A caixa de chocolates
“The Chocolate Box” foi publicado pela primeira vez como “The Clue of the Chocolate Box” em The Sketch em 23 de maio de 1923.
Era uma noite de tempestade. Do lado de fora, o vento uivava, terrível, enquanto a chuva castigava as vidraças em rajadas violentas.
Poirot e eu sentávamos virados para a lareira, com as pernas esticadas para o calor agradável do fogo. Entre nós, havia uma mesinha. Do meu lado, fumegava uma caneca de toddy.[1] Do lado de Poirot, um chocolate quente, forte e encorpado, que eu não beberia nem que me dessem cem libras! Ele tomava aquela mistura repugnante numa xícara rosa de porcelana, suspirando de satisfação a cada gole.
– Quelle belle vie! – ele murmurou.
– Sim, bela e generosa – concordei. – Aqui estou eu, com o meu empreguinho de sempre! E você, aproveitando a fama!
– Oh, mon ami! – protestou Poirot.
– Mas está certo. O seu sucesso é merecido. Quando penso em todos os casos que você solucionou, é impossível não ficar admirado. Você sabe o que significa fracassar?
– Só um idiota não saberia.
– Falo sério. Você já fracassou alguma vez?
– Inúmeras vezes, meu amigo! O que vai se fazer? La bonne chance... nem sempre é possível que ela esteja do nosso lado. Já aconteceu de pedirem a minha ajuda tarde demais. Ou de outra pessoa, que trabalhava no mesmo caso, descobrir a solução antes de mim. Duas vezes tive problemas de saúde que literalmente me derrubaram, quando eu estava a ponto de resolver um caso. É preciso estar preparado tanto para o sucesso quanto para o fracasso.
– Não é a isso que me refiro – eu disse. – Quero saber é se você já deixou de resolver um caso por ter cometido um erro.
– Ah, entendi! Você quer saber se eu já me enganei completamente, se já fiz papel de bobo, é isso? Uma vez... – um sorriso maroto passou pelos lábios de Poirot. – Uma vez eu errei feio.
Ele se endireitou subitamente na cadeira.
– Veja bem, meu amigo. Sei que você tem tomado nota de todos os meus sucessos. Você deve agora acrescentar outra história à sua coleção, a história de um fracasso!
Poirot inclinou-se e colocou mais lenha no fogo. Então, depois de limpar cuidadosamente as mãos na flanela que ficava dependurada num prego ao lado da lareira, voltou a sentar-se e começou a história.
– Aconteceu na Bélgica, anos atrás. Foi na época da luta terrível entre a Igreja e o governo na França. O sr. Paul Déroulard era um eminente deputado francês. Corria o boato de que ele seria nomeado ministro. Ele era um dos membros mais radicais do partido anticatólico, e é certo que, se ascendesse ao poder, teria de enfrentar uma violenta oposição. Era um homem peculiar. Embora não bebesse nem fumasse, nem por isso tinha hábitos de monge. Sabe, Hastings, c’était des femmes... toujours des femmes!
“Anos antes ele tinha casado com uma jovem de Bruxelas, herdeira de uma grande fortuna. O dinheiro foi útil para a carreira dele, porque Paul Déroulard não vinha de uma família rica, apesar de ter à sua disposição um título de barão. O casal não teve filhos, e a esposa morreu dois anos mais tarde, depois de uma queda da escada. Entre as propriedades que ela lhe deixou havia uma casa na Avenue Louise, em Bruxelas.
“Foi nessa casa que a morte inesperada do deputado aconteceu. O evento coincidiu com a demissão do ministro que ele deveria substituir. Todos os jornais publicaram matérias extensas sobre a carreira de Paul Déroulard. A morte, que ocorreu subitamente numa noite depois do jantar, foi atribuída a um problema cardíaco.
