Continuas a não querer falar comigo. A ignorar-me completamente, mas eu sei que estás aqui, em frente do pontão, atenta à mínima palavra minha. Dirijo-me a ti, porque não tenho mais ninguém com quem falar. Ruth e Yariv estão em Jerusalém, e de vez em quando eu tenho de me afastar deles, para ver se consigo resolver as coisas em mim próprio. Mas talvez nunca consiga fazê-lo completamente. Há pessoas assim. Não imaginava ser uma delas. Tudo me parecia tão claro e previsível. Sempre pensei que era possível adivinhar como se comportaria a pessoa X na situação Y se tivéssemos todos os dados necessários sobre a pessoa e a situação. Em criança conseguia prever uma data de coisas com precisão. Era uma espécie de mágico. Mas agora que cresci complicou-se tudo, tudo se tornou imprevisível e muito perigoso. Já não sabemos em quem confiar: por vezes até nos traímos a nós próprios. 
Já nem sequer com Ayala consigo falar. Vive com um músico qualquer a uns quarteirões daqui, mas proibiu-me de a ir ver desde o meu crime contra a humanidade – é assim que ela se refere ao assunto idiota com Kazik. A única maneira, disse-me ela com a cara contraída de ódio, a única maneira de poderes ser perdoado por uma coisa semelhante é escreveres outra história. Uma história expiatória. Até lá, por favor, não quero ver a tua cara feia. 
E agora tu também não me queres responder. As luzes do novo pontão estão a apagar-se. Nos restaurantes da beira-mar as cadeiras já estão viradas de pernas para o ar sobre as mesas. Telavive, final de 1984. Eu estou no pontão. Só restam três pescadores. Os outros fartaram-se e foram para casa. E tu estás tão escura, sempre em movimento. E tão desperta, sinto-o. Sinto-te perfeitamente. Diante de ti, a cidade contrai-se subitamente de medo. Torna-se evidente, uma evidência quase dolorosa, que não passa de uma ilha que não teve a coragem de ser ilha. 
Tive um filho. Dez meses depois de ter voltado de Narwia, nasceu o meu filho. Precisamente quando Ruth parou os tratamentos, o milagre aconteceu. Chamámos-lhe Yariv, um nome de que sempre gostei. Muito israelita. Procurei ser um bom pai. Tentei realmente, mas à partida sabia que não tinha qualquer hipótese. Sempre soube que as relações pais-filhos são difíceis, mas não sabia a que ponto. Ou são parecidos de mais connosco ou demasiado diferentes. E o fardo das expectativas, de que fosse como eu, não, por que carga de água, que fosse como Ruth. O contrário de mim. Saudável, sem problemas, honesto e forte. Mas o mais surpreendente é que ele não se parece com nenhum de nós. Se herdou algo de Ruth, foram só os aspetos negativos. É uma criança aflitivamente lenta, muito gorda, com uma expressão tímida e desajeitada. Na companhia das outras crianças é completamente impotente, como uma pomba gorda entre pardais vivos. Só comigo é que ele sabe teimar e fazer de herói. No princípio, não era assim. Algo se deteriorou pelo caminho. Observo-o a brincar sozinho num canto da creche e tenho vontade de gritar. Imagino-o daqui a trinta anos: um homem grande, hesitante, com a expressão levemente ofendida que os obesos frequentemente têm, de pé, desconcertado e perdido entre os antigos amigos do jardim-infantil. Ruth ri-se dos meus receios. Está a passar uma fase difícil, diz ela, é uma criança maravilhosa. Daqui a seis meses nem o vais reconhecer. Vai acostumar-se ao jardim-infantil e às crianças, e mesmo que fique assim, solitário, continuarei a amá-lo porque ele é o meu tipo de homem, ah, ah. Mas, de facto, ela também é obrigada a reconhecer nele alguns traços de carácter desagradáveis. Que é resmungão, exigente e medroso. Quando escrevo em casa, trepa para cima de mim e não me deixa escrever uma única palavra. «Sabes o que o papá está a escrever?», pergunta-lhe Ruth – passou o dia a tentar separar-nos – e ele, com um egocentrismo infantil irritante: «O papá escreve Yariv.» É uma boa piada, sem dúvida, mas eu sei que ele bem queria que eu estivesse o dia inteiro a bater o nome dele à máquina. E Ruth, que o ouve, acha graça e diz-me, tenta comportar-te como um adulto, Momik. E não o ataques com tanta