Introdução

Constatei pelo meu longo périplo por várias universidades, congressos, encontros, simpósios, tanto de Filosofia como de Física, que os filósofos desconhecem a Física na mesma proporção que os físicos desconhecem a Filosofia. Os filósofos alegam que a Física enveredou por técnicas e matemáticas muito especializadas tornando-se de difícil compreensão para quem não tiver um longo adestramento nos métodos matemáticos e experimentais utilizados. Já os físicos, ainda mais pragmáticos, alegam que a Filosofia pouca ou nenhuma utilidade para eles terá. Alguns mais radicais chegam a dizer de alto e bom tom que “a Filosofia é pura perda de tempo”. Tenho por objetivo maior mostrar que ambos estão equivocados. O mal-entendido e a falta de comunicação entre as duas comunidades dão-se principalmente pela forma pontual, a-histórica e antifilosófica como são ensinadas e divulgadas as ciências, e dentre estas a Física, em nossas escolas e universidades. Pretendo assim apresentá-la (notadamente a Teoria da Relatividade e a Teoria Quântica) de ângulos bastante distintos de como é normalmente apresentada nas nossas instituições de ensino e pesquisa. Acredito que a forma em que serão expostas as duas mais importantes teorias da Física moderna, desvelando as suas múltiplas articulações com a Filosofia, poderá ser útil não só a filósofos e físicos, mas também a um público culto interessado nas principais indagações da contemporaneidade. Sempre que possível, estarei buscando um justo equilíbrio de forças do pensamento científico e filosófico, visando o centro de gravidade dessas atividades do espírito humano.

Para sossego dos físicos mais ortodoxos, é, no entanto, importante sublinhar que a abordagem com a qual aqui será tratada a Física não pretende substituir os métodos tradicionais de operar os conceitos matemáticos, pois seria temerário supor que seu aprendizado possa ser feito sem um amplo e seguro domínio do ferramental matemático. Sabe-se perfeitamente o poder da matemática não só como a linguagem da Física, mas também como a grande metáfora da natureza, que através de um simples signo, ou uma relação entre eles, pode representar uma extensa narrativa dos fenômenos naturais. A conquista do quantitativo e da precisão adquiridos a partir da revolução científica do séc. XVII é irreversível, e só foi possível com a matematização dos fenômenos ocorrida a partir de Kepler e Galileo. O que pretendo é servir de harmonia e contraponto filosófico às construções matemáticas operacionais da Física que tanto assustam os não-iniciados, vislumbrando nesta ciência uma aproximação essencial com a Filosofia, a Educação e a cultura. No linguajar médico significaria propor, para a cura da pedagogia da Física, um tratamento alternativo sem remoção da medicação principal. O que me move a propor esse novo ângulo de visada sobre a Ciência, e sobre a Física, em particular, é, repito, a forma estanque e pontual com que ela é geralmente ensinada nas salas de aula de nossos estabelecimentos de ensino médio e superior. A Física apresentada nas academias parece bastar-se a si própria tal qual um castelo feudal isolado por profundos fossos que ocultam os vínculos com a história do pensamento filosófico ou da práxis cotidiana, repelindo filósofos e outros pensadores da cultura.

De fato, os textos, ementas, planos de cursos das disciplinas de Física, adotados e praticados nas salas de aulas das universidades brasileiras, desde o pós-guerra, são, em sua grande maioria, traduções e adaptações de textos de autores norte-americanos, apresentando a Física em complexas construções matemáticas fundadas em exaustivos programas experimentais. Segundo esses textos, foi inventada por Newton, reinventada por Einstein, tendo em Galileo uma espécie de coadjuvante esforçado, porém pouco eficiente. Kepler e Copérnico são agraciados com uns poucos parágrafos. Descartes, Kant ou Hume quase nunca são mencionados; e nosso filósofo homenageado, Spinoza, um ilustre desconhecido.