“Na época, como você sabe, eu fazia parte da força de polícia da Bélgica. A morte de Paul Déroulard pouco me interessou. Sou um bon catholique e estava feliz por ele não ter assumido o ministério. Três dias depois, quando eu entrava de férias, recebi a visita de uma mulher em meu apartamento. O vestido e o chapéu de luto davam-lhe um ar pesado, mas era evidentemente muito jovem. Logo percebi que se tratava de uma jeune fille tout à fait comme il faut. ‘Monsieur Hercule Poirot?’, perguntou ela, num tom de voz baixo e melodioso. Confirmei com a cabeça. ‘Detetive da polícia?’ Mais uma vez concordei com um gesto. ‘Por favor, sente-se, mademoiselle.’ Ela aceitou a cadeira e ergueu o véu. Tinha um rosto bonito, apesar de descomposto pelo choro e assombrado por uma ansiedade cortante. ‘Monsieur’, disse ela, ‘sei que está entrando de férias, mas gostaria de contratar os seus serviços como detetive particular. Não quero envolver a polícia nesse assunto.’
“Balancei a cabeça numa negativa. ‘Não posso fazer o que a senhorita me pede. Mesmo de férias, continuo sendo da polícia.’ Ela se inclinou na minha direção. ‘Écoutez, monsieur. Tudo o que peço é que investigue o caso. O senhor tem a liberdade de contar à polícia o que descobrir. Se for mesmo verdade o que eu penso, vamos precisar ter ao nosso lado as engrenagens da lei.’ A declaração dela apresentava o caso sob uma nova ótica, e me dispus imediatamente a ajudá-la.
“As bochechas dela coraram um pouco. ‘Muito obrigada, monsieur. É a morte do sr. Paul Déroulard que quero que investigue.’ ‘Comment?’, perguntei eu, surpreso. ‘Monsieur, não tenho provas, só o meu instinto feminino, mas estou convencida, realmente convencida, de que o sr. Déroulard não sofreu uma morte natural!’ ‘Mas os médicos...’ ‘Médicos às vezes se enganam. Ele era muito forte, robusto. Ah, monsieur Poirot, eu preciso da sua ajuda!’ A pobre moça estava desesperada. Ela teria se ajoelhado a meus pés. Procurei acalmá-la como pude. ‘Está bem. Vou ajudá-la, mademoiselle. Tenho certeza de que seus medos são infundados, mas vamos investigar. Em primeiro lugar, gostaria que me descrevesse as pessoas que moram na casa.’ ‘Há os empregados, é claro. Jeannette, Félice e Denise, a cozinheira. Ela está lá há vários anos, as outras são moças simples, que vieram do interior. Além delas, François, que também é empregado antigo. A mãe do sr. Déroulard também morava com ele, além de mim. Me chamo Virginie Mesnard. Sou uma prima da falecida sra. Déroulard, esposa de Paul, e moro com a família há mais de três anos. Essas são as pessoas que residem na casa, mas há também dois hóspedes.’
“‘E quem são eles?’, perguntei. ‘O sr. de Saint Alard, um vizinho do sr. Déroulard na França. E também um amigo inglês, o sr. John Wilson.’ ‘E eles ainda estão lá, com vocês?’ ‘O sr. Wilson, sim. O sr. de Saint Alard partiu ontem.’ ‘E a senhora tem algum plano, mademoiselle Mesnard?’ ‘Daqui meia hora, o senhor vai até a casa, e já terei arranjado uma desculpa para justificar a sua presença. O melhor é eu dizer que o senhor é jornalista ou algo parecido. Digo que o senhor veio de Paris e que trouxe uma carta de apresentação do sr. de Saint Alard. Madame Déroulard tem uma saúde muito fraca, não vai querer saber de detalhes.’