força. Apesar de tudo, há uma ligeira diferença de idade entre vocês os dois. E quando eu respondo que não é de todo uma questão de idade, e que é preciso começar a educá-lo desde já para a guerra, começam as discussões. Já lhe tinha dito uma vez, antes do nascimento de Yariv, que, se me nascesse um filho, a primeira coisa que faria todas as manhãs seria dar-lhe um par de estaladas. Assim, sem razão. Para ele aprender que não há justiça no mundo. Que há apenas guerra. Foi quando começámos a andar juntos. Tínhamos dezasseis anos. Depois, durante anos, pensei que era uma ideia infantil e estúpida, mas quando Yariv nasceu achei que não era assim tão estúpida. Ruth respondera-me, há de chegar o dia em que ele te dará uma estalada de volta, e o que é que sentirás então? Respondi que me sentiria maravilhosamente bem. Que saberia que tinha preparado o meu filho para a vida. Ela disse, mas talvez ele não goste muito de ti. Gostar? Ri maldosamente, eu prefiro um filho vivo a um filho amante. E ela, estás a vingar-te nele pelo que não recebeste em casa, Momik. Aquele comentário infame que ela nunca devia ter dito pôs-me fora de mim, porque justamente eu recebi dos meus pais o saber sobreviver a todo o custo, que não se aprende na escola, e que não pode ser formulado na língua elegante dos eruditos pais de Ruth, que nunca na vida conheceram o verdadeiro perigo, um saber que só pode ser transmitido em silêncio, por contrações suspeitas dos cantos da boca e dos olhos, uma substância concentrada que passa através do cordão umbilical e é lentamente decifrada ao longo de décadas de uma vida: mantém-te sempre no meio da fila. Não reveles mais do que o necessário. Lembra-te de que as aparências iludem. Faz o possível por não parecer demasiado feliz. Não digas «eu» tão livremente. E, em geral, procura safar-te de tudo sem cicatrizes inúteis. Não esperes mais do que isso. 
É noite. Yariv já está a dormir e eu vou contemplá-lo. Está deitado de costas. Sinto arrepios de ternura pela coluna vertebral acima. «Também sentes formigueiros?», pergunta baixinho Ruth, e o seu rosto enche o quarto de felicidade. Quero dizer-lhe alguma coisa simpática, que lhe dê prazer, que lhe mostre que eu também gosto dele, mas sinto de repente um nó na garganta. «É bom que ele consiga dormir com barulho», digo eu por fim, «talvez um dia tenha de dormir com tanques a passar nas ruas. Ou de pé, a marchar na neve. Ou em celas apinhadas, com dez no mesmo colchão. Talvez em…» «Para com isso», diz Ruth e sai do quarto. 
Estou sempre a examiná-lo. É mais alto e forte do que a maioria das crianças da idade dele, o que é bom, mas tem medo delas. Tem medo de tudo. Tenho de subir com ele ao escorrega, porque não dá um passo sozinho. Volto a descer e deixo-o lá em cima a chorar de medo. Uma boa alma vem explicar-me que ele está com medo. Faço-lhe um sorriso angélico e frio e explico-lhe que, nas florestas, as crianças da idade dele já serviam de sentinelas e ficavam horas em cima de árvores a vigiar. A alma sensível recuou, horrorizada. Quero ver o filho dela, quando chegar a altura. As outras mães sentadas no banco param de conversar e olham para mim e para o pequeno idiota que continua em cima do escorrega a berrar. Acendo um cigarro e observo-o. Se alguma vez nos encontrássemos escondidos num bunker com os inimigos a perseguir-nos, como é que o calaria? Não teria escolha, penso. Espero apenas ser capaz de lhe ensinar a fazer-me o mesmo se me tornar um fardo para ele. Anda daí, medricas, digo em voz alta com uma aparente calma, apagando o cigarro na sola do sapato e subindo para o ajudar a descer. Mas, quando a sua boca molhada se cola ao meu pescoço a tremer com soluços desesperados, sinto o pêndulo da humilhação infantil deslocar-se do seu coração para o meu com tanta força que quase me atira do escadote abaixo. Perdoa-me, meu filho, digo-lhe para mim próprio, perdoa-me por tudo, sê mais inteligente e mais paciente do que eu, porque eu não tenho forças, não me ensinaram a amar. Sê forte para conseguires suportar-me, ama-me. E para de chorar como uma miúda, segredo-lhe em voz alta. 
