Devido a um problema menor de saúde, muito tempo passou antes de poderem prosseguir com a história. Para entrar no «quarto branco» é necessária uma certa dose de abnegação e sacrifício. Mas ouviram-se repetidas vezes vozes misteriosas a avisar: vai-te embora daqui. O «quarto branco» é demasiado asfixiante e perigoso para ti. E a história foi adiada. Posta de lado e frequentemente esquecida. Nessa época iniciou-se a compilação de documentos para a Enciclopédia do Holocausto para a juventude, mas esse projeto também não correu bem, e o desânimo e o desamparo prevaleceram. Sem querer entrar em pormenores (cuja maioria já aqui foi exposta), pode-se dizer que o espírito glacial de Zenão soprava sobre uma certa nuca. 
A história cristalizou, e a vida também. Estavam constantemente a ser colocadas questões paralisantes: por que carga de água é que alguém havia de se expor aos perigos do «quarto branco»? Quem poderia prever o que lhe aconteceria se ele decidisse sacrificar voluntariamente a sua bem conhecida capacidade para se proteger das exigências daquele «quarto branco» fictício, uma aptidão adquirida com sofrimento e esforço, e que dera muitas provas? E em nome de quê aquele sacrifício? Para satisfazer Ayala? Para no fim daquele empreendimento difícil e perigoso haver mais um livro sobre um assunto conhecido a decorar as nossas estantes? Para quê, que diabo? 
«É isso mesmo», diz o avô Anshel, «para se escrever mais uma história. É muito necessário! Necessário para ti, Shloïmele, pois que mais te resta para além da história? Sabes bem que a minha história, a única, te pode alumiar o caminho… por isso escreve: um bebé vai entrar na história, e aí viverá a sua vida.» 
Não. Não entrará. 
Anshel Wasserman está a tentar ajudar-me. Não há qualquer dúvida: é o bebé. Essa é a ajuda que Wasserman tenciona dar. Mas não tem força suficiente para o bebé, para criar uma nova vida; a antiga é um fardo pesado de mais: por exemplo, uma noite Neigel abateu a tiro vinte e cinco prisioneiros judeus. 
Em meados de setembro de 1943, de acordo com um livro escrito por um dos prisioneiros, um dos detidos conseguiu fugir. Era o primeiro prisioneiro que fugia desde que Neigel era comandante do campo. Ao que parece, introduzira-se numa pedreira, entre duas rochas enormes, e os guardas não deram por nada. À noite juntaram todos os prisioneiros na parada em frente da caserna do comandante. Podemos supor que Wasserman acordou do seu sono agitado e olhou, assustado, por um buraco do sótão. Viu o Obersturmbannführer Neigel a passar entre as fileiras de prisioneiros aos berros. «Deus Todo-Poderoso», pensou Wasserman, «eis o homem que está sentado comigo todas as noites a escutar a minha história, que me fala da mulher e dos filhos, a quem até consegui arrancar gargalhadas e momentos de tristeza…» 
Neigel pronuncia a sentença. Em cada fileira será executado um prisioneiro de dez. Vinte e cinco prisioneiros. Stauke aproxima-se dele e segreda-lhe algo ao ouvido. Neigel recusa. Stauke volta à carga e levanta a mão para o convencer. É provável que vinte e cinco execuções não cheguem para apaziguar o seu espírito. Por momentos, parece que vai rebentar uma verdadeira disputa. Mas Neigel domina-se. Stauke volta ao seu lugar. Tem um ar furioso. Os seus óculos finos, com armação dourada, faíscam de raiva à luz fria dos projetores. Neigel designa as vítimas com um gesto do dedo. Franze os olhos como se os escolhesse com grande rigor. Mas alguns detidos jurarão mais tarde que ele os escolheu de olhos fechados. 
Os ucranianos separam os condenados do resto dos prisioneiros. Dois deles desmaiam de medo. Levam-nos também. Tudo se passa no maior silêncio. Um dia, o episódio será descrito num livro da seguinte forma: «Não houve protesto nem clamores. A lua iluminava de cima e os projetores de baixo. O comandante Neigel matou os prisioneiros a tiro. Disparou sobre cada um deles uma bala em plena testa. Ao terceiro já estava coberto de sangue. Depois agachou-se e disparou sobre os dois prisioneiros desmaiados no chão. Será que estavam conscientes? E os outros, os vivos, de pé nas fileiras, terão eles tido consciência?» 
Assim terminou tudo. Neigel deu meia volta e desapareceu dentro da caserna. Quando passou em frente do sótão, Wasserman viu que tinha o rosto muito crispado e os olhos pareciam fechados. Wasserman enroscou-se entre os dois armários de equipamento de escritório, desejoso de dizer alguma coisa – mesmo para si só – em memória dos mortos. Mas sentiu que tudo o que pudesse dizer soaria falso. Não conhecia nenhum daqueles homens, e mesmo que conhecesse é provável que não sentisse nada de especial por eles. Foi o que aconteceu durante os três meses que passou com Zalmanson e os «dentistas». Wasserman: «Tudo o que possa ter existido entre nós extinguira-se. É claro que ainda persistia alguma amizade, mas completamente diferente. Não tenho palavras para a descrever. Não existia entre nós amor nem ódio, provavelmente porque estando aqui era como se já estivéssemos mortos aos olhos dos outros, e nós próprios começámos a olhar para nós e para os nossos amigos como mortos.» 
Entretanto Neigel toma um duche na pequena casa de banho que lhe instalaram debaixo do sótão de Wasserman. Murmura algo e eu fico chocado só de pensar que poderá estar a cantar no duche. Mas, não, não está a cantar, está a falar, a falar em voz alta. E apesar da água a correr, eu sei precisamente o que ele está a dizer. Está a falar comigo. A repreender-me pela minha «negligência». «Não é verdade», queixa-se ele duramente, «que os escritores devem entrar realmente na pele das suas personagens?» Mas eu ainda não estou preparado. Ainda não estou preparado para entrar na pele dele. Mas não tenho de prestar contas a Neigel. Posso fingir e deixá-lo contar-me uns quantos pormenores autobiográficos gerais, a fim de não pensar que estou a descuidá-lo. Uma lista de factos, comuns a milhares de oficiais das SS, como ele, e é tudo. 
Pois bem, ele nasceu há quarenta e seis anos na Baviera, na aldeia de Füssen no sopé do Zugspitze. Aos dez anos já sabia guiar os alpinistas através dos caminhos mais perigosos dos Alpes. Tinha um irmão, Heinz, que morrera jovem de tuberculose. A mãe, originária da Polónia, já não era muito nova quando chegou à Alemanha e se casou com o pai de Neigel, que acabara o serviço militar. Era leiteira, e Neigel lembra-se – enquanto ensaboa o peito largo – de que costumava ir com ela na carroça, de manhã muito cedo, ao longo do lago. Segundo ele, ela era «uma mulher simples e boa, que sabia estar no seu lugar». O pai fora soldado na sua juventude, como Neigel («Mas, de facto, os soldados do Kaiser pareciam meninos de coro ao nosso lado»), e quando ficou livre do serviço militar prolongado, tornou-se carpinteiro em Füssen. Enquanto soldado, servira na África Oriental, e Neigel lembra-se «das histórias que ele contava sobre África. Gostávamos muito de as ouvir, mas algumas delas pareciam-me histórias de outro mundo». E como Neigel não entra em pormenores, cito confidências análogas do diário de Rudolf Höss, comandante do campo de Auschwitz («O comandante de Auschwitz testemunha»), acerca das histórias apaixonantes que o pai lhe contava na infância: «Descreviam os combates contra os rebeldes, os seus costumes, modo de vida e obscuros ritos pagãos. Escutava com fervor e entusiasmo as histórias do meu pai sobre os esforços civilizadores dos missionários em África. O meu pai venerava-os como se fossem santos. Nós também queríamos ser missionários, explorar a África negra, no coração da floresta virgem.» 