“Com aquela desculpa engenhosa forjada pela jovem, fui recebido na casa. Depois de uma breve conversa com a mãe do falecido deputado, que era uma figura imponente e aristocrática, apesar da saúde visivelmente debilitada, fui liberado para fazer o meu trabalho. Eu não sei, meu amigo, se você percebe a dificuldade da minha tarefa. O deputado havia morrido há três dias. Caso ele tivesse sido assassinado, só uma hipótese seria possível: envenenamento! Eu não tivera acesso ao corpo, nem poderia examinar o instrumento através do qual o veneno teria sido administrado. Não havia pista, verdadeira ou falsa, que eu pudesse seguir. Seria um caso de envenenamento ou de morte natural? Eu teria de decidir por mim mesmo, sem nada no que me basear.
“Primeiro interroguei os empregados da casa e, com a ajuda deles, reconstituí o que havia acontecido naquela noite. Dei atenção especial à comida do jantar e ao modo como foi servida. O próprio Déroulard serviu-se da sopa de uma terrina. O prato seguinte foi costeleta, seguida de frango. Na sobremesa, salada de frutas. Tudo era posto sobre a mesa e as pessoas se serviam. O café foi trazido num bule. Seria impossível envenenar alguém sem envenenar os outros junto!
“Depois do jantar, madame Déroulard se retirou aos seus aposentos, e mademoiselle Virginie a acompanhou. Os três homens foram até o escritório do sr. Déroulard. Lá, eles conversaram por um tempo, até que, de repente, o deputado caiu no chão. O sr. de Saint Alard gritou a François que chamasse um médico. Ele tinha certeza de que se tratava de uma apoplexia. Mas quando o doutor chegou, já não havia o que fazer.
“O sr. John Wilson, a quem fui apresentado por mademoiselle Virginie, era um típico inglês de meia-idade, corpulento e um pouco barrigudo. O relato dele, narrado num francês britânico, não acrescentou muito ao que eu já sabia: ‘O rosto de Déroulard ficou muito vermelho e, quando vimos, ele já estava caído no chão.’ A história parecia clara e convincente. O meu próximo passo foi ir à cena da tragédia, o escritório, onde pedi que me deixassem sozinho. Até então, nada havia que pudesse corroborar a teoria de mademoiselle Mesnard. Eu considerava a ideia de ela estar fantasiando. A paixão que ela tinha por Déroulard impedia que ela aceitasse a morte dele como algo natural. Independente disso, revistei todo o escritório meticulosamente. Era possível, por exemplo, que uma seringa hipodérmica tivesse sido escondida na poltrona do morto de forma a injetar-lhe uma dose letal de veneno. A rápida picada não seria sequer percebida. Mas não havia sinais disso. Deixei-me cair na poltrona, sentindo-me derrotado.
“‘Vou abandonar o caso’, disse eu por fim, em voz alta. ‘Não há pistas! Nada de anormal!’ Nem bem eu pronunciei essas palavras e meus olhos se fixaram numa caixa de chocolates que estava em cima de uma mesa próxima. Meu coração deu um pulo. Talvez a caixa não tivesse relação com a morte de Déroulard, mas era estranho que estivesse ali. Levantei a tampa. Ela estava cheia, não tinha sido tocada, nenhum chocolate estava faltando. Isso tornava a presença dela no escritório ainda mais suspeita. A caixa tinha uma peculiaridade, Hastings. Ela era rosa, mas com a tampa azul. É comum amarrarem uma fita azul numa caixa rosa, ou vice-versa, mas naquele caso a tampa era de cor diferente. Não, decididamente, ça ne se voit jamais!
“Eu ainda não conseguia perceber a utilidade daquela descoberta para o caso, mas estava determinado a seguir investigando aquele fato fora do comum. Toquei a campainha para que François aparecesse e perguntei a ele se o falecido patrão gostava de doces. Um sorriso melancólico passou pelos seus lábios. ‘Ele adorava doces, monsieur. Havia sempre uma caixa de chocolates na casa. Apesar de que nem vinho ele bebia.’ ‘Mas essa caixa não foi sequer tocada...’, disse eu, erguendo a tampa para mostrar-lhe o conteúdo. ‘Sim, mas é uma caixa nova, comprada no dia da morte dele. Havia outra.’ ‘E essa outra foi consumida no dia da morte dele?’, perguntei calmamente. ‘Sim, monsieur. Na manhã seguinte, encontrei-a vazia e joguei no lixo.’