Esses textos e programas, tecnicamente corretos, porém, sob os pontos de vista histórico e filosófico, extremamente pobres, já formaram várias gerações de físicos, químicos, engenheiros, matemáticos e professores com inegável eficiência e pragmatismo. No entanto, pelo menos três reflexões muito preciosas se perderam neste processo de aprendizagem: a possibilidade da Física abrir-se às questões metafísicas, aparentemente tão distantes, mas que no passado lhe deram origem; buscar na Física, particularmente em algumas de suas teorias, elementos relevantes para alguns dos problemas mais básicos da teoria do conhecimento, como sua origem, a essência ou possibilidade; e finalmente restituir o sentido originário de tempo na história da criação científica, buscando sua imbricação com outras atividades do espírito.

De fato, a Ciência surge, dos livros, cursos e do discurso da maioria dos professores universitários, como flashes instantâneos que, em passes de mágica, nos induzem a crer que Newton, Einstein, Heisenberg ou Bohr, dentre outros, sem nenhum vínculo com os contextos históricos e filosóficos de suas épocas, tiraram de suas cartolas o conjunto de axiomas e leis com as quais sintetizaram a ciência de milênios. Este abracadabra faz surgir diante dos alunos, prontas e reluzentes, as relações F = ma, E = mc2 ou E = hν, antes mesmo que o raio de luz, que Einstein havia imaginado, toque o espelho! O objetivo é ensinar, assim, a Ciência como algo fechado, neutro, prático, linear, objetivo, desprovido de historicidade e conduzindo ora a um positivismo ingênuo ora a um empirismo radical. Não é prioritário saber como nascem e evoluem as ideias científicas, nem estabelecer vínculos e articulações entre elas, mas sim, como aplicá-las de sorte a produzirem efeitos práticos e imediatos. A corrida tecnológica e as frias leis de mercado nutrem esta pedagogia até os presentes dias. Portanto, não nos é revelado como são penosos, lentos e sinuosos os processos de evolução e aprendizado das ideias científicas, e muito menos como estas se relacionam com a totalidade das manifestações do espírito humano.

Procurarei assim mostrar como o pensamento científico pode caminhar em espirais de forma que ideias novas e revolucionárias podem conter, mesmo que inconscientemente, ideias religiosas, artísticas ou metafísicas. De fato, a história do pensamento registra muitos exemplos de entrelaçamento de atividades que hoje nos podem parecer como pertencentes a domínios completamente distintos, como a Ciência, a Filosofia, as Religiões, as Artes e a Cultura de uma forma geral.

Será a recriação de antigas ideias, ou a articulação, entre si, das diversas atividades culturais, uma mera coincidência? Ou será a estrutura do pensamento, muito mais complexa do que parece? Terá o homem a estranha capacidade de memorizar a origem de sua espécie repetindo ideias seculares? Certamente, o pensamento científico, e sua transmissão, evoluem de forma bem mais complexa de como é divulgado pela grande parte dos textos e currículos de Física, nos quais esta ciência aparece ensimesmada numa objetividade pontual produzida por lampejos isolados de gênios descomprometidos com a sociedade e a História, que se movem apenas pelas motivações internas de uma ciência pretensamente neutra.

Segundo T. Kuhn1, a tendência dos livros-textos, a que ele denomina de manuais, a tornar linear o desenvolvimento da Ciência, acaba escondendo o processo que está na raiz dos episódios mais significativos de desenvolvimento científico.

