Otto: «Vivíamos há um ano na floresta, quando aquilo aconteceu. Uma noite, voltava eu de Borislav, encontrei na entrada número um da mina um bebé embrulhado num cobertor esfarrapado. O pequenito estava ali deitado, tranquilo, sem fazer o mínimo ruído, e olhava de frente para mim com o seu olhar adulto, e deviam ter visto a cara de Fried quando entrei e lhe estendi o presente. Oh! deu uma olhadela para dentro do cobertor, e o rosto fechou-se como uma porta com o vento. E a única coisa que conseguiu dizer foi: “O que é? O que é?”, como um papagaio, embora tivesse visto muito bem o que era, e depois perguntou: “Está vivo?” e eu pus-lhe o embrulho nos braços e disse: “Verifica, verifica, o doutor és tu, não é?”» 
Olharam um para o outro durante um momento. O doutor, com um certo cansaço e desconfiança, e Otto, comovido e indeciso. O Dr. Fried pousou o bebé sobre uma caixa de madeira que lhe servia de mesa e foi lavar as mãos na bacia. Esse gesto despertou-lhe recordações do tempo em que tinha muitos pacientes. Fried era um médico dedicado, que não apreciaria este louvor nem outros. Nunca reconheceu que tratava os seus semelhantes com a única preocupação do seu bem-estar. Preferia considerar-se um combatente dos inimigos do homem. Aproximou-se, sacudindo as mãos para as secar e afastou uma ponta do cobertor para ver o bebé. Este tinha um ar bastante prematuro, um pequeno aborto, com olhos cinzentos que pareciam cobertos por uma espécie de membrana, e uma pele clara toda engelhada, como se tivesse estado muito tempo dentro de água. Os punhos minúsculos, avermelhados, agitavam-se no ar às cegas, e a testa estava franzida do esforço. Fried: «Esta agora! No meio da floresta! Por amor de Deus, quem é que pod…» Otto interrompe-o: «Alguma pobre mulher. Esperava certamente que morresse depressa e sem sofrimento.» Fried: «Mas os ursos podiam tê-lo devorado, bolas!» E Otto: «Vais tomar conta dele, não é, Fried?» Fried: «Quem? Eu? O que posso eu fazer por ele aqui? É melhor voltares a pô-lo onde o encontraste.» Wasserman: «Mas o velho doutor passava distraidamente o dedo pelo peito delicado do bebé e, de repente, deu um salto para trás, com um nó de emoção na garganta. Quando olhou mais atentamente, reparou que tinha uma substância mole, gordurosa e esbranquiçada na ponta dos dedos. Otto também se aproximou para tocar na barriga do bebé. Depois cheirou os dedos e provou. Otto: «Parece o pó das asas de borboleta, não é?» 
Aqui, Neigel inclina-se subitamente para a frente, por cima da secretária e, pela primeira vez desde que Wasserman começou a ler esta noite, dirige-lhe a palavra: «Não, Wasserman, é claro que não é pó de borboleta. Isso sei eu, por experiência pessoal, se mo permites.» E como Neigel tem dois filhos, explica a Wasserman que os bebés nascem por vezes com o corpo coberto por uma «espécie de camada gordurosa, que os protege de qualquer coisa, já não me lembro bem o quê». Mas Anshel Wasserman, numa voz que não faz o menor esforço por parecer indulgente (« Oi , estou farto da presunção deste bronco! Mal eu me deixo levar um pouco pelas asas da imaginação, ele assusta-se e olha para trás. Vai ter de habituar-se aos erros desta história!»), explica a Neigel que, se ele, Wasserman, diz que é pó de borboleta, é mesmo pó de borboleta, e Neigel, um pouco vexado, diz mais baixo: «Mas há realmente uma espécie de pó sobre o corpo dos recém-nascidos.» E Wasserman, feroz: «E sobre a epilepsia de Otto, descobriu alguma coisa?» Neigel: «Sim, sim. E não sejas tão impertinente. Stauke ensinou-me umas coisas. Mas não sei o que é que Otto pode fazer se tiver um ataque.» Folheia o bloco e rasga uma folha coberta com a sua escrita. «A propósito, o que é que disse a Stauke?», pergunta Wasserman, como quem não quer a coisa, e Neigel responde: «Ah, uma história sobre uma tia doente em Füssen! Ficou muito contente por poder ajudar-me. A propósito, no que respeita aos coelhos e às raposas fizeste erros colossais. Os coelhos não migram, e as raposas não hibernam. Que disparates! Quando me contaste isso, pensei que estavas enganado, pois eu percebo um pouco de coelhos e raposas, mas tive mais confiança em ti do que em mim. Pensava que os escritores soubessem mais do que os outros, e Stauke riu a bandeiras despregadas. Riu na minha cara quando lhe perguntei. Trata de ser mais rigoroso na próxima vez.» 
«O bebé está a chilrear», diz Wasserman. «O quê? O que disseste?» «O bebé está a chilrear. Voltámos à nossa história. Onde íamos?» (Wasserman: «Dentro do cesto de papéis de Neigel, vi um envelope azul, sem nada de militar, e mesmo sem os óculos reparei na escrita delicada e feminina. Ainda antes de compreender de que se tratava, fiquei com pele de galinha: era ela! A escrita delicada, uma espécie de bruma em torno do envelope, ai, uma mão de mulher…») 
Neigel tosse. «O teu pó de borboleta, Scheherazade.» Wasserman: «Pó de borboleta? Qual pó de borboleta, qual carapuça, responder-lhe-ia o erudito médico doutor Albert Fried, é uma camada de gordura, cuja função é proteger o feto dos líquidos do útero.» Neigel: «Vai para o diabo, Scheissmeister , és mesmo…» «Piu piu piu piu! Có có ró có có! Olá olá olarilolá! Ele ouve-me, Fried!» (grita o bom do Otto) «Ele ouve-me!» Fried: «Também te devem ouvir em Borislav.» Yedidia Munine: «O que é? Trouxeram um bebé?» Fried: «Foi Otto que o encontrou. Como se não tivéssemos preocupações suficientes!» Munine: «Que bebé tão feio!» Otto: «São todos assim quando nascem. Quando crescer há de ficar bonito. Precisa de leite.» 