E Rudolf Höss prossegue a transfusão dos seus dados biográficos para as veias transparentes de Neigel: «Quando os velhos amigos do meu pai, os missionários, nos visitavam, era uma festa para mim. Eram idosos e barbudos… Não os largava, para não perder uma única das suas palavras… Às vezes, o meu pai levava-me com ele e visitávamos juntos os lugares santos da nossa pátria. Chegámos a ir até à Suíça para vermos os monges, e a Lurdes… O meu pai esperava que eu viesse a ser pastor. E eu era tão intenso na minha fé como qualquer miúdo da minha idade…» 
Tenho de voltar a mencionar mais algumas citações de Neigel sobre a casa dos pais e a sua educação: 1. Os nossos pais eram severos connosco, mas era para o nosso bem. Não é com manteiga que Krupp faz aço; 2. Desde muito cedo nos ensinaram a contar só com nós próprios; 3. Tínhamos de respeitar os idosos, mesmo os empregados da casa; 4. Tínhamos de obedecer cegamente às ordens dos adultos. 
A paisagem em que Neigel cresceu? Colinas verdejantes, florestas sombrias da Baviera, campos de cevada, vinhas, e acima de tudo, majestoso, o «Rei», o Zugspitze, a montanha mais alta da pátria. Aos sete anos subira pela primeira vez com o pai até ao cume. Heinz quisera ficar na aldeia… 
Fala num tom seco e objetivo. A língua alemã convém-lhe: martela as consoantes duras e acentua o final da frase, com o verbo. É isso que dá a cada uma delas, mesmo a mais pessoal, aquele tom perentório. 
Pede para falar de cavalos. Por favor. É um assunto ao qual eu também estou, de certo modo, ligado. Na aldeia havia um cavalo, com o qual a mãe transportava o leite. Uma pileca miserável, mas desde então Neigel «é doido por tudo o que diz respeito a cavalos». E agora? Agora já não monta. O corpo tornou-se muito hirto, e a ferida que sofreu em Verdun incomoda-o muito, mas ainda é capaz «de se aproximar de um cavalo como um senhor». Discutimos essa coincidência interessante e até curiosa, pois eu também gosto de cavalos. Nunca montei – nunca me pareceu confortável –, mas quando era jovem trabalhei nas férias durante três ou quatro dias numa cavalariça próxima do grande moinho de Jerusalém. Tive de parar por razões de saúde estúpidas (asma alérgica provocada pelo estrume dos cavalos), mas ainda hoje me lembro do cheiro quente dos cavalos, dos tendões nodosos, do movimento másculo dos músculos debaixo da pele, ah, Neigel, era capaz de falar de cavalos durante horas, sobre o cheiro forte do óleo com que se esfregam os arreios, o galope, os chicotes luzidios pendurados na cavalariça, a pancada ligeira do moço de estrebaria na nuca do cavalo – ainda hoje me lembro do lindo cartaz que estava pendurado no escritório do diretor, com as imagens das diferentes raças, da Francónia, da Suábia, da Vestefália, dos parisienses, húngaros, árabes – um animal realmente masculino. 
«Hum», murmura Neigel para mim, com uma estranha expressão no rosto, mudando subitamente de conversa com uma certa falta de tato: «Eu também não sou propriamente do tipo folião, sabes. Nunca me embebedei e também, como hei de dizer, nunca me meti com outras mulheres…» Hesita durante uns minutos e, por fim, diz com uma espécie de alívio: «De facto, não tenho muitos amigos. Aliás, também não preciso muito deles. A verdade é que não se pode realmente confiar em ninguém, e está bem assim. Encontro satisfação no trabalho e na família também, claro está. E, de maneira geral, podes escrever que eu gosto de viver. Gosto simplesmente de viver.» 
Mal acaba de dizer estas palavras, sinto a respiração de Wasserman no meu ouvido. Olho para trás e vejo-o, de olhos fechados, como sob o efeito de uma dor súbita e forte. E, para minha grande surpresa, compreendo que o sofrimento dele é o produto da sua relação complexa com tudo o que a palavra «viver» significa. Mas, não satisfeito com aquela expressão de dor, Wasserman vira-se para mim como se eu fosse um árbitro ou um juiz, ou sei lá o quê, e exige que, até se provar que Neigel tem o «direito natural» (!) de usar essa palavra, «não o deixemos abusar dela como quer». Procuro então explicar a Wasserman que, mesmo de um simples ponto de vista técnico, não posso impedir qualquer personagem da minha história de usar o vocabulário habitual para se exprimir, mas Wasserman tapa os ouvidos com as mãos enrugadas e abana a cabeça em sinal de negação. Tento pregar-lhe uma pequena partida, e pergunto-lhe o que é que ele, como escritor, faria numa situação semelhante, e ele, sem a menor hesitação, diz: «Arenque. E um pouco de cebola, se quiseres.» E quando peço que me explique, diz com impaciência: «Em vez de dizer “Gosto de viver”, Esaú dirá a partir de agora, “Gosto de arenque” ou mesmo “Gosto de cebolas”. Isso não o empobrecerá e para mim será certamente um alívio.» 
Indeciso, viro-me para Neigel e retomo as suas palavras: «Encontro satisfação no trabalho e na família também, claro está. E de maneira geral, pode-se dizer que gosto de cebolas. Que gosto simplesmente de cebolas.» 
Olho de esguelha para o alemão: não reage minimamente. Dir-se-ia que nem reparou na mudança! É mesmo estranho. De qualquer modo, constato que, ao contrário de Neigel, Anshel Wasserman vive totalmente no mundo das palavras, o que significa, parece-me, que cada palavra que diz ou ouve tem para ele uma qualidade sensorial que me escapa. Será assim possível que, para lhe satisfazer a fome, baste dizer a palavra «refeição»? Ou que a palavra «ferida» lhe rasgue a carne? E que a palavra «viver» o ressuscite? Confesso que estes pensamentos me ultrapassam. Será que o avô Anshel fugiu da linguagem dos homens e se refugiou no seu balbuciar ininteligível a fim de se proteger de todas as palavras que o ferem? 
Mas Wasserman, que não tem vontade de responder, declara, furioso, que os alemães são os «mestres da tradução misericordiosa», e pergunta então porque não usam eles esse talento para extrair a dor que certas palavras contêm? E como eu continuo a não entender o que ele pretende dizer, começa a vomitar umas atrás das outras palavras em alemão, traduzindo-as para mim com fluência: Abwanderung , que significa «êxodo» ou «migração», é a palavra usada para designar as deportações maciças para os campos; por detrás da palavra Hilfsmittel , um «aparelho» ou «instrumento» útil, escondem-se as instalações das câmaras de gás e o que dirás de Anweiserin , a simpática menina que te conduz ao teu lugar, no teatro, e que, na linguagem deles, se transforma no nome das mulheres kapo ? E acumula os exemplos até ficar rouco, e então sussurra, furioso: «Envenenada! A língua deles está envenenada de A a Z!» 
«Wasserman!», diz Neigel que, desta vez, ficara fora da conversa (no que se poderia chamar uma situação «em suspenso»). «Wasserman! Ainda bem que estás aqui. Quero que continues a história.» «Agora, Vossa Excelência? Já passa da meia-noite!» «Agora!» «Mas, Vossa Excelência, depois do que se passou lá fora… as execuções, quero dizer… ainda tem vontade de ouvir uma história?» «Claro! O que é que pensavas?» 
