No âmbito da literatura espinosana o presente livro é um contributo singular, abrindo caminhos até agora inexplorados, que certamente agradariam ao autor da Ética. Outra coisa não se esperaria de Roberto Ponczek, um homem de interesses variados e de múltiplas paixões. Físico por formação é também filósofo, músico e pedagogo, estabelecendo habilmente pontes nestes diversos domínios. O olhar com que contempla o real constrói sínteses e concilia divergências. É o olhar de um mestre, de alguém que entende o ensino/aprendizagem como caminho para descobertas deslumbrantes e não como atividade mecânica de quem recebe informação e é obrigado a devolvê-la. Há um enfoque pedagógico que constitui o fio de Ariadne orientador do percurso desta obra, perspectiva explicitamente assumida e anunciada no próprio título: Deus ou seja a Natureza: Spinoza e os novos paradigmas da Física.
A tónica dominante é diálógica, estabelecendo-se um inter-câmbio entre a Filosofia e a Ciência, nomeadamente entre a Filosofia e a Física. Logo na introdução, Ponczek lamenta o equívoco que leva ao divórcio entre físicos e filósofos, geralmente de costas voltadas uns para os outros, dizendo os primeiros que a Filosofia é pura perda de tempo e queixando-se os segundos da linguagem hermética da Física. Na seqüência de Kuhn, que já se insurgira com o modo an-histórico (ou mesmo anti-histórico) como habitualmente se ensinam as diferentes ciências, o autor propõe uma pedagogia e uma dialéctica das mesmas que não as considera como “algo fechado, neutro, prático, linear, objectivo e desprovido de historicidade“ (ver Introdução). É seu objectivo mostrar como o pensamento científico se desenvolve em espiral, inserido num contexto histórico, metafísico, ideológico e mesmo religioso e artístico, do qual seria artificial descolá-lo.
Numa clara oposição ao positivismo comteano, Ponczek defende a proximidade da Ciência e da Filosofia, provando que certas questões científicas só serão compreendidas pelo recurso à metafísica. Em diálogo com esta tese primeira é possível destacar outras subteses que Roberto Ponczek aborda com igual entusiasmo e que constituem as traves mestras do seu trabalho. São elas: demonstrar que é possível ensinar/compreender a Física, tendo como pano de fundo a filosofia de Espinosa; tornar visível a influência deste filósofo seiscentista na Teoria da Relatividade de Einstein; reflectir sobre a separação da Filosofia e da Ciência depois da implantação e aceitação de um sujeito humano transcendental; propor uma pedagogia geral e especial (no caso da Física) orientada por trilhos espinosanos.
O itinerário que o autor nos propõe procura estabelecer passadiços entre duas épocas (o séc. XVII e o séc. XX) e entre dois filósofos (Espinosa e Einstein). Um projecto tanto mais difícil quanto sabemos tratar-se de dois pensadores inseridos em contextos marcados por ideologias científicas fortemente contrastantes – o racionalismo determinista do qual Espinosa é representativo e o indeterminismo provocado pela Teoria Quântica, contestado por Einstein. Sendo Einstein uma das estrelas deste livro, é preocupação de Ponczek mostrar como nas suas teorias há uma constante presença do filósofo luso-judeu, alguém que o autor da Teoria da Relatividade profundamente admirou. Distanciando-se das linhas dominantes da Filosofia contemporânea, marcada por querelas lógico-lingüísticas, Ponczek retoma a trama metafísica que tão grata foi a Espinosa, aproximando a descentração antropológica que este pensador defendeu e as teses einsteinianas nas quais o homem é pensado juntamente com a Natureza. Assim a Teoria da Relatividade deixa de ser uma construção interna da Física e passa a entender-se de um modo articulado com a imanência espinosana.
Há que re-ensinar a ensinar para que se possa re-aprender a aprender. Ora o novo modelo pedagógico que nos é proposto para uma didáctica da Física passa pela recuperação de Espinosa, um pensador que os alunos de ciências praticamente desconhecem, desconhecimento tanto mais grave quanto este filósofo representa uma excepção à “altivez do sujeito“ (capítulo IX), atitude que Ponczek contesta, mas que reconhece ser dominante na História da Física.