Neigel, que estava à espera de uma cilada, grita: «Aqui? Na floresta?» Wasserman: «Sei que é um problema. Com efeito, do ponto de vista dos factos brutos, há um problema. Mas não temos outro remédio, precisamos do leite. Ajude-nos, Herr Neigel.» 
O alemão endireita-se na cadeira, como se tivesse entrado na sala um superior. Reveste uma expressão marcial. Wasserman repete o pedido. Os dedos de Neigel tamborilam no vidro, deixando marcas húmidas. Após uma longa pausa de reflexão, propõe que um dos membros do bando, «é desejável que seja Otto, porque não corre perigo», vá à aldeia mais próxima comprar leite aos camponeses. Wasserman concorda entusiasticamente e faz de conta que regista tudo no caderno, enquanto Neigel se distende, com um ar autossuficiente, corado de prazer, até que bruscamente, como se só nesse instante pensasse no assunto, Wasserman «anula» as palavras do alemão, dizendo que «é muito perigoso, perigoso de mais, daqui a pouco as trevas vão invadir a floresta, andam por lá ursos, chegam-se a ouvir tiros, é melhor ele não se aventurar por lá a esta hora». «Tiros?» «Sim. Esqueci-me de lhe dizer há bocado.» «Evidentemente.» Por momentos, Neigel aperta os lábios com tanta força que as maxilas batem uma na outra, e a boca quase toca no nariz. Mas, de repente, para seu grande espanto, tem uma ideia, que anuncia com um entusiasmo difícil de reprimir, onde transparece a alegria da vingança sobre Wasserman: «Escuta! Fried podia levar o bebé a uma gazela! Há gazelas na floresta, eu sei. E aquela gazela… Pois bem, deu à luz há pouco tempo. Acho que me esqueci de te dizer… tem imenso leite nas tetas, e com certeza que Fried vai conseguir convencê-la a dar um pequeno contributo para o bem do bebé, não achas?» E o escritor, um pouco tenso: «Uma bela ideia, Herr Neigel, que maravilha. Tiro-lhe o chapéu, é uma maneira de falar, naturalmente!» («Esaú corou até às orelhas, e eu compreendi que estava em apuros. Acabara de lhe mostrar que Deus lhe dera um cérebro para pensar e um coração para sentir e ele já estava a usá-los com a eficiência característica dos alemães. Uf! Tinha de esconder as minhas feridas e dar-lhe luta!») «Realmente, Herr Neigel, é uma ideia maravilhosa. Saiu perfeita de debaixo da sua língua, o único defeito é ser demasiado realista. Quer dizer demasiado fiel ao real, demasiado presa aos limites da verosimilhança. Vamos tentar melhorá-la juntos, libertá-la e dar-lhe rédea solta, e por fim, deixe-me contar-lhe o que aconteceu realmente…» 
«Estou a ouvir», diz Neigel claramente irritado. 
«Otto aproximou-se de Harutian e segredou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Harutian recuou, horrorizado, e deu um gemido de partir a alma. Mas Otto acabou por convencê-lo, e o pobre Harutian que há anos recusava recorrer à magia, à magia verdadeira, muito diferente da prestidigitação, dos efeitos de luz e do ilusionismo, sentiu-se obrigado a fazer-lhe a vontade – pois ninguém consegue resistir a Otto. Pediu a este que lhe arranjasse uma bacia, tapou-a com um saco, no qual introduziu a cabeça e uma parte do corpo, deixando apenas de fora as pernas; assim esbracejou durante um bom momento por cima da bacia, com muitos suspiros e lamentações (porque odiava com todo o coração os poderes mágicos que eu lhe atribuíra na história Os Meninos de Coração de Oiro ); o saco mexia-se em volta do corpo, revolvia-se e contorcia-se como um mar tempestuoso, que acabou por se acalmar, e quando Harutian se levantou e mostrou, tinha a cara cinzenta como o saco, como se tivesse visto a face de Satanás, Deus me perdoe, e, com a mão a tremer, estendeu a Otto a bacia cheia a transbordar de um líquido branco a fumegar, ai…» Wasserman cala-se por momentos. («Lembrava-me perfeitamente do gosto daquele leite, Shloïmele, do tempo feliz em que a minha Sara, o meu tesouro, amamentava a nossa pequena gazela Tirzale… ai! Ela, quer dizer… sabes como são as mulheres nesses momentos… não têm vergonha… são simplesmente mães… e ela insistia comigo para eu provar, mas eu recusava, é óbvio que recusava… Sentia-me tão perturbado! És a única pessoa a quem eu posso contar estas coisas… Mas uma vez, num momento de intimidade… provei…») E é Neigel, justamente Neigel, quem diz em voz baixa, como se falasse para si: «Um líquido branco, quente e doce. Sim.» E o escritor judeu, tenso e determinado como um agente secreto verificando a palavra-passe, diz: «Muito doce. E derrete-se na boca.» E Neigel: «Sim. E também é gordo.» Então os dois homens olham-se nos olhos durante um momento, e depois viram rapidamente a cabeça, embaraçados e corados até à raiz dos cabelos. 