O ensino de Física, engenharias e das ciências em geral, na maioria das universidades brasileiras (e por indução não tenho receio de generalizar esta observação para universidades de outros países), limita-se assim à leitura, por parte dos estudantes, de livros-textos especialmente preparados para adestrá-los em problemas normais e corriqueiros das teorias aceitas, até aquele momento, como corretas representações da natureza. Em seguida, os estudantes são submetidos a uma série de longas e estafantes listas de exercícios que reduzem o aprendizado a uma operação de condicionamento de reflexos do tipo “tal problema tal fórmula”. Certa vez, quando estudavam juntas, ouvi minha filha Milena e suas colegas repetirem coisas tais como “povotó igual pivití“ ou “perua velha não rejeita tarado“. Perguntei-lhes o que significavam essas palavras bizarras, sendo informado, para meu espanto, que se tratava de fórmulas de Física… Como depois me confidenciaram, a primeira das expressões era uma forma de memorizarem a expressão Po Vo/To = Pi Vi/Ti, a chamada lei dos gases perfeitos, enquanto a segunda era um acróstico para PV= nRT, a lei de Clayperon! Muito mais relevante que memorizá-las é entender que as expressões matemáticas “falam” com o cientista ou tecnólogo a linguagem da natureza, assim como uma partitura ressoava, em silêncio, nos ouvidos de um músico surdo como Beethoven… Até a pós-graduação, e em muitos casos até a sua conclusão, é muito raro que os estudantes dos cursos científicos sejam incentivados por seus professores e orientadores a ler textos originais dos grandes pensadores (as chamadas fontes primárias) ou livros de História ou Filosofia da Ciência. O procedimento pedagógico comumente adotado, levado aos últimos estágios da formação de um cientista, faz com que este adquira um conhecimento parcial da ciência e passe a acreditar erroneamente que no passado a evolução do pensamento ocorreu de forma linear até chegar, sem traumas, às ideias e práticas científicas em vigor; e que no presente estas mesmas práticas sejam as únicas possíveis e imagináveis. Por outro lado, é muito comum também, as academias de ciência incutirem nos alunos um empirismo banal no qual as grandes descobertas científicas aparecem sempre precedidas por exaustivos programas de experimentação, como se a mente não fosse capaz de dar saltos que sintetizam vários saberes e a intuição não pudesse estabelecer relações entre os fatos passados ou futuros. Por exemplo, é comumente ensinado nas salas de aula que Einstein só pôde desenvolver a Teoria da Relatividade Restrita depois de tomar conhecimento da experiência de Michelson-Morley, o que ele jamais reconheceu.

Criam-se assim, no seio dessas academias, técnicos-cientistas altamente adestrados na resolução de problemas da ciência em vigor, mas que, por outro lado, sem a necessária visada multidisciplinar, em momentos de crise, serão pouco capazes de questionar criticamente uma ciência à qual se habituaram a perceber como intocável, além de que incapazes, se necessário, de buscar soluções heterodoxas. Para quê perder tempo lendo as obras originais de Copérnico, Kepler, Newton ou Einstein, se os textos as resumem de forma a tornarem-nas úteis para a prática científica? Para quê ler Aristóteles, Descartes, Spinoza ou Kant, se suas elucubrações filosóficas pouco têm de úteis para a resolução de problemas científicos atuais ou para a consolidação das teorias vigentes? O pragmatismo com que são treinados os físicos e professores de Física, isolando-os em pequenas comunidades pretensamente auto-suficientes, leva à falsa impressão de inacessibilidade que alunos, o público leigo, e até pensadores de outras áreas de saber, têm dessa ciência. A gestação deste livro pode assim situar-se nesse contexto onde paira a ideia central de que as Ciências “se bastariam a si próprias,” não carecendo de reflexões acerca de sua essência e de sua evolução histórica.

Seria necessário começar este livro questionando o seu próprio título e problema maior, perguntando em voz alta o porquê de buscar Spinoza na Física ou no seu ensino? Não haveria pensadores mais afins à Ciência, cujas reflexões permitiriam construir um elo natural entre a Filosofia e a Física, tornando essa travessia mais curta e menos tortuosa? Por que não buscar Leibniz, Descartes, Kant ou até mesmo Aristóteles na Física? Não teriam esses pensadores cruzado com desenvoltura as tênues fronteiras que separam a Filosofia das matemáticas, da lógica e da própria Física? Por que então falar-se em Spinoza, autor de uma ontologia aparentemente distante dessas zonas de convergência da Filosofia com a Ciência? A construção de uma longa ponte entre a metafísica de Spinoza e a Física terá então que buscar na técnica das engenharias a sua inspiração. Quando o rio é largo, e o vão a ser coberto é grande a ponto de desestabilizar a construção, deve-se buscar, à guisa de ponto de apoio, uma ilha fluvial intermediária. Farei do pensamento científico de Einstein o ponto central em que se apoiará a nossa longa estrutura de concreto que permitirá o trânsito de ideias entre uma ontologia do séc. XVII e a moderna Física do séc. XX.