A crítica ao modo como habitualmente se ensinam as diferentes disciplinas científicas é o primeiro degrau para uma proposta ambiciosa – motivar os alunos para a leitura e o estudo das obras originais dos grandes clássicos da Física, levando-os a interessar-se por teses filosóficas sobre a Natureza. Se durante muitos séculos a Ciência e a Filosofia foram irmãs siamesas, pois a grande maioria dos filósofos deu contributos relevantes ao campo científico, há que retomar a prática salutar de um cruzamento de olhares, trazendo-a para o domínio pedagógico, de molde a que o ensino das ciências deixe de ser asséptico, repetitivo e desinteressante como infelizmente tem sido hábito. É essa a proposta de Ponczek que, não se contentando em reactivar o diálogo entre Filosofia e Física, apela também para a Música. Por isso coloca em paralelo Bach, com a sua esplendorosa “música do sujeito“ e a revolução científica e filosófica ocorrida no século XVII, que coloca o homem no centro do Universo, tornando-se ele, e não a Terra, o ponto de referência de todas as coisas.
O autor critica o realismo ingénuo dominante nas comunidades científicas contemporâneas que nunca conseguiram abandonar o positivismo e as suas marcas. Para ele é evidente que fotões, electrões e mesões não constituem os fenómenos enquanto tal, colocando-se como entidades simbólicas, signos que nos facultam uma descrição coerente da realidade e nos permitem prever com eficácia. Por isso, combate a entificação de tais noções e defende para a Física uma pedagogia aberta, na qual Espinosa e Einstein são estrelas de primeira grandeza. É seu intuito “transpor as redomas de vidro em que o físico pós-kantiano se aprisionou“ (capítulo IX). E porque Espinosa sempre defendeu que o mundo e os homens comungam de uma mesma essência, ele é um dos interlocutores dominantes nesta proposta inovadora.
Em Espinosa, tal como em Einstein, o homem calculador que se coloca fora do mundo é substituído pelo homem ressonante que se torna “porta voz do lógos e mensageiro do ser“ (capítulo IX). Em ambos há uma sintonia do homem com o Universo, do qual o primeiro é expressão. Muito mais do que com a Física do seu tempo que entende o homem como “centro ontológico e cognitivo do universo“ a descentração espinosana está em convergência com o projecto de Einstein. De facto, ambos sustentam a primazia da Natureza sobre o homem e não deste sobre aquela. Um e outro defendem um panteísmo naturalista bem como uma causalidade determinística inerente à Natureza. Com uma distância de séculos, filósofo e cientista estão em consonância quanto ao conceito de causalidade, entendendo-a como condição ontológica do universo. Ambos recusam concepções que a consideram como algo empiricamente construído, à maneira de Hume, ou como uma categoria do espírito humano, seguindo a perspectiva de Kant.
Tal como Espinosa desenvolveu o seu sistema apoiando-se em definições iniciais, também Einstein partiu de “dois postulados universais e atemporais enunciados sem demonstração,” deduzindo a partir deles uma cadeia silogística que levou à desconstrução do espaço e do tempo absolutos (capítulo VI). No dizer de Ponczek: “as conseqüências da Relatividade ferem brutalmente o senso comum e, portanto não poderiam ser directamente obtidas da experiência sensorial, como defenderiam os empiristas clássicos“ (capítulo VI). É uma posição que se poderia transferir para Espinosa, calando as objecções de alguns dos seus leitores, nomeadamente dos que se insurgem quanto à arbitrariedade das definições iniciais da Ética.
Para além destas e doutras afinidades positivas que aproximam os dois pensadores judeus, há também discordâncias que os unem pois, como lembra Ponczek, aqueles que têm inimigos comuns amigos são. Tanto Espinosa como Einstein hostilizaram (e foram hostilizados) pela intelligentsia coeva, opondo às teorias dominantes visões desviantes, que as contestavam. Assim aconteceu com Espinosa que à crescente empiricização da Ciência opôs uma vertente metafísica, assente em essências intemporais. Assim aconteceu com Einstein que discordou da Teoria Quântica da Escola de Copenhaga, criticando o indeterminismo. Os dois negaram a contingência, quer ontológica quer antropológica. Os dois se demarcam de interpretações mecanicistas e reificantes do conceito de tempo, sendo a universalidade e a atemporalidade das leis da Natureza um dos tópicos do espinosismo que mais influenciou Einstein.