“Refleti por um momento, depois continuei. ‘O sr. Déroulard comia doces a qualquer hora do dia?’ ‘Normalmente depois do jantar, monsieur.’ As coisas começavam a fazer sentido para mim. ‘François’, disse eu, ‘posso confiar em você?’ ‘Sim, monsieur.’ ‘Bon! Fique sabendo, então, que sou da polícia. Você tem como encontrar a outra caixa?’ ‘Sem dúvida, monsieur. Ela está na lixeira.’ François partiu e retornou em poucos minutos com um objeto coberto de poeira. Era uma caixa exatamente igual àquela que eu tinha, exceto que a tampa dessa vez era rosa, e a caixa, azul. Agradeci a François, recomendei-lhe uma vez mais que fosse discreto e deixei a casa.
“Em seguida entrei em contato com o médico que tinha examinado o corpo do sr. Déroulard. Minha dificuldade com ele foi de outra ordem. O tempo todo durante a conversa ele se manteve protegido com o uso de um pedante jargão, mas isso não impediu que eu percebesse a sua insegurança sobre o caso. ‘Há muitos incidentes curiosos como esse’, observou ele. ‘Um acesso de raiva ou outra emoção violenta, depois do jantar, c’est entendu... O sangue sobe imediatamente à cabeça e pst! O estrago está feito.’ ‘Mas o sr. Déroulard não teve nenhum acesso de raiva.’ ‘Não? Que eu saiba ele estava no meio de uma terrível discussão com o sr. de Saint Alard!’ ‘O senhor tem certeza disso?’ ‘C’est évident!’ O doutor deu de ombros. ‘O sr. de Saint Alard é um católico dos mais fanáticos! A amizade deles estava sendo arruinada por essa disputa entre a Igreja e o Estado. Eles brigavam todos os dias. Aos olhos do sr. de Saint Alard, Déroulard era quase um anticristo!’
“Eu não sabia nada daquilo, e me deu o que pensar. ‘Outra coisa, doutor’, perguntei, ‘seria possível introduzir uma dose fatal de veneno em um chocolate?’ ‘Acredito que sim’, disse o médico pensativo. ‘Acido prússico, por exemplo, desde que se evitasse a evaporação. Como outras substâncias, em pequena quantidade, não seria sequer percebido durante a ingestão. Mas essa não me parece uma hipótese plausível... Um chocolate de morfina, um chocolate de estricnina?’ O médico fez uma careta. ‘Bem, sr. Poirot, uma mordida seria o suficiente! O desavisado desabaria antes mesmo de se dar conta.’
“Agradeci ao médico e fui embora. Consultei farmacêuticos, especialmente os que trabalhavam na vizinhança da Avenue Louise. Era uma vantagem eu ser da polícia. Eu conseguia as informações de que precisava sem grande dificuldade. Só havia um caso de substância venenosa entregue na casa. Um colírio de sulfato de atropina preparado para o uso de Madame Déroulard. Atropina é um veneno poderoso e por um momento fiquei eufórico, mas os sintomas do envenenamento por atropina são semelhantes aos de uma intoxicação alimentar e não condiziam com o caso em questão. Além disso, a receita era antiga. Madame Déroulard sofria de catarata em ambos os olhos havia anos.
“Eu estava saindo da farmácia, desestimulado, quando o farmacêutico me chamou de volta. ‘Un moment, monsieur Poirot. Lembro-me da moça que trouxe essa receita. Ela comentou que teria de pegar outra coisa com um farmacêutico inglês. Acho que é nesse endereço...’ Fui até o local indicado por ele. Valendo-me mais uma vez das minhas prerrogativas oficiais, consegui obter a informação que eu queria. No dia anterior à morte do sr. Déroulard, uma receita fora aviada para o sr. John Wilson. Nada de mais. Simples comprimidos de trinitrina. Perguntei ao farmacêutico se ele poderia me mostrar alguns. Ao vê-los, meu coração disparou. Eram feitos de chocolate! ‘São venenosos?’, perguntei. ‘Não, monsieur.’ ‘Que efeito eles têm?’ ‘Abaixam a pressão sanguínea. São recomendados para certos problemas cardíacos, angina pectoris, por exemplo. Alivia a pressão arterial. Em casos de arteriosclerose...’
