E tu balouçavas-te na água Bruno para cá e para lá no amplo e lento berço marinho que marca os ritmos aquáticos transfigura o nevoeiro que sopra docemente sobre a água ao nascer do dia claro Bruno voga sobre as vagas que se enrolam numa sucessão infinita aprende que a água tem um cheiro nunca imaginaste que ela pudesse ter um cheiro deixaste-te embalar pelas ondas aqui e ali arrastaram-te para longe no grande berço marinho ensinaram-te que podias vogar com elas até à eternidade até ao infinito és levado pelos seus movimentos vigorosos alimentado pela sua corrente tranquila flutuas entre elas ungido pela água flutuas e passas as longas noites lua branca lua laranja lua resplandecente peregrinações de nuvens através do véu noturno tu vogas e passas único na Criação só resta a força dos peixes em movimento só resta o cheiro do peixe cegando as narinas a pulsação regular das guelras diante dos teus olhos a frescura das ondas abraçando-se a teu lado fazendo deslizar para a praia o negativo ondulado do teu retrato para quebrá-lo em mil fragmentos aos olhos axadrezados do caranguejo das rochas e arquivá-lo em hieróglifos petrificados gravados no cérebro dos recifes de corais levam-te mais longe mais adiante só resta a queimadura das barbatanas duras na tua pele que à partida ainda era fina as escoriações que brotaram logo às centenas as gotas do teu sangue na água que endureceram a pele de todos os peixes do banco depressa muito depressa deixas de sentir a dor e o sal só resta o cintilar do seu dorso só te apercebes do brilho do seu ventre o pulsar das suas guelras o seu cheiro forte e o apelo do largo abafado por tanta felicidade os teus ouvidos estão cheios desse tumulto dessa chiadeira da turbulência desta grande feira aquática dos gritos das gaivotas tagarelas e desenrolam-se debaixo de ti grandes rolos de tecido azul e as moedas que o teu pensamento deita à água são trocadas por cambistas diligentes nas ruas silenciosas das cidades afundadas e dos mercados embalados em silêncio enclausurados em grande bolhas transparentes e o mar cheio de sussurros de ecos de palavras ternamente cobertas de espuma e a música das vagas tocada na harpa do litoral os fios de água que escorrem por entre o pente dos recifes levam-te adiante mais longe és levado como um afogado pela força do reboque as mãos coladas ao corpo os ossos dos ombros salientes como asas e o seu silêncio responsável a gravidade do seu silêncio convém-te dizes para ti se a morte fosse assim se fosse possível ser tão feliz reconciliado inscrito no ritmo das pulsações do grande coração marinho sobre o cardiograma gigante que se desenrola em baixo incansável e lento imediatamente após seres levado até ao cais passam juntos abertos como um leque à frente do porto militar da cidade onde há destroyers fragatas cheias de soldados cheiro a diesel e a óleo fanfarras e um jovem soldado solda uma metralhadora na coberta do navio lança faíscas vermelhas em cascata sobre a água escorregam borbulham os olhos do soldado notam subitamente o enorme cardume seguem-no atentamente mas a ti não te vê os seus olhos não te veem por momentos assustaste-te um miserável remorso infiltra-se traiçoeiro e aperta-te o coração agitas-te na água gritas berras a tua angústia propaga-se como um raio no meio do cardume de peixes porque o mar está cheio de linguareiros cheio de bisbilhoteiros o mar é um pescador vê como cada vaga segue o movimento dos seus rins o impulso dos seus ombros para lhe atirar a rede cerrada dos seus nervos transparentes e desencadeia-se logo um perigoso torag és empurrado arrastado mergulhas afogas-te não compreendes nada não fazias a menor ideia de qual seria a tua parte neste torag de milhares de peixes apavorados mergulhados contra vontade no banho do teu pânico humano que recuam chocam com as filas seguintes são esmagados crânios quebrados maxilares é assim que num abrir e fechar de olhos se rompe o dolgan essa lei do intervalo natural a respeitar lei da solidão dentro da multidão entretanto a água espuma de corpos despedaçados pela lâmina das barbatanas algures lá nas margens Leprik impõe de novo a sua calma majestosa aos peixes as fileiras voltam a formar-se lentamente lado a lado linha a linha flanco a flanco cabeça e cauda e tu conheces pela primeira vez o ning a corda que se estende do teu pescoço à raiz da tua alma escutas surpreendido o som regular da sua ressonância leva-te para diante mais longe só no meio da multidão dos solitários e dos mudos e tu enches-te de uma alegria súbita e bizarra voltas-te de costas e então Bruno és arrastado para cá e para lá sobre os lábios sussurrantes sobre o tagarelar das ondas já não és o mesmo a dobra na parte de trás dos teus joelhos sorri à abóbada celeste aos abismos as gaivotas espantadas gritam ao ver o teu ventre branco a tua axila direita convertida numa selva verde emaranhada até que se liberta e vai flutuar mais longe um tufo mole e sedoso de algas entrançadas sentes de repente um cheiro na água não é o que se sente numa praia ou na margem de um rio mas um cheiro a água um cheiro diferente de todos os outros tal como as vozes do mar são diferentes no seu seio tal como as suas cores tal como os seus pensamentos furtados pelos hábeis linguareiros escravos do mar salteadores das vagas e voltam em ecos que se desdobram se dispersam no tumulto borbulhante de espuma desta feira aquática e aromática porque a água tem cheiro Bruno um cheiro que não é aspirado pelas narinas nem pelo nariz mas talvez pela nostalgia inscrita no cérebro do peixe ai o cheiro da água ai o cheiro do mar à noite os cheiros dos peixes e das rochas nos abismos as plantas esponjosas