caso de necessidade. Ninguém é perfeito. Mas era um acordo decente, porque eu também não espero a ajuda de ninguém, nem sequer dela. É claro que este tipo de discursos a punham fora de si. Às vezes, quando voltava da clínica do último ginecologista idolatrado, agredia-me com uma violência de que ela própria não imaginava ser capaz. Nunca a tinha visto perder o controlo daquela maneira; todas as barreiras da sua habitual contenção caíam. O rosto largo e rude, que oscilava entre o encanto e a vitalidade de uma camponesa, tornava-se feio e bestial. Eu, como de costume, mantinha o sangue-frio e o equilíbrio, unicamente preocupado em evitar que ela se magoasse com aqueles ataques de histeria. Por vezes, quando não me restava outra alternativa, dava-lhe uma bofetada rápida e precisa, e ela acalmava-se, dobrava-se toda sobre si própria e adormecia a soluçar. Eu desprezava-a por toda a imundície que ela atirava cá para fora quando berrava comigo. Mas tinha reparado que aquelas explosões tão curtas e violentas lhe davam um alívio rápido. Era capaz de vir ter comigo depois para fazermos amor como se nada fosse. As mulheres têm coisas que eu nunca conseguirei entender. Dizia-me, no fundo, não acreditas minimamente nessas coisas que dizes. Vingas-te em mim de algum conflito interior teu, e não é justo, Momik. 
Talvez ela tenha razão. Não sei. Às vezes gostaria tanto de me resgatar. Choro de emoção só de imaginar que um dia ela poderá estar muito doente, e eu salvo-a doando-lhe um dos meus rins. Não consigo pensar em sacrifício mais nobre. Às vezes quase espero que isso aconteça. Então é que ela verá: a vida comigo ganhará a seus olhos outra dimensão. Compreenderá toda a verdade e o seu coração sangrará. Meu amor, o inferno em que tu tens vivido este tempo todo! 
Tentei outra pista. No inverno de 1946, decorreu em Varsóvia, numa simples escola, o julgamento de Rudolf Höss, comandante do campo de Auschwitz. Durante umas quantas semanas entretive-me com a ideia de escrever uma reconstituição do processo: Anshel Wasserman contra Rudolf Höss. Algumas passagens até me pareceram menos más. Wasserman conseguirá «recambiar Höss para Chelm»? No banco das testemunhas, o meu avô ergue-se e profere um insulto terrível contra Höss, cujo rosto se torna surpreendentemente parecido com o da caricatura do antissemitismo de Der Stürmer . «E agora, senhor Höss», diz o avô proferindo o seu veredicto, «é livre de percorrer o mundo, e que Deus tenha misericórdia da sua alma pecadora.» Trabalhei nesta história durante alguns meses. Decidi seguir o conselho de Ruth e obedecer às ordens sarcásticas de Ayala de evitar os factos. Escrevia febrilmente. A cantilena interior ia-se tornando cada vez mais distinta. Agora já podia afirmar com certeza que era a mesma voz igual e monótona com que o avô me contava a história há vinte e cinco anos, mas ainda era apenas a melodia sem as palavras. Cheguei a interrogar-me se as pessoas à minha volta também a ouviriam. 
Mas essa história também não chegou ao fim. Não consegui pôr Anshel Wasserman a olhar de frente para Höss. Ao que parece, há coisas que nem aos heróis da história que estamos a escrever podemos exigir. Quando escrevia poemas nunca pensei no assunto. Talvez porque nos meus poemas nunca tivesse colocado duas pessoas frente a frente. Provavelmente, disse Ruth, mas o teu avô e o alemão são dois indivíduos, deixa pois que aconteça o que acontece entre duas pessoas. Era preciso que eu soubesse o que acontece entre duas pessoas, disse-lhe. Tenho de voltar atrás e basear-me apenas nos factos. Compreender as pessoas nunca foi o meu forte. Não podemos ter todos os dotes, não é? 