“Eu o interrompi. ‘Ma foi! Essa lenga-lenga não está me ajudando. Me diga uma coisa... Esse remédio pode fazer o sangue subir à cabeça?’ ‘Certamente que sim.’ ‘E se eu ingerir dez... vinte dos seus pequenos comprimidos?’ ‘Eu não lhe recomendaria fazer isso...’, ponderou o farmacêutico, desconfiado. ‘Mas você disse que não são venenosos.’ ‘Muitas substâncias que não são ditas venenosas podem matar’, respondeu ele com a mesma cautela. Saí da farmácia exultante. As coisas estavam se encaminhando! Agora eu sabia que John Wilson tivera meios de cometer o crime. Mas e quanto ao motivo? Ele conhecia o sr. Déroulard apenas superficialmente. Tinha vindo à Bélgica a trabalho e pedira que o deputado o hospedasse. Aparentemente, a morte de Déroulard não lhe traria qualquer benefício. Além disso, recebi informações da Inglaterra confirmando que ele havia anos sofria de angina, doença cardíaca dolorosa. Isso explicava perfeitamente a encomenda dos comprimidos. Ainda assim, eu estava convencido de que alguém mexera nas caixas de chocolate. Deviam ter aberto primeiro a nova, por engano, depois a outra, e substituído o recheio dos últimos chocolates com o máximo possível de comprimidos de trinitrina. Os chocolates eram grandes. Vinte ou trinta comprimidos poderiam ter sido inseridos. Mas quem teria feito isso?
“Duas pessoas estavam hospedadas na casa. John Wilson tinha meios de cometer o crime. Saint Alard, o motivo. Ele era um fanático, e um fanático religioso, que em geral são os mais radicais. Teria ele se apossado da trinitrina de John Wilson? Mas tive outra ideia. Ah, você acha graça das minhas ideias, mon ami? Preste bem atenção. Por que o suprimento de Wilson teria acabado? Ele devia ter trazido uma boa quantidade do remédio da Inglaterra. Fui novamente até a casa na Avenue Louise. Wilson tinha saído, mas consegui falar com a moça que limpava o quarto dele, Félice. Perguntei a ela se era verdade que um frasco de remédio do sr. Wilson desaparecera do banheiro. Ela confirmou imediatamente a minha suposição. Era verdade. Mas, ao contrário do que pensava o inglês, não fora ela quem o tinha quebrado. Ela sequer tocara no frasco. A culpa devia ser de Jeannette, que sempre fuçava nas coisas quando estava desocupada.
“Fiz com que ela se acalmasse e depois fui embora. Eu tinha todas as informações de que precisava. Só me faltavam as provas. Sabia que não seria fácil obtê-las. Não bastava eu ter certeza de que Saint Alard roubara o frasco de trinitrina do armário do banheiro de John Wilson. Para convencer os outros, eu precisaria de evidências. E eu não tinha evidência alguma! Mas o principal é que eu sabia. Você se lembra de como para mim foi difícil resolver o caso Styles, Hastings? Naquela época eu também sabia, mas demorei para descobrir a evidência decisiva, a minha prova contra o assassino.