das trevas o cheiro dos cadáveres dos grandes animais do mar a baba nos lábios das ostras o vapor que sobe à noite dos dentes dos recifes de coral que sonham com eras selvagens o aroma misterioso das profundezas abissais longínquas as misturas de cheiros de centenas de rios as especiarias das correntes e agora que despertas do teu torpor no berço marinho Bruno vogando ondulando lentamente sabes também que todos os que navegam à tua volta reconhecem sem hesitar reconhecem sem sombra de dúvida o aroma fino que brota de um certo curso de água num país muito longe lá onde nasceram há anos e aonde vão morrer agora nunca mais voltarão a passar por aqui e de todo este leque de cheiros que o mar exala e que lhes excita as narinas sentem apenas o fio o pestanejar do apelo do destino o sedutor vem a mim o essencial é o caminho vem a mim e a morte encurta a vida vem a mim ouvem-se os salmões que se dirigem com todo o vigor a ele Bruno está com eles semanas meses a tentar adivinhar escuta o marulhar da água e dos cheiros estranhos fareja sem cessar goza horas dias sem fim invoca o perfume do seu curso de água o cheiro do seu caminho o pestanejar da sua vida entretanto o sol bronzeou-lhe as costas os ombros tornaram-se fortes e musculosos aprendeu o gosto do plâncton mole e esponjoso nunca se cansa de escutar porque antes não sabias Bruno o que era a coisa que desejavas tinhas apenas um vago pressentimento uma aspiração pela qual te lançaste nesta última viagem de repente tiveste um choque passam no alto mar em frente à ilha Bornholm os seus campos à beira-mar a sua igreja toda branca ficas de repente muito perturbado porque um caracol de aroma antigo roça-te o rosto agarra-se à asa do nariz paira um momento à tua volta e afasta-se caracol modesto e frágil acordas logo do teu torpor e cruzas todos os teus sentidos como espadas e faíscas de lembranças brotam do teu coração crepitam na água oh! o aroma familiar e amado queres voltar atrás para o procurar mas o grande ning que estava tenso dentro de ti até à dor prende-te e não te deixa dar meia volta porque os salmões avançam sempre com a morte no seu encalço desatas a chorar de dor subitamente o que era aquele cheiro Bruno talvez fosse o perfume barato da criada Adela ou os cheiros dos grandes rolos de tecidos na atafulhada loja de milagres do teu pai ou o cheiro das cerejas luzidias sob cuja pele transparente tremia um líquido opaco que Adela trazia para casa em pleno mês de agosto brilhante ébrio de luz e de calor ou o cheiro doce estonteante do teu ansiado livro a que o vento virava as folhas roídas apodrecidas como uma enorme rosa fanada? 
*** 
Eu também sou assim. Aqui no areal de Narwia, diante de um mar calmo em pleno mês de julho do ano de 1981, 0 mesmo cheiro que encontro em lugares tão diferentes, tão inesperados, quando passo na rua por um banco onde estão sentados velhos a contarem histórias uns aos outros; na gruta fria e húmida ao lado da minha base militar no Sinai; entre as páginas de todos os exemplares de As Lojas de Canela ; no segredo do sovaco de Ayala (que, quando decidiu deixar de dormir comigo, ainda teve a decência de me deixar vir cheirá-la quando eu precisava muito), o que levanta a seguinte questão: será possível que eu transporte esse cheiro dentro de mim e que ele só brote para fora em certos lugares? Será que é o meu próprio corpo que o produz como compensação para uma necessidade profunda? Analiso os diversos componentes: o perfume limpo das faces da avó Henny, o cheiro espesso dos animais, das peles, do suor, o cheiro ácido do avô Anshel, o cheiro a suor de uma criança – não o habitual dos vestiários de rapazes contíguos aos ginásios, mas muito mais ácido, o que me evoca pensamentos desagradáveis, embaraçosos, de glândulas mais antigas do que as de uma criança, segregando… 
Volto sempre lá. Aquelas pisadas. Aquele balbuciar. Ayala disse-me uma vez, com uma expressão de sabichona, que eu devia chamar ao romance autobiográfico que escreverei um dia: «O mmmeeu liiivro». Segundo ela, não é de espantar que os meus poemas mais sinceros sejam os de O Ciclo dos Objetos , que ela intitulou muito simplesmente de «inventário de pisadas estéreis». Ayala fazia imensas «observações» do género (era ela própria que as definia assim) e gostava de as fazer com um voz cheia de importância, ao mesmo tempo que era percorrida por pequenas ondas de riso como crianças a brincarem debaixo do cobertor; e de cada vez que eu tentava responder-lhe com seriedade, apresentar uma argumentação lógica, ela entregava-se àquelas ondas de riso, toda a tremer de satisfação e parecia que as suas abundantes gorduras absorviam o riso como uma máquina complexa e maravilhosa: ao princípio o riso estava escondido dentro dela como um feixe apertado, depois começava a aparecer aos poucos, desenrolando-se em ondas cada vez mais largas em direção ao ventre redondo e macio, ao peito sumptuoso, às pernas pequenas e femininas, aos braços cobertos de sardas que estremeciam, e só depois, no fim, é que a alegria se lhe estampava no rosto redondo, e o mais estranho era que nesse momento já não lhe restava riso suficiente para os olhos ligeiramente oblíquos, que se mantinham sempre muito calmos, lúcidos e tristes… E eu esperava que aqui, em Narwia, a esqueceria. 
Estás a dormir? 
Ela está a dormir. Aqui como em Narwia. Quando eu começo a falar de mim, ela aproveita a ocasião e adormece logo, para ter forças quando lhe falar de Bruno. Que diabo! Por que carga de água é que eu permito que aquela irresponsável, aquela egocêntrica infantil e superficial me ponha fora de mim, me irrite sem poder… 
Lá estou eu a cair no mesmo. 