Aflitos, estendem a tigela de leite materno mágico a Fried, esperando que ele os salve do embaraço, mas Fried retira a mão, irritado e desconfiado, muito provavelmente devido à intrusão brutal do bebé na sua vida, ou talvez por causa da crueldade do destino que coloca aqui ao seu lado um bebé são e vivo, depois de ter vivido dois anos com a esperança estéril de ter um filho. Mas eis que, ao pronunciar as palavras «estéril», Wasserman repara que Neigel abre muito os olhos, como o fazia Zalmanson quando Wasserman dizia «a minha esposa, Sara». («Zalmanson supunha com razão que eu não ignorava o que se passara entre ele e a minha Sara, mas eu não lhe facilitei a vida, fiquei mudo como um peixe e deixei-o remoer a sua amargura.») Wasserman não entende porque é que Neigel ficou em estado de alerta ao ouvir aquelas palavras. Durante um momento, diverte-se com a ideia de que as duas crianças da foto talvez sejam adotadas, o que explicaria a sua tenra idade, considerando os quarenta e cinco anos de Neigel. Mas o menino parece-se com Neigel e a menina com a mulher. O que poderá ser então? Wasserman está confuso. Para de ler e fica absorto. De repente, sem precisar de um tiro na cabeça, tem uma ideia, e agora sabe, ou antes lembra-se, da causa da morte de Paula. Todos os indícios que reuniu formam agora um conjunto coerente, e fica mais convencido do que nunca que um dia destes «Neigel virá comer-lhe à mão». 
Fried levanta-se para ir buscar uma pequena colher ao canto que lhes serve de cozinha e ouve Otto dizer ao longe que o bebé tem dois dentes. Responde-lhe, da cozinha, que já ouviu falar de casos semelhantes, e que às vezes os bebés nascem com o corpo coberto de pelos, e Otto, ansioso, afasta o cobertor e grita: «Não tem pelos! Tem apenas aquele pó de borboleta e – Fried! O nosso bebé é um rapaz!» Ao ouvi-lo, Fried sente-se subitamente acabrunhado. Encosta-se à geladeira como se fosse o ombro de um amigo. Pergunta-se porque não ouve uma voz a propor-lhe o seguinte negócio: todos os anos que ainda tem para viver em troca de um único dia na companhia da criança e de Paula. Aos poucos vai ganhando coragem e fecha os punhos. E se esta criança fosse precisamente o sinal por que ele espera há três anos? Há setenta anos? Seria possível que a vida, num gesto magnânimo, se tivesse finalmente dignado responder aos seus apelos, ao seu desespero e ao seu atrevimento, atravessando a linha que ele traça no pó todas as manhãs desde a morte de Paula? E Otto, ao longe, rindo: «Eh, rapaz! Na minha camisa, não!» 
Depois de trazer a Otto uma pequena colher limpa, Fried fica ao lado dele, inclina-se sobre a cabeça pequenina, coberta de uma penugem esbranquiçada e cheira. «Ai», diz Wasserman com uma voz surda, cheia de saudades, «o doutor está a haurir um doce perfume, sem igual.» Neigel concorda com um movimento de cabeça; ele também conhece aquele cheiro, inconfundível, e Wasserman geme: «Aquele cheiro é como uma queimadura no coração dele. E debaixo do penso arrancado, a velha ferida ainda sangra.» Depois de um momento de silêncio, Neigel diz: «Não olhes para mim dessa maneira. Quero contar-te uma coisa. Sei que a vais utilizar contra mim, mas não me importo. Depois do nascimento do meu Karl, quando ia a casa durante as licenças, ia devagarinho para ao pé do berço dele e ficava ali a cheirá-lo. Aquilo fazia-me arrepios na espinha.» E Anshel Wasserman diz: «Já o sabia.» 
O bebé bebeu, bebeu, no fim fez «ah, ah» de contente, e bolçou um pouco de leite para as calças do doutor. Fried, aflito, gritou logo que era preciso chamar alguém, informar as autoridades! Sim, Fried estava muito assustado. Dava grandes passadas para lá e para cá no seu passo de camelo e resmungava zangado. Maliciosamente, Otto estendeu-lhe o bebé saciado. Fried deitou-lhe um olhar furioso. Percebia muito bem que Otto estava a tentar trazê-lo de volta ao amor da vida. («Ou, se preferes, Shloïmele, a Cheim.») Desde a morte de Paula que se disputavam em silêncio sobre o assunto. Provavelmente mesmo desde a hora em que se tinham conhecido, na longínqua infância. Subitamente, Otto pôs resolutamente o bebé nos braços de Fried. 
Mas quem está a espreitar para dentro do quarto sombrio, vestida com um fato de trabalho imundo, magra e curvada, com o rosto cheio de rugas e sujo de manchas de uma cor estranha, com uma peruca loira depenada na cabeça? Examina a sala durante um minuto e diz… não, não diz nada, porque Neigel intervém e pergunta: «Por favor, apresenta-me a tua nova amiga, Wasserman!» E o escritor responde: «De boa vontade, Herr Neigel. Trata-se de um novo membro do bando dos meninos de coração de oiro, e chama-se Hannah Zeitrin, Hannah a enfeitiçada, a louca de amor, a guerreira ousada e desesperada, é, hum!, sim, a mulher mais bela do mundo.» 
Ignora os protestos de Neigel («A mulher mais bela do… mas acabaste de dizer que estava cheia de rugas!») e proclama novamente que não há mulher mais bonita no mundo inteiro do que Hannah Zeitrin, embora seja muito infeliz, louca de amor e de saudades, e quando Hannah ouve Otto dizer, «Temos um bebé novo, Hannah», recua, encolhe-se como se lhe tivessem batido, e foge. Estas pessoas têm as suas maniazinhas, cada um com o seu quinhão, como se costuma dizer, e Hannah ainda não é capaz de olhar para um bebé. As recordações ainda estão muito frescas, e Herr Neigel tem de compreender. 
Mas, protestou Neigel, enquanto estávamos a olhar para Hannah, quase perdemos o essencial! Fried, ousando finalmente aproximar-se do bebé, coloca um dedo hesitante na zona mole do crânio, acaricia-a e, inquieto, leva a mão à testa… Neigel: «A membrana que cobre o buraco entre os ossos. Eu sei. Nunca ousei tocar-lhe aí.» E, sem saber como, dão por si mergulhados numa conversa sobre esse lugar mole do crânio dos bebés, onde (Neigel:) «quase se pode sentir respirar o cérebro. Uma espécie de pulsação, como o bater do coração», (Wasserman:) «pode-se sentir a vida a palpitar na ponta dos dedos». Wasserman aproveita a ocasião para falar de um pássaro sobre o qual lera, uma vez, um pássaro pequenino que vive no Polo Sul (ou será no Polo Norte), e cujo coração para de bater mal lhe tocam no papo. «Não gostaria nada de ter um pássaro desses na mão, Herr Neigel.» «Sim», diz o alemão, «deve ser irritante.» 
