A possibilidade de relacionar a metafísica de Spinoza à Física contemporânea será a essência desta investigação. Discutiremos se os pilares da Ética, notadamente suas duas primeiras partes, são coerentes com a filosofia da Teoria da Relatividade e contraditórias com a interpretação indeterminista da Teoria Quântica. Esta metafísica será também o leit motiv de uma pedagogia filosofante e multidisciplinar, que nos fará avançar nas questões de entendimento e aprendizado da Física. Refletirei até que ponto o pensamento filosófico de Albert Einstein foi influenciado pelo núcleo essencial da metafísica das primeiras partes da Ética, qual seja: a Santíssima Trindade constituída por substância, atributos e modos; a isonomia e o paralelismo entre as duas ordens de acontecimentos corpóreos e da mente; e as cadeias de necessidade com que se engendram os entes (modos) finitos. Além disso, refletirei também sobre a universalidade e a atemporalidade das leis da natureza, bem como sobre um princípio de causalidade, ontológico e universal, que permeia a Ética, para estabelecer até que ponto tais questões aguçaram as intuições filosóficas de Einstein. No capítulo VI, investigarei também se a ontologia de Spinoza é coerente com a espacialidade do tempo da TRE e a materialização do espaço-tempo da TRG. Nos capítulos VII e VIII, buscarei o que há de comum, na crítica dos dois pensadores, à contingência e à indeterminação na natureza. Finalizando, nos capítulos IX e X, procurarei desdobrar essa ontologia comum, visando às possibilidades de uma pedagogia científica filosofante per se, bem como de uma práxis pedagógica da Física, de inspiração spinozista, que poderão estimular o aprendiz a reflexões filosóficas que vão além da mera operacionalidade científica.
A exemplo do que fez Spinoza na Ética, peço aos leitores certa dose de paciência para com os temas que serão abordados logo em seguida (substância, atributos, conatus, paixões, vontade, isonomia corpo-mente e pan-animismo, dentre outros). Embora pareçam distantes da prática científica e pedagógica, ao longo e no final desse texto, como prêmio, lhes aparecerão estreitamente relacionados a algumas das mais importantes questões da Física contemporânea. Conduzidos pelo fio de Ariadne da ontologia spinozista, guiar-nos-emos por um aparente labirinto multidisciplinar, que nos credenciará, já nesta parte, a valiosas ilações de importantes consequências pedagógicas.
A Ethica ordine geometrico demonstrata (Ética demonstrada em ordem geométrica), a mais importante obra de Spinoza, é construída a partir de definições, axiomas e lemas fundamentais dos quais são deduzidas as proposições (teoremas). Destas, por sua vez, seguem-se os corolários e os escólios explicativos, formando um sistema de partes inextricavelmente interligadas pela lógica dedutiva. Cada proposição demonstrada converte-se em um novo pilar axiomático sobre o qual repousará a estrutura lógica do sistema. A leitura desse impressionante livro torna-se assim, lenta e difícil, um verdadeiro tour de force, pois a cada momento Spinoza obriga-nos a virar as suas páginas para trás, em busca de definições, axiomas e proposições já apresentadas anteriormente. São poucas as proposições isoladas, ou seja, que não nos remetem a outras precedentes, obrigando o leitor a redobrada atenção. As duas edições da Ética que possuo estão esgarçadas de tanto virar suas páginas, de frente para trás e de trás para frente, pois o filósofo sefaradita, a exemplo de Euclides, comumente faz com que certas proposições mais avançadas recaiam em outras mais simples, já demonstradas anteriormente e que necessitamos rever. Algumas proposições têm demonstrações que recaem em múltiplas proposições ou corolários anteriores; já outras são sucedidas por longos escólios, ou seja, explicações, e ainda podem desdobrar-se em vários corolários que são consequências ou variantes da proposição em questão. Em certo ponto do texto, reconhecendo a dificuldade que impôs aos leitores, o próprio Spinoza pede-lhes calma, pois que no final tudo há de se esclarecer. A obra resulta assim em um complexo e denso tecido de ideias, cuidadosamente deduzidas umas das outras, que fazem a mente percorrer um emaranhado de noções e silogismos entrelaçados. Segundo o matemático Jacobi, quem não entender uma sequer de suas proposições poderá perder-se a ponto de não poder prosseguir.
Esse método, no entanto, não é uma mera forma de apresentação, mas constitui a essência do pensamento spinozista. Quando o filósofo trata o universo, o homem e suas paixões, como Euclides trata de pontos, retas e planos, é porque, em princípio, da mesma forma como os teoremas da geometria deduzem-se de seus axiomas, os objetos da Filosofia, como a moral ou as paixões humanas, decorrem necessariamente da natureza das coisas, sendo expressos por axiomas ou definições mais básicas. Assim, o filósofo não se perguntará mais sobre as consequências de suas deduções, tal como o geômetra, que não se pergunta sobre a finalidade para a qual os triângulos têm a soma de seus ângulos igual a dois retos. Não é o método geométrico dedutivo que leva Spinoza a um determinismo lógico-causal, mas, sim, pelo contrário, o filósofo o emprega porque percebe o universo de uma forma racional e geometricamente entrelaçada.