O livro de Ponczek desenrola-se em dez capítulos, precedidos de uma apresentação do autor e dos objectivos pretendidos. O primeiro capítulo dá-nos uma breve biografia de Espinosa, como seria de esperar por parte de quem considera importante o contexto e a história pessoal no que respeita à génese e compreensão das teorias. Não pretendendo fazer uma análise exaustiva do trabalho em causa, limitar-nos-emos a assinalar aspectos que nos pareceram particularmente interessantes, sublinhando alguns pontos polémicos e/ou interpretações originais. Deste modo, relevamos do capítulo II (“A filosofia de Spinoza e algumas lições pedagógicas”) uma curiosa interpretação dos atributos, entendidos como projecções da substância em diferentes planos, sendo os modos considerados como “duplas manifestações locais finitas de um ser ilimitado“ (capítulo II). É o olhar do cientista que, através dos conceitos de inércia e de força externa, aproxima a pequena física do autor da Ética e a grande mecânica de Newton (capítulo II.). De particular interesse para os alunos de Física – ou para quem pretende obter conhecimentos nesta matéria – é o capítulo V – “Reflexões históricas sobre a Teoria da Relatividade. Sugestões didáticas”. Nele Ponczek propõe-se fazer uma “história bem comportada da Teoria da Relatividade Especial e Geral“ integrando estas teses num contexto interdisciplinar amplo. As discordâncias de Einstein perante as teorias de Mach e de Heisenberg são-nos apresentadas como reforço da posição defendida pelo autor da Teoria da Relatividade, cujo objectivo é compreender a Natureza “tal como ela é e não como se nos apresenta aos sentidos“ (capítulo V). Nota-se um desejo marcado de contextualização das teorias físicas – neste caso as Teorias da Relatividade Geral e Especial – ligando-as, bem como as suas antecessoras, “às especulações filosóficas dos seus autores“ (capítulo V). De igual modo é nítida a vertente pedagógica, uma perspectiva que Ponczek nunca abandona e que resulta da sua longa experiência de ensino. Devido a ela aconselha os professores a nunca abandonarem o humor, por muito formais e científicas que sejam as teses que ensinam. É também interessante e esclarecedor o relato feito das críticas ideológicas a que foram sujeitas as teses de Einstein, sobretudo por parte de físicos alemães anti-semitas. Mais uma vez fica patente que o conhecimento científico não se desenvolve numa redoma e que há factores extrínsecos que são parte importante da sua génese.
Se o capítulo V é de cariz predominantemente histórico e científico, o capítulo VI – “Encontros metafísicos de Einstein com Spinoza” – tem uma vertente filosófica, embora não abandone a incidência pedagógica. O objectivo é sublinhar a convergência entre o programa de pesquisa científica de Einstein e a metafísica de Espinosa. Trata-se, pois de mostrar a professores e alunos de Física, as vantagens que terão se perceberem as Teorias da Relatividade (especial e geral) a partir do pensamento de Espinosa e não como uma “construção interna da física“ (capítulo VI).
A perspectiva filosófica e a presença de Espinosa continuam a fazer-se sentir no capítulo VII que se debruça sobre a essência, a existência e o princípio de incerteza. Inicia-se com ele um processo diferente – a exploração das afinidades negativas entre Einstein e Espinosa, ficando patentes as discordâncias do primeiro relativamente a Bohr, Born e Heisenberg. Tal como o filósofo judeu se opôs aos sistemas metafísicos coevos, também Einstein se insurgiu contra o indeterminismo e a contingência defendidas pela Escola de Copenhaga. A presença do autor da Ética continua a fazer-se sentir nas interpretações contemporâneas da Teoria Quântica e da Teoria da Relatividade, como é o caso das teses de Bohm. Estas são hipóteses que “devolvem ao mundo microscópico o determinismo tido como perdido“ (capítulo VII), dizendo-nos Ponczek que a teoria das variáveis ocultas representa a consumação dos sonhos de Espinosa e de Einstein no que respeita a um mundo ordenado, livre de contingências e de arbitrariedades.
Os capítulos IX e X integram a última parte da obra, nitidamente orientada para a pedagogia, propondo-se Ponczek corrigir as actuais deficiências do ensino/aprendizagem da Física, mediante o recurso a Espinosa. Trata-se de uma pedagogia filosofante, descentralizada e descentralizadora, “uma pedagogia sem sujeitos nem objetos“ (capítulo IX). Retomando a metáfora do martelo que o filósofo judeu usara no Tratado da Reforma do Entendimento, Ponczek propõe-nos uma pedagogia que contrarie a especialização estreita e acarinhe a visão interdisciplinar. Para ele, há que “pensar como a Natureza pensa“ (capítulo X). Ora o pensar faz-se ser através de nós mesmos, pois somos modos do Ser e, como tal, o conhecimento implica uma vibração comum do Ser com os seres bem como dos seres entre si. Pensa-se, como Espinosa nos propôs, “junto com e não sobre o Universo“ (capítulo X), estabelecendo-se uma cosmodinâmica no acto de pensar.