Wasserman fita-o com um olhar espantado. («De pé, Anshel, toca para o rei sobre quem paira o espírito do mal…») Vale a pena assinalar (detesto que tais pormenores fiquem pendentes) que, seja como for, passamos todos do duche de Neigel para o escritório dele. Neigel espreguiça-se na cadeira. Tira da gaveta da secretária uma garrafa e bebe um gole. Fica com as faces coradas. Devo indicar aqui que, contrariamente às alegações de Stauke (na entrevista que deu depois da guerra), Neigel bebe como um homem experiente. Wasserman murmura umas coisas para si próprio, enfia uma mão no fato e tira o caderno. Nesse momento avista outro envelope azul no cesto de papéis de Neigel e fica macambúzio. Este é um bom momento para eu dar mais alguns pormenores sobre a sala, como por exemplo, os pequenos cartazes militares pendurados na parede: obediência – o prazer do soldado. uma ordem é uma ordem. autoridade face aos subordinados, obediência aos superiores, e outras máximas militares estúpidas que exercem um efeito hipnótico sobre as pessoas sem grande personalidade, que veem nelas o eco do apelo primitivo do sangue, o ritmo da grande pulsação, milhares de botas marchando a passo, o cheiro a suor dos estádios, a recordação infantil de uma corrida às cavalitas dos ombros fortes do pai, a alegre pancada da espingarda no ombro quando o tiro parte, ou a exaltação dos espíritos quando a orquestra toca uma marcha com dez trompetes e seis tambores, e todas as músicas podiam ser o nosso hino. Wasserman dá subitamente um grito amargo para calar um ruído que eu não ouvira: «A história, tens de continuar a história!» 
«Então vá lá, continua», diz Neigel com um sorriso muito leve. «Quem é que te impede?» 
Wasserman respira fundo, olha para mim com uma expressão estranha. «Já está, já vou começar», diz ele baixinho. 
«Quando a noite caiu, Herr Neigel», diz ele por fim, «o bebé não parava de berrar, e os seus gritos angustiantes quase se sobrepunham ao rugido do tanque que circulava numa rua próxima e às explosões assustadoras de um combate violento que se estava a desenrolar nas casas em redor…» Neigel levanta novamente a mão, e exige explicações numa voz de ferro. Wasserman olha para ele e depois volta-se para mim («Ai, aqui estou eu prestes a vender a este Esaú o cheiro sem o peixe, como se costuma dizer…») e explica a Neigel que a história mudou novamente de localização, desta vez para a Rua Nalewki em Varsóvia, «na época da nossa pequena revolta contra vocês, com sua licença». 
«Ah!», grita Neigel, estupefacto, e levanta-se, com um dedo a tremer de raiva apontado ao judeu. «Continuas! Continuas a tentar lutar contra nós com as tuas armas miseráveis?!» E mais uma vez somos testemunhas do seu espantoso autodomínio: força-se a sentar-se, e aperta os dedos à volta de um pescoço invisível: «Sei exatamente onde queres chegar com os teus disparates», explica Neigel com uma voz melíflua de dar arrepios. (Wasserman: «Como uma lâmina afiada na pele de um cabritinho.») «Tu, como todos os apaixonados pelas palavras e os discursos, pensas que os outros também são tão recetivos como tu ao seu poder mágico. Acreditas realmente que com palavras podes fazer guerras e dirigir combates com diversões, raides e bombardeamentos precisos. Não me interrompas! Agora sou eu que falo!» Levanta-se de novo, puxa pelo cinto e começa a andar de um lado para o outro, furioso, no quarto: «Começaste a história na floresta de Borislav, naquela mina malcheirosa, e quando viste que eu começava a acreditar em ti, a habituar-me ao local, mudaste-a logo para outro sítio, para o jardim zoológico! E aí também esperaste que eu me sentisse mais à vontade, que perdesse a desconfiança, e hop! Mudaste novamente o cenário! Um ataque surpresa numa frente inesperada! Varsóvia! A revolta! Ah! Deslocas as tuas estúpidas personagens como um general as suas tropas. Diriges ações de guerrilha com palavras! Ataque e recuo! Diversões e incursões! É uma guerra de nervos! Pergunto a mim próprio para onde me arrastarás depois de Varsóvia? Para Birkenau? Para o bunker do Führer em Berlim? Podes crer, Wasserman…» Vai para junto do judeu e diz-lhe ao ouvido: «… Sinto apenas desprezo pelos teus ridículos esforços. Tenho piedade de ti. Piedade. Se tivesses uma faca, nem que fosse um pequeno canivete, seria muito mais convincente e eficaz do que os milhares de palavras que nos vomitas aqui.» 
Tira um canivete do bolso, abre-o com um movimento nervoso, e pousa-o na mesa ao lado de Wasserman. «Aqui está. O que vais fazer com ele?» Wasserman fica calado. Desvia o olhar. Neigel explode: «Tens aqui o canivete, Wasserman! Um bom canivete afiado. Agora vou descarregar o meu revólver e ajoelhar-me à tua frente. Não consigo ver-te. O que vais fazer com ele?» Wasserman olha noutra direção. Neigel espera mais um minuto, com o rosto voltado para o chão. Depois levanta-se pesadamente, apanha o canivete e fecha-o. Por uma razão qualquer, parece derrotado. «O que é que imaginavas, Wasserman?», pergunta ele calmamente, sem malícia ou rancor, «que se andasses a saltar com a história de um sítio para outro, eu perderia o equilíbrio? Pensavas que podias confundir o meu espírito? Oh, és tão velho e ao mesmo tempo tão infantil, Wasserman, e tão estúpido! Podíamos fazer algo de maravilhoso juntos. Algo que ninguém jamais fez. Mas tu teimas em ter comigo essas brincadeiras de judeu, em destruir com as próprias mãos a tua última história e, acima de tudo, em perder o último homem no mundo que ainda está disposto a ouvir os teus disparates, velha curiosidade!» Puxa novamente pelo cinto como para acentuar as palavras, e senta-se pesadamente na cadeira. Wasserman reconhece interiormente que o alemão tem razão e que «Neigel é o meu castigo», mas ao mesmo tempo, sem motivo, enche-se de orgulho. (« Nu , então, embora eu já estivesse quase deitado por terra a morder o pó, como se costuma dizer, ou por outras palavras, embora eu já estivesse perdido, sabia que Esaú nunca antes fora obrigado a bordar palavras com fios tão finos, e se continuasse, rasgar-se-ia e transformar-se-ia no próprio fio.») E, com uma voz mais firme, mas ainda indecisa e reticente, pede perdão a Neigel e propõe-lhe «com sua autorização» continuar a contar a história mas sem mais espertezas, se Herr Neigel quiser ter a bondade de esquecer este incidente menor e voltar ao jardim zoológico. 
Neigel concorda, sem explicação plausível. Não é capaz de renunciar a ouvir o resto da história, como se precisasse dela para qualquer coisa. Wasserman faz de conta que ignora o motivo. Sorri interiormente, com o seu sorriso fino e manhoso, e volta a afirmar que tem o dever de reencontrar o que ficou esquecido e uma obrigação com a história, que é «como um ser vivo, que respira. Os pés não devem vir antes da cabeça». E regressa ao bebé em lágrimas e a Fried, que passeia com ele ao colo pelo quarto a cantar-lhe ao ouvido na na na e luli luli , mas nada disto acalma o bebé, que continua a berrar para dentro do ouvido peludo do doutor, surpreendido por esta violência totalmente desconhecida para ele. Era como se os berros lhe descosessem no cérebro os pontos previamente marcados de vigilância e antigas esperanças há muito petrificadas. 
Não. O bebé não vai aparecer. 
Aqui se acaba a nossa pequena história. 
Porque, de repente, como se se tratasse do agravamento rápido de uma doença que há muito chocava nos recantos escondidos do corpo, uma certa pessoa, fulano ou beltrano, ficou paralisada de medo, como se uma catarata se tivesse espalhado no núcleo da alma. Ao mesmo tempo, apresentam-se as seguintes reflexões e sensações vagas: 1. Fulano deixou totalmente de acreditar em ideais e/ou pessoas. 2. Por consequência, não pode assumir nenhuma responsabilidade, fazer escolhas e/ou tomar decisões sobre o que quer que seja. Daí que todas as iniciativas, ações e relações de fulano se reduzam consideravelmente, bem como a dor que ele possa causar ou que lhe possa ser causada. 3. Perdeu-se tudo. Por outras palavras, se fulano alimentar novas esperanças, arrisca-se a ser amargamente desiludido. Mas ele não alimentou. Naquelas novas condições, a própria esposa legítima mostrou o seu verdadeiro rosto, e em concordância com uma certa mulher que um dia tivera relações sexuais com fulano, avisou-o de que devia abandonar o domicílio conjugal («a casa»; «o ninho familiar») até «se sentir melhor…», «resolver os seus problemas», etc. Ela fez isso, claro está, por «amor», «preocupação» e «compreensão». 