Escuta. Não me importo que durmas. 
A primeira vez que nos encontrámos, Ayala falou-me do «quarto branco» que se encontrava num dos corredores subterrâneos do instituto Yad Vashem. Disse-lhe que nunca tinha visto o tal quarto, nem nenhum dos empregados me falara dele, embora lá fosse bastantes vezes trabalhar. Ayala sorriu com a indulgência de quem compreendia os meus limites e explicou: «Não foi planeado pelos arquitetos, Schlomik, nem construído pelos operários, e é por isso que os empregados nunca ouviram falar dele…» «Trata-se então de uma metáfora?», arrisquei eu, sentindo-me um pouco parvo, e ela respondeu, com paciência: «Precisamente.» De um momento para o outro, vi nos seus olhos a convicção de que tinha cometido um erro, que desta vez a sua intuição lhe pregara uma partida: eu não era homem a quem se podia confiar um segredo como este, ou qualquer outro. Isto passou-se na noite do nosso primeiro encontro, na conferência sobre «Os últimos dias do gueto de Łodz´», à qual eu assisti pela força do hábito e Ayala porque nunca perdia conferências ou reuniões como esta (os pais dela eram sobreviventes de Bergen-Belsen). Desde o início, foi ela quem tomou a iniciativa e, nessa noite em que pela primeira vez desde que me casei não fui dormir a casa, descobri que, apesar de todos os meus defeitos, tinha o dom surpreendente e exaltante de transformar Ayala num cântaro, num morango e até – nos momentos de exaltação total – num novelo de algodão doce, como o que se vende nas feiras. Descobri ainda que, apesar das minhas lamentáveis limitações, o simples contacto da minha mão sobre a sua pele quente, lisa e bronzeada, podia desencadear nela milhares de arrepios estranhos que a percorriam toda e esticavam o seu corpo macio e gordo como um arco, libertando-nos a ambos das nossas expectativas geladas, quando finalmente se soltou, das suas profundezas insondáveis, um som agudo e desesperado, como o de uma gaivota a ser empalada numa seta afiada, e então pudemos retomar a nossa conversa cultural. Foi assim que as coisas se passaram durante a nossa primeira noite. 
«E aquele quarto branco», explicou Ayala durante uma dessas tréguas, «foi gerado na dor. Aliás, não é de todo um quarto, mas uma espécie de homenagem, sim.» (Baixou as pálpebras ligeiramente arredondadas, entregue a si própria.) «Uma homenagem de todos os livros, de todas as imagens e das palavras e dos filmes e das provas e dos números sobre o Holocausto concentrados no Yad Vashem, a tudo o que permanecerá para sempre insolúvel e para lá da nossa compreensão. Trata-se muito simplesmente do coração do reator, não é, Schlomik?» 
Não compreendi. Olhei para ela fascinado e triste, porque se me tornara claro que existia entre nós aquela espécie de amor raro e infeliz a que poderíamos chamar «amor invertido» e cujo apogeu atingíramos naquele momento, mas, logo que Ayala recobrasse a lucidez e compreendesse o quanto éramos diferentes um do outro, afastar-me-ia do seu palácio encantado. Não sabia nada sobre mim. Lera apenas o meu primeiro livro de poesia e pensara: «Não é mau para um começo.» Aquilo irritou-me um pouco porque, em geral, as pessoas preferiam esse livro aos três seguintes, e alguns críticos tinham escrito que havia nele uma «tensão interna contida» e tudo isso, mas Ayala disse que nos meus poemas se sentia o medo que eu tinha de mim próprio e do que tinha para dizer sobre a vida em geral e sobre o que se passara Lá em particular. Pediu-me que lhe prometesse ser mais ousado, e quando o fiz, ela falou-me do quarto branco. 
Encantava-me o seu corpo tão livre e flexível, tão harmonioso, com uma carne tão viva e fremente, que se arredondava de prazer; encantavam-me o apartamento pequeno, o quarto de dormir minúsculo coberto por uma espécie de véu. Não sei bem o que estava velado, mas algo nela estava decerto. Nunca tinha ido tão depressa para a cama com uma mulher: duas horas e vinte e cinco minutos depois de nos termos encontrado (sei a hora exata porque estava sempre a olhar para o relógio e a pensar no que diria a Ruth quando voltasse a casa). Passaram duas horas e vinte e cinco minutos desde o momento em que saímos da conferência deprimidos e perturbados com o que ouvimos, até ao momento em que caímos, literalmente, nos braços um do outro, no quarto dela, com uma paixão que jamais sentira antes. Só quando nos acalmámos um pouco pensei que ainda nem sequer sabia o seu nome! Sentia-me verdadeiramente um Casanova: dormir com uma mulher de quem nem sequer sabia o seu nome! Nesse momento ela pegou na minha mão, levou-a à boca, e sussurrou para dentro dela «Ayala», e eu ouvi através da mão. Sei bem que isto pode parecer suspeito: eu próprio não teria acreditado se me tivessem contado uma coisa destas, mas com Ayala tudo era possível. 