Segundo Chauí1, Spinoza deixou-se arrebatar pela geometria, não só porque a concebe com o mesmo encadeamento lógico do universo, mas também pela descoberta de Kepler de que o olho humano (ao invés de emitir raios perpendiculares à retina, em direção às coisas, como pensava a maioria dos gregos) é um instrumento óptico que, tal qual uma lente, capta os raios luminosos emitidos pelas coisas. Segundo Kepler, os olhos obedecem às leis de refração e reflexão da óptica geométrica, e estas, por sua vez, obedecem à geometria. A filosofia de Spinoza reflete o fato de o homem estar olhando o universo desde o seu interior, e daí mesmo vendo Deus, ao contrário dos escolásticos, que o contemplavam de dentro para fora, como uma criatura ao seu criador transcendente. Como as leis do olhar são as mesmas da geometria, Spinoza, que era, como já vimos, um refinado construtor de instrumentos ópticos, as conhecia muito bem… Chauí ressalta também que na pintura holandesa dos grandes mestres contemporâneos de Spinoza, como Rembrandt e Johannes Vermeer, a luz brota sempre do interior da cena, ao passo que os mestres italianos, ainda influenciados pela escolástica tomista, retratam-na como uma luz sempre vinda do exterior.
A primeira parte da Ética, denominada De Deo, é construída inicialmente a partir de oito definições e sete axiomas, que constituem seus pilares de sustentação. Ao longo da obra, todas elas serão evocadas, sendo que quatro dessas definições constituem quase que permanentemente o discurso spinoziano: substância, atributo, modo e Deus, apresentadas na forma das definições 3, 4 e 5 e 6.
Por substância entendo o que existe em si e por si é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de outra coisa do qual deva ser formado (Ética I, def. 3).
Por atributo entendo o que o intelecto percebe da substância como constituindo a essência dela (Ética I, Def. 4).
Por modo entendo as afecções (acidentes) da substância, isto é, o que existe noutra coisa pela qual também é concebido (Ética I, Def. 5).
Por Deus entendo o ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita (Ética, Def. 6)2.
Dos sete axiomas, três deles serão particularmente essenciais para o entendimento deste texto:
Tudo o que existe, existe em si ou em outra coisa3.
De uma dada causa determinada segue-se necessariamente um efeito, se não existe qualquer causa determinada, é impossível seguir-se um efeito4.
O conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa e envolve-o5.
Da definição de substância decorre que:
(1) toda substância é a sua própria causa, de outra forma ela seria produzida por uma outra coisa deixando de ser assim uma substância;
(2) a substância é infinita, pois se fosse finita seria limitada por outra(s) substância(s) e consequentemente dependeria desta(s);
(3) a substância é única, pois se outra(s) existisse(m) a limitaria(m), deixando de ser então uma substância.
Conclui-se assim que a substância é única, (absolutamente) infinita e causa de si própria. Define assim Spinoza que só Deus é uma substância e esta é Deus. Veremos no final do capítulo VI que a condição de ilimitação da substância será ainda mais essencial que a de sua infinitude, uma vez que toda infinitude pode ser limitada por outra de ordem maior. Alguns comentadores da obra de Einstein, como Jammer6, sugerem que, por essa razão, o primeiro modelo matemático tentado pelo físico era eterno, ilimitado, embora não necessariamente infinito (ver capítulo VI).
Do axioma 3 conclui-se que toda causa tem necessariamente pelo menos um efeito, e vice-versa, todo efeito é gerado por uma ou mais causas, ou, o que é equivalente ao axioma da causalidade: posta a causa surge o efeito e cessada a causa cessa o efeito (ver capítulo IV). O axioma 4 significa que uma causa implica lógica e necessariamente em seu efeito: C → E. Na filosofia de Spinoza, o símbolo lógico → pode então significar produção de um efeito pela causa, bem como implicação lógica de uma ideia por outra. Assim, nesse sistema, causa e razão de ser são uma só e única coisa: causa sive ratio. Segundo A. Scala7, uma ideia causa outra ideia de forma análoga à que uma coisa causa outra coisa. Refletirei se a renitente postura de Einstein em prol de uma causalidade na Teoria Quântica, ainda que de causas ocultas, pudesse ter sido influenciada por Spinoza (ver capítulo VIII).
A substância (de substare, ou seja, ser subjacente a algo) gera, ao mesmo tempo, sem jamais ter saído de si, todo o universo e a si própria, levando-o a um equilíbrio cósmico consigo mesmo. A filosofia de Spinoza pode assim ser considerada como um cosmoteísmo, isto é, Deus e o cosmos formam uma unidade inseparável, o que segundo Jammer8 constitui um dos núcleos essenciais da religiosidade de Einstein que o levou a uma busca obstinada pela unidade da Física (capítulo VI).
Segundo ainda o filósofo:
Digo que pertence à essência de uma coisa aquilo que, sendo dado, faz necessariamente que a coisa exista e que, sendo suprimido, faz necessariamente que a coisa não exista; por outras palavras, aquilo sem o qual a coisa não pode nem existir nem ser concebida e, reciprocamente, aquilo que, sem a coisa, não pode existir nem ser concebido9.
A definição de essência (acima) caracteriza bem a distinção entre esta e a existência, e será para nós, muito importante, para introduzir na Teoria Quântica as variáveis de essência de um sistema físico (hamiltoniana) e de existência (posição e o momentum linear) (ver capítulo VII).