“Entrei novamente em contato com mademoiselle Mesnard. Ela se prontificou a me receber imediatamente. Pedi a ela o endereço do sr. de Saint Alard. Ela me olhou, constrangida. ‘Para quê, monsieur?’ ‘Mademoiselle, é muito importante.’ Ela hesitou. Estava confusa. ‘Não vejo no que ele pode ser útil. Assuntos mundanos não são do interesse dele. Ele vive no mundo da lua.’ ‘Talvez, mademoiselle. Mas ele era um velho amigo do sr. Déroulard. Ele pode me passar informações sobre a vida pregressa do falecido deputado, antigas rivalidades, casos amorosos.’ A moça ficou roxa e mordeu o lábio. ‘Como o senhor quiser... Mas creio que eu estava errada. Foi muito bom que o senhor se encarregasse do caso... Fiquei realmente muito preocupada, abalada na época. Mas agora percebo que não há mistério. Monsieur, por favor, deixe as coisas como estão.’ Olhei firme nos olhos dela. ‘Mademoiselle’, disse eu, ‘às vezes um cão tem dificuldade de encontrar um rastro, mas depois que o fareja ele não o abandona por nada nesse mundo! Pelo menos se ele for um bom cão. E eu, mademoiselle, Hercule Poirot, sou um ótimo cão!’
“Sem mais uma palavra, ela me virou as costas e deixou a sala. Minutos depois ela retornou com o endereço anotado em uma folha de papel. Saí da casa. François me esperava do lado de fora e olhou para mim ansioso. ‘Alguma novidade, monsieur?’ ‘Por enquanto nada, meu amigo.’ ‘Ah! Pobre monsieur Déroulard!’, ele suspirou. ‘Eu também pensava como ele. Não gosto de padres. É claro que não digo isso na casa. As mulheres são muito religiosas, o que talvez seja bom. Madame est très pieuse, et mademoiselle Virginie aussi.’ Mademoiselle Virginie? Seria ela très pieuse? Lembrei-me do rosto apaixonado, sujo de lágrimas, que eu vira no primeiro dia em que ela fora me procurar.
“Com o endereço do sr. de Saint Alard em mãos, não perdi mais tempo. Consegui me hospedar nos arredores do seu castelo nas Ardenas, mas precisei de alguns dias para descobrir um pretexto que me permitisse entrar na casa. Disfarcei-me, imagine você, de encanador! Em poucos minutos, dei um jeito de provocar também um pequeno vazamento de gás no quarto dele. Saí para buscar ferramentas, e tomei o cuidado de retornar no momento em que sabia que o terreno estaria livre para mim. O que eu procurava? Dificilmente, acharia algo. Ele não guardaria consigo nada que pudesse incriminá-lo. Mas quando descobri que o armário em cima da pia do banheiro estava trancado, não pude resistir à tentação de arrombá-lo. A fechadura não era complicada. Abri a porta e deparei-me com velhos frascos de remédio. Examinei um por um, com as mãos trêmulas. De repente, deixei escapar um grito. Imagine que eu tinha em minhas mãos um vidrinho com um rótulo escrito em inglês. Comprimidos de trinitrina. Tomar um quando necessário. Sr. John Wilson.
“Procurei me controlar, fechei o armário, guardei o vidrinho no bolso e continuei a consertar o vazamento de gás! As coisas tinham de ser feitas passo a passo. Deixei o castelo e peguei um trem de volta assim que possível. Cheguei a Bruxelas tarde da noite. Eu estava escrevendo um relatório para apresentar ao chefe de polícia naquela manhã, quando me entregaram um bilhete. Era da velha madame Déroulard, e pedia que eu fosse até a casa na Avenue Louise sem demora.