A preocupação pedagógica está patente no cuidado com que se expõem, de um modo claro e acessível aos leigos em Física, teorias tão complexas como a Relatividade Geral e Especial ou o princípio da incerteza. A mesma atenção é concedida aos leitores não filósofos, para os quais certas noções básicas como essência, existência, duração, substância, tempo, são apresentadas de um modo simples embora não simplista. A abstracção dos conceitos quer da Física quer da Filosofia é minorada pela apresentação da génese dos mesmos e pela sua inserção no contexto histórico e cultural em que surgiram, o que os torna mais acessíveis permitindo a sua integração nas referências significativas e conceptuais dos leitores. O uso constante de histórias e de metáforas é outro auxiliar determinante, conseguindo que um discurso em si mesmo difícil se torne familiar para a mente de quem estuda. Note-se que todas estas ajudas não prescindem de dois requisitos prévios, indispensáveis segundo Ponczek para todo o aprendiz de Física: que saiba cálculo e que domine o raciocínio matemático.
O capítulo X é o culminar das intenções do autor. Nele nos é proposta “uma pedagogia spinozista filosofante e pensante,” porque a Natureza em Espinosa não é pensada mas sim pensante. Ao formular as leis o homem é a Natureza em acto. Ele não cria as leis, antes as descobre, agindo e pensando em conformidade com a substância. Inspirado em Espinosa, Ponczek fala-nos da verdade como “um campo ressonante de forças,” um resultado da comparticipação do homem com a Natureza.
A pedagogia clássica encara o mestre como transmissor de conhecimentos a um aluno que os absorve. Mais perto de nós, começam-se a considerar factores psicológicos, atendendo-se às motivações e aos interesses do aprendiz. Ponczek vai mais longe, entendendo o termo conhecimento no seu sentido francês de “connaissance,” à letra “nascer com”. Por isso valoriza o renascimento que toda a aprendizagem verdadeira implica, renascimento que decorre da relação dialógica. Mestres e alunos compartilham de um mesmo saber que é trabalhado na sala de aula. Inspirado em Espinosa e Einstein o autor propõe aos professores que estabeleçam nas suas aulas uma relação descentralizada, dialógica, fruto da relação entre partes e todo. Mestres e aprendizes deverão compartilhar um mesmo saber. É um processo solidário que não prescinde de um percurso solitário, uma aprendizagem individual e exigente que se reforça com aquilo que experimentamos todos os dias. A inserção no quotidiano, no que este tem de aparentemente banal e comezinho, permite-nos perceber que somos partes, malhas ou elos de uma cadeia contínua. Ora é na resolução desses aparentemente pequenos e triviais problemas que aprendemos a compreender o mundo.
Diferentemente das questões que a Física tradicional impõe aos seus alunos, as propostas de Ponczek processam-se de dentro para fora, partem de vivências, não são artificialmente impostas. Para ele, o mestre espinosista é descentralizador, substituindo as certezas por dúvidas e obrigando a um pensamento solidário. O aluno aprenderá a estar atento aos fenómenos circundantes e a sua iniciação científica far-se-á através deles, dispensando o recurso a bibliografias extensas pois o excesso de livros pode ter efeitos nocivos. Ponczek contesta as bibliotecas de dimensões babilónicas, considerando-as como verdadeiros obstáculos para um conhecimento conseguido.
O autor termina com uma recolha de trechos de pessoas célebres que escreveram sobre Espinosa, mostrando como este as influenciou, motivou ou simplesmente encantou. É um convite a ulteriores leituras para as quais o presente livro nos foi preparando, um livro que lemos com muito agrado, que nos interpelou, motivou e levantou questões. Houve interpretações que nos intrigaram e/ou surpreenderam; outras houve das quais discordamos. No entanto, todas elas nos fizeram pensar ou mesmo rever posicionamentos. A abertura para novos rumos do pensamento espinosano é a melhor homenagem que podemos fazer a quem simultaneamente nos fez tomar consciência do modo como determinismo e liberdade convivem em cada homem. Como escreveu Ponczek: “É necessário fazer da finitude do homem o seu projecto e não a sua prisão“ (capítulo X). No presente livro há inúmeras pistas para um projecto libertador.
Lisboa, setembro de 2008
Profa. Maria Luisa Ribeiro Ferreira
Dep. de Filosofia – Fac. de Letras da Univ. de Lisboa –
Alameda da Universidade – Lisboa – Portugal