Consultei os números do Times de 1946. Eis como o nosso enviado a Varsóvia descreveu o julgamento do século: «Os espectadores estão sentados dois a dois nas escrivaninhas da escola. O criminoso, Höss, de olhos tristes e inteligentes, usa um uniforme verde-claro.» Continuei a ler e apontei uma palavra nova da descrição: ludobócja . Uma palavra polaca inventada especialmente para Höss. Ludobócja – algoz de povos. A palavra «assassino» não era suficiente para ele. Se alguma vez conseguir realizar o velho sonho de redigir a primeira Enciclopédia do Holocausto – vítimas e algozes lado a lado – incluirei também o termo ludobócja . Caía neve nas janelas da escola do bairro de Praga, em Varsóvia. A propósito: nos campos de extermínio a neve tinha um cheiro especial por causa da cinza. O que me acontecerá quando todos estes factos explodirem dentro de mim? Quero escrever e não consigo libertar-me das inibições e bloqueios. Não posso dar o mínimo passo devido ao meio passo que tenho necessariamente de dar antes. Fiquei preso na armadilha do paradoxo de Zenão. O procurador disse a Höss: «Réu, é impossível proceder à leitura de todas as acusações que pesam sobre si, porque preenchem vinte e um volumes de trezentas páginas cada com a descrição dos seus crimes. Consequentemente vamos dar início ao julgamento com uma simples pergunta: é acusado do assassínio de quatro milhões de seres humanos. Confessa-se culpado?» O réu refletiu durante um momento, franziu as sobrancelhas, ergueu os olhos para o juiz e disse: «Sim, Vossa Excelência, confesso. Embora, segundo os meus cálculos, tenha assassinado apenas dois milhões e meio.» 
«Diabos, que precisão», exclamou Ayala com o rosto a brilhar como sempre que se emociona de verdade, «pensa só no número de vezes que o indivíduo se deve ter assassinado a si próprio para ser capaz de fazer uma declaração dessas.» 
«Devia estar morto por dentro», gritou Ruth, horrorizada, «um milhão e meio – a diferença – o homem devia estar morto!» 
«Já não posso mais», lamentei-me às duas, separadamente, «já não posso continuar assim. Todas estas histórias. Todas estas atrocidades. Como podemos continuar a viver neste mundo e a acreditar nos seres humanos depois de sabermos o que se passou?» 
«Pergunta ao teu avô», disse Ayala impaciente, «quando é que percebes que é o que tens de fazer?» 
«Mas eu não sei nada sobre ele, nem sobre a história dele.» 
«Era velho e contou uma história a um nazi. Sobreviveu. Nazikaputt . Se teimas em ater-te aos factos, estes são os factos de que necessitas. A partir daí, tens de escrever com as tripas. Não com a cabeça.» 
Referia-se ao quarto branco, acerca do qual me falara no nosso primeiro encontro. Dissera-lhe: «Sobre as coisas que lá se passaram há que escrever apenas os factos objetivos. Não tenho o direito de tocar nessa ferida.» 
E Ayala: «Usa a linguagem humana, Shlomik. É tudo. E é imenso. Como a poesia, ou quase.» 
Recordo-me de que ainda tentei argumentar: «Adorno disse que, depois de Auschwitz, é impossível escrever poesia.» 
«Mas em Auschwitz havia seres humanos», disse Ruth lentamente, martelando as palavras, «e é precisamente por isso que a poesia ainda é possível, quer dizer…» 
«Quer dizer», inflamou-se Ayala, e pelas suas faces redondas passaram chispas vermelhas, «não se trata de rimas nem de ritmo, mas apenas de duas pessoas conscientes que se esforçam por comunicar gaguejando com algum embaraço, prudência e sofrimento. É preciso tão pouco.» 
Mas para isso é preciso coragem, e eu, coragem… 
Parabéns! 