E a revelação. O doutor ergue o bebé no ar, e este estende-lhe as mãozinhas. Os seus movimentos são ainda fortuitos e descoordenados. Tocam na careca, descem até ao pequeno bigode prateado, cortado à militar e, subitamente cheias de vida, esvoaçam alegremente sobre as faces gastas, o grande nariz vermelho, as olheiras, e tornam-se cada vez mais inteligentes à medida que exploram com uma lenta curiosidade a boca do doutor. Sim, todos sustêm a respiração e olham: os dedinhos estão pousados nos grandes lábios pálidos, e despertam neles uma sensualidade há muito adormecida. Na parede fria do rosto de Fried aparecem inscrições mágicas que imediatamente se apagam – e o doutor dá um dos seus amargos gemidos: «Pobre criança!», diz. E Neigel: «Não será fácil para ele voltar a viver de novo.» Otto diz: «Que história!», e Fried responde severamente: «São coisas que acontecem.» 
Com efeito, Fried tinha jurado a si próprio nunca se surpreender com o que quer que fosse. Decidira pura e simplesmente banir o inesperado. Wasserman: «Ao contrário do senhor Markus, que sempre procurara sensações e sentimentos novos, o doutor passou a vida a tentar reduzir os seus sentimentos ao mínimo.» Mas a resolução não lhe dera qualquer satisfação ou alívio. Pelo contrário, quanto mais envelhecia e adquiria sabedoria e experiência, mais difícil lhe era cumprir a decisão. 
Agora vem o momento em que Otto anuncia que o bebé ficará essa noite com Fried, «e amanhã veremos». Não faz caso dos protestos alarmados de Fried, e afirma com pertinência: «O bebé precisa da vigilância de um médico, não acham?» Depois retira-se seguido dos restantes membros do bando, não sem antes sugerir a Fried que utilize lençóis ou roupa usada para fazer fraldas. O bater louco do coração do doutor é quase percetível. 
Foram-se todos embora, deixando Fried com o bebé. Mas não completamente só: uma enorme borboleta branca deixou subitamente uma das grossas raízes do carvalho, e começou a esvoaçar à volta da sala. Planou em frente da cara de Fried, como se quisesse compreendê-lo. Observou-o tão atentamente que o doutor se sentiu embaraçado. Reparou, todavia, que as asas da borboleta tinham a forma de um coração, o que lhe despertou uma recordação muito antiga: cada vez que Otto decidia enviar o bando numa missão de salvamento, desenhava corações nas árvores e nos muros próximos das casas dos seus voluntários. Era o sinal. A borboleta bateu as asas em frente dos olhos do bebé. Fried teve a impressão de que lhes estava a insuflar o primeiro sopro de vida, e a si também. Não se mexeu durante todo o tempo que durou aquela dança estranha. A borboleta esvoaçou mais uma vez à volta deles e depois elevou-se e afastou-se em direção aos túneis. As marcas prateadas das suas asas a voar permaneceram visíveis ao longo das paredes escuras durante várias semanas. 
De repente, o doutor reparou que o bébé começara a respirar muito mais depressa do que o normal e que o corpo se agitava sem descanso. Um pressentimento horrível levou-o a examinar a barriga do bebé: não havia vestígios de sangue seco no umbigo. De facto, não havia marcas de rasgão ou de corte: o bebé não tinha umbigo. 
Aconteceram muitas outras coisas nessa noite, quer na história, quer na caserna, e nem sempre foi fácil distinguir umas das outras. Foi na cama do comandante do campo de concentração que Fried examinou o bebé? Foi aí que descobriu que o pulso dele batia muito depressa, dez vezes mais depressa do que o dum bebé normal? Foi na Sala da Amizade que o telefone tocou de repente com uma chamada de «uma personalidade muito importante» de Berlim, personalidade essa que para louvar o recente trabalho de Neigel no campo teve de recorrer a metáforas musicais brilhantes, comparando «O seu trabalho e as suas aptidões criadoras, meu caro Neigel, às óperas de Wagner e dos maiores compositores nacional-socialistas contemporâneos»? E depois, quando Neigel, vermelho de prazer, fez sinal a Wasserman para ouvir e adivinhar pela expressão do seu rosto o que se dizia, e pediu ao Reichsführer Himmler que lhe enviasse para o campo o material necessário para construir três câmaras de gás suplementares («Temos de acelerar, meu comandante, acelerar cada vez mais!»), Himmler prometeu considerar o pedido com a máxima atenção, embora por enquanto não pudesse prometer nada («O meu caro Neigel deve certamente ter ouvido falar de certas prioridades temporárias na frente leste?»); frisou novamente «o excelente ritmo de trabalho» no campo, e aludiu ao escalão de Standartenführer que estava a pensar atribuir a uma certa pessoa que lhe era muito cara, terminando a conversa com um crescendo de louvores, e coroando tudo com o seguinte (a propósito, esta citação, tal como a precedente, foi extraída de uma conversa telefónica noturna que se desenrolou entre Himmler e o seu protegido Jürgen Stroop, na véspera da Grosse Aktion no gueto de Varsóvia): «Continua a tocar assim, maestro, e o nosso Führer e eu nunca o esqueceremos.» 