Num canto do quarto pendiam do teto teias de aranha tão espessas e emaranhadas que me pareciam novelos de cabelos compridos, e quando ela me explicou o que era (não ia destruir o trabalho de outrem em nome de princípios virtuosos de limpeza), pensei no que a minha mãe teria dito e desatei a rir. Sentia-me diferente com ela, tinha reações novas; não se pode esquecer que antes dela ignorava completamente a minha capacidade para transformar uma mulher em cântaro e coisas assim. O mais espantoso no que respeita às nossas relações foi que eu soube antes dela o que nos esperava, porque me conhecia bem, e sabia que não havia a menor esperança de eu poder corresponder aos sonhos que ela tinha sobre mim. E com efeito, passadas algumas semanas, notei que Ayala começava a afastar-se de mim. Ainda se lhe arqueavam de ambos os lados do corpo duas asas, com incisões muito finas e lábios redondos e ovais de cântaro; ainda lhe escapavam – não sei exatamente de onde – gritinhos: «Bebe-me, sorve-me!» como o copo mágico de Alice no País das Maravilhas , mas era evidente que o movimento ondulatório se estava a extinguir. Era cada vez mais rude e hesitante. O sopro destrutor de Zenão já pairava sobre mim. E depois, perdeu-se tudo: já só raramente era capaz de lhe fazer crescer rebentos verdes à volta do pescoço, e de transformar a sua pele numa superfície eriçada de sinaizinhos vermelhos com sabor a morango e que eu trincava. Ela olhava para mim e para os meus esforços vãos com uma expressão de piedade e tristeza, tristeza por nós dois, por termos deixado escapar a ocasião. Nessa época fazia esforços desesperados por escrever de forma sistemática a história que o avô Anshel contara a Herr Neigel, mas, obviamente, quanto mais me esforçava mais me deparava com um obstáculo: a questão da razão e do sacrifício. Ruth sabia do caso com Ayala e sofria muito. Eu, por meu lado, odiava-a por ela não me obrigar a escolher entre as duas e por aquela sabedoria discreta que a aconselhava a esperar. Sofrer e esperar: nem uma só vez durante aqueles meses horríveis se mostrou zangada ou hostil, mas também não manifestava qualquer submissão nem me deixava perceber a sua humilhação. Pelo contrário: eu era o macho com cio, acalorado, que andava à roda de duas mulheres sem saber o que queria. E no rosto sem beleza de Ruth via toda a sua força e sabedoria: os seus movimentos eram mais lentos que nunca. Irradiava dela um aviso sereno: era extremamente forte; como qualquer ser humano, continha em si forças muito grandes e perigosas, e por isso tinha de agir com moderação; para não ferir os outros, tinha de se conter e ter paciência: sugerir sem gritar, propor sem impor. 
Eu odiava-me pelo sofrimento que lhe causava, mas ao mesmo tempo temia que, deixando Ayala, nunca mais conseguisse escrever. Às vezes penso que Ayala ficou comigo devido a um singular sentido de responsabilidade pela história do avô Anshel e não por gostar de mim . A seus olhos eu era um cobarde ou mesmo um traidor, pois embora tivesse todos os elementos e todas as razões do mundo para escrever aquela história como deve ser, faltavam-me a coragem e a ousadia. Ayala não escrevia, a sua obra era a sua vida. Referindo-se ao «quarto branco» na primeira noite, disse que ele «é a pedra de toque para quem quer escrever sobre o Holocausto. Como o enigma da esfinge. Entras nele de livre vontade e apresentas-te à esfinge, percebes?» É claro que não percebi. Ela suspirou, ergueu os olhos ao céu e explicou que nos últimos quarenta anos muito se escrevera sobre o Holocausto e continuaria a escrever-se, mas era óbvio que esses escritos estavam votados ao fracasso, porque, enquanto todas as outras tragédias podem ser traduzidas na linguagem da realidade, o Holocausto não pode, apesar da necessidade compulsiva de tentar e voltar a tentar, de experimentar, de espetar os seus espinhos na carne viva do escritor, «e se queres ser honesto contigo próprio», acrescentou ela solenemente, «tens de tentar o “quarto branco”». 
Ela disse o «quarto branco» com uma voz calma e quase cantante, e eu fiquei por momentos fascinado, mas depois revoltei-me contra aquele misticismo balofo. Subitamente vi Ayala tal como era: uma espécie de hippy anacrónica, uma profissional da bondade, que vivia uma existência de sombras inventada, porque a realidade, a realidade com toda a sua lógica e simplicidade, era demasiado complicada para ela, sim, conheço perfeitamente esse tipo de pessoas para quem as considerações astrológicas, por exemplo, têm mais peso do que as racionais («És mesmo Caranguejo! Um Caranguejo típico!»), que acreditam que por detrás de cada um de nós se esconde uma centena de outras personalidades, e que por detrás de cada lapso se escondem cem demónios, e que por incapacidade de lidar com as exigências cruéis e inequívocas da vida inventam para si próprias um teatro de sombras opaco, e veem em tudo o que acontece à sua frente uma alusão transparente a outras coisas, «profundas», ligadas umas às outras por fios escondidos algures, noutro sítio, nó palpitante de vida, que só eles conseguem agarrar. De repente, apossou-se de mim uma raiva enorme: com que direito é que ela se permitia dizer-me – uma pessoa que ela conhecia apenas há duas horas e cinquenta minutos – que as minhas poesias a tinham tocado porque eram obviamente «apelos desesperados de socorro», e que estava na minha mão «salvar-me pela criação», porque sem a criação «estás simplesmente perdido. Já seguiste alguma vez uma psicoterapia séria ( sic ), Schlomik?» 