Outra assertiva comumente evocada ao longo da Ética, à qual algumas proposições recaem por silogismo, é que a essência de Deus envolve a sua existência, e, por outro lado, da essência de qualquer ente ou modo finito não resulta necessariamente a sua existência. Spinoza introduz, esta última, na forma de um axioma básico:
A essência do que pode ser concebido como inexistente não envolve a existência10.
Assim, a essência (definição, atributos etc.) de qualquer modo finito não implica em sua existência e somente a essência de Deus implicará necessariamente em sua existência. Entendamos por quê. Podemos expressar este princípio de outra forma: “somente Deus existe porque é,” o que lembra o “Sou o que Sou” bíblico. Desta forma, no sistema de Spinoza, a necessidade da existência de Deus resulta apenas de sua essência, resultando assim de um axioma fictício: “Deus é o único ser necessariamente existente,” e assim a existência de Deus decorria de sua definição. No entanto, não poderia o mesmo ser dito de qualquer um dos modos? Quando defino um centauro como um ente que possui cabeça de homem e corpo de cavalo, nada me garante que tal ente exista de fato na natureza. Por outro lado, não poderia da essência singular de um humano chamado Pedro decorrer a sua existência? Não, pelo fato de que a existência de qualquer ente é finita na extensão e perecível no tempo. De uma essência imutável só pode resultar uma existência igualmente infinita (ilimitada) e eterna.
Portanto, para que a essência da infinita substância divina seja concebida, serão necessários infinitos atributos ou predicados eternos, pois que, se assim não fosse, estaríamos negando a sua infinitude (não limitação) através de um limitado número de atributos. Segundo o filósofo, “Omnis determinatio, negatio“ tendo aqui determinatio o sentido de definir, restringir ou limitar por propriedades. A substância, em seus infinitos atributos infinitos, não pode ser definida nem como conjunto limitado de propriedades nem como sustentáculo de atributos.
Para o intelecto humano finito, apenas dois destes atributos seriam perceptíveis, a extensão (forma, volume, densidade, posição, repouso, movimento dos corpos etc.) e o pensamento (paixões, volições, intuições, ideias, vontade etc.). Se, pelo contrário, a mente humana fosse capaz de perceber a substância, em toda a sua infinita plenitude, a estaria determinando, e assim negando-a. Portanto, o pensamento e a matéria extensa são as únicas coisas que percebemos da substância, pelo fato de que uma inteligência finita não pode definir algo que é infinito. É importante entender que na definição de atributo: “Por atributo entendo o que o intelecto percebe da substância…,” o “intelecto” a que se refere Spinoza não poderia ser tão-somente o intelecto humano, pois se assim fosse apenas dois deles existiriam, justamente aqueles que percebemos, extensão e pensamento, e desta forma a mente humana estaria limitando a substância a esses dois atributos, o que levaria todo o sistema lógico à contradição. Mas então qual é o intelecto que percebe a substância constituindo a sua essência? Na próxima seção me ocuparei exclusivamente desta complexa questão.
A Santíssima Trindade na qual se apóia a metafísica de Spinoza constitui-se de substância, atributos e modos. Enquanto a substância nos vem logo à mente como algo absoluto, eterno e insondável, imediatamente associada a Deus, e os modos são tudo aquilo com que nos deparamos no dia-a dia; os atributos são bem menos intuitivos e os que oferecem maior dificuldade ao nosso entendimento. Sobre este ponto, assim se expressa Farias de Brito:
Eis um ponto que nunca foi pelo philosopho esclarecido. É o que ainda em vida de Spinoza não passou desappercebido mesmo a seus discípulos e amigos, um dos quaes, em carta que se tornou célebre, lhe pediu esclarecimentos, entre outras, sobre as seguintes questões: 1°. Se conhecemos ou podemos conhecer outros attributos divinos, além da extensão e do pensamento; 2°. No caso negativo, se há outras creaturas constituídas por outros atributos que não a extensão e o pensamento e se para estas a extensão e os pensamentos são attributos desconhecidos, como para nós os attributos que lhe dizem respeito; 3°. Se há nestas condições tantos mundos quanto attributos11.
Segundo ainda Farias de Brito, a resposta de Spinoza a seu amigo não é clara, limitando-se o filósofo a reafirmar que o homem não pode conhecer outros atributos além da extensão e do pensamento12. Tamanha controvérsia fez com que surgissem várias interpretações, e até teorias, acerca desse conceito. A primeira que é descrita por Farias de Brito, é a chamada interpretação de Erdmann:
Os attributos divinos não são propriedades reaes da substância, mas simples fórmas intellectuais do conhecimento13
Trata-se, como bem evidencia Farias de Brito, de uma interpretação kantiana da metafísica de Spinoza. Para tal, basta atentar que na definição quod intellectus de substantia percipit tanquam ejusdem essentiam constituens, Erdmann entende que o particípio constituens concorda não com quod (o que), mas com intellectus. Traduzindo: “o que (aquilo que) constituindo a essência da substância, o intelecto percebe,” é sutilmente distinto de: “o que o intelecto percebe da substância, como constituindo a essência dela…” Na primeira forma, o intelecto apenas percebe a essência da substância enquanto, na segunda, o intelecto a constitui. Erdmann entende desta última maneira, sendo assim o atributo, para ele, a forma com que o intelecto humano percebe a essência da substância. Para Farias de Brito isto “nada mais é que uma tentativa para adaptar a philosophia de Spinoza ao criticismo (de Kant)”.