Desta forma, buscando a ilha intermediária que nos servirá de apoio, focar-se-á o olhar sobre um notável leque de afinidades existentes entre dois sistemas de pensamento, ainda que representativos de épocas muito distintas da História. Enquanto Spinoza viveu em pleno século do racionalismo e dos primeiros sucessos do mecanicismo newtoniano, Einstein enfrentou uma crença generalizada no indeterminismo devida à interpretação probabilística da Teoria Quântica, feita pela Escola de Copenhague. Manteve, até o final de sua vida, contra grande parte da comunidade científica, uma postura causal-determinista que pareceu a muitos “uma anacrônica relíquia do séc. XIX”.

No entanto, essa inegável convergência de ideias, entre os dois pensadores, quase nunca — ousaria até dizer nunca — é revelada aos estudantes universitários de quaisquer cursos da chamada área científica, inclusive Física. Simplesmente os livros-texto omitem quaisquer articulações multidisci-plinares, mostrando sempre a evolução da Física como decorrente de uma dinâmica apenas interna. A Teoria da Relatividade é também apresentada como decorrente de seus postulados básicos e estes, por sua vez, introduzidos por um Einstein apenas movido por sua intuição relativa às contradições da Física na virada do séc. XIX para o séc. XX. Jamais são questionadas as grandes motivações filosóficas do autor da Teoria da Relatividade, antes e depois de tê-la criado.

Transgredindo as fronteiras da Física, outra questão nuclear desta investigação será discutida nos dois capítulos finais deste livro, caracterizando o fato de que muitos sistemas filosóficos contemporâneos não conseguiram romper com o antropocentrismo, fazendo do homem o referencial privilegiado, o centro epistemológico a partir do qual se escrevem as leis da natureza, como fenômenos que sobre ele se projetam. Até os presentes dias, predomina a revolução copernicana às avessas: um homem alçado à condição de sujeito transcendental decodifica um mundo amorfo e desprovido de relações próprias. Questionarei o fato de que a Filosofia pós-kantiana, à guisa de superar a metafísica, reduziu a Filosofia ora a uma epistemologia centrada nas categorias do entendimento humano, ora a uma análise da linguagem de cunho lógico formal. Vive-se ainda na Ciência a era do positivismo lógico-lingüístico e do neo-empirismo, que influenciam determinantemente o aprendizado das ciências, e em particular da Física. Na vertente contrária, Spinoza e Einstein percebem o homem como modo de ser do universo que pensa junto com — e não sobre — a natureza, sendo assim para eles o homem, elemento inextricável da physis, ou segundo o jargão spinoziano, um modo finito da infinita substância, ou seja, uma manifestação finita de Deus infinito.

Será visto, com o necessário cuidado, que Spinoza postula um cosmocentrismo em que uma realidade-substância única, ilimitada, manifesta-se ora na forma dos corpos físicos extensos, e ora na forma de ideias ou pensamentos, os chamados modos ou acidentes da substância da qual o homem é apenas uma manifestação possível, um modo de ser. Refletir-se-á com cuidado que Einstein, em 1905, elimina o último cenário imóvel e privilegiado do universo, sepultando a ideia de um éter em relação ao qual as leis da Física poderiam ser escritas de maneira única e singular, propondo, ao invés, uma democratização de todos os sistemas de referência nos quais as leis da natureza, estas sim universais, teriam a mesma forma. Spinoza cerca de três séculos antes já havia entendido que, se a natureza é uma única substância, suas leis devem ser escritas e entendidas da mesma forma em qualquer parte. Acredito ser essa ontologia da Unidade um importante traço comum entre os dois sistemas de pensamento, e sobre ele focalizarei o meu olhar.