Wasserman, que escutou apavorado, endireitou-se mal a conversa acabou, impedindo assim que Neigel se gabasse e revelasse a identidade do distinto correspondente. Numa torrente angustiada de palavras, continuou a contar-lhe como, ao ficar só com o bebé, Fried desatou a andar de um lado para o outro na pequena cabana, beliscando distraidamente a ponta do nariz vermelho e parando de vez em quando para olhar para o bebé adormecido no sofá, com os punhos fechados, «como se segurasse nas mãos o segredo da vida». 
«Tatatata!», diz Neigel, com arrogância. «O que queres dizer com “sofá”? E onde é que foste buscar essa “pequena cabana”? Perdi alguma coisa enquanto falava com o Reichsführer Himmler?» Wasserman tosse ligeiramente, faz um sorriso embaraçado e pede desculpa por ser «tão distraído»! Por pouco não me esqueci de vos contar que… de facto… Em resumo: situou a ação noutro local. 
Neigel, meio amolecido pelo prazer da chamada de Berlim, e meio gelado pela hostilidade que Wasserman lhe inspira, explode de raiva, lembrando-lhe aos gritos «a humilhação que sofri por tua causa em Borislav… as nascentes de água mineral… as mentiras…» e não está de todo disposto a escutar um escritor que lhe explica sempre que «no processo de criação são inevitáveis sacrifícios desses, peço-lhe que não se sinta ofendido, meu comandante… Às vezes acontece que um escritor se aperceba de repente de que as coisas devem seguir um rumo diferente, que tem de voltar bastante atrás ou saltar para outro lado…» Neigel bate com o punho na mesa e declara: «A brincadeira acaba aqui.» Mas para nossa surpresa, em vez de mandar logo Wasserman ir ter com Keisler no campo de baixo, pergunta-lhe: «Porque é que vocês os artistas têm de complicar as coisas mais simples em detrimento da arte!» E lança-se num longo sermão fastidioso sobre a função primordial da arte, que é, se é que alguém ainda se lembra, a de «distrair as pessoas, fazê-las felizes e educá-las também, explicitamente! E nunca a de semear a dúvida e a confusão nas pessoas, e muito menos ainda a de acentuar o que é negativo, doentio e perverso!» Depois deste discurso – que contém sem dúvida uma boa dose de verdade – atira-se para trás, todo transtornado e a suar, confuso e amargo, mas, em vez de mandar Wasserman embora para todo o sempre, faz-lhe um sinal para continuar! Perplexo, Wasserman pergunta a si próprio se não será esta «a primeira vez na vida que Esaú exprime as suas ideias profundas sobre a natureza da arte, e guardei aquilo para mim». Mas não consegue adivinhar porque é que Neigel está tão interessado na continuação da história. 
Retoma a narração com uma voz hesitante. Ao que parece transferiu a história para o jardim zoológico de Varsóvia, onde tinha passado tão bons momentos com a sua Sara. Neigel, cuja amargura lhe afia a língua, supõe ironicamente que a intenção do escritor é a «de nos arrastar com a sua astúcia de judeu para uma pequena fábula onde os homens se transformam em animais, não é, Wasserman?». Wasserman nega, discorda veementemente da ideia do alemão de que uma história situada no jardim zoológico seja necessariamente infantil e apresenta-lhe as diversas personagens no seu novo ambiente (Fried – médico veterinário; Otto – director do jardim zoológico; Paula – responsável por todas as questões administrativas do jardim, e também pelos assuntos domésticos de Otto e de Fried. E o resto dos membros do grupo? «Todos empregados do jardim zoológico, é claro! Porque o pessoal permanente foi mobilizado desde o início da guerra!» Neigel: «Oh!»), e leva-nos de novo, a Neigel e a mim, até ao doutor, que está a medir o pulso do bebé. Demora-se nessa descrição à espera da inevitável pergunta de Neigel: «O que é que um veterinário percebe de bebés?», a fim de poder contar ao alemão a maravilhosa história de Paula, a companheira fiel de Fried que, em 1940, meteu na cabeça que havia de ter um filho, sim, e que encheu a casa com o seu desejo de crianças e de ternas preocupações tais como o que devem comer, se é melhor dar-lhes mama ou biberão, chegando a bordar fraldas muito finas com desenhos de pequenas figuras a dançar alegremente e a dar cambalhotas; tornou-se, de facto, a artista do filho único, e transformou o seu corpo num campo de batalha contra a tirania e a mesquinhez da natureza, e, apesar de alguns médicos a prevenirem contra isso e troçarem nas costas dela, nunca duvidou das suas forças e da sua razão, e fazia amor com Fried a todo o momento do dia e da noite. Otto: «Nós surpreendíamo-los nos sítios mais estranhos, no monte de feno do elefante, entre as couves podres na despensa, ao luar, no tanque vazio do crocodilo, e até na minha cama! Tinham sido mordidos pelo veneno do desejo e não conseguiam resistir!» Fried: «Era ela.» Otto: «No princípio, não achei muita graça, sim, tenho de te dizer, caro Fried, já que estamos a falar nisso, como podia eu imaginar que a minha irmã Paula tivesse tanta queda para os homens? E ainda por cima quase aos setenta anos? Mas, de facto, passadas algumas semanas começámos a compreender, sim, que tinha sido contagiada pelo entusiasmo dos nossos outros artistas daqui, os novos membros do grupo, embora ao princípio se tivesse oposto a eles, como tu, Fried, e começou a pôr à prova o seu talento especial; então, aquilo deixou de ser desagradável, pelo contrário, pois por todo o lado em que vocês iam sabes-o-quê, era como se lá tivessem derramado água santa e exorcizado um fantasma, e sabia que o nosso jardim zoológico estava salvo.» Wasserman: «Com efeito, Herr Neigel, foi uma sorte Fried e Paula não terem sido apanhados em flagrante pelos vossos amigos guardas de Varsóvia, quando tornaram públicos os regulamentos que proibiam estritamente os judeus de praticarem abertamente qualquer ritual religioso, que era precisamente o que Fried fazia!» 