Conclui Farias de Brito que a interpretação de Erdmann, ao reduzir o atributo de Deus a uma forma de intelecto humano, confunde o primeiro com um simples modo de pensar, ou seja, a um modo sob o atributo pensamento. Veremos mais tarde que é o mesmo vício de que muitos outros comentadores são acometidos, quando também reduzem as leis da natureza a categorias a priori do entendimento humano. Em oposição à interpretação kantiana, darei às leis da natureza a interpretação de modos infinitos imediatos sob o atributo extensão (ver capítulo VI). Discutirei também, nos capítulos finais, a descentralidade humana em relação ao universo que decorre dessas primeiras definições da Ética.
Segue-se em ordem, no artigo de Farias de Brito, a interpretação de K. Thomas. Segundo este comentador, não haveria diferenças entre os atributos e a própria substância, pois se esta é “o que existe por si e é compreendido por si“ e, por outro lado, se “cada atributo exprime uma essência eterna e infinita, logo não teve começo nem fim; logo existe em si mesmo e não depende de outra coisa, e, por conseguinte é igual a substância“. Assim, Thomas questiona em que se distingue o atributo da própria substância, concluindo que, se os atributos são as coisas como elas são em si, é evidente que os atributos são substâncias. Segundo Farias de Brito, a interpretação de Thomas implica numa infinitude de substâncias, levando a metafísica de Spinoza em direção à monadologia de Leibniz14.
A seguir Farias de Brito descreve a interpretação de K. Fischer dos atributos como forças, não escondendo a sua preferência por esta:
(…) esses attributos são as innumeras forças por meio das quaes Deus se manifesta na causalidade universal. Ora, Deus é a causa de todas as cousas, o que quer dizer que todas as cousas, ou mais precisamente todos os phenomenos são produzidos por Deus. Mas para produzir phenomenos é preciso que Deus se manifeste como actividade, como força (…) os attributos de Deus são, pois forças. Nem há outra interpretação verdadeiramente racional para este ponto obscuro da philosophia de Spinoza. Tal é a opinião de K. Fischer. E como poderia ser de outra forma?15 (grifos do autor).
Resumindo as três interpretações expostas por Farias de Brito, pergunto se afinal seriam os atributos de Deus, formas do intelecto humano, segundo Erdmann; infinitas substâncias, como os entende Thomas, ou ainda forças divinas, como sustenta K. Fischer?
Enquanto a interpretação de Erdmann conduz ao criticismo e a de Thomas à monadologia, a de Fischer, tão ao gosto de Farias de Brito, tampouco me satisfaz. O propósito de estabelecer os elos que ligam Spinoza à Ciência fica comprometido nesta interpretação. Sabe-se que Einstein tentou, praticamente em todos os anos finais de sua vida, unificar as forças básicas do universo, a gravitacional e a eletromagnética, numa só lei que abarcasse todos os fenômenos materiais. Isto porque, enquanto o campo gravitacional se confunde com a geometria do espaço-tempo, o campo eletromagnético mantém a coesão dos corpos que são, por sua vez, as fontes do campo gravitacional. Assim os campos de força, os corpos materiais e o espaço-tempo estariam inextricavelmente ligados, criando uma unidade circularmente indissolúvel. Retornarei a essa questão no capítulo VI.
Por mais que tentasse, Einstein jamais conseguiu o seu intento de reduzir as leis da Física a um sonhado monismo. Portanto, se atributos fossem forças “que põem em movimento as coisas,” apenas sob o atributo extensão conhecem-se duas forças irredutíveis, (além do campo nuclear), sendo este atributo obrigado, portanto, a desdobrar-se em três, excedendo o número dos dois previstos por Spinoza: um apenas da extensão e o outro do pensamento. Assim, a metafísica de Spinoza teria de desdobrar-se em pelo menos quatro atributos, percebidos pelo intelecto humano. Ademais, qual seria a força que causaria as ideias? A que forças então se refere Fischer? Se para Fischer os atributos são forças metafísicas de Deus (como as emanações ou as sephirot da Cabala), qual o benefício de apenas mudar seu nome? Se, por sua vez, se tratam de forças físicas produtoras da atividade do universo, estas excederiam o número proposto por Spinoza.
Apoiado no fato de que a Ética é construída na forma da geometria euclidiana, peço vênia aos quatro doutos comentadores mencionados para esboçar aqui uma outra interpretação de cunho geométrico. Apoiar-me-ei numa ideia geométrica de projeção que muito me ajudou a entender o sistema de Spinoza, com relação a essas primeiras definições, esperando que seja tão útil aos leitores quanto me foi.