Foi exilado (por sua própria vontade) para outra cidade. Um quarto alugado num sótão (com entrada independente) foi o seu abrigo durante seis meses. Tinha o cérebro torturado envolvido em nevoeiro. As páginas ficaram em branco. Fulano já não pertencia a nada, e nada lhe pertencia. Ao fim da tarde, após dias inteiros de um branco cintilante, fumavam-se três cigarros debaixo do cinamono na rua tranquila, ao lado de casa. Uma face cortou-se ao fazer a barba, e a ferida não cicatrizou. A confusão reinava. Ou, correndo o risco de cair numa intimidade exagerada, ousaremos dizer que fulano estava confuso. 
Entre as páginas vazias do caderno escolar no qual a história devia ser escrita, uma única palavra brilhava durante as noites de insónia: CUIDADO. Mas cuidado com o quê? E com que fim tinha ele construído ao longo daqueles anos todos a fortaleza que o cercava? A mãe e o pai não lhe tinham dito. Limitaram-se a deixar a ordem: tem cuidado. Para sobreviver. Mais tarde, quando todas as guerras terminarem, terás tempo de te sentar e pensar calmamente nas implicações dessa existência que tão encarniçadamente protegeste. Entretanto, tens de te contentar com o que há. De momento, não podemos revelar-te mais nada. Houve quem pensasse que a palavra («Cuidado») era a única que Wasserman lia no caderno, enquanto contava a história a Neigel. Outros que era «sobreviver!», mas aparentemente não era nenhuma destas. No «quarto branco» há meios mais simples e imediatos para verificar essas coisas: se houver alguma coisa escrita no papel e tiver de ser avaliada para se saber se é verdade ou mentira, então uma certa pessoa não está de todo no caminho certo. Mas se o procedimento for tal que basta que um determinado par de olhos se feche para que a consciência volte e um reflexo claro apareça no espelho do olho interno sem ser necessário recorrer a uma intervenção racional – estão satisfeitas as exigências fisioliterárias um pouco caprichosas do «quarto branco». 
Fried pousa o bebé aos gritos no tapete. Não sabe o que fazer. Do alto da sua estatura tem a impressão de estar a ver a sua própria imagem reduzida, no fundo de um poço. Esta noite, pela primeira vez, desaperta a gravata e arregaça as mangas. Otto: «Paula e eu nunca o tínhamos visto assim, quero dizer – tão descuidado. Um verdadeiro zaniedbany .» Como a cara do bebé está roxa de tanto chorar e suster a respiração, o doutor ajoelha-se ao lado dele no tapete e abre a pequena boca com dois dedos, murmurando: «Ah, Otto não viu bem. Tem quatro dentes.» Pousa a palma da mão comprida e áspera na barriga do bebé e massaja-a ternamente, como o faz às vezes aos bebés babuínos quando estes gritam de dor por causa dos gases. Sob a sua mão, o bebé era, como disse Markus, «como uma folha viçosa a rebentar do tronco de uma árvore seca». 
Enquanto o massajava docemente, Fried ouviu de súbito… Fried: « Nu , como hei de dizer, o bebé – quer dizer, de repente ouvi…» Wasserman: «Um forte borbulhar do traseiro do bebé, ao mesmo tempo que rolavam sobre o tapete umas pérolas de excremento esverdeado.» Munine: «Por muito que a descrevas de maneira elegante, será sempre merda.» Markus: «O nosso bom doutor fez uma careta perante a vulgaridade do seu visitante e foi a correr buscar um trapo…» 
Neigel levanta a mão. Nos últimos minutos tomou várias notas no seu caderno negro. Enquanto ergue a mão esquerda, a direita continua a escrever. Quer finalmente saber quem é o misterioso senhor Markus, e o que faz na história. Wasserman esquiva-se. Diz ao alemão que Markus é farmacêutico, que é muito musical e que, para se entreter, copia partituras para a ópera de Varsóvia. Interessa-se também muito por alquimia, mas juntou-se aos meninos de coração de oiro por via de umas experiências sem relação direta com a pedra filosofal. «Uma experiência humana sem par, Herr Neigel!», declara Wasserman. «Um ato de autossacrifício e mortificação por amor de um ideal, mas não posso revelar mais nada de momento e volto a pedir-lhe uma vez mais um pouco de paciência.» 
Há que frisar que Fried preferiu rasgar um velho lençol, em vez de utilizar as fraldas que Paula bordara para o seu Kazik que não chegara a nascer. Fez o melhor que pôde para pôr as fraldas ao bebé, que se remexia, berrava e dava pontapés, até que finalmente… Fried: « Do jasnej cholery! Raios o partam! Em cheio no nariz!» Magoado, com o lábio a sangrar, o doutor deu um berro furioso que o assustou a si próprio, e tentou apagar a impressão brincando com o bebé, fazendo-lhe cócegas, piscando-lhe o olho, e por fim… Markus: «Aleluia, Fried! Até lhe cantaste uma canção da tua infância!» Fried: «Os carneirinhos voltam para casa… mé mé mé… saltam por cima das rochas… mé mé mé, etc…» Otto: «Mas o bebé não parou de berrar, e quem alguma vez ouviu Fried a cantar perceberá logo porquê», e Fried: «Eu fiquei sentado ao lado dele no tapete, muito desanimado. Estava sempre a repetir para mim próprio, coitado do pequenito, que mais pode ele fazer neste mundo, e o melhor é deixá-lo berrar. E no momento em que o disse, o que é que aconteceu?» Otto: «O bebé pôs-se a sorrir para o doutor!» Fried: «A sorrir! A rir, diz antes! A rir às gargalhadas!» 
 
 
Não tem forças. Não tem forças para este bebé, ou para quem quer que seja. Uma certa pessoa não tem forças para continuar. O autor, acima mencionado, não tem suficiente vitalidade para si, quanto mais para insuflar vida a outra criatura, mesmo uma personagem literária. Está dominado por uma passividade total, no seguimento da qual foram amadurecendo outras reflexões, como, por exemplo, a necessidade de estabelecer um novo modo de vida com os outros (ou fritar omeletes juntos, para não dizer descascar cebolas!). É preciso voltar atrás umas centenas de passos e recomeçar tudo desde o princípio; mas, desta vez, há que avançar lentamente para não cometer os mesmos erros terríveis. É necessário reunir os melhores especialistas para a investigação vital e prioritária, a análise do homem até à última célula, a fim de perceber o que é. Vamos achatar tudo o que é humano, amassá-lo, torná-lo tão fino que todos os indícios se tornarão evidentes. A marca do fabricante. A combinação secreta do cofre. O modo de emprego que nos explique de uma vez por todas para que serve, como utilizá-lo e melhorá-lo. O que fazer quando se estraga e não consegue corrigir os erros sozinho, e como é que alguém de fora pode repará-lo. E agora Wasserman está a contar a história a Neigel. Um judeu que não consegue morrer está a tentar salvar o mundo com a ajuda dos meninos de coração de oiro. E faz-se o voto ingénuo – que este esforço inocente possa ganhar a confiança de fulano que, infelizmente, é incapaz de acreditar ou de conceber a redenção. Sim. O homem tem de ser desmembrado, e aquilo a que se chama vida tem de ser dissecada até às mais ínfimas partículas e observada ao microscópio. A fim de neutralizar cientificamente aquilo a que já não podemos resistir, como o «assassínio», por exemplo, ou o «amor», até serem completamente decifrados e não poderem mais causar tais «dores» ou «angústias». Até serem entendidos. Entretanto, há que suspender tudo: «amor» e «piedade» e «moral», e não há «justiça» nem «injustiça», nem «amo» ou «não amo». Não há «escolha» ou «liberdade», apenas um estado de emergência, três punhos e três dedos, e tudo o resto não passa de luxo, adequado ao tempo de «paz», e a pessoas prontas a «acreditar» no «homem» e no seu «coração» tão «bom», na sua «missão» «moral» e no «objetivo» da sua «vida», «mas» «Wasserman» «traz»-«nos» um «bebé»… Neigel tosse, e chama a atenção de Wasserman para uma ligeira contradição: o bebé ainda é novo de mais para rir. Wasserman concorda. Fried também ficou surpreendido. Lembra-se de que os sorrisos conscientes, voluntários, começam a surgir nos bebés aos… digamos… «dois ou três meses». Neigel oferece-se para ajudar: «Karl começou um pouco mais tarde. É verdade que é um menino mais sério… quanto a Lisa vimo-la sorrir aos dois meses. É sempre a primeira em tudo. Cristina diz que, em bebé, era igual.» Wasserman: «A sua memória é fabulosa, Herr Neigel. Se calhar registou isso tudo numa caderneta especial?» «O quê? Sim. Quer dizer, foi Cristina, ela é que registou tudo na caderneta do bebé. Devia ter visto… que bonito que ficou. Como uma história para crianças. Eu não sei escrever coisas dessas. Quero dizer – se tivermos outro filho, talvez experimente. Afinal de contas contigo fiz coisas muito mais complicadas, não é, Wasserman?» 