Não lhe mostrei o que realmente pensava dela. Desejava-a tanto. Pensava em tudo o que nos diferenciava. Percebi, muito antes dela, que me escolhera porque nunca encontrara nos seus «círculos» um animal tão estranho: um poeta que escrevera as poesias que ela conhecia mas ao mesmo totalmente sensato. Que também amava a mulher e lhe era geralmente fiel. Não, ela não sabe muito da vida nem de mim, foi o que então pensei, e prefere ver apenas aquilo em que acredita, em vez de acreditar muito simplesmente no que vê. Alguém que tapa a cara com um véu. É a imagem que procurava. E todavia… 
«Nesse quarto está concentrada a essência daqueles dias», disse ela, sempre a olhar para lá de mim, «mas o que é fantástico é que não há lá respostas feitas. Nada é dito. Tudo é apenas possível. Apenas sugerido. Potencialmente realizável, ou passível de o ser. E tu és obrigado a refazer tudo de novo. Tudo. Sem intermediários ou duplos para fazerem por ti os papéis perigosos. E se não dás a resposta certa à esfinge, és devorado. Ou sais de lá sem ter compreendido nada. O que a meu ver é o mesmo.» 
Oh, Ayala, se eu fosse capaz de escrever todas as histórias e todas as ideias que ela inventa num único dia, tinha material de sobra para a vida inteira. Talvez até me tornasse um escritor diferente. No seu «quarto branco» não há nada. Está vazio. Mas tudo o que existe para lá das membranas das suas paredes, tudo o que se amontoa nas grandes salas do Yad Vashem é projetado lá para dentro graças a… «Chamemos-lhe inspiração. Sim. Eu não sou muito boa em física, mas sei que é assim. Com cada um dos teus movimentos ou pensamentos ou traços de carácter crias uma nova combinação. A tua fórmula própria, feita de matéria cinzenta e personalidade, do teu código genético, biografia e consciência – e de tudo o que é projetado nas paredes: todos os dados sobre o ser humano. Todo o inventário humano e animal, medo e crueldade, compaixão e desespero, glória e sabedoria, mesquinhez e amor da vida, toda essa poesia incerta, Schlomik, e estás lá sentado como dentro de um caleidoscópio gigante, mas, desta vez, os fragmentos de vidro és tu, as tuas diversas partes, e a luz atinge-os vinda do lado de lá das paredes…» Tinha uma expressão sonhadora nos olhos, levantou-se e, apenas com a minha camisa sobre o pelo, passeou pelo quarto, bronzeada, gorda, cheia de refegos, com os cabelos apanhados num carrapito, a fazer-me o seu teatrinho, bolas, o que é que estou aqui a fazer? «E se, por acaso, começares a pensar em qualquer coisa, como, por exemplo, nas vítimas que colaboraram com os alemães, então imediatamente – logo a seguir! – todos os colaboradores mencionados nos livros, nos documentos e nas monografias, todos os Kissling e os Judenratt que traíram, toda essa miserável escumalha, essas almas despedaçadas, congeladas nos testemunhos do lado de lá das paredes, são de um momento para o outro recortados por um raio laser que disseca também o colaborador que há dentro de ti , tão nitidamente como uma placa de vidro polido, assim – tchik! – como Eva foi separada de Adão», e abriu os olhos como se, estupefacta, se perguntasse o-que-faço-eu-aqui, e disse numa voz clara e serena, cuja sinceridade e tristeza me impressionaram, que era assim, naquele espírito, que se devia escrever a história. 
Mas eu não ousei. Nem mesmo agora, depois do encontro com Bruno e contigo, depois de tudo por que passei, não sou capaz. Ayala tinha razão. O seu teatro pueril e estúpido era apenas uma máscara que escondia uma visão aguda e profunda, muita mais profunda do que a minha, com um sentimento exato e lúcido da amargura da vida. Compreendi mais uma vez que me enganara nos meus juízos. 
Ela acorda de repente. O nome de Bruno fá-la estremecer. Um sulco branco, hirsuto como a crina de um cavalo. Aborreço-a com a minha história, mas essa é a minha condição, a minha miserável condição – e de uma vez por todas, tenho de contar tudo! 
E agora, Bruno. Ouviste? Disse mais uma vez «Bruno». Desta história, gostas tu. Foste tu que ma contaste pela primeira vez em Narwia: 
… Subitamente, depois de ter percorrido o mar durante meses, com o coração a bater, meio inconsciente de felicidade e maravilhamento, insinuou-se nele uma gota de desgosto profundo, simplesmente humano, e a sua cor sombria diluiu-se nas águas do mar. 
Ao princípio lutou contra ele. Apertou os braços dos dois lados do corpo, agitou vigorosamente as mãos como se fossem barbatanas, para se integrar no grande ning do banco e manter rigorosamente o dolgan entre ele e os peixes a seu lado. Dera-se conta de que o banco que, à primeira vista, parecia avançar sem dificuldade, progredia de facto graças a um esforço rigoroso e incansável. 
Ou talvez fosse o à-vontade de um corpo único, harmonioso e saudável? Bruno sentiu-o quando foram atacados por um grupo de atuns no golfo de Malmö: antes de perceber o que estava a acontecer, o seu banco cindira-se em dois e avançava em direções opostas, deixando um espaço vazio no centro, que aspirava e paralisava, e enquanto os atuns, surpreendidos, lutavam contra a sucção das águas traiçoeiras, o banco dos salmões voltou e fechou-se tão rapidamente como duas mãos a bater palmas. A força de pressão da água empurrou os atuns para longe; perseguidos, estes fugiram para o Norte, agitando rapidamente as caudas. Bruno invejava os salmões. À sua maneira estavam bem na pele deles, enquanto ele estava dividido. Perdera o fluir musical das primeiras semanas. Mergulhou a testa febril na água e deixou-se levar pelas ondas. 