Imaginemos um espaço de infinitas dimensões16, cada uma delas igualmente infinita. Imaginemos um ser ψ que é, ao mesmo tempo, todo esse espaço além de tudo que nele existe e nele se modifica, como um campo infinito de infinitas dimensões. O campo ψ é único, infinito, indivisível e eterno no seu todo. Os atributos seriam subespaços infinitos da substância, com pelo menos uma dimensão a menos, ou seja, eles seriam planos multidimensionais, porém de dimensionalidade necessariamente menor que a da substância. Desta forma, os atributos seriam projeções da substância em subespaços dimensionalmente menores, o que pode ser escrito da seguinte forma:
ψ = Π |ψn>, n = 1, 2, 3, …∞,
e descrito da seguinte forma: A substância-campo ψ está para os atributos |ψ n> assim como um espaço vetorial está para seus subespaços (mutuamente ortogonais). A título de exemplo, no espaço ordinário tridimensional, representado pelos eixos ox, oy, oz, pode-se imaginar três planos mutuamente ortogonais: xy, xz, e yz. Esses três planos, além dos três eixos, seriam, segundo a minha interpretação, atributos do espaço tridimensional. Por sua vez, o espaço tridimensional seria um atributo de um espaço de dimensão mais elevada, e este, por sua vez, um atributo de um espaço de dimensão ainda maior, e assim sucessivamente. Portanto, a substância ψ é absolutamente infinita enquanto o atributo ψn é infinito apenas em seu gênero. A justificativa para essa interpretação se deve à própria definição de atributo: “Entendo por atributo o que (aquilo que) o intelecto percebe da substância como constituindo a essência dela”. Ora, a percepção (pelo intelecto) daquilo que constitui a essência da substância é um mapeamento dessa essência num espaço dimensionalmente menor, acessível à mente. Assim, segundo essa interpretação, toda percepção pelo intelecto é uma projeção da substância que existe independentemente do intelecto que a representa. Da mesma forma que pelas leis da ótica uma imagem de um espelho, seja ela virtual, como num espelho plano, seja ela real, como num espelho convexo, não pode ser criada sem a existência de um objeto real; o atributo não pode ser uma criação da mente, mas uma projeção da substância sobre espaços a ela perceptíveis. Afastamo-nos assim da interpretação formal de Erdmann e, por outro lado, como uma projeção não é igual ao que é projetado, afastamo-nos também da interpretação monadológica de Thomas.
Portanto, a projeção da substância em um desses planos a desvela para a percepção apenas nesse atributo. A cada plano-atributo corresponde uma projeção distinta da mesma substância. Os dois atributos percebidos pela mente humana seriam projeções da substância sobre o plano-atributo extensão, que seria o espaço contendo a matéria e posições de todos os corpos do universo; e a projeção da substância no plano-atributo pensamento que conteria todas as ideias possíveis. Assim como seres bidimensionais só podem perceber coisas bidimensionais que estão em seu plano, também a nós humanos só nos seria possível entender esses dois atributos: enquanto nosso corpo é uma manifestação singular situada no plano do atributo extensão, a nossa mente é uma singularidade situada no plano-atributo pensamento, sendo-nos assim inacessíveis as projeções da substância em outros planos-atributos.
À substância corresponderiam assim múltiplas projeções em todos os seus atributos, de forma que estariam ocorrendo, concomitantemente, modificações (movimentos e transformações) projetadas no plano-atributo extensão e no plano-atributo pensamento. Porém, essas modificações da substância só nos seriam perceptíveis enquanto projeções na extensão (movimentos dos corpos tridimensionais) e outras no pensamento (transformação ou sucessão de ideias). À guisa de exemplo, é como se projetássemos luz de um objeto em dois espelhos em ângulo reto. Haveriam imagens desse objeto projetadas em cada um deles movendo-se conjuntamente, ambas expressando a realidade dimensionalmente maior que é a luz do objeto que sobre os espelhos incide. Assim, os movimentos no plano-extensão e no plano-pensamento não se causariam, mas se relacionariam. Dirão alguns leitores atentos que a representação aqui sugerida lembra o mito da caverna de Platão. É verdade, só que em Spinoza a caverna, ao invés de ter uma única superfície refletora sobre a qual se projetam as sombras do Mundo das Ideias, tem uma infinidade de espelhos que formam um inextricável labirinto que, em infinitas imagens projetadas, representa a Realidade. Cada plano, no entanto, a projeta de forma distinta, segundo o seu próprio atributo. Como entes finitos, percebemos apenas em um plano a matéria transformando-se por conexões causais, e, em outro, as ideias inferindo-se uma das outras por relações lógicas. Esses são os atributos extensão e pensamento que são acessíveis ao nosso entendimento.