Há já alguns minutos que estás a tentar determinar o lugar exato do molhe em que me encontro. Senti a tua tensão ali no escuro e iludi-me pensando que a minha história finalmente te tocava. Mas vi-te lançar baldes de água salgada dos teus porões gelados sobre os pescadores que estavam à minha direita e à minha esquerda, e ouvi-os praguejar, espantados, e gritar uns para os outros – que raio de mar está esta noite! Não compreendia o que se passava contigo –, até que… 
Que ridículas são as tuas armas quando as usas contra os que estão em terra firme! E, de qualquer maneira, estou tão encharcado que já não tenho nada a perder e, como manifestação de generosidade, para te mostrar a minha grandeza face à tua mesquinhez, vou contar-te agora a história de Bruno e sobretudo a tua, como gostas. Como uma criancinha à espera de ouvir o seu nome na canção de embalar. 
Vou saltar as partes que não te dizem respeito – tais como as cartas que enviei para Varsóvia, as recomendações, as petições, as cunhas do meu editor e a lista de instruções da minha mãe, que a minha viagem ao país de Lá inquietava de tal maneira que me forneceu vinte e um envelopes vazios e endereçados a ela para lhe enviar todos os dias um sinal de vida, bem como dez pares de meias de nylon para vender no mercado negro («para o caso de ficares sem dinheiro»), que introduzira na minha mala com a sua manha habitual; e a despedida triste de Ruth (Espero que encontres finalmente o que procuras para podermos começar a viver»), e o voo, e a mala «perdida» na alfândega polaca e que me foi entregue dois dias mais tarde (sem as meias de nylon ) – e o encontro na Universidade de Varsóvia, com o reitor Zygmunt Rawicki, a quem tinha escrito expondo os motivos da minha viagem. Pois bem, vou contar-te esse encontro: vais decerto achá-lo muito interessante. E mesmo que não aches, não me importo. 
O professor Rawicki questionou-me naturalmente sobre o meu interesse «fora do comum» por Bruno Schulz. Disse-lhe francamente que, para mim, Bruno tinha sido um verdadeiro combatente, ou, por outras palavras, o meio possível de lutar contra o que se passara. «Não ignora, certamente», disse Rawicki, «que ele nem sequer chegou a lutar? Que foi morto em quarenta e dois sem nunca ter pegado numa arma?» 
«Sei disso.» 
Ele inclinou-se para trás no cadeirão, respirou profundamente e observou-me. Depois propôs-me um encontro com o professor Tylok, chefe do Departamento de Estudos Hebraicos da Universidade, que «manifestou um grande interesse pelo meu pedido fora do comum». 
E assim passei duas boas horas em amena conversa com os dois letrados polacos, que deviam interrogar-se sobre se eu merecia realmente a sua consideração. Vi a dúvida estampada no rosto deles. Propuseram-me que ficasse em Varsóvia, na rica biblioteca da universidade, a ler o que se escrevera e investigara sobre Bruno. Disse-lhes que já conhecia tudo o que fora escrito sobre ele. Tylok, que falava um hebraico moderno e cuidado, esfregou a face manifestando abertamente a sua hesitação, deu uma olhadela ao colega e perguntou: «Espero que me desculpe a grosseria, mas gostaria de lhe fazer algumas perguntas simples sobre a cidade de Drohobycz, onde Bruno viveu durante toda a vida, e que eu próprio conheço muito bem. Não se trata de um exame, longe de mim, mas de confirmar uma coisa, de dissipar um pressentimento estranho, estúpido, quer dizer…» «Então, Witold, avança», interrompeu o reitor impaciente, «o senhor Neuman entende certamente que temos de tomar todas as precauções para termos a certeza de que estamos a ajudar a pessoa certa.» 
Disse-lhe que estava disposto a responder a todas as questões. 
