AO LEITOR! 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
1. Nas páginas seguintes, encontrará o leitor uma tentativa única no género para reunir numa enciclopédia a maioria dos acontecimentos da vida de um homem, bem como o seu funcionamento psicossomático, as relações com o que o rodeia, os seus desejos, paixões, sonhos, etc. Estes aspetos, normalmente «refratários» à análise, acabaram por revelar a sua outra face, desconhecida, e por se submeter incondicionalmente às exigências objetivas de uma investigação séria, ao serem introduzidos no quadro rigoroso e seguro de uma classificação aparentemente arbitrária. Talvez seja precisamente essa arbitrariedade – i. e., a classificação por ordem alfabética – que transformou essas figuras evasivas e ambíguas num material de estudo cómodo e eficaz, e permitiu pôr em evidência a simplicidade dos mecanismos de base que movem todos os membros da espécie humana. 
2. Assim, as páginas seguintes darão ao leitor a narrativa – tão completa quanto possível – da vida de Kazik, herói da história de Anshel Wasserman, tal como foi contada ao Obersturmbannführer Neigel num campo de extermínio nazi situado em território polaco, em 1943. 
3. Nem sempre foi possível separar totalmente os acontecimentos da vida de Kazik das circunstâncias em que foram contados, e daí que o leitor possa achar que Neigel, Wasserman, bem como certos elementos da sua biografia, deixaram marcas aqui ou ali nas páginas deste volume. O leitor é naturalmente livre de prescindir da sua leitura. 
4. A fim de preservar a autenticidade das personagens que influenciaram a vida do objeto desta investigação (Kazik), serão reproduzidos os seus monólogos e fragmentos de conversa. Este processo põe obviamente em causa a objetividade académica do empreendimento no seu todo, tornando-o mais «popular», o que de momento é provavelmente inevitável. Envidaremos todos os esforços para corrigir isto nas edições ulteriores da enciclopédia. 
5. No sentido de evitar, tanto quanto possível, a tensão literária, e impedir que a atenção seja desviada do essencial, serão suprimidas todas as informações supérfluas suscetíveis de criar essa tensão, essa ilusão desnecessária de que na raiz das coisas existe, por assim dizer, uma finalidade, para a qual a «vida» supostamente corre. Em consequência, informamos desde já o leitor que Kazik morreu às 18h27, vinte e uma horas e vinte e sete minutos após ter sido trazido ao jardim zoológico, recém-nascido. Tinha sessenta e quatro anos – de acordo com a sua cronologia específica, quando se suicidou. E óbvio que o facto de Kazik ter vivido uma vida inteira num espaço de tempo tão curto, justifica e motiva este modesto empreendimento científico, oferecendo uma ocasião única de redigir uma enciclopédia sobre a vida de um só homem, do nascimento à morte. 
6. À luz do que foi dito no parágrafo 5, o leitor é livre de ler as entradas da enciclopédia segundo a ordem que mais lhe convier, de passar adiante ou de voltar atrás; queremos, todavia, agradecer antecipadamente o leitor disciplinado que seguir a via real e segura da ordem alfabética hebraica. 
7. O profundo sentido de responsabilidade perante os factos levou a redação da enciclopédia a incluir aqui algumas entradas que espelham as opiniões de Anshel Wasserman. Noutras, é possível detetar os vestígios de uma luta tenaz entre a redação e Wasserman, até uma das partes vencer e impor o seu ponto de vista. Desnecessário será dizer que a inclusão dessas passagens não significa minimamente que a redação reconheça os factos, ou que subscreva as ditas opiniões. O leitor sensato julgará por si. 
Para concluir, algumas observações pessoais: 
A redação está consciente de que a ideia que está na base da enciclopédia poderá dissuadir alguns leitores. A redação conhece bem esses descontentes, esses heréticos para quem nada é sagrado! 
Por exemplo – tenho de vos contar esta coisa que quase me pôs louco! A primeira vez que falei a Ayala da minha ideia, sabem o que ela fez? Riu. A sério, desatou a rir nas minhas barbas. Bom, ao princípio fiquei magoado, mas depois percebi o que se estava a passar: Ayala continuava a rir, a rir, mas era sem prazer, com uma expressão concentrada, e talvez até um pouco assustada. Estava ali à minha frente a rir, por espírito de contradição, como se tivesse feito uma jura. O seu riso era estranho, quase assustador, a ondular e a esvoaçar como um bando de pássaros coloridos e alegres, como as ondas do mar, como… Ah! Compreendi logo que tinha de pôr um termo àquilo tudo, imediatamente e para sempre, pois o engano não tem limites, e com uma voz fria e dura disse: 
EN-CI-CLO-PÉ-DIA! E então aconteceu: Ayala calou-se. Durante um instante os seus olhos ainda cintilaram de fúria, logo substituída pelo espanto. Recuou, extinguiu-se, desintegrou-se como se lhe tivesse caído em cima um raio mortal, em suma, precisamente o que acontecera à tia de Bruno, Retycja, junto da caixa de correio da Praça da Trindade. Desapareceu sem deixar rasto. A vitória da redação era completa.