Qualquer ente singular do universo, na vizinhança de nosso corpo, seria por nós percebido em um duplo modo, isto é, uma dupla modificação local e limitada nos atributos da substância. Uma região limitada pertencente ao “plano-atributo extensão” seria o corpo físico desse ente afetado causalmente pelos demais corpos de sua vizinhança, assim como um conjunto limitado de ideias no “plano pensamento” seria a mente associada a esse corpo, da mesma maneira, limitada pelas demais mentes existentes. Como todos os demais entes, os seres humanos também são duplos modos finitos. Decorre daí que o corpo e a mente humanos são porções limitadas de projeções de uma única realidade, dimensionalmente maior, modificando-se conjunta e independentemente em seus respectivos planos-atributos. Em cada momento, a uma dada configuração do corpo humano afetado está associada uma ideia, ao que Spinoza denomina de ideia da afecção17 do corpo. Como percebemos nosso corpo afetado e a ideia correspondente modificarem-se sempre juntos, imaginamos que se produzem causalmente. Na tradição filosófica ocidental, a ideia comanda o corpo enquanto, na metafísica de Spinoza, corpo e mente modificam-se juntos, porém sem causalidade. Sobre o atributo extensão, nosso corpo, em relação causal com outros corpos, segue as leis da natureza, e sobre o plano-atributo pensamento as ideias geram-se pela lógica que exclui a coexistência de uma ideia com a sua negação (princípio do terceiro excluído). Uma ideia também pode ser entendida como um modo sem extensão (uma vez que resulta da projeção da modificação da substância sobre um plano desprovido de extensão), ao passo que um corpo material é um modo sem pensamento (uma vez que resulta de uma modificação finita da substância sobre um plano desprovido de pensamento). Um ente da natureza, no entanto, é concomitantemente uma configuração extensa e sua correspondente configuração de ideias. Poderíamos simbolicamente representar sucintamente tudo o que foi dito na seguinte forma matemática:
ϕ humano = ϕ extensão x ϕ ideia,
onde ϕ humano é uma configuração finita da substância em dois subespaços-atributos que são suas projeções. Enquanto que ϕ extensão é o seu corpo finito quando afetado pelo universo extenso; ϕ ideia é uma conjunto finito de ideias dessas afecções. Pela primeira vez na História da Filosofia, corpo e mente, bem como, matéria e pensamento, são projeções de uma mesma realidade, não tendo nenhuma delas precedência ontológica sobre a outra.
Reflitamos agora sobre uma das mais conhecidas proposições da Ética (EII, prop. VII)18:
Ordo et conexio idearum idem est ac ordo et conexio rerum (A ordem e a conexão das idéias é a mesma que a ordem e conexão das coisas).
No escólio dessa proposição Spinoza mostra com clareza a identidade essencial entre corpo e mente:
(…) a substância pensante e a substância extensa são uma e a mesma substância compreendida ora sob um atributo ora sobre outro. Da mesma maneira, também um modo da extensão e a idéia desse modo são uma e a mesma coisa, mas expressa de duas maneiras diferentes. É o que certos hebreus parecem ter visto como que através de um nevoeiro, os quais afirmam que Deus, a inteligência de Deus, e as coisas por ele compreendidas são uma e a mesma coisa19.
Logo a seguir, nesse mesmo escólio, o próprio Spinoza nos oferece um precioso exemplo:
Por exemplo: um círculo existente na natureza e a idéia deste círculo existente, a qual existe também em Deus, são uma e mesma coisa, expressa por atributos diferentes. E assim, quer concebamos a Natureza sob atributo da extensão, quer sob atributo do pensamento, quer sob outro atributo qualquer, encontramos sempre uma só e mesma ordem, por outras palavras, uma só e mesma conexão de causas, isto é, encontraremos sempre a mesmas coisas seguindo-se uma das outras. E se eu disse que Deus é a causa de uma idéia, da do círculo, por exemplo, somente enquanto ele é coisa pensante, como do círculo somente enquanto ele é coisa extensa (…)20.
A proposição VII, EII, é a expressão mais clara daquilo que se designou como paralelismo entre corpo e mente e a ela retornarei com muito cuidado e atenção, pois, como veremos no capítulo VI, não só Einstein se pronunciará favoravelmente à identidade entre corpo e mente, como esses elementos metafísicos poderão ser encontrados na Teoria da Relatividade e na concepção de ordem explícita e implícita de D. Bohm (ver capítulo IX).
Vimos que a substância projetada sobre o atributo extensão está em acordo com as leis da natureza, enquanto a projeção sobre o atributo pensamento está em acordo com as leis da lógica, sendo a vontade entendida como um pensamento ao qual corresponde uma configuração (afecção) corporal. Portanto, nada mais estranho à filosofia de Spinoza do que dizer que a vontade impele o corpo à ação, como diriam certos idealistas ou, reciprocamente, que a matéria corpórea gera a vontade, como dizem os materialistas. Spinoza promove finalmente a trégua da milenar guerra travada entre idealismo e materialismo, criando assim um sistema no qual matéria e pensamento são tão-somente projeções de Deus em dois de seus atributos. Não pode haver ideias sem a matéria nem esta sem aquelas.
Como surgiriam em nossa mente as paixões, as imaginações e os equívocos na realidade duplamente projetada de que é feito nosso entendimento? Como modos finitos, ou seja, acidentes finitos da substância, estamos em interação causal apenas com a nossa vizinhança no espaço tridimensional. Não temos assim mais do que um conhecimento local da totalidade que apenas Deus como um todo pode participar e conhecer. Transformamo-nos no infinito espaço substancial como duplas manifestações locais finitas de um ser ilimitado. Cada uma dessas manifestações tem apenas conhecimento de seu movimento, e o de seus vizinhos mais próximos, mas não pode perceber seu emaranhamento com a totalidade, constituindo e participando de uma forma singular da substância. Cada modo é assim, ao mesmo tempo, solitário porque não lhe é dado conhecer a unidade da qual participa, e solidário enquanto sua evolução só adquire sentido com a evolução de tudo. Segundo Spinoza, quando não temos conhecimento das causas ou dos efeitos imediatos decorrentes de uma determinada configuração de nosso corpo, a isto corresponderá uma sequência ilógica de ideias (ideias inadequadas no jargão spinoziano). Projetemos agora esta imagem no plano-atributo extensão, e teremos uma visão apenas parcial das causas que movem nosso corpo e de nossos apetites, enquanto, no atributo pensamento, teremos um mau entendimento, ou seja, ideias confusas que podem não se relacionar logicamente com a infinita série de ideias que constituem o infinito atributo pensamento de Deus, a substância. Segundo o filósofo luso-judeu, estas últimas são as paixões, imaginações e a própria corrupção das coisas submetidas ao tempo.