Neigel permanece silencioso. Contempla Wasserman sem reagir. Tem os lábios ligeiramente entreabertos. Wasserman aproveita o momento e cita Otto que se compadece de Fried: «O nosso pobre Fried está praticamente sem forças.» «Sim, é verdade», confessa Fried, «eu tinha então sessenta e sete anos, e Paula dois anos mais», e assim, durante pelo menos dois anos, dia e noite, fizeram amor com devoção («e muito sentimento»). «Quase bateu o meu recorde, Pan Fried!», diz alegremente o senhor Yedidia Munine, exalando o cheiro nauseabundo de um cigarro enrolado com estrume dos animais do jardim zoológico, e os olhos a brilharem maliciosamente por detrás dos vidros dos dois pares de ócul… 
Só então Neigel sai finalmente do seu torpor. Interrompe Wasserman com um berro e levanta a mão, discordando. Exige «explicações, Wasserman, explica imediatamente tudo!». O astuto Wasserman deixa precisamente Munine explicar ele próprio o que entende por «o meu recorde». «O que há para esclarecer, senhor Neigel?» (explica Yedidia Munine). «No amor como na prece, na prece como no amor. Como dizia o rabi Leib Melamed de Brody, imaginem uma mulher à vossa frente quando estão a rezar, e assim atingireis o mais alto grau.» «Mais pornografia judaica, Scheissmeister ?» E Munine: «Deus me livre, senhor Neigel, não se trata de abominação, mas de purificação, de elevação. O homem deve servir o Criador, bendito seja, com o fervor dos maus instintos, assim dizia o pregador de Mazeritz, que talvez tenha conhecido na carne a força das tentações do mal…» Neigel levanta os dois braços, de desespero ou de alegria, mostrando assim duas vergonhosas nódoas de suor. «Continua assim, Scheissmeister , e eu próprio deixarei de te escutar. Tenho a impressão de que já não tens mão nas tuas personagens.» E quando Wasserman, ignorando a observação, descreve a forma como Paula e Fried fazem amor febrilmente ao lado da jaula do pequeno elefante Tuzinek , Neigel esfrega os olhos vermelhos, e aponta alguma coisa no bloco preto. Já não é a primeira vez que o faz esta noite, e de facto fá-lo de cada vez que Wasserman fica com ele, e este até já tinha decidido mostrar-se ofendido e protestar («Não sou um músico que toca para a assistência num cabaré.»). Mas domina-se e não diz nada. Desenha para Neigel o pequeno e delicioso arco do ventre de Paula, que começa a arredondar-se debaixo da pele murcha. Ela está em frente do espelho, sorrindo calmamente, sem ponta de humor ou ironia; um sorriso bom e simples, porque ela sempre acreditara naquele bebé, e até já lhe tinha escolhido um nome – Kazik –, e, quando Neigel o interrompe bruscamente para lhe lembrar sem grande esperança que Paula já tinha setenta anos, o escritor concorda plenamente com ele: tinha sessenta e nove, para ser exato, e nós também, todos os artistas e combatentes de Otto ficámos bastante surpreendidos com o facto. Pede a Neigel que imagine a excitação deles; estavam sempre a falar do pequeno Kazik e esperavam que ele mudasse tudo, tudo, «e nos desse a prova definitiva por que ansiávamos loucamente desde o dia em que Otto se juntara a nós para a nossa última aventura», porque Kazik estava destinado a ser a primeira vitória do grupo. Otto levou Paula a um dos seus amigos, o doutor Werzler. Otto: «Um tipo em quem se podia confiar que não falaria de mais.» O respeitável doutor examinou cuidadosamente Paula, depois mandou-a vestir-se atrás do biombo. Otto: «Então levou-me pela mão para a janela, mostrou-me a cidade às escuras por causa do recolher obrigatório, e disse – “aproximam-se tempos difíceis, Brieg, há quem seja capaz de resistir e há quem não consiga”, e olhou para mim com azedume e sussurrou “suponho que você saiba o que está a acontecer à nossa pobre Paulina”, foi o que ele disse, “a nossa pobre Paulina”.» Aharon Markus: «Ela está a sorrir sozinha, feliz, por detrás do biombo, a pesar com as mãos os seios repletos.» Otto: «… e disse-me que eu, como irmão, tinha o dever de falar com ela seriamente e preveni-la de que aos sessenta e nove anos o corpo já não consegue suportar a gravidez, nem sequer uma gravidez imaginária; e que o meu dever era poupar-lhe não apenas o dano físico, mas também a deceção que infalivelmente se seguiria. Mas é óbvio que não o fiz, pois cabia a Fried decidir. No final de contas, aquela gravidez imaginária era dele…» 
Mas Fried também não quis revelar a Paula o que o doutor Werzler tinha dito, porque começara a compreender, e queria acreditar – em contraste total com o seu temperamento e opiniões – que a obra de arte de Paula era muito mais importante do que as pessoas como Werzler, e começou a tratar dela como o seu estado o exigia. Wasserman: «Passeava com ela todas as noites no jardim zoológico ao longo da Vereda da Eterna Juventude, e punha-lhe compressas frescas na testa quando lhe doía a cabeça, e Otto fazia muitos quilómetros para lhe comprar, no mercado negro, as comidas e doces de que ela tinha vontade, e uma vez…» (Wasserman sorri ao recordar-se) «… a nossa Paula teve desejos de toranjas, mas… como encontrar toranjas em Varsóvia, no início de 1941? Para isso era preciso um expediente sobre-humano, que os meninos de coração de oiro todos juntos não conseguiram arranjar, e Paula esteve à beira das lágrimas tal era a sua vontade. Ah, quem poderia olhar para a mulher amada sem se comover…» «Um momento», diz Neigel secamente. «Já estou a perceber aonde queres chegar. Escreve, se faz favor: foi o comandante Neigel quem trouxe a Paula a toranja.» «Mas como? Se me permite perguntar?», pergunta Wasserman, e os seus olhinhos inteligentes sorriem de gratidão. «Uma encomenda de comida que me enviaram os serviços da manutenção militar. Uma grande toranja, diretamente de Espanha. Com os cumprimentos do general Franco.» 