«Sem dúvida alguma!», responde Wasserman, e continua a contar a história. O médico, diz ele, decidiu descobrir a causa daqueles sorrisos e risos precoces. Fez uma pequena experiência científica. Deu uma gargalhada exagerada em frente do bebé para o fazer rir, mas o pequeno farejou logo a impostura e fez uma careta. O doutor riu involuntariamente, um riso verdadeiro, desta vez, e os olhos do bebé brilharam. Foi tão cómico que Fried riu abertamente. O bebé fez coro com ele. Markus: «Os sorrisos primordiais procuravam naquele corpo pequeno a melhor saída, a mais agradável. Primeiro foi o joelho que tentou sorrir, depois foi o cotovelo, revelando assim um magnífico sinal de beleza.» Neigel: «Ah… no cotovelo, realmente?» Wasserman, imediatamente: «Preferia que fosse noutro sítio, Herr Neigel?» Neigel: «Porque não?… É um bocado estúpido, de facto… mas não poderia ser no joelho direito? Acima do joelho? Liselote tem um precisamente nesse sítio. Pensei que…» «Mas é claro que sim, Herr Neigel; veja, já lá está!» «Obrigado, Herr Wasserman.» 
Os olhos de Wasserman fecham-se com um longo pestanejar de dor e prazer. Era a primeira vez em anos que um alemão lhe chamava «Herr». 
O corpo do bebé tremia todo do esforço para encontrar um sítio onde alojar o seu sorriso. A cara estremecia e corava. Tinha os cabelos claros cobertos de suor. Fried: «Comecei por pensar que o que ele precisava era de arrotar, e por isso levantei-o e dei-lhe palmadinhas nas costas.» Markus: «E o sorriso foi logo parar ao sítio. O marmanjo escancarou a boca de prazer e, enquanto ria, Fried viu seis dentes brancos bem implantados nas gengivas cor-de-rosa.» 
Neigel: «Seis? Tinhas dito quatro.» 
 
 
Morte a este bebé. Morte a todos. As energias de uma certa pessoa estão completamente esgotadas. Restam-lhe apenas algumas poucas forças para um último espasmo de resistência a Wasserman. Só enquanto se desenrola a ação de escrever existe um pouco de «vitalidade». Na ponta dos dedos. Tudo o resto está insensível. Na sua mão, as páginas escritas parecem uma folha viçosa brotando de um tronco seco. Mas, pelo menos, foi desvendada a intenção secreta e maldosa de Wasserman, e desencadeados os planos necessários para a fazer abortar. A situação ainda se encontra, parcialmente, sob o controlo do autor. A situação é a seguinte: Wasserman está a dirigir os seus esforços para fulano, a tentar «provocá-lo» – usando meios incrivelmente baixos para trazê-lo de novo à «vida». Mas Wasserman será combatido. Wasserman será submetido a uma guerra feroz! 
 
 
Naquela noite, a cama estreita do quarto alugado de uma cidade estrangeira albergou um sonho. Neigel foi sonhado como se fosse fulano ou beltrano. Os dois filhos de Neigel também estavam no sonho e foram descobertos sem ódio ou aversão. Talvez até com uma certa ternura. Eram tratados com dedicação e delicadeza por Neigel (que era fulano ou beltrano). Em consequência do sonho, o sonhador acordou com o seguinte pensamento: uma certa pessoa foi sonhada como sendo um nazi, e isso despertou uma ligeira depressão que se dissipou rapidamente, dado que não tinha a que se agarrar. Ocorreu-lhe um estranho pensamento, ou seja, que se fala sempre do Pequeno Nazi Que Existe em Nós (a que chamaremos PNEN), para significar coisas erradas, óbvias, tais como a crueldade bestial, por exemplo, ou o racismo de todo o tipo, a xenofobia, o crime. Mas estes são apenas os sintomas mais superficiais da doença. Diante da mesa de trabalho do quarto alugado, uma cadeira sofreu a pressão de uma certa carga ambígua. Uma caneta foi levantada por uma mão e mordiscada pelos dentes. O quarto alugado onde tiveram lugar as atividades acima mencionadas situava-se debaixo do telhado e, da janela, podia ver-se o mar. Oh, mar. Dizem sempre PNEN, e cometem um grande erro. Adormecem a vigilância e preparam o caminho para a próxima catástrofe. Sim, estes pensamentos brotaram com uma clareza espantosa. Uma lucidez perfeita e uma aguda compreensão da situação foram detetadas, juntamente com a incapacidade de mudar o que já fora fixado e definido. Na porta aberta do armário brilhava um espelho quebrado. Viu-se a si próprio aí refletido. Um rosto de pássaro. Olhos vermelhos e brilhantes. Um corte de lâmina feio debaixo da barba incipiente. Mas o verdadeiro problema, a doença, é muito mais profundo. Talvez seja incurável. E se calhar nós somos apenas micróbios. E quando aqui ou ali se vocifera PNEN contra ele, talvez isso não passe de um golpe baixo de chantagem, cujo objetivo é chegar a um consenso geral sobre o que é cómodo e fácil de aceitar? Quer dizer: combater tudo o que pode ser combatido? Mas então, como agir adequadamente? Ou talvez seja necessário erradicar tudo e começar tudo de novo? Teremos força para isso? 
Nessa noite, consideraram-se várias coisas: poderá uma certa criança (a quem designaremos doravante por Yariv) ser morta por fulano ou beltrano que funciona igualmente como seu pai? E o que fazer com a mulher legítima, e a mãe, de fulano? 
Às 4h45 da madrugada vestiram-se calças e uma camisola cinzenta. A porta que dá para o telhado foi aberta, e o telhado percorrido de um lado ao outro com um passo rápido. Uma sensação de despertar e de melhorias foram sentidas por fulano ou beltrano. Entre as antenas e os painéis solares, viam-se as margens azuis do grande reservatório de água. Às 4h49 em ponto, tornou-se evidente que aquelas não eram as perguntas corretas a fazer e, ousaríamos direr, que os erros, regra geral, estão nas perguntas. Neste ponto, vieram à baila algumas questões que um certo B. Schulz lhe ensinara a colocar, e tornou-se infelizmente óbvio que tinha havido demasiado receio em colocá-las. Tinham sido sempre receadas. Foi igualmente recordado que as questões podiam ser colocadas de outra maneira: não sob a forma «Será que fulano ou beltrano vai assassinar X, Y e Z?», mas «Será que vai ressuscitá-los? Será que vai ressuscitá-los a cada momento?» E finalmente – e esta talvez seja a questão essencial – «será que o eu de fulano ou beltrano pode ser ressuscitado com o mesmo fervor, a mesma paixão, o mesmo amor, a cada momento que passa?» 
