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Os pneus roçaram a berma quando parou diante de casa e saiu. Gabriel declarara que a religião fizera parte da sua educação. Até comentara que a única coisa que todos tinham em comum quando nasciam era a necessidade dos pais e de serem consolados por alguma forma de religião. E que ambos lhe tinham falhado.

Dirigindo-se à parte de trás da casa, Chandler entrou pela porta sempre destrancada e foi direito à estante no canto entre a cozinha e a sala. A capa vermelha devia ter-se destacado entre os bestsellers que comprara em segunda mão e nunca lera, mas não parecia estar ali.

Em seguida, experimentou no quarto de Sarah. Viu-o na mesa de cabeceira rodeado por uma parafernália de apetrechos para o telemóvel: capas, protetores de ecrã e cabos de auriculares. Capa vermelha. Capa dura. Para alguns, a última leitura.

Sem saber por onde começar, abriu na página cinquenta e cinco. O número surgira nos depoimentos de Gabriel e Heath. A página falava da separação das águas do mar Vermelho. Os seguidores famintos no deserto. Pão a cair do céu.

Isso significava alguma coisa? Ser capaz de fazer o mar abrir-se? Sugeria querer o derradeiro controlo? Matar assim tantas pessoas poderia criar esse tipo de ilusão. E quanto ao pão a cair do céu? Passar fome no deserto? Estivera Gabriel a liderar seguidores lá em cima? A tentar convertê-los a uma religião ou a um culto que ele inventara? Matara-os quando resistiram? Ou ter passado fome lá em cima enlouquecera-o? Não houvera sinal de canibalismo nas vítimas, mesmo na última, cuja carne estava mais intacta, mas era uma possibilidade. Ainda assim, não passava de especulação, nada que o aproximasse mais da verdade.

Vendo os números dos parágrafos na margem da página, foi avançando à procura de parágrafos 55.

Encontrou apenas dois. O primeiro era um salmo. Um lamento por estar cercado de traidores e inimigos. Os inimigos não eram nomeados especificamente, mas podia ser prova uma paranoia desenfreada. No entanto, Gabriel nunca parecera paranoico, antes demasiado calculista.

O outro era Isaías 55: um convite aos sedentos. Falava da graça e do poder de Deus e terminava com a transformação da vida. Havia uma transformação básica em que Chandler conseguia pensar: a transformação da vida em morte. Fora isso que Gabriel quisera dizer? Transformar, levar aquelas pessoas do seu inferno na terra para junto de Deus? Era possível, mas era um grande salto e ainda muito vago. O parágrafo terminava com um poderoso grupo de palavras: «Um sinal eterno que jamais perecerá.» Seria uma declaração? Que Gabriel duraria para sempre? A notoriedade de um assassino em série? Destinado a ser discutido e estudado nos anos vindouros? A possibilidade de viver para sempre?

Entrando na cozinha, Chandler examinou os apontamentos sobre o caso em cima da mesa à procura de inspiração. Embora não houvesse nada que pudesse ser usado em tribunal, continuava convencido de que a Bíblia tinha algo que ver com tudo aquilo. Um daqueles parágrafos continha a chave, ambos eram demasiado portentosos para serem coincidência. Pensando que lhe poderia ocorrer se mergulhasse nos pormenores, Chandler reviu as causas da morte; os nomes dos suspeitos; o resumo das suas vidas; um inventário dos objetos encontrados na cabana e o que fora recuperado: sangue, cabelo, roupa e características distintivas. Reviu os depoimentos de Gabriel e de Heath, a lista de nomes, a nota que declarava «Eles foram nomeados no princípio». Continuou sem ver qualquer explicação ou ligação.

Se Chandler estava a chegar a algum lado, tudo isso desapareceu quando uma sombra passou pela janela. A maçaneta da porta da frente rodou com cautela, parando após alguns centímetros, a porta trancada. Alguém tentava entrar em sua casa.

Gabriel voltara.

Indo para a cozinha, Chandler correu até à porta das traseiras.

Saindo, fechou-a sem barulho. Ouviu Gabriel aproximar-se. Sem tempo para fazer qualquer outra coisa, lançou-se para o outro lado do caminho e encostou-se à parede de tijolo do barracão, o lugar perfeito para observar… e, se necessário, atacar.

Ouviu os passos rápidos no caminho irregular. Gabriel encontraria a porta aberta, mas Chandler não o deixaria entrar. Assim que chegasse o momento, saltaria e forçá-lo-ia a cair.

Tirou a arma do coldre. Não queria usá-la, mas tinha de partir do princípio de que Gabriel estava armado. Apenas como último recurso, lembrou a si mesmo.

Uma sombra dirigiu-se para a porta das traseiras. Chandler contraiu-se, pronto a atacar.

A forma escura foi banhada pela da luz do alpendre.

— Teri?