Calam-se por momentos, divertidos, mas simultaneamente um pouco embaraçados devido ao ténue fio de emoção que vibra subitamente entre eles na sala. A toranja invisível está entre eles e espalha o seu perfume. Wasserman não consegue compreender porque é que, apesar dos acessos de raiva, Neigel não admite que a história pare um único minuto, mas não perde tempo e continua: Fried: «À noite punha a mão no ventre dela e sentia os pontapés do bebé. Bum! Bum! Dava pontapés como um pequeno Hércules.» Silêncio. Neigel, quase engolindo as palavras: «Também deves ter filhos, não é, Wasserman?» Wasserman baixa os olhos para o caderno, como se tivesse recebido uma chicotada na cara. («Aquele Esaú ignorava que, ao perguntar-me aquilo, era como se me pusesse carvão em brasa no coração.») «Uma filha, Vossa Excelência», responde finalmente. «Pergunto-te, porque só quem tem filhos é que sabe essas coisas.» «Você tem dois, não foi o que disse?» «Sim. Karl e Lisa. Karl tem três anos e meio, e Liselote dois. São ambos filhos da guerra.» Após um momento de reflexão: «Quase nunca os vejo.» E o escritor, numa voz pouco firme: «Já não é um pai muito jovem, se me permite dizê-lo, Herr Neigel.» E Neigel, cuja primeira vontade era interromper logo aquela «descarada intromissão» do judeu, contém-se e olhando em volta, para a sala, para Wasserman e para as cortinas corridas, esfrega de novo os olhos vermelhos de cansaço e diz com uma voz seca sem qualquer agressividade: «Durante muito tempo não conseguimos ter filhos. Tentámos durante mais de sete anos.» E Wasserman, num murmúrio impercetível: «Nós também, Herr Neigel, durante oito anos…, nu , então.» E no silêncio pesado que os envolve como um véu espesso, Wasserman aperta os dentes com toda a força para não dar um grito. «Então», murmura depois tristemente, com uma cólera esgotada, vencida, não de todo dirigida a Neigel: «Que mais se pode dizer?» 
«Continuemos, então», suspira finalmente Wasserman, como o chefe de uma caravana exausta obrigada a retomar a sua errância. «Talvez Paula possa ter o bebé, apesar de tudo», diz Neigel com uma ingenuidade quase infantil. E Wasserman, docemente: «Infelizmente, Paula vai morrer. Mas, no fundo do coração, Fried acredita que o bebé que apareceu no jardim zoológico é o bebé que ela não teve.» E Neigel: «Percebo que não tenho outro remédio senão concordar.» «Lamento, mas é isso mesmo.» 
E voltam à história. Mas a partir de agora Wasserman conta a história com grande prudência, como se andasse em cima da corda bamba. Neigel também está tenso. Não faz qualquer comentário a Wasserman. Nem o importuna. Carregam a história juntos. Wasserman descreve como «as faces de Paula se inflamaram com o fogo da destruição, como os seus dentes belos e sãos começaram a abanar e a cair», como a sua pele secou e abriu gretas, só os seios continuavam a inchar e a doer-lhe, e a dor desfazia-lhe o sorriso forçado, um sorriso de desculpas face a Fried, pela inquietação que lhe causava, mas Markus: «Quando a nossa Paula se inclinava de manhã sobre a retrete para vomitar, e o senhor, doutor Fried, a amparava pondo-lhe a mão na testa, viam ambos o vosso rosto refletido no minúsculo lago em baixo, duas mensagens que tinham demorado demasiado tempo no caminho, e você sabia, Fried.» 
E aqui, sem razão aparente, Wasserman fecha lentamente o caderno, sorrindo, e confessa a Neigel que esta noite na sua companhia lhe lembra outras noites, longínquas, do tempo em que ainda era solteiro, quando, na véspera da saída do semanário infantil Luzinhas , ia ao escritório de Zalmanson, para lhe entregar, com o coração aos saltos, o capítulo que acabara de escrever. Reviam-no juntos, zangando-se e reconciliando-se várias vezes seguidas, e por volta da meia-noite, quando já estavam os dois estafados e o quarto tresandava aos pequenos cigarros de Zalmanson, durante alguns momentos, « Nu , sentíamos um agradável torpor invadir-nos os membros, se vê o que estou a dizer, Herr Neigel, e falávamos disto e daquilo… era muito agradável.» («Era nessas alturas que Zalmanson me abria o coração. Eu escutava-o em silêncio. Quando queria era capaz de dizer coisas tão bonitas e profundas! Sem as espertezas e as piadas maldosas. Nunca lhe falei de mim. De que poderia falar-lhe? Do gato que miava no pátio? Da torneira que pingava? E aqui, justamente com este grande goy , parece que até Anshel Wasserman é capaz de bordar uma história…») 
«Esse Zalmanson era teu amigo?», pergunta Neigel como por acaso. Wasserman olha para ele com espanto e diz-lhe que sim, que era o seu único amigo. E como Neigel não parece ter pressa em voltar à história, Wasserman começa a falar-lhe de Zalmanson, ao princípio com hesitação e pronto a recuar se necessário, mas, ao ver a expressão de interesse divertido no rosto de Neigel, enche-se de coragem e fala. O tal Zalmanson, diz ele, estava sempre a fingir que saíra de um livro de Dostoïevski, Thomas Mann ou Tolstoi, e a mandar bocas sobre os diversos mundos em que se desenrolava a sua vida real. Um homem muito importante, diz Wasserman, levantando a mão num gesto depreciativo e ligeiramente zangado – «Um Moishe Gross, que nunca se misturava com o povo miúdo, era o que mais faltava», continua Wasserman zangado, «aqui, no nosso mundo, Zalmanson não fazia mais do que o seu dever, que era visitar os parentes pobres, mas lá, no seu mundo invisível, entre as esferas