Acabaram-se os momentos de ternura. Ruth sabe brincar com ele. Eu quero sobretudo ensiná-lo. Prepará-lo. Não esbanjar os anos preciosos em que o cérebro está mais desperto e recetivo. Ruth gosta muito de brincar com ele. Desenha-lhe carros e modela figuras em plasticina. Quando brincam juntos, as suas vozes doces confundem-se. Eu ensino-lhe a ler os números. Ela derrete-se toda quando ele comete um erro e diz por exemplo: «O pai e a mãe está bons.» Eu acho graça, mas corrijo. Não há tempo para erros. Ele está de pé em cima da nossa cama e segue com o olhar uma mosca que está pousada na janela, de repente estende a mão, apanha-a por acaso e esmaga-a com força. Depois olha para a mão, surpreendido, e pergunta porque é que a mosca não voa. Ruth, um pouco tensa, diz-lhe que a mosca está a dormir, e olha para mim. Eu digo-lhe a verdade. E explico. «Mataste-a», repete Yariv depois de mim, saboreando a nova palavra na sua boca fresca e terna. Sinto a minha cabeça ficar vazia. Devia estar contente, mas de facto não há nada para estar contente. Nada por que esperar. 
«Faz um pequeno esforço com ele», diz ela à noite, com os olhos pregados no teto. «Podes causar um prejuízo a longo prazo. Seria uma pena.» Eu grito dentro de mim, não me deixes continuar a destruí-lo. Manda-me embora daqui. Dá-me um ultimato que eu seja obrigado a aceitar. Mas respondo-lhe que a história que estou a escrever, a que o avô Anshel contava ao alemão Neigel, deve estar a influenciar-me bastante. A história, e todas as leituras sobre o assunto, e tudo o que isso desperta em mim. Ruth conhece-me bem de mais para me propor que deixe de a escrever. De qualquer maneira, nunca proporia uma coisa semelhante: quando muito, sugeriria. Evocaria a possibilidade da maneira mais subtil. Ruth acha que todos temos grandes poderes que nos escapam, e que devemos agir com grande prudência nas nossas relações com os outros, para não destruir alguma coisa, para não os ferir com os nossos conselhos que podem ser errados e destrutivos, e com as nossas tentativas para os influenciar. É tão madura. Mas porque é que tudo o que ela faz me parece tão trabalhoso? Estamos deitados na cama a falar sobre a diferença entre escrever um poema ou um romance. «Um poema é como um namoro», diz ela, sorrindo no escuro, «e um romance é mais como o casamento: vive-se com as personagens muito tempo após o amor e o desejo do início se terem apagado.» É estranho que ela tenha dito tal coisa. Nem parece dela. Eu sou o único que diz coisas maldosas aqui em casa. Por qualquer razão conseguiu assustar-me por um momento. «Um romance», digo-lhe em voz baixa, «é como um casamento: duas pessoas que se amam e se magoam um ao outro, pois quem hão de magoar?» 
Calamo-nos. Procuro lembrar-me se ela trancou o fecho de baixo da porta de entrada. Se lhe perguntar, ela enerva-se. Provavelmente fê-lo. Mais vale acreditar que sim e deixar de me preocupar com o assunto. Às vezes digo-lhe que tenho vontade de fazer as malas e de ir viver para outro lado. De recomeçar tudo. Sem passado. Só nós os dois. «E Yariv», lembra-me ela, acrescentando que é tarde de mais para fugir, e que este é o nosso último porto. «Oh», respondo eu, «que frase tão estúpida, “último porto” é coisa que não existe. É impossível ligar-se de forma definitiva a um lugar ou a uma pessoa.» «Para onde quer que vás, Momik, não encontrarás repouso. Não são os lugares que temes, mas as pessoas.» A sua voz tão agradável, tão calma, o que é que lhe aconteceu de repente? «Tens medo de toda a gente. O que é que vês em nós, Momik? O que pode haver de pior que o que já conhecemos?» E eu: «Não sei. Não tenho forças para essas perguntas todas.» Neste momento, devia ter-lhe perguntado se fechara também em baixo. Perdi a oportunidade. Em geral ela fá-lo, quando se vem deitar, depois de fechar a torneira do gás. Um momento: será que fechou o gás esta noite? De repente, estou novamente a falar sobre o Holocausto, sem sequer saber como voltei a ele. De qualquer maneira, volto sempre a ele. Sou