O choque na voz dele assustou-a e ela saltou para a frente, fazendo ricochete na porta de rede e quase caindo nos seus braços. Recuperando o equilíbrio, virou-se para ele. Tinham passado quase três anos, mas ela ainda possuía aquela beleza que o forçava a parar, a sua pele morena com um belo tom de caramelo, os dois sinais escuros e redondos nas faces a acentuarem a sua beleza. O rosto de Teri estava como ele o recordava, uma cerejeira na primavera. Um rosto que era espetacular em plena floração, mas que permanecia suscetível a qualquer mudança repentina no clima. Pela sua expressão, era início da primavera, um dia nublado que podia vir a ser soalheiro ou chuvoso.

— O que estás a fazer na porra dos arbustos? — perguntou. A idade não tinha moderado a sua linguagem.

— O que estás tu a fazer aqui? — retorquiu ele. — Quase te dei um tiro.

Embora ela só tivesse de um metro e sessenta e cinco, a sua voz encheu o quintal, insistente.

— O Camry ficou sem gasolina. Tive de andar uns dois quilómetros. Tentei ligar… — Fez uma pausa. Chandler deduziu que ela tentara entrar em contacto com Mitch e não conseguira. — A polícia mandou-me parar algumas vezes no caminho. Como se eu parecesse um assassino em série! — exclamou com um sorriso.

Fez menção de entrar.

— Quero ver as crianças.

— Não estão aqui. Estão com os meus pais.

— O quê? Estás a dizer que há um assassino em série à solta e nem estás a cuidar deles? Foi por causa deste tipo de merdas que te deixei. Por tentares salvar os outros e sacrificares a tua família.

— Não preciso disso agora. As crianças estão em segurança.

Hão de estar.

— Deixa-os em paz, Teri.

— Não. Fiquei à margem durante demasiado tempo. Vou levar-te a tribunal pela Sarah e pelo Jasper se não mos entregares.

— Eles não são reféns, Teri e isto não é uma negociação. Não podes forçá-los.

— Não, não é uma negociação. É uma decisão deles. Mas isto… — disse ela, fazendo um gesto a abarcar o local — é deste tipo de merda que quero afastá-los.

— Este tipo de merda não acontece regularmente.

— Deixá-los com os teus pais? — Teri sorriu.

— Não — disse Chandler, abanando a cabeça —, ter um… um suspeito de homicídio à solta na povoação.

— Mas ainda assim ouvi dizer que estão sempre com o Pete e a maluca da Caroline.

Chandler ignorou o insulto.

— É melhor que não lhes tenha acontecido alguma coisa porque me distraíste aqui.

— Se alguma coisa acontecer será porque tu deixaste fugir o assassino.

Chandler olhou para ela. Aquela informação falsa só podia ter vindo do namorado. Era de esperar que Mitch o traísse.

— A vantagem de um contacto na polícia — continuou ela, exibindo de novo o sorriso e tocando no nariz que sempre fora demasiado grande para o rosto.

— Ele pode ficar contigo — disse Chandler passando por ela e entrando em casa. Só queria arrumar os seus papéis e levá-los para casa dos pais.

Enquanto enfiava o caderno e outras folhas rabiscadas numa mochila, ela percorreu a casa.

— Isto está um bocado desarrumado. As crianças vão sentir-se melhor com dois pais, não achas? Eu e o Mitch.

Chandler não respondeu. Tinha preocupações maiores. Meteu as coisas no porta-bagagens, e Teri foi para o lado do passageiro. Chandler manteve a porta trancada.

— O que estás a fazer? — perguntou ele.

— Vou contigo.

— Isto é um assunto da polícia. Podes ir a pé, não é longe.

Chandler sentiu um prazer infantil ao dizer aquilo.

— Não disseste que havia um assassino à solta? — retorquiu ela, afastando-se da porta, parecendo vulnerável e sozinha.

Chandler sentiu a sua fúria aumentar. Ela apanhara-o novamente. Não podia deixar a mãe dos seus filhos no meio da rua com Gabriel algures por ali. Destrancando a porta, abriu-a.

— Entra. Mas não abras a boca.

Teri não prometeu nada e sentou-se.

Enquanto ele rumava à casa dos pais, ela falou: sobre o quanto aquela terra de merda não tinha mudado, levantando as mãos zangada e frustrada por ter de ali estar, um maneirismo primitivo, instintivo para se fazer parecer maior do que era, os olhos verdes a brilhar, dentes à mostra.

Ele largou-a em casa dos pais, ambos os lados afrontados com aquela reviravolta. Como sempre, Teri não conseguiu controlar o volume da voz, acordando as crianças, que correram para os seus braços. Chandler ouviu Teri prometer que os protegeria. Quando Jasper perguntou de quê, ela respondeu que do monstro de cócegas e perseguiu-o pela cozinha. Os pais de Chandler olharam para ele à espera de uma explicação, o pai não se esforçando por esconder a arma. Chandler limitou-se a dizer que tinha de se ir embora.