E como ainda não foi encontrada resposta para esta pergunta, colocou-se uma última questão irritante: o que é que se receava e de quem se fugia? Da morte ou da vida? Da vida real, sem reservas, a vida no sentido em que… etc. Subitamente fulano correu para a mesa de trabalho, para escrever. Mas a caneta não escrevia. A tinta não corria. Fulano ficou apavorado. Ficou coberto de suores frios. A caneta foi atirada e esmagada contra a mesa como se fosse para acordar alguém que estava em baixo, do outro lado. Por fim, a tinta correu. 
*** 
Wasserman ainda lá está. Está sempre ali, em frente de Neigel A descrever a confusão e a hesitação do doutor que não ousa registar o bebé no seu bloco (o mesmo que usa há anos para os animais do zoo e os operários), porque ele ainda não tem nome, e Fried: «Não me compete a mim dar nomes aos doentes, não achas?» 
Fried escreve o seguinte: «Bebé anónimo. Trazido por Otto Brieg no dia 4/5/43 às 20h05, embrulhado num cobertor de lã. Não há indícios dos pais. Sexo – masculino. Comprimento do corpo: impossível de medir devido à resistência. Estimativa: 51 cm. Diâmetro do crânio: idem . Estimativa: 34 cm. Peso: idem . Estimativa: 3 kg. Às 20h20 Otto Brieg viu dois dentes no maxilar inferior. Às 21h20, eu próprio (A. F.) vi dois outros dentes no maxilar superior. Após cerca de dois minutos, vi mais dois no maxilar inferior. Ao todo: seis dentes.» Como o bebé não interrompeu mais a conclusão da descrição científica, Fried recompensou-o generosamente e escreveu: «21h20. O bebé está muito desperto, e até se ri.» Fried: «Estava eu ali a escrever sem lhe prestar atenção, até que ele se mexeu no tapete, caiu ou coisa no género, olhei para ele e vi – ah! Estava deitado de barriga para baixo! Coitadinho. Virei-o logo de costas, olhei e, quer acredites quer não, ele voltou-se outra vez sobre a barriga!» 
Fried abominava as fraudes e os enganos, e estavam constantemente a tentar enganá-lo. Pobre Fried! Vivia constantemente com a sensação de que alguém, algures, aproveitaria o menor momento de distração da sua parte para mudar radicalmente o cenário do mundo. Rangendo os dentes contra as mentiras e a corrupção enraizadas no mundo e nas suas criaturas, Fried agarrava-se com unhas e dentes à sua honestidade. Markus: «Quanto mais o mundo o enganava e o seduzia com ilusionismos e feitiçarias…» Harutian: «E com as malas de fundos duplos, as portas ocultas, os bolsos dissimulados nas pregas da roupa…», mais o doutor teimava em reforçar a sua fé, cheia de ódio e humilhação, na lógica necessária das coisas, e na existência, neste mundo que é o nosso, de uma verdadeira ordem, clara e simples, que forçosamente se há de revelar um dia, ainda que seja na vida de uma só pessoa. 
Neigel levanta a mão. «Aqui enganas-te», diz ele a Anshel Wasserman, «há sempre uma explicação lógica.» Wasserman parece discordar. Neigel dispõe-se a explicar: «Mesmo aquilo que inicialmente não parece natural acaba por ter uma explicação lógica.» E Wasserman: «Herr Neigel, o papel e missão da lógica neste mundo é o de dividir as coisas e as pessoas por categorias e ligá-las umas às outras, de tal forma que cada uma encontre o seu par. Mas as coisas em si», diz ele com tristeza, «as coisas em si são totalmente desprovidas de lógica! E as pessoas também. Sim, de facto. Uma mistura de fermentos de desejos e angústias, ai, o mundo é muito lindo, mas onde está a lógica? Só no que divide e liga homens e coisas. Sim. Lógico é, por exemplo, o vosso maravilhoso programa de deportações de todas as regiões da Europa. Para o matadouro. Lógicos são os carris de ferro que se estendem através do mundo, e as carruagens que nunca desesperam nas estações. Lógico, Herr Neigel, é o fio invisível que anima a mão do funcionário consciencioso cuja assinatura garante à locomotiva a sua ração diária de combustível, e o maquinista que a conduz através dos carris e, se quiser, lógico é ainda o que une estes dois homens e os impede de encontrarem o chefe de estação corrupto, o melhor dos homens que, em troca de uma bolsa cheia de dinheiro que lhe passámos disfarçadamente através da janela do compartimento do comboio, trouxe um cantil de água para a minha filha que desmaiara. Ele também agiu de acordo com a lógica que estava na base da situação, só que essa lógica, senhor, liga coisas desprovidas de lógica. A crueldade e a caridade. Os seres humanos. A vida da minha filha e a sua morte… 
Ao ouvir pela primeira vez falar da morte da filha de Wasserman, Neigel prefere ignorá-la. Ou talvez não tenha o ânimo necessário para encarar a notícia. Limita-se a baixar os olhos com o seu repugnante «humf», indicando assim, ao que parece, que Wasserman pode continuar. Wasserman olha para ele demoradamente com amargura e dor e depois reveste a expressão mais próxima do ódio que eu jamais vi. A seguir baixa a cabeça e continua. 
Markus: «A honestidade e a desilusão estavam de tal modo entrelaçadas no nosso Fried que se transformaram em nós dolorosos na garganta e no estômago, e Paula dizia que, ao infligir-se a si próprio aquela tortura estranha, Fried causava tanto mal como uma mentira ou uma fraude.» Paula: «Não consigo entender porque é que toda a gente está sempre a tentar enganar o meu Friedczek, que é tão inteligente e cuidadoso e desconfiado de todos, enquanto a mim, que sou tão parva que até acredito em gatos, me deixam em paz.» Harutian: «Mas, há que acrescentar em defesa do nosso doutor, que, quando chegou o momento de escolher entre a lógica e a mentira piedosa, ele escolheu a mentira. E a esperança. Apreciei-o muito, Fried.» Fried: «Ah, tu! O rei da camuflagem!» Markus: «Sim, é isso. E foi com um amor completamente irracional, Fried, com um verdadeiro amor da camuflagem, que pudeste acreditar na criança que Paula queria ter.» Fried: «E sofri. Nenhum de vós sabe nem saberá jamais o quanto sofri. Nunca mais permitirei a mim próprio sofrer tanto.» Otto: «Não, Fried? Tens a certeza?» E Munine: «Aí, vocês os dois! Parem lá com isso! O bebé virou-se outra vez!» Fried: « Psia krew! » 
Baixou-se, virou o bebé de costas com agressividade, e gritou: «É assim que um bebé da tua idade tem de estar deitado, assim!» E afastou-se um pouco, com uma expressão severa, as sobrancelhas franzidas, mas o bebé, o nosso bebé… 
«Virou-se outra vez?», pergunta Neigel. Wasserman: «Virou-se, pois! E o pobre Fried…» Neigel: «Deu um grito de medo, e correu para o virar novamente de costas!» «E o bebé virou-se outra vez!» «Mais uma vez! E mais outra vez!» 
Uma suspeita súbita levou o doutor-águia a levantar o bebé do tapete e a elevá-lo silenciosamente até à luz. «O bebé ria de prazer, Herr Neigel, e dentro da boca brilhavam, oi …» Neigel: «Um momento! Quatro, seis, oito dentes?» Wasserman: «Precisamente!» Neigel: «Escuta! Ainda não tenho a certeza de que me agrada muito, mas agora já começo a entrever uma verdadeira história!» E escreve uma ou duas palavras no bloco. 