Pela clareza e simplicidade que um desenho poderia acrescentar, fui fortemente tentado a representar graficamente a interpretação projetiva da substância e de seus atributos. Como para Spinoza estas são a essência de Deus, não o fiz por violar o mandamento bíblico “Não farás imagem esculpida, nem semelhança alguma do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra, não adora-las-á, nem prestar-lhes-á culto…“ (E2::2-17), o que certamente desagradaria nosso filósofo, que, por muito menos, tantos problemas teve com seus contemporâneos.
Espero que, a partir desse ponto, as ideias geometrizadas da substância-Deus, atributos-projeções e modos-acidentes finitos possam também ser úteis aos leitores para desvelar um dos grandes mistérios da metafísica de Spinoza: Afinal, o que são os atributos divinos? Representações humanas, substâncias, forças emanadas ou projeções da substância em planos perceptíveis? Segundo nossa interpretação são projeções (reduções) dimensionais da substância infinita que permitem que os modos finitos a percebam.
À primeira vista, a definição de Spinoza para os dois atributos inteligíveis da substância parece aproximar-se da filosofia dualista cartesiana que opera com duas substâncias, a res extensa e a res cogitans. A primeira é o domínio físico que se refere à extensão dos corpos materiais regidos pelas relações de movimento e repouso e, a segunda, é o domínio das coisas anímicas, como o pensamento, a razão, as paixões etc. Assim, para Descartes, o conceito físico fundamental é a porção de espaço que um corpo (inclusive o corpo humano) ocupa, ao passo que a mente pertence a um domínio incorpóreo essencialmente distinto, nele se modificando a res cogitans. Como Descartes construiu seu sistema filosófico a partir das dúvidas e certezas da razão humana, foi obrigado a separar as duas substâncias de forma bem clara: de um lado, a matéria e o espaço físico e, do outro, o pensamento e a mente, criando assim um dualismo irredutível.
Spinoza, ao contrário de Descartes, é monista, pois construiu seu sistema apoiado em outro pilar que é a substância única, infinita, com seus infinitos atributos, e assim o corpo e a mente — que são apenas modificações de dois dos infinitos atributos da substância divina — longe de serem de naturezas distintas, constituiriam, portanto, a mesma essência, projetada em distintos atributos. Assim, nem a mente é material nem a matéria é um processo mental e tampouco os dois processos são independentes, simplesmente porque não existem dois processos ou duas entidades, mas apenas uma entidade unitária e inseparável que é vista, ora internamente, como mente, ora externamente, como matéria. Mente e corpo não atuam um sobre o outro porque são um só. Veremos adiante que Einstein, de uma forma velada, incorporou essas ideias à Física (ver capítulo VI).
Vimos que o homem, como qualquer coisa existente no mundo, seria uma dupla singularidade de Deus ou como definiu Spinoza, um duplo modo (acidente) finito da substância. O corpo humano, como qualquer outro, seria um modo sob o atributo da extensão, enquanto a mente seria uma projeção finita no plano-atributo pensamento. A substância (Deus) teria infinitos atributos, modos infinitos que seriam todo o universo e suas leis e modos finitos (todos os corpos que constituem o universo). Na metafísica de Spinoza, Deus é causa de si mesmo, projetando-se em seus infinitos atributos, que causam os modos infinitos imediatos (as leis da natureza)21, os quais, por sua vez, causam os modos infinitos mediatos (as relações de movimento e repouso de todo o universo) que, por sua vez, causam os modos finitos (os corpos finitos que compõem o universo). De forma análoga, o modo infinito imediato sob o atributo pensamento é o Intelecto Divino que é a essência da inteligibilidade. Deste decorre o modo infinito mediato, que é o conjunto de todas as ideias existentes, e deste, o modo finito como sendo os encadeamentos e nexos de ideias que existem na mente22. As causas, das quais as coisas decorrem umas das outras, são entendidas não apenas como causas eficientes e transitivas, mas também formais e imanentes, como a maçã é a causa de sua doçura e de sua cor vermelha, ou uma escultura é a causa de seu significado artístico. Desta forma, na metafísica de Spinoza não existe, como no aristotelismo, uma separabilidade das causas eficientes, formais, materiais e finais (ver capítulo IV), pois que todas elas decorrem de uma necessidade substancial. A substância tem assim com seus modos uma relação lógico-causal de imanência.
Assim, mente e corpo são um único e mesmo indivíduo, ora concebido como atributo pensamento ora como atributo extensão. Se a mente triste está, o corpo chora vertendo lágrimas, se o rosto sorri, a mente se alegra. Corpo e mente expressam, cada qual em sua linguagem, a mesma afecção. Decorre também da E III, proposição II e de seu escólio23, que nem o corpo pode decidir que a mente pense nem a mente determinar que o corpo fique em movimento ou repouso, pela simples razão de que a decisão da mente e a determinação do corpo são uma única coisa.