o pombo-correio do Holocausto. E pela milésima vez, numa voz sem grande convicção, pergunto a Ruth: «Como é possível, diz-me, como é possível continuar a viver depois de ter visto aquilo de que o ser humano é capaz?» «Há pessoas que são capazes de amar», diz-me ela por fim (com uma certa impaciência). «E que tiram do Holocausto uma conclusão precisamente oposta. Porque há duas conclusões a que podemos chegar, não é? E o Holocausto justifica esses dois pontos de vista totalmente diferentes. E há pessoas que amam e sentem compaixão e fazem o bem, sem qualquer relação com o Holocausto. Sem estar sempre a pensar nisso. Porque talvez fosse um erro. Porque não pensar nisso assim, Momik?» «Porque tu própria já não acreditas nisso.» «E evidente. Vivo contigo há anos e a tua forma de ver o mundo influencia-me. É mais fácil uma pessoa tornar-se como tu do que permanecer como eu. Não gosto de mim quando dou por mim a pensar como tu. Tenho de lutar contra ti.» «Sabes que eu tenho razão. Mesmo que digas que há pessoas que pensam de forma diferente e que vivem bem com isso, não consegues consolar-me. Eu faço parte dos infortunados que só veem o que se passa nos bastidores da vida. E o esqueleto por baixo da pele.» «E o que é que se vê aí? Diabos, o que é que vês que nós não saibamos?! O que é nos trazes de novo?» (Está a ficar cada vez mais zangada. É raro eu conseguir pô-la fora de si.) «Não trago nada de novo. É sempre a mesma coisa: pessoas sempre a matarem-se umas às outras. Só que o processo é apresentado em câmara lenta, com delicadeza e arte, e por isso não é tão chocante. Toda a gente assassina toda a gente. A máquina de extermínio sofreu algumas alterações, passou à clandestinidade, mas eu estou sempre a ouvir o ruído do seu motor. Estou a preparar-me, Ruthy. Sabes bem.» «Disse-me este dedo», diz ela sorrindo. «Ri-te à vontade. Um dia ainda nos encontraremos todos outra vez nos vagões. Mas eu, contrariamente a vocês, não ficarei surpreendido ou humilhado. Nem sofrerei com as separações e as despedidas. Não lamentarei nada do que ficou para trás.» «Já sei. Por acaso o meu marido é o poeta que escreveu O Ciclo dos Objetos que deu muito que falar. Leste?» «Folheei.» «O meu marido nunca me deixa oferecer-lhe prendas de aniversário, e detesta todas as cerimónias que evoquem minimamente algo de permanente, sim, conheço bem o homem.» «Não quero ter laços que me prendam.» «E as pessoas, Momik?» « Idem .» «Mesmo Yariv e eu?» Cala-te, estúpido. Mente e diz-lhe que te queres ver livre dos outros, mas não dela. Porque sem ela, sem a sua fé e inocência, a tua vida não tem sentido. «Sim, mesmo tu e Yariv. É possível que eu não possa suportar a vossa falta, mas gostaria de pensar que sou suficientemente forte para o conseguir. Ficaria muito desiludido comigo próprio se na hora da despedida não conseguisse suportar a dor.» Ruth fica calada. Depois diz vivamente: «Se acreditasse numa única palavra do que acabaste de dizer, levantava-me já e partia. Mas já ouço isso há quase vinte anos, desde que nos conhecemos, de facto. Às vezes, há períodos em que te tornas mais adulto e em que vês as coisas de forma diferente. Penso que falas assim por medo, meu amor.» «Poupa-me o “meu amor”, está bem? Não estamos num melodrama turco.» O seu sorriso de dentes alvos brilha no escuro. São quatro voltas na fechadura de baixo. Agora tenho a certeza de que só ouvi duas. Sinto o seu sorriso a pairar no quarto. A boca é a coisa mais bonita do seu rosto um pouco abatatado. Tem uma pele avermelhada e está sempre um pouco irritada na zona das narinas e debaixo dos olhos. Quando começámos a andar juntos no liceu, riam de nós nas nossas costas. Não éramos o par mais bonito da aula, longe disso. Punham-nos alcunhas cruéis e humilhantes. Eu não conseguia impedir-me de reagir àquela troça de maneira bastante feia, mas Ruth, com inteligência e serenidade, conduzia-nos para onde o que contava éramos nós os dois, e não o que diziam os outros. Mas às vezes ainda ouço o eco dos sarcasmos deles. E