A partir de então, a questão central deste texto direcionar-se-á no sentido de caracterizar os limites desta poderosa articulação para, desta forma, ampliar os horizontes perceptivos do processo de criação e transmissão do saber científico, e, com isso, educar cientificamente. Como desdobramento dessa proposta, apresentarei uma nova forma de entendimento da Teoria da Relatividade, não como uma construção interna da Física, mas fortemente articulada à imanência da metafísica spinoziana que, ao contrário de outras filosofias trascendentalistas, lhe é coerente. O que proponho não é ensinar a Ciência com vistas a objetivos estritamente tecnológicos, a ela externos, mas, reensiná-la como ressonância do homem frente ao cosmos, ao universo e à natureza do qual é uma manifestação.

Tomarei como ponto central da investigação, a obra de Spinoza, um pensador praticamente ignorado nos textos científicos de cunho didático, e tido geralmente como construtor de uma ontologia aparentemente distante da prática científica. Ainda que a influência que Baruch Spinoza (1632,1677) exerceu sobre Albert Einstein (1879,1955) seja discutida e aceita por uns poucos biógrafos e epistemólogos, jamais é levada ao conhecimento de alunos ou mesmo de pessoas leigas interessadas nas áreas científicas. Entre esses poucos especialistas, o que varia, sendo objeto de polêmica, é o grau atribuído, de intensidade, extensão e natureza, dessa influência. D'Espagnat2 percebe no espaço-tempo curvo da Teoria Geral da Relatividade uma forte analogia com o atributo extensão da substância, definido na Ética de Spinoza, e Kouznetzov3, indo além, percebe na busca de Einstein de um campo unificado, uma motivação filosófica para encontrar neste conceito a própria substância spinoziana. M. Paty, com quem mantive um proveitoso diálogo por ocasião de sua permanência na Bahia em 2001, critica ambos, vendo nessas comparações um livre exercício imaginativo, desprovido de uma contextualização histórica mais rigorosa. Questiona Paty que programas filosóficos construídos em épocas distantes, em contextos diferentes, não podem ser comparados de forma simplista. No entanto, no aeroporto, já sendo chamado para o embarque no vôo que o levaria de volta a Paris, ele abriu-me a possibilidade de se vislumbrarem as “afinidades” e os “encontros,” como prefere chamar, existentes entre a natura spinoziana e a visão do universo de Einstein. Seguindo a metodologia de Paty, embora transgredindo, com bem menos cautela, os limites sugeridos pelo epistemólogo francês, procurarei caracterizar os principais vetores de convergência entre os dois pensadores, a saber, a questão religiosa, a descentralização de modos (entes) e observadores privilegiados, a causalidade determinista, o realismo, o panteísmo naturalista e a espacialidade do tempo; pois creio que, sem correr os riscos apontados por Paty, dificilmente poder-se-á estabelecer uma unidade e coerência, ao longo da história do pensamento científico e filosófico. Julgo assim que na busca das afinidades entre as ideias centrais de sistemas filosóficos aparen-temente distintos, é possível encontrar-se a estrutura comum essencial do pensamento, como estado ressonante do homem com o mundo.

Utilizando como fontes primárias obras e citações de ambos os pensadores sobre essas grandes questões, tentarei estabelecer até que ponto o programa científico do grande físico foi explicitamente influenciado pela Filosofia spinoziana. Assim, quaisquer que sejam a ordem e a intensidade dessas influências e afinidades, cristaliza-se uma nova dimensão do enten-dimento em que as Ciências e a Filosofia são construídas em um contexto histórico comum que se caracteriza por múltiplas articulações e complexas imbricações. Essas questões, a meu ver, não devem ficar restritas ao âmbito de uns poucos estudiosos, mas devem ser levadas às salas de aula, aos seminários de nossas universidades e até ao conhecimento de um público não-profissionalizado, mas sensível às grandes questões culturais da contemporaneidade.

