Desde a adolescência, manifestei forte vocação para as Ciências Exatas, particularmente para a Física e a Matemática. Aos 15 anos, já tinha lido algumas biografias de grandes físicos, como Einstein, Newton e Galileo, que foram meus primeiros heróis, e já havia estudado também alguns livros de divulgação sobre a Teoria da Relatividade de Einstein, cientista cuja vida e obra sempre me exerceram profundo fascínio. Desde a mais tenra infância, ouvia também com encantamento meu pai falar sobre um certo filósofo judeu de origem portuguesa, de nome Baruch Spinoza, ou Espinosa (como preferem escrever os portugueses e espanhóis), que achava que Deus e a natureza eram a mesma coisa. E se Deus é a própria natureza em ato por que não estudá-la a fundo? Assim, não me foi difícil optar por fazer o vestibular para Física. Em 1967, já estava matriculado no Bacharelado de Física da PUC do Rio de Janeiro. Concluí o curso em 1970 e em ato contínuo inscrevi-me no Mestrado de Física Nuclear da mesma Instituição, tendo concluído a tese de mestrado, em 1974. Em 1975, prestei concurso público para professor Assistente na UFRJ, para a cadeira de Eletricidade e Magnetismo. Por volta desta época, participava de inúmeros congressos de Física importantes. Publiquei também alguns artigos em periódicos considerados do gênero “ciência dura”.
Eu era até então um exemplo de um “físico bem comportado,” e nada me demoveria de tornar-me um físico no sentido clássico do termo: propor modelos matemáticos que reproduzissem, com boa precisão, os resultados experimentais, publicados em vastas tabelas. Em 1977, fui convidado, pelo Prof. Sérgio Guerreiro, antigo colega da PUC, para dar um curso de Teoria da Relatividade no Instituto de Física da UFBA, tendo como alunos várias pessoas que hoje se destacam no meio acadêmico da UFBA. Em 1978, fui contratado pelo antigo Centec, hoje Cefet, para ajudar a implantar a estrutura departamental e, em 1980, de volta à UFRJ, iniciei meu doutorado em Física molecular, concluindo os créditos e boa parte da tese cujo título provisório era: “O efeito esteira nos potenciais iônicos bi-atômicos“. O “físico sério e bem comportado” estava em franca atividade.
No entanto, depois que voltei da Bahia, percebi que a minha vida jamais seria a mesma, pois meus interesses haviam mudado drasticamente. Comecei a interessar-me por Filosofia e Música, além de que me casei com uma baiana que me convenceu a mudar definitivamente para Salvador, e assim, de “físico sério e bem comportado,” passei a ser considerado pelos meus colegas como uma “alma inquieta” ou até mesmo como “sujeito irrequieto”. Em 1982, transferi-me definitivamente para o Instituto de Física da UFBA lecionando a partir de então várias disciplinas do currículo de graduação de Física, mas a minha mente já estava sinalizada para outras motivações. A busca das certezas da Física não me satisfazia mais, preferindo a minha alma inquietar-se com as lacunas e carências da especulação filosófica, bem como com as subjetividades da Música.
Como primeiro sinal de minha mudança, em 1984, para espanto de meus amigos mais próximos, e de meus velhos pais, abandonei no meio a referida tese de doutorado em Física molecular, matriculando-me, em 1984, no curso de Composição e Regência da Escola de Música UFBA, tendo sido aluno de grandes compositores como Ernst Widmer e Lindembergue Cardoso, chegando a compor algumas peças eruditas como trios e quartetos. Por volta de 1986, dediquei-me à critica musical iniciando um período de 12 anos como crítico de música erudita no Caderno Cultural do jornal A Tarde, onde permaneci até 1998, tendo publicado centenas de artigos de crítica de espetáculos e análise musical.
Em um segundo momento de minha nova vida, a partir de 1988, reiniciei meus estudos de Filosofia e História da Ciência, começados na adolescência. Em 1990, numa época em que no Brasil poucos físicos se interessavam por História ou Filosofia, criei, no Instituto de Física da UFBA, juntamente com o Prof. Benedito Pepe, os Seminários de Ensino, História e Filosofia da Física, que evoluíram para o que hoje é denominado de Programa de Mestrado em Ensino, História e Filosofia da Ciência.