Ruth acrescenta: «Já te conheço bastante bem. Estamos juntos para o bem e para o mal há montes de anos. Leio os poemas que escreves, mesmo os que não publicaste por medo que prejudicasse a tua imagem de jovem poeta rebelde. Conheço-te desde que começaste a fazer a barba, tinhas uma mecha de cabelo que hoje já não tens. Vejo-te dormir e rir, quando estás zangado ou calmo, quando estás triste e quando te vens dentro de mim. Há um milhão de noites que dormimos juntos, lado a lado, como duas colheres. Ou, por vezes, como duas facas. Quando tens sede à noite, trago-te água na minha boca. Sei como gostas de beijar e como detestas que eu me abrace a ti em público. Sei imensas coisas sobre ti. Não tudo, mas muito. As coisas que sei são muito importantes para mim. Como para ti são importantes os livros e as personagens sobre as quais escreves. A nossa vida a dois – e agora com Yariv – é a obra modesta que eu escrevo dia a dia, hora a hora. Nada de imenso ou audacioso. Nem muito original. Milhões de homens e mulheres o fizeram antes de mim, e certamente melhor do que eu. Mas é a minha vida e eu vivo-a com todas as minhas forças e a minha vontade. Não, agora deixa-me falar. Vi bem como ficaste feliz quando começou a história com Ayala. Magoou-me imenso. Sofri muito. Mas, apesar da humilhação e do ódio que sentia por ti, dizia para mim própria às vezes (quando conseguia acalmar-me e pensar) que uma capacidade de amar como a tua, mesmo profundamente enterrada, acaba sempre por vir ao de cima. E estava disposta a esperar. Não por causa da síndroma de Solveg, como lhe chamaste então, mas por puro egoísmo.» «E se outra mulher colher os frutos – desculpa-me a expressão?» «Bom, talvez isso possa acontecer. Mas será apenas por pouco tempo. Sei-o.» «O que é que tu sabes?» «Que precisamos demasiado um do outro. Mesmo que não o reconheças, porque és um porco chauvinista e infantil. És mesmo imaturo, um verdadeiro adolescente. A sério, é verdade que somos muito diferentes um do outro, mas queremos as mesmas coisas. As nossas vias para lá chegarmos é que são diferentes. Somos como duas chaves diferentes que abrem o mesmo cofre. Desculpa-me se falo tão bem. O meu marido é poeta, e agora é também um pouco escritor.» «A propósito, fechaste bem a porta?» «A fechadura de baixo também, podes ficar descansado.» Calo-me (esqueci-me de perguntar sobre o gás!). O amor nunca sai vencedor, respondo-lhe no meu coração. Só nos romances é que os escritores se sentem obrigados, forçados mesmo, a fazê-lo triunfar no fim. Mas na vida não é assim. O amante deixa friamente o leito da apaixonada atingida por uma doença contagiosa. Raros são os que se suicidam com o par agonizante. A corrente forte e despótica da vida separa-nos. Leva-nos para longe, por estupidez e egoísmo, como animais. O amor nunca sai vencedor. Ruth aproxima-se de mim. Começa a acariciar-me, mas eu continuo um pouco distante. «Preciso de falar mais um pouco antes, está bem?» «Está bem», Ruth suspira e sorri, «devia ter casado com o campónio caucasiano que andava atrás de mim e queria comprar-me por sete camelos: com ele não precisaria de tantos falatórios antes.» 
«Sabes, para mim a coisa mais terrível no Holocausto foi o apagamento da individualidade humana. A singularidade de uma pessoa, os pensamentos, o carácter, a biografia, os amores, as doenças e os segredos não significavam nada. O ser humano foi degradado ao nível mais baixo da existência, reduzido a carne e sangue. Isso enlouquece-me. Foi precisamente por isso que escrevi Bruno .» «E Bruno ensinou-te a lutar contra esse apagamento?» «Sim. De uma forma hipotética, sim, ainda que não me tenha resolvido nada na vida quotidiana. Bruno é um belo sonho. E mais do que isso: as coisas que ele me revelou assustaram-me, despertaram em mim uma grande resistência, que também sinto agora que estou embrenhado na história de Wasserman e do alemão. Sinto que tenho de me proteger do que ele me revelou. E estou a lutar um pouco contra ele também.» «É contra ti que estás a lutar.» 