No capítulo I, por motivos que exporei, apresentar-se-á uma pequena biografia de Spinoza, contextualizada, religiosa e historicamente, com o objetivo de enfatizar as afinidades biográficas existente entre o filósofo e Einstein. Serão expostos os motivos pelos quais a filosofia de Spinoza entrou em rota de colisão com as principais religiões monoteístas e, em particular, com o judaísmo conservador dos marranos portugueses da Amsterdã do séc. XVII. Mostrarei como o pensamento de Spinoza abriu, a facadas, o caminho para o Iluminismo francês, para o Aufklärung germânico e para a secularização do judaísmo.

O capítulo II é uma introdução aos aspectos da filosofia de Spinoza mais diretamente ligados à Física, explicitando-se as posições deste autor, francamente contrárias ao acaso, ao livre-arbítrio ou à existência de um “eu pensante” central, e favoráveis às leis da natureza, não como gêneros de conhecimento humano, na interpretação de alguns, mas como modos infinitos que podem ser entendidos enquanto manifestações universais de uma substância infinita (campo unificado?). Este capítulo, por sua extensão, e por sua aparente distância da didática da Física, é o que provavelmente mais esforço demandará do leitor não-iniciado na filosofia spinoziana, mas, por outro lado, a sua leitura paciente possibilitar-lhe-á uma melhor compreensão dos capítulos finais deste trabalho.

Mostrarei a seguir, no capítulo III, que dois dos mais importantes princípios de conservação da natureza, o da energia e o do momemtum linear, tiveram provavelmente a sua origem nos mitos de criação do universo e estavam também presentes no arché dos filósofos pré-socráticos. A partir de Galileo, Descartes e Leibniz, estes princípios evoluem ao se expressarem na forma de leis matemáticas que representam a invariância e os aspectos de eternidade da natureza, implícitos nos axiomas da metafísica spinozista.

Em seguida, no capítulo IV, extrai-se um conceito físico de causalidade, caracterizando a sua evolução ao longo da História. Enfatizarei a transformação desse conceito na mecânica newtoniana, em que a força é uma causa externa cujo efeito não é o movimento, mas, sim, a sua mudança. Apresentarei a polêmica entre racionalistas e empiristas acerca da prioridade ou posteridade do conceito de causalidade, questionando a possibilidade de as leis da mecânica newtoniana poderem ser imediatamente estabelecidas pelos sentidos. Confrontar-se-á a tese kantiana de que a causalidade é uma categoria a priori do entendimento humano, em oposição à de Spinoza, que está associada a uma necessidade ontológica da natureza per se. Mostrarei, ao longo do texto, que Einstein adotou esta última conjectura. Questionarei também a postura radicalmente empirista que se apossou da prática científica, a partir do séc. XIX, e pela qual se acredita que só é possível fazer-se uma ciência confiável desde que derive diretamente da experimentação.

O capítulo V é uma tentativa de se fazer uma história bem comportada, e a mais fiel que me foi possível, das teorias da relatividade especial e geral, sem grandes concessões dadas à intuição. No final desse capítulo é que me permiti algumas pitadas de humor que possivelmente agradariam aos autores da Ética e da TR.