Fried folheia rapidamente a enciclopédia alemã de medicina, que adquirira há cinquenta anos, no tempo em que era estudante em Berlim. As páginas libertam pó e Fried desata a tossir. A estranha erupção que lhe apareceu de manhã na barriga faz-lhe comichão, mas ele não liga. O enjeitado rasteja aos seus pés, explorando com curiosidade o tapete florido. Os seus movimentos, de início desajeitados, são agora mais coordenados. Fried: «Aos quatro meses aparecem os primeiros dentes… Aos oito meses o bebé já tem por vezes oito dentes… Aos três meses, o bebé precoce começa a tentar voltar-se de costas… Pois bem, olhei para o chão e, acreditem ou não, vi que este já estava a tentar sentar-se, ainda só tinha algumas horas, quando muito umas duas, acho, e a enciclopédia diz: “aos quatro meses controlará os músculos do pescoço de forma a manter a cabeça direita. Aos seis meses conseguirá sentar-se com algum esforço…”» 
Fried praguejava de medo e limpou as lentes embaciadas. O bebé estava sentado e examinava atentamente os dedinhos gordos dos pés. O doutor sentiu um consolo momentâneo ao ver que a cabeça do bebé tombava de vez em quando para a frente. 
O bebé teve fome e recomeçou a chorar. Fried pensou com uma lógica maliciosa que, se o convidado já sabia sentar-se sozinho, também não precisava de ser alimentado a biberão ou à colher. Por isso, deitou um pouco do leite especial de Harutian num copo de plástico, pô-lo nas mãos dele e mostrou-lhe como bebê-lo. Num abrir e fechar de olhos o bebé já sabia beber sozinho. 
Acabou de beber. Sem pensar, o doutor perguntou-lhe se queria mais, e o bebé, imitando o som agradável, disse «Mais?». Fried, que se fechara em si mesmo como última defesa contra o espanto, disse para si próprio, como se estivesse a registar no diário: «Começou a falar.» Trouxe da cozinha uma fatia de pão que o bebé devorou rapidamente ao mesmo tempo que tentava erguer-se e pôr-se de pé. 
 
 
Não. Agora é possível formulá-lo. O PNEN é apesar de tudo menos perigoso do que a doença que está na raiz da nossa natureza e que nós propagamos com cada um dos nossos movimentos. Os nazis limitaram-se a definir-lhe as grandes linhas, a dar-lhe um nome e uma língua, um exército, e trabalhadores, templos e vítimas. Puseram-na em ação e, em certa medida, deram-lhe o flanco. Afrouxaram o controlo e deixaram-se cair nela molemente. Porque é óbvio que nunca se começa a fazer mal, apenas se continua. Eis o que me diz Wasserman, que nunca desespera. Mas para lutarmos contra a nossa natureza precisamos de força. E de um objetivo. Mas os nossos objetivos e ideais são tão miseráveis! Não são dignos de lutarmos por eles. Para quê? Para nos tornarmos seres humanos, como diz Wasserman? Só isso? Lutar constantemente para isso? Sofrer tanto? Digamo-lo abertamente: Wasserman está muito errado. A humanidade protege-se dessas tentativas estéreis. A natureza é sábia e adapta as suas criaturas às condições de vida preestabelecidas. É o processo existencial darwiniano: sobrevivem os que conseguem defender-se inteligentemente. Sim, minha querida senhora: com inteligência! 
E tendo dito isto, o silêncio cai, espalha-se uma vaga inquietação, e – que estranho! – uma mão move-se espontaneamente para escrever as linhas seguintes, uma espécie de homenagem reacionária e anacrónica de fulano ou beltrano ao passado esquecido, quatro ou cinco linhas destinadas a pôr um ponto final na «velha história», ou nos pergaminhos para arquivar. Eis o que se escreveu: «Eu estive profundamente mergulhado lá dentro quase desde o momento em que nasci, desde o momento em que comecei a desesperar e a relacionar-me com as pessoas como uma evidência, quando deixei de procurar inventar uma língua especial para eles, e novos nomes para cada coisa. A partir do momento em que deixei de poder dizer “eu” sem ouvir ecoar o som oco do “nós”. E quando resolvi fazer algo para me proteger do sofrimento dos outros. E a partir do momento em que recusei mutilar-me, arrancar as pestanas para ver tudo.» 
Estas foram as linhas que fulano escreveu antes que as forças o abandonassem. Conseguiu dizer aquelas bonitas palavras para si, mas já não sentiu nelas o sal da vida. Ficara farto daquela guerra. Fartara-se da guerra. Não tinha por quem lutar. Por si próprio seria desperdício. Já estava morto. Já estava pronto para a vida. 
*** 
Levantei-me e quis abandonar o «quarto branco». Não havia lá nada mais para mim. Esquecera a língua que lá falavam. Mas não consegui encontrar a porta. Quer dizer, andei ao longo das paredes, às apalpadelas, e não havia porta. Eram completamente lisas. Mas devia necessariamente haver uma porta! 
Anshel Wasserman entra e para diante de mim. Como dantes. Curvado, com a pele amarela e flácida. Quer mostrar-me a saída. Conhece o caminho. Passou a vida perdido nesta floresta, a semear palavras como se fossem pedrinhas, para poder encontrar o caminho de regresso. É o homem das histórias para crianças, Anshel Wasserman Scheherazade. 
«Avô?» 
«Escreve sobre o bebé, Shloïmele, sobre a sua vida tão animada.» 
«Quero sair daqui. O “quarto branco” mete-me medo.» 
«O mundo inteiro é um quarto branco. Anda, vem comigo.» 
«Tenho medo.» 
«Eu também. Escreve a história do bebé, Shloïmele.» 
«Não!!!» 
Gritei e sacudi de cima de mim a sua mão doce e quente, onde a história jorrava incessantemente. Atirei-me às paredes lisas, às páginas do caderno, ao espelho, à minha alma… Não havia saída. Estava tudo bloqueado. 
«Escreve, por favor», disse Anshel Wasserman pacientemente, com doçura. «Senta-te e escreve. Não tens outro remédio. Porque tu és como eu, a tua vida é a história. É a única coisa que existe para ti. Portanto, agora escreve, se faz favor.» 
Bom. Seja. O bebé. Tenho de lutar contra ele. Contra ele e contra quem o trouxe. Para isso ainda me restam algumas forças. Não muitas, é verdade, mas quem ousar magoar-me pagará com a própria vida. Ou seja, com a história dele. Toma cuidado, Anshel Wasserman, a tua história passou a estar em perigo! Nem os laços que nos unem me inspirarão piedade, pois em tempo de guerra não há piedade, e eu declarei-vos guerra a ti e à tua história. 
 
 
Fried fez cálculos. Tinha-se-lhe tornado claro que em cada quatro ou cinco minutos a criança se desenvolvia a um ritmo equivalente a três meses da vida de uma criança normal. Isso significava que em meia hora o bebé teria um ano e meio. Fried lembrou-se que ele só começou a respirar a um ritmo muito rápido quando a borboleta branca esvoaçou na Sala da Amizade. Quer dizer que o seu tempo especial só deveria ser contado a partir desse momento, cerca das nove horas. («Cerca de??!» O doutor estremeceu ao compreender a importância que cada segundo tinha a partir de agora.) Wasserman: «A mão esquerda do doutor arranhou vigorosamente a erupção que brotara de manhã na sua barriga, acima do umbigo. Organizou os seus pensamentos: «daqui a uma hora, o marmanjo já teria três anos!» Fried: « Boże mój! Meu Deus! Não é possível! Tenho de verificar de novo!» 