Com um sorriso comprometido, o professor Tylok interrogou-me sobre vários bairros de Drohobycz e sobre os judeus. Depois, passou às minas de sal nos arredores e aos poços de petróleo. Eu respondi rapidamente e sem hesitação. Tive a impressão de que ele ficou um pouco desconcertado com o meu à-vontade e, para causar boa impressão, continuei um pouco mais devagar. Fez um sorriso embaraçado e perguntou-me os nomes dos chefes da comunidade judaica dos últimos cem anos. Tenho de reconhecer que ele estava bem informado sobre o assunto. Até sabia que a senhora Ydel Kiknisch, que fora condenada à morte por assassínio ritual, e espetara alfinetes nas pernas para as saias não se levantarem quando os cavalos a arrastassem pelas ruas, era a mulher que Y. L. Peretz descrevera no conto «Três Prendas». Inclinou-se um pouco para a frente e interrogou-me sobre os cafés que existiam na cidade no tempo de Bruno. A pergunta surpreendeu-me e irritou-me: o que é que aquilo tinha a ver com o meu pedido? No entanto, consegui lembrar-me do «Schönhalfkaffeehaus» que era igualmente a bolsa oficiosa das ações petrolíferas, e o café Schechtorf onde os jovens vinham dançar ao som da rádio. Quando me calei, vi umas gotas de suor a brilhar na testa dele. Eu também estava tenso. Não apenas por causa do exame idiota, mas porque as coisas estavam muito vivas em mim. 
Mas ele não me largou. Penso que devia ter alguma razão secreta. Perguntou-me se eu sabia os nomes dos comandantes alemães que tinham tomado Drohobycz, ao que eu respondi que isso estava em todos os livros sobre a guerra; e perguntei-lhe então se ele sabia que os piores assassinos da «secção vienense» em Drohobycz eram Jarosz e Kowarczyk? E que o cão de Josef Fetter, que eles punham no nosso encalço, dos judeus, quero dizer, se chamava Rauff ? E que Felix Landau, o patrão de Bruno no gueto, participara no assassinato do cônsul austríaco Dolfuss? E que na Rua Kowalska moravam as seguintes famílias judaicas: Freulichman, Tartako?… 
«Basta! Basta!» 
Os dois ao mesmo tempo, estranhamente chocados. Olharam para mim com uma expressão que eu conhecia bem. É sempre a mesma coisa quando começo a falar daquelas coisas. Tenho dificuldade em controlar-me. Não o faço por arrogância ou vaidade. Faço-o com o zelo de quem procede ao inventário dos seus bens. Olharam ambos para mim, sem respirar, como Ruth quando lhe contei dos bilhetes de lotaria com que cobrira o corpo na época em que perseguia a Besta. Ela empalideceu, fitando-me com uma expressão apavorada, como se me descobrisse pela primeira vez, e declarou com uma voz calma e categórica que nunca mais, «mas nunca mais na vida», queria ouvir falar «daquela história». E eu prometi. 
E depois: 
«Perdoe-nos, senhor Neuman, mas esta situação não é… das mais fáceis. É claro que nós faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para o ajudar. Onde deseja ir?» 
Tirei o meu mapa e mostrei-lhes: «O meu Bruno saiu de Drohobycz de comboio para Danzig. O caminho mais curto para o mar.» 
O reitor disse: «Os judeus estavam proibidos de viajar de comboio nessa época.» 
«Sim, conheço a ordem. Foi promulgada a 10 de setembro de 1941 e afixada nas paredes da cidade. Mas Bruno tomou o comboio.» 
«Duvido da sua objetividade literária, senhor Neuman.» 
«Com todo o respeito que lhe é devido, professor, mas não se trata de uma questão literária. Bruno tinha de sair de Drohobycz.» 
«Sem dúvida.» 
Os dedos deles seguiram a linha de caminho de ferro no mapa. 
«Podem indicar-me, por favor, uma aldeia na zona de Danzig para eu ficar. Não quero morar em Danzig mesmo.» 
«Gdansk. Actualmente chama-se Gdansk.» 
«Desculpe. Uma aldeia à beira-mar, está claro.» 