A partir de 1998, resolvi revisitar meus ídolos da adolescência, tendo-me dedicado ao estudo exaustivo da filosofia de Baruch Spinoza e à suposta influência que o filósofo judeu exerceu sobre a Física moderna, em particular sobre o maior físico do séc. XX: Albert Einstein. Lembro-me bem que desde a infância no Rio, eu já sentia, em relação a Spinoza, uma espécie de veneração somente dedicada aos grandes sábios, e que foi certamente, como já mencionei, herdada de meu pai que sempre me repetia: Deus sive natura (Deus, ou seja, a natureza). Ao invés de átomos, elétrons ou forças nucleares, questões centrais da Filosofia como a vontade, o livre-arbítrio, a necessidade e contingência na natureza passaram a ser objetos de minha investigação, procurando sempre articulá-los com as idéias da Física, principalmente às de realismo, determi-nismo e indeterminismo que habitam a Teoria da Relatividade e a Física Quântica. É nesta mais recente área de interesse que acredito poder contribuir melhor para o alargamento dos horizontes da Física, inicialmente desnudando-a de suas linearidades artificiais para depois vesti-la com suas inúmeras articulações com a Filosofia, a História, a Música e a Educação, revisitando o esquecido quadrivium renascentista.
Como exemplo dessa proposta filosófico-pedagógica, focalizarei meu olhar sobre aquilo que considero um dos mais pungentes exemplos de transmissão, afinidade, e até certo ponto, analogia de idéias existentes entre dois sistemas de pensamento separados, não só por contextos muito distintos, como por séculos. Relatarei, com certa dose de intuição, que a influência que Spinoza exerceu sobre Einstein atravessou séculos de história, perpassando por contextos políticos e religiosos muito distintos, resistindo até a mudanças radicais de paradigmas científicos. Enquanto Spinoza viveu em pleno século do determinismo racionalista, sendo um precursor do Iluminismo, Einstein teve que enfrentar um vendaval indeterminista, provocado pela recém-criada Teoria Quântica, mantendo, até o final de sua vida, contra quase todos os homens de ciência de sua época, uma renitente postura causal-determinista que pareceu, a muitos, anacrônica.
No entanto, tais afinidades serão muito mais abduzidas do que deduzidas ou induzidas factualmente. Trabalharei muito mais como uma espécie de Sherlock Holmes e, munido de uma lente de aumento, ao invés de inexistentes provas cabais, buscarei cuidadosamente indícios, pistas, pegadas, coletando impressões digitais metafísicas que se escondem por detrás, e nas entrelinhas dos dois sistemas de pensamento. Como acontece nas tramas policiais, serão nos vestígios, deixados nas cinzas dos cachimbos que Spinoza e Einstein costumavam fumar, que buscarei as conexões, confirmando as suspeitas de cumplicidade entre nossos dois protagonistas.
Como professor de Física há mais de 30 anos, acredito também que a identificação de elementos metafísicos, comuns em Spinoza e Einstein, será útil para um melhor entendimento da Física como um todo, e em particular das teorias da Relatividade e Quântica, geralmente ensinadas nas salas de aula como construções internas da Física, que se bastam e esgotam em si mesmas.
No final, desta feita entregue à especulação fenomenológica, questionarei o fato de que muitos sistemas filosóficos contemporâneos não conseguiram romper com o geocentrismo pré-galileano nem com a ideia do éter pré-einsteiniano, fazendo do homem o centro ontológico do mundo a partir do qual se conhecem e escrevem as leis da natureza. Contrariamente, como refletirei ao longo do texto, Spinoza e Einstein percebem o homem como ente finito do universo que pensa junto com a natureza-universo, sendo um elemento da physis, ou segundo o jargão spinozista, um modo (de ser) finito da substância.
