24

A manhã chegou com o típico arrependimento por ter dormido pouco. Arrastando-se do sofá, Chandler saiu antes que alguém em casa acordasse.

Ao entrar na esquadra, viu Jim sentado na receção, parecendo desajeitado como sempre ali à frente, um dedo a bater com força no teclado. Enquanto Chandler acenava com a cabeça, dando-lhe os bons-dias, Jim apontou para o gabinete das traseiras. Banhado pela luz fluorescente estava Mitch, de cabeça baixa e a prestar pouca atenção à sua chegada.

Chandler aproximou-se. Duvidava que Mitch o informasse do que acontecera durante a noite, mas tinha o dever de perguntar. Ao chegar mais perto, o que parecia ser um estudo profundo dos dossiês à sua frente era, de facto, Mitch a falar baixinho ao iPhone. Chandler ficou ao lado da porta, esperando ouvir pormenores do caso.

— Vai indo — disse Mitch, antes de fazer uma pausa. Chandler percebeu que, em vez de ditar, ele estava a conversar. — Não, ainda não os vi, porque haveria de ver? Estou aqui para trabalhar.

A consciência de Chandler disse-lhe para se afastar da porta, mas quem estava do outro lado da linha fazia Mitch passar um mau bocado, e isso era bom de mais para deixar passar.

— Não… sim, não me importo com crianças já criadas.

Uma declaração estranha. Mitch devia ter pensado o mesmo, olhando para cima depois de dizer aquilo e vendo Chandler à espreita do lado de fora da porta. Pela primeira vez desde que voltara, Mitch pareceu nervoso, com os membros trémulos, lembrando o adolescente que Chandler recordava. Aquele com alguma empatia e compaixão.

Houve um silvo audível e insistente do outro lado da linha, o interlocutor ainda a falar. Esperou que Mitch reconhecesse a sua presença e regressasse à chamada, mas ele não fez nem uma coisa nem outra, imobilizado, o grunhido eletrónico a ficar mais alto.

— Falamos depois — resmungou ele por fim, e desligou. Com o telefone pousado, a autoridade regressou rapidamente. — Sim?

— Bom dia — disse Chandler.

— Ai é? — retorquiu Mitch com uma carranca, esfregando o rosto, enfatizando o facto de ter passado a noite em claro.

— Encontraram alguma coisa ontem à noite no local?

— Dê uma olhadela.

Era um pedaço de papel como os que Chandler vira a flutuar entre as cinzas, mas aquela secção parecia estar particularmente bem preservada, contendo o que lhe pareceu uma lista de palavras rabiscadas à mão, intitulada «nomeadas no princípio».

— Encontrámos isso no local do crime — disse Mitch, afirmando o óbvio. — Estamos a tentar descobrir se é uma lista das pessoas que ele matou.

— Estão todas listadas como desaparecidas?

O sorriso de Mitch esmoreceu momentaneamente.

— Algumas. Estamos a verificar.

— Quantas?

— É cedo.

— Então pode ser uma lista de qualquer coisa. — Chandler começava a habituar-se a apagar incêndios.

— Só ainda não encontrámos a ligação, sargento. As potenciais vítimas são de diferentes partes do país.

— Devia ter-me chamado — declarou Chandler.

A resposta foi imediata.

— Agora sabe qual é a sensação.

— Pensei que não queríamos ser mesquinhos.

— Não queremos, mas você precisa de passar mais tempo com a sua família.

— Como é que isso é da sua conta?

Mitch fechou os olhos.

— Parece que passa a maior parte do tempo aqui a tomar conta deste grupo.

— São um bom grupo.

Mitch franziu a testa.

— Pode haver esperança para o Luka, mas a Tanya é muito velha, o Jim é muito fraco e o Nick… Bem, não para de falar, como se tivesse de deitar cá para fora tudo o que tem na cabeça.

— Ele dará um bom agente.

— Talvez, se se calasse e deixasse o cérebro pensar.

Com isso Mitch enfiou o telemóvel no bolso e virou-se para o portátil.

— Então, o que vai acontecer hoje? — perguntou Chandler.