O professor Tylok ergueu os olhos para mim: «Bruno Schulz é um dos nossos escritores mais apreciados. Ficar-lhe-emos todos muitos gratos se lhe prestar na sua obra a justiça e o respeito que ele merece.» 
«Eu irei aonde ele me conduzir.» 
«O senhor é místico, senhor Neuman?» 
«Não. Pelo contrário. Conheço uma mulher que acha que eu deveria sê-lo um pouco mais… Não sou místico, não, espero que não.» 
«Aqui», disse o professor Rawicki, «poderia instalar-se em Narwia, mas não o aconselho. É um lugar triste, uma aldeola de pescadores. Em agosto é frequentada por veraneantes, como praia, mas agora ainda está muito frio para tomar banho.» 
«Ótimo. Pode ser Narwia.» (Pronunciei o nome com espanto. Se é lá que deve ter lugar o nosso encontro, então que seja.) 
«Como queira. E depois não diga que não o avisámos: a meu ver o lugar é horrível. Vou arranjar-lhe os documentos necessários. Pode demorar-se lá umas duas semanas. Quanto aos documentos, recebê-los-á depois de amanhã. Entretanto, pode aproveitar para se entreter nas nossas ricas bibliotecas.» 
«Obrigado. E desculpem-me se cometi alguma falta de educação. Eu sou simplesmente…» 
«Nós compreendemos, senhor Neuman, e desejamos-lhe boa sorte. Vai precisar dela mais do que imagina.» 
O professor Tylok acrescentou em hebraico: «Cuide-se. Seja prudente.» Sorri da sua bela pronúncia, mas senti um certo nervosismo apoderar-se de mim. 
Estou quase a chegar. Mais um bocadinho de paciência. 
Esperei quatro dias pelas autorizações necessárias. Passeei por Varsóvia. Andei sozinho pela grande cidade silenciosa: dir-se-ia que alguém tinha cortado o som. Vi filas compridas diante de uma loja cuja montra exibia orgulhosamente um único tomate. Num café provei os biscoitos françuski que o pai mencionara uma vez com saudade e, embora não gostasse do sabor, comi-os em memória dele. Nas paredes das casas vi pinturas de palhaços com chapéus pontiagudos e borboletas multicolores, símbolos da organização «Solidariedade», e tive um encontro emocionante com o escritor judeu polaco Julian Strykowski, que falava um hebraico impecável e escrevia sobre as aldeias judaicas e… sim! sim! Já lá chego! Em seguida, quando chegaram as autorizações – a viagem de comboio para Danzig, a paisagem vasta, as aldeias do meu Motl, as florestas de bétulas de troncos finos, os estábulos e os silos redondos – e o sentimento agudo e permanente de que «ele» vinha ter comigo do sentido oposto, de Drohobycz, que atualmente está sob o domínio russo. Precisamente o que senti quando transcrevia os fragmentos dele para o meu caderno: como se ele me respondesse com pancadinhas do outro lado da folha; como dois mineiros escavando um túnel dos dois lados da montanha… 
E até ao fim do pontão. 
Frente às ondas, soube que tinha razão. Que Bruno não fora assassinado. Escapara. E digo escapara não no sentido habitual do termo, mas como Bruno e eu diríamos, para significar alguém que se arrastou implacavelmente para o campo magnético de – por amor de Deus, estás a recitar comigo como uma menina a terminar uma frase. Estou a ouvir-te sussurrar antes mesmo de conseguir dizer, «Um homem que escapou para uma forma de existência amplamente dada a conjeturas vagas, exigindo um grande esforço e boa vontade dos que o circundam. Um homem que viaja com uma bagagem particularmente leve… 
Viajei para Narwia num velho autocarro. Aí chegado, aluguei um quarto no casebre da viúva Dombrovski, uma senhora toda vestida de luto e com três verrugas peludas na face. Cedeu-me o quarto dela e a cama, com um quadro de Maria e do Menino Jesus por cima, e um retrato do falecido senhor Dombrovski, de bigode e em uniforme de carteiro, na parede em frente. Logo na tarde da minha chegada, vesti o fato de banho cinzento, e estendi-me numa cadeira de lona esburacada, abandonada na praia deserta, batida pelo vento cortante de um mês de julho particularmente frio, e senti-me só e ansioso – e esperei. 