Escuta o mar. Ouve o sussurro constante da carícia das ondas no fundo arenoso – um peneirar incessante do grão. Ouve ao longe o ruído dos diques de um porto nórdico quando o cardume passa por ele; o dique não ressoa como a praia, reenvia um eco mais metálico, enquanto o da praia é mais abafado. Compreendeu assim que, na água, não consegue ouvir os sons que lhe chegam de frente, apenas os que vêm de trás ou dos lados. Conhece perfeitamente o sussurro das barbatanas de Yorik e de Napoleão – foi assim que apelidou os seus vizinhos –, mas o do peixe anónimo à sua frente, do qual só vê o rabo, escapa-lhe totalmente. Como não podia deixar de ser, Bruno via nisso o símbolo irónico da sua incapacidade: os seus ouvidos continuavam orientados para trás, para o passado. Continuava a pensar na sua vida em termos profanos, e o mais frustrante de tudo era que ainda não encontrara nenhuma frase que fosse exclusivamente sua e que ninguém pudesse tirar e fazer mau uso dela. 
Não conseguia deixar de refletir na sua vida passada. Volvia e revolvia na cabeça aqueles anos, como as contas de um terço. A loja mágica do pai; as alegrias da juventude; a maravilhosa irrupção da era de génio; a doença do pai; a humilhação da ruína; a venda da casa tão amada na Rua Samborska; o início da guerra; o fim da era de génio… tudo isso o enchia de tristeza, porque percebia que os seres humanos, pela sua natureza própria, eram incapazes de apreciar o dom da vida, com a intensidade e o fervor dos começos. Quando recebem a vida, não estão preparados para compreender o dom, e depois já nem se dão ao trabalho de pensar nela. É por isso que só a sentem com a lenta corrupção do corpo, quando a inexorável decadência se apodera deles. Seria portanto um erro chamar a isto «vida». Uma injustiça chamá-la assim: é a morte que eles vivem assim, com precaução e medo, como quem finca os pés na terra para não escorregar depressa de mais pelo declive abrupto. Bruno gemeu dentro da água e, por momentos, o cardume ficou em estado de alerta. 
Também perdeu o apetite. Durante a maré alta da manhã, quando os salmões pastavam nos ricos campos do mar, ou ao cair da noite, quando o grande ning afrouxava um pouco e o cardume descansava na água como um leque gigante, Bruno boiava entre os peixes silenciosos, que abriam e fechavam constantemente as guelras para se refrescarem das fadigas do dia, e sentia-se de mau humor. Mastigava plâncton, ou mergulhava para arrancar com os dentes alguma alga negra, suculenta, que mastigava sem prazer; um único pensamento o obcecava naquele abismo – algo fora desviado e esquecido. Algo se estragara para sempre. 
Um dia levantou a cabeça acima da água, olhou para os peixes e constatou com desespero que eles eram mais fortes do que ele. De horizonte a horizonte, o mar estava povoado de salmões que se aproximavam da maturidade. Quase todos, à exceção do franzino Yorik e de outros fracalhotes, eram tão grandes como Bruno. Com as barbatanas esverdeadas eretas, tinham um ar decidido, rude e sem graça, e Bruno perguntou a si próprio pela milionésima vez porque tinham eles empreendido aquela viagem e que desígnio cósmico presidia ao menor movimento. Virou-se de lado e nadou em direção à praia, como um homem. Os salmões indiferentes deixaram-no passar. Durante a maré alta, ninguém cuidou do dolgan . Bruno procurou Leprik, mas não o encontrou. Por instantes, meteu-se-lhe na cabeça a estranha ideia de que Leprik talvez não existisse, e fosse apenas a concretização inevitável dos votos de meio milhão de salmões que desejavam que um tal Leprik existisse. Mas lembrava-se perfeitamente do aspeto de Leprik, desde que este o acolhera no seu banco na costa de Danzig, e, além disso, havia qualquer coisa em Leprik e no ning sereno dele que não podia ter sido suscitado apenas pelos desejos da multidão, e que Bruno não conseguia definir. Havia no ning de Leprik um sentido de chefia por desconforto. Por distanciamento. Bruno não sentiu uma única vez, ao longo do seu périplo, qualquer amargura por ser outro a fixar-lhe o ritmo e a direção. Ao longe, junto a uma rocha, Bruno entreviu o focinho grotesco de um velho tubarão-martelo, que seguia constantemente o banco de salmões e se alimentava dele. Estes tinham-se de tal modo habituado a ele que ele já não despertava neles o impulso orga , o estratagema de fuga que tinham posto em ação contra os atuns, em Malmö. Bruno estava deprimido. Naqueles momentos – e aqui permito-me aventurar uma hipótese – devia ter saudades da sua pena. 
Bruno vogava entre o pasto dos salmões como um profeta de mau agoiro. Por cima dele, o céu estava encoberto. As nuvens eram tão pesadas, que dava a impressão de estarem imóveis e que o mundo deslizava por baixo. Em breve, rebentariam as tempestades de novembro. À noite apercebia-se das repentinas contrações de medo que atravessavam o banco. O coração apertou-se-lhe de repente, pois conseguira finalmente formular com clareza: compadecia-se dos salmões por eles não terem qualquer defesa contra o seu destino. 