“François abriu a porta para mim. ‘A baronesa está esperando pelo senhor.’ Ele levou-me até os aposentos dela. Ela estava sentada numa cadeira e parecia agitada. Não havia sinal de mademoiselle Virginie. ‘Sr. Poirot’, disse a velha senhora, ‘acabo de descobrir que o senhor não é o que dizia ser. O senhor é da polícia.’ ‘É verdade, madame.’ ‘O senhor veio aqui para investigar as circunstâncias da morte do meu filho?’ ‘Exatamente, madame’, foi o que respondi. ‘Agradeceria se o senhor me contasse o que descobriu.’ Hesitei por um momento. ‘Primeiro gostaria de saber como a senhora soube de tudo.’ ‘Por alguém que não está mais entre nós.’ A seriedade com que ela disse aquelas palavras chocantes arrepiou-me. Fiquei sem saber o que responder. ‘É por isso que estou lhe pedindo para contar-me o que descobriu’, continuou ela. ‘Madame, descobri que seu filho foi assassinado.’ ‘Assassinado?’ ‘Sim, assassinado.’ ‘E por quem, o senhor sabe?’ ‘Sim, madame.’ ‘Por quem, então?’ ‘Pelo sr. de Saint Alard.’ ‘Não pode ser. O sr. de Saint Alard seria incapaz de um crime desses.’ ‘Mas eu posso provar.’ ‘Peço uma vez mais que me conte tudo.’
“Obedeci e relatei a ela todos os meus passos até a descoberta da verdade. Ela me escutou atentamente. No final, balançou a cabeça. ‘Sim, sim, é tudo como o senhor diz, exceto por um detalhe. Não foi o sr. de Saint Alard quem matou meu filho. Fui eu mesma, a mãe dele.’ Arregalei os olhos para ela. Ela continuava a balançar a cabeça calmamente. ‘Foi bom eu tê-lo chamado. Foi a providência divina que fez Virginie me contar, antes de partir para o convento, o que ela tinha feito. Escute, sr. Poirot! Meu filho era um homem mau. Ele perseguia a Igreja. Levava uma vida de pecados. Arrastava consigo outras almas. E isso não é tudo. Quando saí do meu quarto, nesta casa, certa manhã, vi minha nora parada no topo das escadas. Ela lia uma carta. Vi meu filho esgueirar-se por trás dela. Um rápido empurrão. Minha nora caiu e bateu de cabeça nos degraus de mármore. Quando foram levantá-la, estava morta. Meu filho era um assassino, e apenas eu, sua mãe, sabia disso.’
“Ela fechou os olhos por um momento. ‘O senhor não pode imaginar a minha agonia, o meu desespero. O que eu podia fazer? Denunciá-lo à polícia? Eu não era capaz de fazer isso. Era o meu dever, mas eu não tinha coragem. E depois, será que acreditariam em mim? Faz tempo que meus olhos já não funcionam direito. Diriam que eu me enganara. Fiquei quieta. Mas não tive paz de espírito. Era como se eu também fosse uma assassina. Meu filho herdou a herança da mulher e teve um grande êxito profissional graças a sua impiedade e prepotência. Ele estava a ponto de ser nomeado ministro. A perseguição que ele fazia à igreja seria redobrada. A bela Virginie, pobre criança, estava fascinada por ele, apesar de sua inclinação natural para a religião. Déroulard tinha um poder estranho e terrível sobre as mulheres. Vi o que estava prestes a acontecer. Eu não tinha como impedir. Ele não iria casar com ela. E havia chegado o momento em que ela não conseguiria mais resistir.’
“‘Foi então que vi com clareza o que eu devia fazer’, continuou ela. ‘Ele era meu filho. Eu tinha lhe dado a vida. Eu era responsável por ele. Ele tinha matado uma mulher e iria destruir a alma de outra! Fui até o quarto do sr. Wilson e peguei o frasco de comprimidos. Ele uma vez comentara brincando que havia o suficiente para matar um homem! Fui até o escritório e abri a caixa de chocolates que sempre ficava na mesa. Eu abri a caixa nova por engano, mas a outra também estava lá. Sobrara nela apenas um chocolate. Isso simplificava as coisas. Só meu filho e Virginie comem chocolate. Eu a manteria junto de mim aquela noite. As coisas aconteceram conforme eu planejara.’ Ela fez uma pausa, fechando os olhos por um momento. Depois os abriu e disse: ‘Sr. Poirot, estou em suas mãos. Não tenho muitos dias de vida. Quero responder pelos meus atos diante de Deus. Será necessário que eu responda por eles também na terra?’ Hesitei por um momento. ‘Mas e o frasco vazio, madame?, disse eu, para ganhar tempo. ‘Como ele foi parar nas mãos do sr. de Saint Alard?’