Pouco a pouco, as coisas começaram a amadurecer no meu espírito. Ficava o dia inteiro à espera na praia. De manhã via os pescadores saírem para o mar, e ainda lá estava à noitinha, quando eles voltavam e chamavam as famílias ao ancoradouro para os ajudarem a puxar os barcos com uma espécie de grua primitiva, e partilhar a pesca do dia sobre uma mesa de madeira comprida; só então me ia embora para comer o prato de peixe chamado «ciclope» (era linguado) que a viúva preparava – como o faziam as mulheres da aldeia todas as noites – e depois sentava-me a escrever e, sobretudo, a apagar. Já conseguira trazer Bruno a Danzig; introduzira-o à socapa no comboio, nas barbas dos polícias e dos especialistas de literatura. Agora só me restava esperar pacientemente. Libertar-me de mim próprio e ceder-lhe a minha pena, ou talvez mais do que isso: sabe-se lá o que ele exigiria de mim em troca da reconstituição da sua obra perdida, O Messias ? Parei um momento e pus-me à escuta. Na cidade de Gdansk, bem próxima, havia manifestações do Solidariedade. Na nossa aldeia os cortes de eletricidade eram frequentes. Às vezes era obrigado a escrever à luz de uma lamparina de petróleo fumarenta. Nem todas as manhãs havia pão na mesa. Não escrevi uma palavra sequer a Ruth ou a Ayala, nem enviei uma única carta à minha mãe. Pela primeira vez desde a minha breve aventura com Ayala, senti que estava apaixonado. Não sabia exatamente por quem, mas não importa, estava pronto para o amor. Talvez seja por isso que as coisas correram tão bem… 
Ah, já estamos a chegar. Não estejas praí a pular à minha volta, a impacientar-te. Escuta: na manhã do quarto dia em Narwia, entrei na água pela primeira vez. As ondas lisas sustinham-me delicadamente. Como se já soubesses. A história que estava a escrever exigia que eu entrasse na água e esperasse. A partir do momento em que comecei a ler Bruno e a copiar os seus escritos para o meu caderno, comecei a dar uma atenção especial ao que a minha mão escreve. Esperava incessantemente uma mensagem importante. 
Mas, na minha história, o mar era uma espécie de velho gigante, manhoso, bonacheirão e resmungão, com uma barba de Neptuno a pingar, e não conseguia perceber porque é que ainda não confiava nele. Durante todo o dia voguei pacientemente ao sabor das ondas, as minhas costas ficaram vermelhas como uma lagosta, e às cinco da tarde dei-me conta de que o que eu pensava ser um velho era na realidade uma mulher. Uma alma de mulher num corpo de água. Um enorme molusco azul, a maior parte do tempo adormecido, porque não pode satisfazer a sua imensa necessidade de energia, envolvido pela essência viscosa, de medusa, da sua alma infinitesimal, erguendo e baixando, ondulante, milhares de vestidos e saiotes verdes, azuis e brancos; dorme mergulhada numa das mil bacias lunares do oceano, com o rosto virado para o sol como um grande girassol, enquanto o corpo líquido continua a fazer o movimento inconsciente de contração das vagas, de frémito de espuma, de fantasias surrealistas, fazendo surgir das suas profundezas as criaturas mais grotescas; mas cuidado, não nos deixemos enganar pela sua aparência respeitável e calma, pois, sob as suas inúmeras camadas, não passa de uma reles provocadora, sem o menor respeito ou vergonha, para não dizer primitiva nos seus impulsos e paixões caprichosos, espécime típico das eras geológicas primárias, sem um ínfimo da educação que seria de esperar considerando a sua vetusta idade, a sua grande experiência e as suas muitas viagens à volta do mundo, mas como certas mulheres – encontrei