Mas o que querias tu que eles fizessem, murmurou Bruno sacudindo-se, a nadar ao lado do banco, o que querias tu que eles fizessem para aliviar a aridez da sua vida? Que escrevessem livros, estabelecessem relações comerciais, encenassem peças de teatro, criassem partidos, tivessem desilusões amorosas, que tecessem intrigas e conspirações, fizessem guerras, tivessem amigos, fizessem confissões, participassem em competições desportivas e escrevessem poesia? Virou-se de costas e deixou-se embalar pelas pequenas correntes do banco. Eles são a encarnação da errância, morte a quem colaram barbatanas e abriram duas guelras, oh, as cores do grande baile de máscaras da morte! Oh, os alegres feiticeiros da sua coreografia! Bruno soprou uma bolhinha de água, como se estivesse a fazer um brinde: à vossa saúde, lépidos artistas da morte, generosos servidores da única evolução verdadeira – a que adapta de forma tão delicada e metódica a vida à sua morte. À vossa imaginação tão rica e inesgotável! À leveza dos vossos dedos que manejam com destreza tesouras e agulhas na confeção de milhares de máscaras e acessórios sedutores para os convidados do baile – trombas e presas, peles e chifres, tufos de cabelo, caudas e asas, barbatanas e carapaças, espinhas, unhas e garras, escamas e ferrões – que rico guarda-roupa! Ninguém irá nu ao baile! Mas quem vem ali? Rufem os tambores! Não é genial? Lá vem o mais inteligente dos convidados com a máscara mais enganadora: a morte, de óculos no nariz, barba postiça e um livro debaixo do braço! Tão alegre, tão colorida, tão incomparavelmente… 
Só tu, Bruno, vogas lentamente pelos recantos da sala apinhada, ao longo dos seus canais estreitos, deixando-te melancolicamente levar com os salmões que não foram convidados para não estragarem a atmosfera; mas, apesar de não terem sido convidados, os salmões são projetados nas telas dos cérebros nebulosos dos convidados, como um pesadelo constante e gelado; salmões que passam pelas ruas da vida como uma espinha nua e esbranquiçada que nunca será coberta pela carne consoladora da ilusão e do esquecimento fugaz, e assim erra, amaldiçoada… 
Deus todo-poderoso, disse Bruno (que nunca foi crente), com que fim impeles esses milhões de salmões à volta do mundo, em círculos infinitos? Porque é que não te contentas com um único salmão? Ou com um par de salmões? Porque é que até os seres humanos, os mais cruéis de todos os seres, aprenderam o truque dos símbolos? Nós dizemos «Deus», «homem», «sofrimento», «amor», «vida», empacotando assim numa caixinha toda a existência. Porque é que não fazes o mesmo? Não poderias abster-te de criar quando os pensamentos passam pelo teu espírito prolífico? Porque é que os teus símbolos têm de ser tão complicados e dolorosos? Será porque nos tornámos mais eficientes do que tu a adivinhar o sofrimento e a dor encerrados em cada uma dessas caixinhas, e preferimos não as destapar? 
Passadas algumas semanas, recebeu uma espécie de resposta. É o que acontece por vezes no mar: as questões essenciais propagam ondas até aos confins da terra, até às derradeiras cavernas dos abismos mais tenebrosos. Algures, uma essência sem nome desperta do seu longo sono, reavivada por essas ondas; liberta-se do emaranhado de algas das suas visões, ergue-se e ascende lentamente à superfície. Às vezes passam centenas ou milhares de anos até que uma resposta encontre a pergunta que lhe deu vida e nome, mas esse encontro é raro, se é que alguma vez existe. Então, desesperadas, elas perdem aos poucos a sua vitalidade e mergulham de novo nos braços soporíferos das algas. O meu Bruno costumava passar ao lado de partículas dessas sensações: crostas de ideias, cadáveres de audácia, metade ainda não maduras e metade já podres. Isso provocava nele apenas uma ligeira opressão, inexplicável, como se tivesse respirado gás durante uns segundos, sem o saber. Não o assustava. O oceano hermético dos seus escritos estava cheio de sensações semelhantes. 
Mas ele, justamente ele, beneficiara de uma resposta. Uma espécie de homenagem. Não sendo uma resposta direta às suas perguntas, também não as ignorava totalmente. E eu desconfio que alguém tenha usado a sua influência neste caso. Alguém que eu conheço fez um trabalho sério de reflexão, pesquisa e organização, totalmente incompatível com o seu temperamento sonolento. Alguém que se superou. 
Porque nessa tarde, no estreito de Kattegat, entre a Suécia e a Dinamarca, o banco de peixes deteve-se subitamente e sem razão aparente. Era um pouco cedo de mais para a maré da tarde, e Bruno acordou confuso da sua deriva sonolenta da tarde. Olhou em volta, o mar estava calmo e sem ondas. Uma brisa muito ligeira – como o ondular de uma cortina de palco – brincava com o azul do horizonte fazendo-o tremer. Os peixes, parados, batiam ritmicamente as barbatanas, indiferentes ao que se passava em volta. Um bando de grous passou por cima deles. Bruno começou a nadar com as mãos e a mexer os lábios, como costumava fazer nos momentos de tensão. Uma estranha inflamação aparecera recentemente em duas feridas que tinha no peito e isso preocupava-o. Ardia-lhe mais que nunca. Arranhou as feridas e ficou em expectativa. 
E foi então que, a pouca distância dos salmões escoteiros, o mar se abriu e um bando de golfinhos, surgidos das profundezas, saltou e passou como um raio diante dos salmões. Bruno assustou-se, mas os peixes em seu redor ficaram imperturbáveis. Os golfinhos, grandes e esverdeados, descreviam um semicírculo largo até que, por fim, se viraram e ficaram de frente para o banco. Não se hastearam as barbatanas dorsais nem se salientaram as laterais. Os dois bancos espiavam-se mutuamente. Os salmões – imóveis, duros, sombrios e silenciosos – e os golfinhos – mais gordos, luzidios e a transbordar de vida. Bruno perguntava-se se os golfinhos teriam a mínima ideia do que poderia ser a vida dos salmões. Por instantes, sentiu-se humilhado e inexistente aos olhos deles: não como um salmão aguerrido, mas como Bruno, o homem-esqueleto, o eterno exilado, talvez por se ter lembrado que os golfinhos são mamíferos como ele. 