E tornou a verificar friamente. O cálculo estava certo. Fried mordeu os dedos e tentou lembrar-se. Fried: «Wersus? Wreblov? Qual era o nome?… Wasserman: «Folheou rapidamente as páginas da sua fiel enciclopédia, através das centenas de fragmentos cristalizados de destruição e ruína, as epidemias e enfermidades e os defeitos da alma e do corpo, que Deus nos livre, e finalmente deteve-se, sem poder respirar e a arfar como um cão, no termo que…» Fried: «Werner, a síndroma de Werner. Um processo de envelhecimento acelerado… a partir dos três anos… uma deterioração de todos os sistemas… esclerose precoce… depressão nervosa… morte rápida, acompanhada de sofrimento… [V. Gerontismo ]» 
Neigel endireitou-se. A expressão do rosto é severa, está ligeiramente pálido. Quem poderia imaginar que ele levaria a história tão a sério? Ou talvez haja algo que nós ainda não sabemos? «Por favor, Herr Wasserman. Não.» Di-lo com uma voz calma: «Não toque na criança.» Mas Wasserman, que escuta as palavras como se já as tivesse ouvido antes, há muito tempo, prossegue: «E, adivinhando o que se ia passar, o doutor partiu, com o coração desfeito, para a terra de desolação a que o livro se referia, para…» Fried: « Gerontismo . Forma infantil da síndroma de Werner [v.], processo de envelhecimento muito rápido que começa com a idade de três anos… Só foram observados raros casos na história da medecina… O desenvolvimento é progressivamente travado a partir da idade de três anos, e começam então a aparecer sinais de degenerescência, atraso e depressão… 
Neigel: « Bitte , Herr Wasserman, escute um segundo!» E Fried: «Valha-me Deus!» 
Porque o bebé já estava de pé a sorrir muito feliz para Fried. Uma onda de piedade submergiu Fried e afundou instantaneamente a armada de ferro que navegava no seu coração. Apontou com um dedo para o peito e disse com uma voz forte: «Papá.» 
O bebé repetiu: «Papá.» 
Markus: «Para o nosso caro Fried, foi como se tivesse sido picado no peito pelo alfinete da medalha de mérito. Hesitou um momento, e depois… maldizendo a partida que a vida lhe estava a pregar – disse: “És Kazik.” E o bebé repetiu o nome. Uma vez e outra, e outra ainda, saboreando o novo nome. Kazik.» 
Fried sentiu uma enorme vontade de o proteger, de brandir a sua espada em volta do corpo franzino, sem defesa, para que a doença não se aproximasse. Mas era tarde de mais, a doença já germinava nele com toda a sua força grotesca. Neigel não para de acenar a cabeça em sinal de desacordo. Wasserman nem sequer se digna olhar para ele. Está convencido de que a oposição de Neigel tem uma relação direta com o facto de que o bebé tem um encantador sinal de beleza no joelho direito. Neigel dá um murro na mesa e grita, basta com essa história mórbida, mas Wasserman não obedece. Fica furioso. Grita que não pode continuar porque estão sempre a intervir na história. Pela primeira vez, perde de tal maneira as estribeiras, que levanta o braço para Neigel, e esse gesto choca-me, porque me lembro exatamente de quando o vi fazer aquilo pela primeira vez: foi há mais de vinte anos, na cozinha dos meus pais, em Beit Mazmil. Nessa altura, o alemão também tentou intervir, e o avô pôs-se a agitar uma perna de galinha no nariz dele e a gritar. Mas nessa época eu ainda queria que o avô vencesse. «Não toque nessa criança!», grita Neigel com o rosto vermelho, e Wasserman olha para ele com uma expressão sombria, terrível, pesando cada palavra: «Há coisas que é melhor não me dizer, Herr Neigel. A minha vida já é bastante amarga sem o senhor. A criança vai viver ou morrer, Deus nos livre, de acordo com as exigências da narrativa. Assim foi decidido e assim será.» 
Wasserman sabe muito bem que fica ridículo quando se zanga. Ele próprio reconhece que «há pessoas a quem a cólera não assenta bem». Mas, desta vez, há algo nele que convence Neigel, que desvia os olhos e espera o seguimento da história, de caneta em punho. 
… Fried respirou profundamente. A vida apanhara a luva que ele lhe atirava todas as manhãs. Não havia outra explicação. Só que escolhera um campo de batalha imprevisto. Através do corpo da criança iriam ser-lhe infligidos sofrimentos como nunca conhecera antes. Wasserman: «Ai, Fried, devias ter previsto que essa seria a resposta da vida ao teu desafio, a partir do momento em que traçaste a primeira linha no pó.» Fried: «Não te preocupes comigo. O velho Fried ainda tem um ou dois truques na manga.» Inesperadamente Neigel grita, provocando abertamente Wasserman: «Hurra, Fried! Na guerra como na guerra!» Markus: «Durante um momento, o nosso Fried foi possuído por uma loucura guerreira tal, que por pouco não se erguia nas patas traseiras e relinchava. Mas compreendeu depressa que tinha poucas hipóteses e o coração encheu-se-lhe de tristeza.» 
Verificou de novo os cálculos, a fim de resistir à segunda vaga de terror que já o começava a devorar. Devia certamente haver um erro algures. Talvez não se tratasse de gerontismo na sua forma mais grave. Talvez fosse apenas um desenvolvimento muito rápido, que em breve abrandaria até ficar normal. Sim. Fried fez um cálculo de cabeça, mexendo os lábios grossos e exangues. Depois escreveu alguns algarismos e examinou-os. A comichão no ventre acentuou-se e ele arranhou furiosamente a estúpida erupção. 
Atacou o papel pela última vez, a espumar de raiva. Passado um momento esfriou e empalideceu. Perdera a pequena esperança de que, apesar de tudo e devido à longa intimidade que havia entre eles, a vida lhe manifestasse alguma misericórdia. Cheirou distraidamente os dedos. De onde vinha aquele cheiro fresco a rosmaninho? Apertou os dentes e olhou para a página. Por baixo da última linha, estavam inscritos dois algarismos. 
Wasserman para de ler. Os olhos de Neigel estão presos aos seus lábios. Os de Wasserman fixam o caderno vazio. Durante segundos brilhou-lhe no olhar uma expressão terrível de amor selvagem, como a de um animal a defender as crias. E embora não seja um leão ou uma pantera, mas antes um coelho ou um carneiro zangado, a expressão selvagem e de amor não diminui em nada. Nesse momento, podia ter deitado uma olhadela ao seu caderno e ver finalmente a palavra escrita nas páginas em branco, mas tive medo. Wasserman acena com a cabeça diante da única palavra, respira profundamente e faz sinal de que quer continuar. 
«Espere um momento, se faz favor, Herr Wasserman – deixe-me tentar convencê-lo… não é possível…» Mas Fried, obstinadamente, ignorando cruelmente a súplica de Neigel: «E assim, se o bebé continuar a desenvolver-se a este ritmo, terminará o ciclo de vida médio de uma pessoa em VINTE E QUATRO HORAS. Sim.» 
Neigel fica calado, a ferver de raiva e amargura. Mas mesmo nesse momento, alguém dentro dele fica preso à magia da fórmula biológica VINTE E QUATRO HORAS. Começa a dizer alguma coisa, mas contém-se. Passam alguns segundos. Neigel acalma-se. Já sei o que tenho de fazer. Não tenho escolha. Pobre Wasserman. Mas eu também tenho uma história que me escreve e tenho de segui-la até onde ela me levar. Talvez o meu caminho seja o bom. 
«Essa tua história», diz Neigel amargamente, «não sei o que pensar dela.» Wasserman, com um imenso alívio: «Há de acabar por aceitá-la, Herr Neigel.» E Neigel: «Ah, tu dás cabo de uma boa história com as tuas ideias estranhas. Vinte e quatro horas, realmente!» E Wasserman: «Serão vinte e quatro horas maravilhosas, juro!» Então, vira-se para mim e diz: « Nu , apanhei-o… o que tens, Shloïmele? A tua expressão mudou! Mas… 
O bebé avançava cuidadosamente sobre o tapete com os braços levantados e os olhos brilhantes de felicidade e triunfo. Quando chegou ao pé de Fried parou, olhou para ele com uma expressão radiosa: «Pa-pá», disse ao doutor em lágrimas, «Pa-pá».