«Talvez. Talvez. Mas não me posso impedir. Escuta. Não sorrias. Ouço o teu riso no escuro. Quero estar preparado para a próxima vez que isso nos acontecer. Não apenas para poder separar-me dos outros sem sofrer muito, mas para poder separar-me de mim próprio também. Queria ser capaz de apagar em mim tudo o que me possa causar um sofrimento insuportável se for aniquilado ou degradado. É impossível, sei-o bem, mas às vezes planeio-o etapa a etapa. Anular todos os meus traços, os meus desejos e paixões, e os meus dons também – imagina só o feito sobre-humano que isso não seria: ganharia o Prémio Nobel da física humana, que dizes?» «Horroroso.» «Não, a sério: vou muito simplesmente mergulhar na morte sem sofrer nada. Sem dor nem humilhação. E sem qualquer desapontamento. Eu…» «Já estarás morto à partida. Com tantas defesas contra as pessoas nunca poderás ter prazer com elas. O ódio e a suspeita não te darão tréguas. Viverás pela espada. Convencer-te-ás cada vez mais que todos os outros são como tu, visto que é a única coisa que conheces. E as pessoas que pensam como tu matar-se-ão umas às outras sem escrúpulos, porque a vida e a morte não têm para elas nenhum valor. Estás a descrever-me um universo de mortos, Momik.» «Estás a exagerar, como de costume. Mas talvez eu tente viver nesse mundo. A alternativa também não é sempre muito fácil para mim.» «Estás a falar da vida que levas aqui? Esta vida normal e simples?» «Simples, é isso. Demasiado simples.» «E a escrita não te ajuda? Dizes sempre que é o que te salva.» «Não. Estou bloqueado. Wasserman traiu-me. Introduziu um bebé na história.» «Então talvez valha a pena eliminar o bebé.» «Não, não. Se o bebé lá está, deve ser por alguma razão. Sabes como eu escrevo. Parece-me que estou sempre a citar alguém. Mas, desta vez, já não tenho forças. E não percebo o que aquele bebé quer de mim. Já tenho dificuldade com o meu. Nos últimos tempos, só me acontecem coisas desagradáveis. Até tenho medo de falar. Às vezes nem tenho força para passar de um minuto ao outro. As pessoas despertam-me ódio. Não se trata da minha desconfiança habitual, mas de verdadeiro ódio. Não tenho coragem para me confrontar com a vida delas. Ando na rua e afogo-me na corrente da vida delas. As lágrimas, por exemplo.» «Perdão.» «Olho para os rostos, e sei que um décimo de milímetro debaixo da pele, na glândula lacrimal, estão alojadas as lágrimas.» «As pessoas não choram tão facilmente.» «Mas as lágrimas estão lá. Às vezes, quando o autocarro para de repente numa rua, imagino as lágrimas a chocalharem. Todo o choro que ficou lá dentro. E a dor. E a assustadora fragilidade do nosso corpo. E os nossos desejos e prazeres. Que carga tão perigosa para um corpo tão pequeno. Como enfrentá-la? Compreendes o que te estou a dizer? Não digas nada. Não me respondas. Sinto que já não tenho ânimo para compreender a vida de um único ser humano. Se não fosse a história do avô Anshel, voltava aos meus poemas-objeto.» «Fica sabendo que eu gosto muito de ti.» «Apesar disto tudo?», perguntei com um ar infeliz e uma réstia de esperança. «Talvez precisamente por causa disso.» «Eu também gosto de ti, mesmo se por vezes me pões louco com a tua ingenuidade jesuítica.» «Sabes muito bem que não se trata de ingenuidade. Como é que ainda podia ser ingénua vivendo contigo? É uma escolha. E além disso – podes sempre castigar-me: quando a debandada geral começar e eu estiver aqui com dois bebés e mais um no ventre, podes fugir sozinho, e eu não poderei dizer que não me preveniste.» «Combinado, digo eu. Fechaste o gás?» «Acho que sim. Mas que importância tem isso? Agora vem a mim. Confessa que te mereci bem esta noite.» Viro-me para ela, os nossos rostos tocam-se suavemente no escuro, só os rostos, lentamente, reconciliados, como a reler velhas cartas, depois entrincheiro-me dentro dela com toda a força, e por momentos tenho paz, um abrigo, alguém em quem posso tocar e de quem não tenho medo, e movemo-nos juntos cuidadosamente, para manter a ternura, subindo e descendo como uma caravana comprida e cansada, mas, quando Ruth me morde os lábios e estremece, eu regresso ao país árido e sem amor, cujas imagens vejo desfilar no ecrã gasto do meu cérebro. Imagens da espécie humana. E quando me venho, lembro-me de fazer os ruídos adequados, apesar de não sentir verdadeiro prazer há semanas. Não tem importância nenhuma. Como cuspir. 
A vida arrastava-se. Eu tornara-me uma carapaça vazia. Mesmo os raros canais em que, outrora, havia uma qualquer comunicação com outros, estavam cortados. Por essa altura, parei de escrever a história do avô Anshel e comecei a dedicar-me a outro projeto: coligir dados para uma Enciclopédia do Holocausto para a juventude. A primeira no seu género, para evitar que as nossas crianças tenham de o inventar ou recriar nos seus pesadelos. Já tinha uma lista de cerca de duzentas entradas importantes: criminosos e vítimas conhecidos; principais campos de concentração; obras escritas durante e depois. Dei-me conta de que a seleção, transcrição e redação dos dados me aliviava. 