“‘Quando ele veio se despedir de mim’, explicou ela, ‘eu dei um jeito de colocar o frasco no bolso dele. Eu não sabia como me livrar daquilo. Minha saúde é tão precária que preciso de ajuda para me locomover. Se o frasco vazio fosse encontrado no meu quarto, geraria suspeitas. O senhor compreende?’, perguntou ela, endireitando-se na cadeira e olhando firmemente na minha direção. ‘Meu objetivo não era incriminar o sr. de Saint Alard! Nunca imaginei que algo assim pudesse acontecer. Imaginei que um criado fosse encontrar o frasco vazio no bolso do casaco dele e depois jogar fora.’ Movi a cabeça, concordando com ela. ‘Eu compreendo, madame.’ ‘E qual é a sua decisão, monsieur?’ Ela perguntou aquilo em alto e bom-tom, erguendo a cabeça com grande dignidade. Levantei-me. ‘Madame, quero desejar-lhe um bom dia. Investiguei o crime e fracassei! O caso está encerrado.’”
Poirot ficou em silêncio por um momento, depois disse, numa voz calma e pausada:
– Ela morreu uma semana depois. Mademoiselle Virginie completou o noviciado e professou os votos perpétuos. E esse é o final da história, meu amigo. Devo admitir que não me orgulho do papel que fiz nela.
– Mas isso não chega a ser um fracasso! – protestei. – As circunstâncias eram mesmo complicadas. O que é que você poderia fazer?
– Ah, sacré, mon ami! – exclamou Poirot, subitamente animado. – Será que você não vê? Agi como um completo idiota! Foi como se meu cérebro deixasse de funcionar. A chave para a solução do caso estava em minhas mãos e eu não vi.
– Que chave?
– A caixa de chocolates! Você não percebe? Só uma pessoa com problemas de visão se enganaria daquela forma. Eu sabia que madame Déroulard sofria de catarata. Ela usava colírio de atropina. Ela era a única pessoa na casa que poderia ter trocado a tampa das caixas sem se dar conta. A caixa de chocolates foi a primeira pista que encontrei e ainda assim não fui capaz, no final, de perceber o seu verdadeiro significado!
– Também cometi erros de psicologia. Se o sr. de Saint Alard fosse o criminoso, ele jamais guardaria consigo o frasco. Encontrá-lo no armário dele era a prova da sua inocência. Mademoiselle Virginie já tinha me dito que ele vivia no mundo da lua. Esse foi realmente um caso em que fiz papel de bobo! É primeira vez que conto essa história para alguém. Ela me constrange. Uma velha senhora comete um crime, de uma forma tão simples e engenhosa, e eu, Hercule Poirot, faço papel de bobo! Sapristi! Tenho vergonha só de lembrar. Esqueça essa história. Ou melhor, guarde-a bem na memória, e se algum dia você desconfiar que me tornei presunçoso...
Tive de conter um sorriso.
– Eh bien, meu amigo, se um dia isso acontecer, por mais improvável que seja, você vai sussurrar no meu ouvido: “caixa de chocolates”. Combinado?
– Combinado!
– Mas de qualquer forma valeu pela experiência. Até mesmo eu, o detetive mais perspicaz da Europa, posso me enganar...
– Caixa de chocolates – murmurei eu, gentilmente.
– Pardon, mon ami?
Ao dizer aquilo, Poirot se inclinou na minha direção com uma expressão tão inocente, que imediatamente me compadeci. Eu também podia aprender com meus erros, mesmo não sendo o detetive mais perspicaz da Europa, e Poirot era quem mais me ajudava nesse sentido, pela maneira implacável como costumava me criticar.
– Não foi nada – menti, e acendi outro cachimbo, sorrindo para mim mesmo.
[1] Bebida feita de destilados, especialmente uísque, com água quente, açúcar e, em geral, suco de limão. (N.T.)