celestes e as orbes secretas, oi vei ! ai, meu Deus! Que tormentos e torturas de alma! Aquele Zalmanson – pf, mas não sei porque é que resmungo tanto contra ele agora, Herr Neigel, pois com o correr dos anos acabei por apreciá-lo um pouco… com os seus sorrisos subtis e a sua bazófia; era tão fanfarrão, ai!» (Aqui Wasserman deixa-se levar pela emoção e conta uma anedota divertida: quando saiu a ordem para os judeus do gueto usarem braçadeiras, Zalmanson não foi, como os outros, comprá-las à loja de Shaye Ganz; ele e a mulher, Tsila, fizeram para eles e para as três filhas «braçadeiras tão maravilhosas que um soldado polaco quase os matou a tiro, Deus nos livre, sob a acusação de incitamento à revolta».) «Aquele Zalmanson…», continua Wasserman, «a troça impiedosa que ele fazia do coitado a quem conseguia pregar uma partida revoltava-me, nu , e os serões… já falei a Vossa Excelência dos serões?» «Não», responde Neigel. «Ah, os serões em casa de Zalmanson eTsila! Encontrava-se lá Varsóvia inteira… o vinho corria a rodos, e os pobres convidados eram obrigados a ouvir a senhora Tsila a martirizar o piano e as três filhas a torturarem flautas e violino… Zalmanson gostava de estar rodeado de muitas pessoas… e também de andar atrás de saias, com sua licença… para dizer a verdade, senhor, eu não apreciava aqueles serões, e a minha mulher também não… Sentíamo-nos sempre apagados, deslocados… envergonhados. Não conhecíamos lá ninguém e ninguém nos conhecia. Era tudo gente do mundo, enquanto nós não passávamos de ratinhos do campo. Acabei por deixar de ir, e a minha mulher ainda foi uma vez mais, e depois também se fartou. A propósito, o meu Zalmanson era um homem muito religioso e ortodoxo na sua religiosidade. Passara por muitas mudanças de fé durante a sua curta vida, mas nos últimos anos, com o mundo às avessas, com sua licença, começou a acreditar apenas no humor. Talvez um dia, quando chegar o momento, vos falarei da teoria complicada que ele defendia com a sua habitual acrimónia. Encontrava matéria de riso em tudo, e dizia: “Se alguma coisa não me faz rir é porque não a percebi completamente, não a explorei até ao fundo. E nesse caso, meu caro Wasserman, sou como o marido que dorme em paz ao lado da mulher, sem perceber o cómico da sua situação, porque não vê o terceiro par de calcanhares a espreitar debaixo do cobertor conjugal.” A meu ver, este exemplo é mais trágico que cómico, mas prefiro não falar sobre o assunto, e acrescentar apenas que Zalmanson tinha também algumas virtudes – amava os seus semelhantes à sua maneira especial, e embora dissesse que odiava a humanidade, gostava de alguns indivíduos pelos seus méritos; era um amor amargo, desiludido e, se olhasse para ele, Herr Neigel, talvez dissesse que parecia um provocador! Mas não, isso seria uma injustiça, Herr Neigel! Porque eu sei que, no íntimo, ele era diferente, e que se lhe confiassem um segredo, levá-lo-ia com ele para o túmulo. O único problema, era que dizia sempre às pessoas o que pensava na cara delas, e isso trazia-lhe muitos inimigos… Uma vez que precisei de um empréstimo, ele abriu a bolsa sem me perguntar nada, e outra vez que tive vertigens e desmaiei e precisava de uma transfusão de sangue, ele apareceu e ofereceu-me o seu sangue… Talvez não fosse o melhor amigo do mundo, e no entanto – não tinha outro… e eu, bem – era meu amigo. Mas por que raio é que estou a falar tanto dele?» 
«Então entre vocês também há tipos desses, como Zalmanson, quero dizer?», murmura Neigel, enquanto passeia lentamente os dedos pela tampa de vidro da secretária, e o judeu («Esaú não estava a falar à toa. De todo. A sua pergunta era mesmo da máxima importância!»): «Temos de tudo, Herr Neigel. De todos os géneros. Bons e maus, inteligentes e parvos. De tudo.» 
Ficam novamente em silêncio. Neigel talvez esteja a pensar nalguma coisa quando dá uma olhadela ao relógio, e fica muito surpreendido ao ver que horas são. Levanta-se, espreguiça-se e dá um grande bocejo. Deseja as boas-noites a Wasserman e faz de conta que esqueceu totalmente o acordo que existe entre eles. Mas esta noite, graças a Deus, Wasserman está num estado de espírito particular que não lhe apetece estragar com uma discussão. Não diz nada a Neigel sobre o assunto, mas quando os seus olhares se cruzam, ambos sabem que sabem. Neigel murmura umas coisas, menciona que Wasserman ainda não disse nada sobre o bebé, nem sobre a nova missão dos meninos de coração de oiro, nem porque é que estão metidos em todas aquelas «coisas artísticas» e além disso: «Esta história é mesmo muito estranha. Nunca imaginei ser capaz de ouvir uma história assim.» Wasserman sorri e agradece-lhe a paciência. 
«Agora vai-te deitar», insiste Neigel, e quando Wasserman se demora um pouco mais a olhar para ele, solta-se-lhe do coração um arzinho de boa vontade, de algo há muito esquecido e traído, e Neigel dá por si a dizer: «Tenho ainda algum trabalho para acabar aqui, e depois ainda quero escrever uma carta para casa, para a minha mulherzinha.» Wasserman estremece com aquela franqueza («Que belas prendas oferecem os homens uns aos outros quando já nada lhes resta para oferecer.»). Pergunta: «Vai falar-lhe de mim na sua carta?» e Neigel prepara-se para lhe responder, mas depois desiste, e riposta indiretamente: «De facto, não. Vai, vai já deitar-te, e não estragues as coisas, Wasserman.» 
E só então se separam.