Tive de abandonar a ideia por não encontrar ninguém que financiasse o projeto. Não tenho jeito para me autopromover. Acabo sempre por me enervar e gritar e pedem-me que abandone os locais. Em casa também me tornei insuportável e não conseguia evitá-lo. Estava muito mal. Ruth foi procurar Ayala e falaram as duas durante quatro horas seguidas. Imagino que tenham chegado à conclusão do que seria melhor para mim. Isso chateou-me: ambas recusaram dizer-me sobre o que tinham falado. Como se eu fosse uma criança. Precisamente nessa altura (porque é que acontece tudo ao mesmo tempo?), a esclerose da minha mãe agravou-se. Não consegui ir com ela ao hospital para todas aquelas análises repugnantes. Sentia-me incapaz de a acompanhar. Foi Ruth quem o fez. Pensava cinicamente que a minha mãe também nunca se tinha ocupado do avô Anshel, e que não fora capaz de tocar no pai quando ele estava a morrer, e agora era a vez dela. A doença – como um animal de presa – isolara o animal mais fraco do rebanho e encurralara-o: os outros continuaram a correr em frente com o olhar fixo no horizonte. É a ordem das coisas, disse para mim próprio, mas não estava a ser sincero: tinha medo que lhe acontecesse alguma coisa, medo do que me poderia acontecer quando ela já não fosse deste mundo. Nos últimos anos deixara de ter paciência para ela. Começava a enervar-me ao fim de cinco minutos de conversa com ela. Tudo o que ela dizia, as suas opiniões primitivas, as suas desconfianças, davam comigo em louco. Mas agora que pensava que podia perdê-la, sentia-me cheio de angústia e remorso e de um sentimento de perda e de injustiça. 
Os médicos deram alta à minha mãe, dizendo que tudo iria correr bem, dando-nos assim a entender que não havia mais nada a fazer. Sugeriram que ela viesse morar connosco. Desta vez Ruth opôs-se. Disse que nós próprios estávamos numa situação tão difícil que ela mal conseguia tratar de mim e de Yariv. Então reconheces, gritei apavorado, mas ao mesmo tempo com uma alegria maldosa, reconheces que é tudo precisamente como eu disse: que até nas famílias reinam o oportunismo e o egoísmo. Sim, disse Ruth calmamente, mas aqui, Momik, trata-se de um problema que se pode resolver com dinheiro: o meu pai pode ajudar-nos, e nós vamos arranjar uma enfermeira que fique com ela. Por favor, Momik, não percas o sentido das proporções: não podes pensar que estamos perante uma câmara de gás, lá porque alguém te insultou num sinal vermelho! 
Eis o que disse a minha delicada mulher. 
Estás a ficar impaciente. Finalmente começas a reagir: sopras, bufas e cospes em todas as direções. Deves estar a pensar que eu estou a prolongar a história interminavelmente, que me agarro aos detalhes por aversão à história em si. Não deves ser tão severa comigo. Mas que te importa? Tenho a certeza de que não queres saber: tu também te proteges da dor dos outros. Não é para isso que existem os diques? 
E um belo dia, bateram à porta, e Ayala entrou. Veranil como sempre, com os cabelos revoltos, espalhando cheiros de mar e de bronzeadores. Ruth recebeu-a com um sorriso ligeiramente crispado. E ótimo teres vindo. Tocaram-se. Fui para o quarto e deitei-me na cama. Tinha uma dor de cabeça enorme. Elas ficaram sentadas na cozinha, a sussurrar, como a minha mãe costumava fazer em iídiche com a avó Henny, quando queria dizer mal do pai. Mais tarde, ouvi Ayala aproximar-se, virei-me sobre a barriga e fechei os olhos. Ayala disse: «Levanta-te e para de te compadeceres de ti próprio. Se queres realmente ultrapassar isso, começa por fazer um esforço. Não envenenes a vida à tua volta. Não mereces que sejam simpáticos contigo.» Falava calmamente, como de costume, com um leve desprezo que me dava a volta ao estômago. «Pensámos que devias alugar um quarto», disse Ruth, afastando-se da porta. «Podes ficar lá sozinho, tranquilo, a escrever. Sem desculpas. Não podes continuar a torturar as pessoas à tua volta. A Segunda Guerra Mundial só durou seis anos, mas em ti já dura há trinta e cinco. Basta.» 