Percebo em Spinoza, um cosmocentrismo em que uma Realidade-Substância única, ilimitada manifesta-se, ora na forma dos corpos físicos extensos, e ora na forma de pensamentos, os chamados modos ou acidentes da substância do qual o homem é apenas um desses entes possíveis. Já em Einstein, a natureza também ganha o estatuto do absoluto, sendo as suas leis universais, eternas e invariantes, tendo o físico descartado o éter, último cenário imóvel e privilegiado do universo em relação ao qual as leis da Física poderiam ser escritas de maneira única e singular, propondo ao invés uma equivalência de todos os sistemas de referência. Fechando o círculo das abduções, acredito então ser a descentralidade dos sistemas de referência de Einstein e da Natura de Spinoza, um dos pontos comuns de tangência entre os dois sistemas de pensamento. Sobre esse ponto, onde os dois tecidos se dobram, formando uma malha, inextricavelmente entrelaçada, focalizarei a lente de aumento do detetive persistente em busca dos detalhes quase imperceptíveis a olhos desatentos.
Creio que esse texto pode muito bem ser entendido pela citação abaixo, de N. Russell Hanson:
Toda observação é uma experiência de ver, compreender X, como sendo Y (ver um X como sendo isto ou aquilo). Observar é, pois, fazer uma experiência de codificação ou de decodificação1.
Farei assim do pensamento científico de Einstein o meu X central, vendo-o, no entanto, não como um X fechado em si mesmo, mas desdobrando-se num Y, que para mim é a Ética de Spinoza. Depois da apresentação da metafísica de Spinoza, proponho-me a decodificar as idéias filosóficas de Einstein, ora traduzindo seus signos para a linguagem da Ética, e ora, nesta última, encontrando elementos relativísticos, em algumas de suas definições e proposições.
A questão central deste trabalho será, então, caracterizar os limites desta poderosa articulação entre X e Y para, desta forma, ampliar os horizontes perceptivos do processo da criação e transmissão do saber científico, e com isso, reeducar cientificamente.
Esta reeducação não visa ensinar a Física com vistas a objetivos apenas técnicos, mas muito mais, entendê-la como forma de disposição atenta do homem frente ao cosmos, ao universo e à natureza da qual não pode ser posto à parte, como um ser transcendente. É, pois fundamental e fundamentante neste texto, a necessidade de entender a Ciência não como um X tecnocientífico nutrido pela factualidade positivista, mas também como um Y filosófico germinado na intuição criativa e temperado com as finas essências de uma metafísica que vige no Amor Intelectualis Dei e na perenidade das leis da natureza que podem ser entendidas sub speciae aeternitatis.
Com esses objetivos que poderão ser considerados, por algumas mentes pragmáticas, como difusos, e por outras, como demasiadamente extensos, ou até mesmo pretensiosos, resolvi escrever este livro como uma autobiografia científica no estilo “como vejo o mundo”. Gostaria de agradecer ao Prof. Dante Galeffi, que de pronto entendeu as motivações autobiográficas desse texto, o que possibilitou-nos um diálogo ressonante e fecundo que a meu ver transborda em muito os limites estritamente científicos, irrigando áreas de saberes multidisciplinares, como a Ciência, Filosofia e a educação científica.
Acredito assim que o conflito entre o “físico bem comportado,” da PUC e UFRJ, e a “alma inquieta” que de mim se apossou depois de minha vinda à Bahia, apesar do longo tempo decorrido, está chegando ao fim. Acredito poder contribuir para o alargamento dos horizontes do entendimento e ensino da Física, disciplina esta à qual tenho me dedicado ao longo de minha vida acadêmica e que será vista aqui não como uma representação matemática feita por um sujeito externo à natureza, mas como um estado corpóreo e mental de um homem imerso dentro dela.
Em suma, a “alma inquieta” e o “físico bem comportado” que pareciam digladiar-se num conflito existencial sem fim, no interior de meu espírito, poderão celebrar, enfim, a tensa paz dialética de contrários, resgatando a essência de meu pensamento.
Salvador, 16 de setembro de 2008,
O Autor