— Vou falar da descoberta da lista aos nossos dois suspeitos. Ver se conseguimos descobrir alguma coisa. Alguém provocou aquele incêndio de propósito. Encontrámos uma botija de gás de campismo com um fio ligado a uma bateria agora destruída. Deliberado e premeditado, não particularmente inteligente, mas com certeza eficaz.

Chandler assistiu da sala de gravação enquanto Mitch lia a lista a cada suspeito. Nomes, idades, locais de nascimento das três pessoas encontradas na base de dados de pessoas desaparecidas. Aquilo não provocou a menor reação em ambos. Em seguida, tentou descrições, mas mais uma vez… nada. A cada não reação Mitch cavava mais fundo, divulgando nomes de pais e irmãos, entes queridos, brandindo o anzol para fazê-los compreender o que tinham feito. Invadiu-lhes o espaço, inclinando-se para tão perto que Chandler receou que o atacassem, mas sempre que se levantava para se juntar a Mitch na sala de interrogatórios, Mitch recuava, quase como se brincasse com Chandler e não com o suspeito.

Apesar das táticas de pressão, Mitch saiu de mãos a abanar, os dois suspeitos a manterem as suas histórias, declarando a sua inocência. Nenhum deles ouvira falar daquelas pessoas e apenas queria ser libertado.

Depois de passar uma hora com cada homem, Mitch saiu furioso, a frustração gravada no rosto.

— Nada de novo? — perguntou Chandler enquanto Tanya começava a desligar o equipamento. Tudo o que lhes restava era rever as provas, ir até à cabana ou localizar uma testemunha que pudesse colocar Heath ou Gabriel no local de um desaparecimento.

— Achas que ele está a roubá-los? — perguntou Tanya, quando saíram da sala.

Chandler virou-se para ela.

— O que queres dizer?

— Rapta-os, tortura-os para lhe revelarem informações pessoais e depois limpa-lhes as contas?

— Nada do que vimos aponta para um motivo financeiro. É óbvio que nenhum dos dois tem acesso a grandes meios, dada a forma como estavam vestidos.

— Então, se não é dinheiro, o que é? Vingança? Sede de sangue?

— Talvez apenas mera luxúria — sugeriu Chandler. — Um jogo sexual que deu para o torto?

A andar pelo escritório como se estivesse à procura de uma discussão, Mitch atacou Chandler imediatamente.

— Não há provas de que uma coisa assim tenha acontecido. Também não encontrámos implementos ou dispositivos dessa natureza nos destroços.

— Nada além do pau que tem enfiado — respondeu Chandler.

Um silêncio abateu-se sobre a esquadra.

Mitch quebrou-o o silêncio, voltando-se para o gabinete.

— O que temos aqui é uma parceria — anunciou —, ou uma antiga parceria. Cada um está a tentar incriminar o outro.

— Já considerei isso — interrompeu Chandler. — Não há nada que os ligue…

— Para além da cena do crime e das histórias iguais? — perguntou Mitch. — Não, houve uma parceria e houve uma zanga. Isso deu lugar a um desentendimento e cada um culpou o outro. Explica por que motivo as suas histórias são tão semelhantes.

— Não os vejo a trabalhar juntos. Têm medo de… — começou Chandler, mas Mitch já se afastara e estava a falar com um elemento da sua equipa, MacKenzie, um jovem que parecia mal ter idade para fazer a barba. Ou talvez tivesse sido intimidado o suficiente pelo chefe para voltar a ser infantil. Mitch mandou-o organizar uma conferência de imprensa com os abutres lá fora.

O que Chandler estivera prestes a dizer já lhe ocorrera há algum tempo, mas a conversa com Tanya trouxera a recordação à tona. Se Gabriel e Heath estivessem de facto a trabalhar juntos como uma dupla de assassinos e depois se tivessem desentendido, cada um teria uma história diferente de como chegara à floresta. Mitch podia julgar-se esperto, mas estava errado. Era impelido pela história e não pelas provas. Um deles, e apenas um deles, era a verdadeira vítima e o assassino estava a aproveitar-se da sua história. Não havia outra explicação.