Olhei para ambas, juntas na entrada como duas lindas peças de mosaico. Dei comigo a desejar que elas se aproximassem e se metessem na cama comigo. Porque não? Não seria a primeira vez. Que mais pode alguém desejar para além do contacto físico? Há tantas coisas que um homem pode resolver com uma mulher. Qualquer mulher. O importante é ter uma mulher por baixo. Não foi para isso que elas foram criadas? Olhei para elas, e brinquei com os elementos do mosaico: os seios redondos e pesados de Ayala no torso esguio de Ruth. Nada mau. Era bom que fosse possível. Ayala usa sempre biquínis minúsculos de renda e Ruth cuecas à antiga. Há alguns anos estive tentado a pedir-lhe que comprasse cuecas mais sexy , mas pensei no olhar que ela me deitaria. Era indigno dela excitar-me dessa maneira. Esse aspeto foi sempre um ponto fraco nas nossas relações: não sei por que razão, mas ficámos sempre como dois liceais de dezasseis anos. Temo que já não tenha remédio. Fixei o meu olhar concupiscente em Ayala. Mas não se passou nada: nem cântaro, nem morangos. Tinha perdido todo o meu encanto. Estava condenado à prisão perpétua segundo a lei de Zenão. Ayala disse: «Tens de decidir. Já.» 
Elas tinham razão, como de costume. As mulheres são sempre mais perspicazes. Encolhi-me na cama e pus-me a refletir. Tive um momento excecional de lucidez. Compreendi que, quase sempre na minha vida, decidia por exclusão. É uma espécie de deformação. Sei sempre muito bem o que não quero fazer, o que me assusta e faz recuar. E assim, por um processo de eliminação, negação, contradição e conflito, um outro ser nasceu em mim, um ser que me é estranho e de quem não gosto. Fez-se-me luz instantaneamente: era prisioneiro de mim próprio. Como é que uma coisa semelhante podia ter acontecido a alguém tão consciente de si próprio como eu, alguém que é o seu próprio crítico mais severo? Como é que um erro destes se produziu? Afastei o cobertor. Levantei-me, peguei no telefone e marquei o número de casa, esperando que fosse a minha mãe a responder e não a enfermeira. 
Foi a minha mãe que respondeu. Disse «Alô». Só quem a ouviu dizer isto pode compreender. O medo na sua voz. A derrota a que ela se resigna no momento em que o telefone começa a tocar. Alô, catástrofe, vem, cai-me em cima, há anos que te espero. Já não tenho forças para esperar mais. Vem, mundo, realiza-te, bate-me, às vezes o golpe é menos intolerável do que a espera. Alô. 
Escutei várias vezes o seu alô, que se ia tornando cada vez mais agudo e apavorado. Lembrei-me do pânico dela e do pai quando batiam à porta (uma vez por ano), e das discussões em voz baixa para saber quem iria abrir. Escutei. Até tinham medo de estar comigo e faziam os possíveis para não se demorarem demasiado junto desta fantástica e decerto ilusória encarnação de todas as suas esperanças. Alô, alô, alô, mãe, sou eu a criança que vocês desejaram amar com todas as vossas forças, com alegria e simplicidade, a criança que vocês mantiveram à distância para não provocar o Destino. Alô. Desliguei. Disse a Ruth e a Ayala que tinham razão. Supliquei-lhes que não me deixassem, acrescentando que ia fazer todos os possíveis para me libertar daquilo. Nessa mesma semana Ruth foi comigo a Telavive para alugar um quarto. Um quarto sem telefone. Queria estar longe e cortado de tudo. E, em Telavive, havia sempre a possibilidade que Ayala viesse passar uma noite comigo. Não pedia mais do que isso. Ela não veio. Foi aí que escrevi a sexta e última versão da história que Anshel Wasserman contou ao alemão de nome Neigel. 
 
 
Um momento. Lá vêm eles. Do extremo do pontão. Os três pescadores, corpulentos, de bigode, a agitarem os punhos na minha direção. Para mim? O quê… que me vá embora daqui? Mas o que é que eu vos fiz? Dou má sorte? Eu? Estão doidos. Têm uma expressão de raiva. Não consigo perceber o que dizem. Mas a raiva, essa, compreendo-a bem. Não nos podemos enganar. Mas eu não saio daqui. Estamos num país livre, não é? Ai, não me toquem, idiotas! O que é que… Socorro! Soc… 
Eles esfregam as mãos de contentes. Cospem para cima de mim, na água. Voltam triunfalmente para o lugar deles no extremo do pontão. Para minha grande surpresa, a água não está nada fria. Tinha muito mais frio lá fora. Deixo-me arrastar pelas ondas suaves. Sou uma alga. Espero com algum receio. Desde que voltei de Narwia, não ousei meter o pé na água. Mas o que é que se passa? Os pescadores estão a gritar de alegria. À luz da Lua, vejo as canas deles arqueadas. De repente – à volta das minhas ancas, uma viscosidade escorregadia. Enrola-se e desaparece. O mar espuma à minha volta, depois acalma-se para me acariciar e fazer rolar as ondas alegres… 
– Olá, Neuman. 
– Olá. 
– O mundo é pequeno, não é?