A partir do capítulo VI, através de citações de Einstein, confrontadas com proposições de Spinoza, procurarei evidenciar o encontro de ideias entre o físico e o filósofo, conjeturando que isso pode ter levado Einstein à sua conhecida posição contrária ao acaso e a favor de uma necessidade causal imanente a Deus e à Natureza. Mostrarei também no capítulo VI que a Teoria da Relatividade, obedecendo a um método geométrico euclidiano, é uma teoria estritamente causal na qual o espaço-tempo é o cenário para uma teia (web) de eventos conectados causalmente por sinais cuja velocidade c é o limite absoluto para a produção das transformações da matéria. Entenderei assim a causalidade, em Einstein e Spinoza, como uma condição ontológica de racionalidade do universo, e não apenas uma categoria do espírito humano. Deslumbra-se a possibilidade de um paralelismo entre uma filosofia desprovida do “eu” e uma Física desprovida de referenciais privilegiados. Ainda neste capítulo, o tempo einsteiniano será interpretado, como fazia Spinoza, enquanto uma comparação entre as durações da existência das coisas materiais causalmente interligadas ao observador corporificado (relógio) ao qual não se confere nenhum papel central. Argumentarei que o relógio einsteiniano não mede um tempo substancial e externo, mas sim marcha com seu tempo próprio, que a depender de seu movimento relativo poderá se dilatar. O sentido originário do tempo, como comparações de existências, será assim “dessubstancializado,” deixando também de ser considerado como uma intuição a priori de um sujeito transcendental. Explicita-se com isso o compromisso, dos dois pensadores, de construção de uma filosofia da natureza que vigora no homem ao invés de uma filosofia de um homem transcendente numa natureza que lhe é externa. Com as afinidades, convergências e articulações de ideias assim extraídas, sugerirei um entendimento da Teoria da Relatividade com um olhar não apenas nas aplicações de ordem prática, levando o aprendiz a um positivismo exacerbado e simplista, mas sobretudo dirigido a um tecido social, filosófico e científico unificado, que possa instigá-lo à reflexão profunda e a questionamentos críticos.

Denominarei de afinidades negativas entre Einstein e Spinoza, as discordâncias que Einstein tinha em relação a seus contemporâneos, motivado, como pretendo caracterizar, pela metafísica de Spinoza. A interpretação ontologicamente contingente e antirrealista da Teoria Quântica será considerada uma dessas afinidades, sendo esse tema específico discutido, com maiores detalhes, nos capítulos VII e VIII nos quais se exercitará uma reflexão de cunho metafísico sobre aquela que é considerada, juntamente com a Teoria da Relatividade, a mais importante teoria científica do séc. XX. Dedicarei o capítulo VII ao entendimento da Teoria Quântica sob um ponto de vista filosófico em que serão reintroduzidas nas esferas dessa ciência as distinções metafísicas entre essência e existência, propondo no formalismo quântico variáveis de essência e de existência, no sentido definido na Ética de Spinoza.

Nos capítulos VIII, IX e X, continuarei em busca dos elementos metafísicos comuns ao projeto científico de Einstein e à ontologia de Spinoza, refletindo sobre as tais “afinidades negativas,” ou seja, o que os une por discordância a outras interpretações da realidade, sendo a Teoria Quântica, mais propriamente a interpretação contingente dada à realidade física pela chamada Escola de Copenhague, o alvo mais visado pelas críticas einsteinianas. No capítulo VIII, abordarei especificamente o famoso paradoxo do gato de Schrödinger, à luz de uma crítica determinista de Einstein, que tem supostamente a sua gênese no necessitarismo de Spinoza. Refletir-se-á também sobre o papel da vontade no ato de observação e como o determinismo e o indeterminismo se enfrentam na História da Ciência, podendo ser considerados faces distintas de uma mesma moeda. Neste momento, adotarei a máxima que reza que “aqueles que têm inimigos comuns são amigos”. Embora Einstein tivesse sido um áspero crítico da indeterminação introduzida pela interpretação probabilística dada ao formalismo ondulatório da Teoria Quântica, por razões óbvias é um anacronismo absolutamente desprovido de sentido supor ou conjeturar que Spinoza se oporia a uma interpretação contingente e antirrealista da Física. Parece-me mais sensato supor que Einstein a ela se opôs de uma forma análoga a que Spinoza se opusera a todos os sistemas metafísicos de sua época que admitiam a contingência na natureza e a liberdade da vontade humana, o chamado livre-arbítrio. É nesse sentido que se afirmará que Spinoza e Einstein tinham em comum a negação da contingência ontológica, tanto na natureza como um todo, como na natureza humana tomada em separado.