Foi então que aquilo aconteceu: os golfinhos pareciam subitamente animados de um espírito diferente. O grande ning estendeu-se a todos eles e concentrou-os como para uma deliberação; depois voltaram a separar-se, formaram um grande círculo, e o espetáculo começou. 
Porque era isso mesmo: era como se os golfinhos quisessem prestar homenagem aos salmões pela sua viagem forçada, ou diverti-los para os recompensar do sacrifício absurdo. Bruno estava muito excitado: os golfinhos, meninos queridos do mar, nobres, sábios e orgulhosos, tinham sentido a terrível aridez que tão criteriosamente tentavam manter fora do âmbito das suas vidas. Isso exigia deles uma intervenção… 
Os golfinhos saltavam da água e rodopiavam graciosamente no ar. Aos pares e depois aos quatro, cruzavam as suas trajetórias sem chocar, como centelhas verdes, brilhantes, e depois alinhavam-se rapidamente numa fila comprida e erguiam-se na água, galopavam à superfície sobre a extremidade da sua cauda flexível, deixando atrás de si um rasto de espuma das ondas batidas, e, enquanto cercavam o banco de Bruno, riam no seu riso habitual e saltavam uns por cima dos outros, como verdadeiros acrobatas. 
Os salmões olhavam, impassíveis, mas agitavam as barbatanas um pouco mais depressa do que de costume. Bruno era todo atenção. O coração quase lhe rebentou do esforço para se manter silencioso. Embora o sentido do espetáculo lhe escapasse, percebeu que acabara de presenciar uma verdadeira obra de arte. A vastidão do mar, o vigor e a alegria de viver, a compaixão, a comunhão e a oposição, e a consciência da incapacidade – estava tudo ali, e a água em torno ardia ao contacto do seu corpo. Quis partir com os golfinhos, sem perceber bem porquê. Talvez por ser um homem que não era homem e eles peixes que não eram peixes. Ou talvez porque, por momentos, sentira que a vida era um dom que lhe pertencia por direito e que era digna desse nome. Os grous faziam um tal alarido lá em cima e inclinavam de tal modo a cabeça que por pouco não ficavam com um torcicolo. O mar estendia-se vasto, belo e azul. A luz irradiava das ondas opulentas. Bruno contemplava os golfinhos com um olhar de súplica. 
Eles desapareceram tal como tinham aparecido. Engolidos pelas ondas. Bruno sentiu a velha angústia penetrá-lo de novo. O ning dos salmões enfraqueceu de repente, e a maré alta da noite aproximava-se. Os peixes estavam a começar a esquecer o que tinham visto. Estavam sempre no presente. Só alguns solitários – entre os quais o pequeno Yorik – se demoraram ainda, à procura de algo que já se lhes varrera da memória, mas que lhes deixara uma impressão efémera e difusa. Tinham um ar tão triste que Bruno, projetando neles a aversão que sentia por si, os desprezou pela estupidez mecânica, a seriedade inútil que os impedia de procurar atalhos, e a falta de imaginação com que aceitavam o seu destino… 
Yorik roçou-se-lhe pelo ombro. Bruno virou-se e viu a boca do peixe num movimento de abrir-fechar enérgico. Respondeu com um movimento semelhante, mas sem entusiasmo. Por instantes, imaginou que o peixe lhe estava a fazer sinal de que também vira os golfinhos e compreendera o que se passara, mas Yorik estava apenas a manifestar o prazer que sentia com a comida trazida pela maré alta da noite. Napoleão, um companheiro tristonho que nadava à sua esquerda, já estava lançado numa perseguição louca atrás de uma nuvem de ovos de cavala que por ali passava. Bruno mergulhou e engoliu furiosamente enormes quantidades aromáticas de plâncton. Na sua imaginação via-se noutro sítio, no seu verdadeiro lugar – a flutuar despreocupadamente com os alegres golfinhos, levando a vida sossegada dos que se habituaram à ideia de que não podem mudar nada, e por isso se entregam às ilusões. 
Mas quando a maré baixou e o banco começou a preparar-se para a digressão nocturna, Bruno sentiu-se estranhamente orgulhoso. A legião de salmões formava uma coluna enorme que agitava lenta e ritmicamente as guelras. Todos tinham a mesma expressão de seriedade glacial que tanto o desgostara momentos antes. Mas, pela primeira vez desde que se atirara à água, Bruno pensou ter adivinhado porque é que escolhera os salmões e a sua odisseia. Porque era um salmão entre os homens. Mesmo enquanto golfinho, pertencia aos salmões. Bruno respirou tão fundo que os pulmões quase lhe saltaram do peito de júbilo: tal como o homem tem de aprender a amar uma mulher de carne e osso, a fim de poder pressentir, ainda que imperfeitamente, o amor puro e abstrato, assim Bruno devia tornar-se cada vez mais salmão a fim de conhecer a vida. A vida mais despojada de todas, aquela cuja linha geométrica é desenhada pelos salmões à superfície do globo. 
Fechou os olhos e esticou-se o mais que podia. Estava muito emocionado e esforçava-se por ignorar as dores agudas que a infeção lhe provocava no peito, acima das costelas. A dor não abrandava e Bruno coçou-se, irritado contra aquele corpo que, como sempre, o traía nos raros momentos de elevação que lhe eram concedidos. 
Demoraram-se mais uns momentos, remexendo a boca sem voz, lançando perguntas provocadoras e impacientes, e dando respostas sarcásticas e rápidas; Leprik estava atento aos mínimos ecos que os corpos deles devolviam, e eles estavam atentos a ele, até que, subitamente, inexplicavelmente, a ordem de partida foi lançada como um raio através do ning , foi imediatamente registada nas linhas laterais, brilhantes, do banco e, antes de se darem conta, já estavam a caminho.