uma delas há anos e conheci-a bem – é bastante hábil em combinar pedaços de conhecimentos diversos com mil e uma histórias divertidas e anedotas «picantes», a fim de conquistar a simpatia de quem a escuta mas, acima de tudo, é dotada de uma intuição aguda e de um instinto de animal selvagem, coisas essas que podem induzir em erro algumas pessoas sem carácter, sim, estás a ver, já não consegues esconder-me nada. Agora já conheço a mais ínfima greta dos teus abismos sombrios, e parece-me que consegui aquilo em que muitos falharam até aqui, por não terem ousado, ou talvez por não terem sido obrigados a ousar; consegui captar em ti (é claro que nunca o reconhecerás) algo de indefinível e condensá-lo nas minhas páginas, num único olhar irisado de formas e cores sem fim e campos de luz azul num delírio de extensões cintilantes cujo encanto supremo é o de nunca durarem o suficiente para serem recordados, evocados… 
São estas e outras coisas que te murmurei lá, na praia em Narwia. Os meus lábios afloravam a água e o meu corpo ardia. Falei-te dele, mas também de mim. E da minha família e do que a Besta lhes fez passar. Falei-te do medo. E do meu avô, que não consigo fazer reviver, nem sequer numa história. E da minha incapacidade em compreender a minha própria vida, enquanto não conhecer a vida-que-não-vivi Lá. E disse-te que, para mim, Bruno é um indício: um convite e uma advertência. E recitei-te de memória fragmentos das suas histórias… 
«Escuta! tu aí», disseste tu subitamente, numa voz estranha, nasal e irritada. Levantei a cabeça, mas não vi ninguém. A praia estava branca e deserta, à exceção da minha cadeira cuja lona rota batia com o vento. Mas então uma viscosidade anormalmente quente e macia envolveu-me para logo desaparecer e voltar momentos depois. 
«Escuta», disseste tu hesitando, sem ternura, «estás a falar como alguém que outrora conheci.» Quase explodi de alegria dentro de água, mas continuei a boiar como se nada fosse. 
«Ah, sim, em quem estás a pensar?» 
Examinaste-me com desconfiança, ergueste subitamente uma cortina azul entre mim e a beira-mar, lambeste-me todo sem a menor vergonha, contraíste os lábios com um ruído horrível, espantada do gosto, depois baixaste a cortina e olhaste para a praia por cima do ombro. 
«Nem penses que te vou falar disso aqui.» 
«Talvez então no meu quarto?», perguntei delicadamente. 
«Ah!!!» 
Foi nesse momento que ouvi pela primeira vez esse teu ronco de desprezo, uma vaga aspirada por um remoinho que se tornou, desde então, a saudação com que me acolhes. Imagino que nunca desistirás dele. Mesmo que estejas a dormir quando vou à praia de Telavive, assustas os banhistas e pescadores com esse som abominável. É evidente que eles não desconfiam de nada. 
«Levar-te-ei lá, para longe», disseste tu indicando o horizonte com um encolher de ombros das tuas ondas. 
«E voltarás a trazer-me?» 
«Contra ventos e marés.» 
«Já ouvi casos de pessoas que foram e não voltaram.» 
«Tens medo?» 
«É curioso, tu também falas como alguém que eu conheci.» 
«Cala-te. Falas sempre tanto? Anda, vem.» 
Lambeste-me novamente, manifestamente contra vontade, e roncaste, com espanto e irritação: «Não pode ser. Tão diferente! É precisamente o contrário! Mas sabe coisas que mais ninguém… Hum, já vamos ver.» E recolheste-te em ti própria, desapareceste com um silvo e um arroto, deixando-me estupefacto e desiludido. 
Mas só por um momento. 
Porque surgiu uma grande vaga, furiosa, que parou aos meus pés a rugir, e eu encavalitei-me no seu torso musculoso, agarrei-a pelas orelhas – e pusemo-nos ao largo.