Por fim, proporei nos dois capítulos finais, sempre inspirado em Spinoza, um entendimento filosofante consistindo na descentralização da sala de aula e do mestre e seus aprendizes, nela enclausurados, como sujeitos transcendentais; e que os prosaicos acontecimentos que compõem o cotidiano das pessoas, pedagogicamente podem ser tão ou mais relevantes que as lições que ocorrem com hora marcada, em um locus centralizado como é a sala de aula.

O acender da chama de um fogão caseiro; o líquido engarrafado que se congela a um toque de nossa mão; o cozimento de um ovo em água fervente, evaporando-se rapidamente em fogo alto; as cores sequenciais do arco-íris, e a existência necessária de dois arcos; as fases da lua relacionadas às marés; a dança ressonante de uma árvore ao sabor da música do vento; o gotejar inclinado da chuva nas janelas de um carro em movimento; os sons ora agudos ora graves das ruidosas buzinas do trânsito; o repicar dos sinos da igreja mais próxima, revelando a riqueza sonora dos harmônicos; a atenta observação dos raios luminosos; são fenômenos que se revestem de uma importância cósmica e com os quais o aprendiz convive, co-pertencendo a uma infinita malha de acontecimentos que determinam a sua, e as demais existências no mundo. Sabe-se que Einstein não chegou à sua Teoria da Relatividade especial através de um aprendizado sistemático em sala de aula, e sim através de uma intuição que lhe ocorrera aos 16 anos, ao observar com atento cuidado um raio luminoso, imaginando como este apareceria a um viajante que se deslocasse com a mesma velocidade. Desta forma, esse modo de ser cognoscente que é o homem encontrar-se-á diuturnamente com uma quantidade imensa de outros modos-objetos com os quais interagirá forjando fortemente a sua realidade, e neste processo contínuo de conhecimento, envolve-se ele num mundo rico de relações e significados, consumando-se então o ato pedagógico, apenas sugerido em sala de aula.

À guisa de orientação aos leitores que se depararão, ao longo deste livro, com uma gama razoavelmente ampla de temas que possivelmente poderão fazê-los se perder num labirinto multidisciplinar, devo esclarecer que toda essas questões encontram, na filosofia de Spinoza, o seu fio de Ariadne. Este livro não é mais do que a tentativa de unificar quatro grandes questões que me desafiam há muitas décadas: entender e ensinar a Física com uma visão spinozista de mundo; em que extensão Einstein a empregou quando criou a Teoria da Relatividade — e criticou a Teoria Quântica —; refletir sobre os rumos opostos que a Filosofia e a Ciência tomaram após a consolidação da grande construção epistemológica, erguida em torno de um sujeito humano transcendental; e, finalmente, propor caminhos spinozistas para a educação e o entendimento científicos.

Na metafísica de Spinoza, que ressoará fortemente na Filosofia da Ciência de Einstein, buscarei uma inspiração comum. Afinal Heidegger já havia dito:

A representação da ciência, nunca poderá decidir se, com a objetidade, a riqueza recôndita na essência da ciência não se retira e retrai ao invés de dar-se e se deixar aparecer. A ciência nunca poderá fazer esta pergunta e, muito menos, questionar esta questão. […] Nenhuma física tem condições de falar da física. Em si mesma, nenhuma física pode vir a ser objeto de uma pesquisa física4.

Ao longo deste texto, jamais deixarei de falar de Física — e de seu aprendizado — porém colocando-me, em alguns momentos, fora dela para assim a sua essência “dar-se e se deixar aparecer”. Convido o leitor a trilhar pacientemente este longo, e tortuoso, percurso, através da História e da Filosofia da Física, para que no final ela nos ressurja revigorada em sua essência. Esta última forma de pensar pergunta por um universo que, posto sob a indagação humana, parece se precipitar guiado pelas rodas da fortuna, como uma das faces do grande dado de Deus.