Dessa forma, Spinoza, contrariamente aos materialistas, não considera a mente como sede material onde se processam as ideias (processos cerebrais), mas as próprias ideias em relação e conexão. Estas tampouco têm primazia sobre a matéria, constituindo um mundo imutável, situado à parte do mundo material, como reza a tradição idealista. As coisas e as ideias constituem, pois, relações entre si que operam de forma análoga. O corpo segue as suas leis (da física, química, biologia, anatomia, medicina etc.) enquanto na mente surgem ideias, e entre estas e aquelas há uma correspondência, embora não haja nenhum vínculo causal. Spinoza critica abertamente o conceito escolástico — e difundido até os tempos atuais — de que é a mente que impele o corpo através da vontade ou de outro pensamento arbitrariamente escolhido.
Spinoza deixa isso claro de uma forma tão contundente que até nos tempos de hoje provocaria polêmica:
A mente humana não conhece o próprio corpo humano nem sabe que este existe, senão pelas idéias de que o corpo é afetado24.
O filósofo luso-judeu cria, segundo Chauí25, possivelmente com algumas influências do imanentismo cabalista, um sistema monista, no qual corpo e mente ou matéria e pensamento são projeções de uma única realidade. De todas as ideias de Descartes, a que parecia ao nosso filósofo, a menos satisfatória, era a da separação clara e distinta dos atributos extensão e pensamento, bem como do corpo e da mente. Além disso, era inaceitável, para Spinoza, o deísmo imaginado pelo filósofo francês. Neste, o movimento e as mudanças ocorridas no universo material seriam produzidos de fora, por um empurrão ou um sopro de Deus, sendo só a partir de então governados mecanicamente por forças de contato entre os corpos, e estas, por sua vez, seguiriam leis que poderiam ser escritas matematicamente (ver capítulo III). Para Descartes, o universo teria assim a precisão de um grande relógio material gerado por um ser transcendente e eterno, situado fora do espaço-tempo. Por outro lado, ainda menos satisfatória, para Spinoza, era a ideia cartesiana de que o corpo humano abrigava dentro de si uma mente imaterial cujo contato com o corpo se dava na glândula pineal26, a sede das paixões (emoções) e sentimentos humanos. O universo cartesiano era assim hierarquizado por camadas de realidade, sendo a mente transcendente de Deus, a sua camada mais externa e, a mente humana, a mais interna. Spinoza subverte essa ordem hierárquica:
– mente de Deus –
– mente do homem-
– corpo –
defendendo o princípio de que as ideias e as coisas, embora pertencentes a distintos atributos, estão imbricadas na substância infinita, e dela não podem ser separadas, obedecendo a um dos mais importantes princípios da metafísica spinoziana, que ainda será exaustivamente discutido ao longo deste texto, o já citado “Ordo et conexio“
Isto significa que, a um fato material do qual o corpo participa, corresponderia sempre uma ideia, de tal forma que entre a causa e o efeito corresponderiam duas ideias logicamente implicadas. Se A é a causa e B seu efeito, então a ideia de A implicaria necessariamente na ideia de B. Tudo que se passa no domínio da extensão tem uma representação lógica, análoga, no domínio do pensamento.
C → E
IC→ IE
(O paralelismo de Spinoza)
Se uma causa C produz um efeito E, então, IC, a ideia da causa C, deve implicar logicamente em IE, a ideia do efeito E. À causalidade no mundo das coisas corresponde a necessidade no mundo das ideias.
Os matemáticos denominam de biunívoca a uma correspondência entre elementos de dois conjuntos, de tal sorte que a um elemento de um dos conjuntos corresponde um, e somente um, elemento do outro. Os dois conjuntos são denominados de isomórficos. Para Spinoza, o mundo dos objetos físicos e o mundo das ideias seriam isomórficos. Enquanto um corpo externo que nos afeta deve a sua existência a uma causa extensa — que poderá ser um outro corpo — cada ideia tem como causa uma outra ideia. Há assim duas cadeias causais que se modificam independentemente pari passu, porém na mesma ordem e conexão. Segundo André Scala:
A evidência partilhada é a de que há coisas e que essas coisas possuem uma causa, talvez não única e mesma causa, mas cada coisa possui uma causa, tudo que existe possui uma causa. Entre as coisas que possuem uma causa há as idéias, e as idéias só podem ter por causa idéias27.
Os dois domínios da substância, extensão e pensamento, assim como o corpo e a mente, estão em íntima conexão isomórfica e isonômica, embora entre eles não haja uma interação causal. Como vimos, para Spinoza, “a mente é a idéia do corpo e de suas afecções,” sendo que este último termo significa as transformações ou modificações que o corpo sofre do exterior. Às mudanças experimentadas pelo corpo correspondem novos pensamentos da mente. Cada fato material do qual participa o corpo corresponde na mente a um pensamento e vice-versa. Decorre da EII, proposições XII e XIII28, que assim como os pensamentos e os processos mentais estão arranjados na mente, as modificações do corpo e as modificações das coisas, que afetam o corpo através de sensações, estão no corpo segundo a sua ordem. E ao corpo nada pode acontecer que não seja percebido pela mente. Segundo a E II, proposições XIX e XXIII29, a mente só pode conhecer o mundo que a cerca através de seu próprio corpo e então a infinitude do mundo é mapeada nas afecções de um corpo finito. E segundo as duas proposições acima mencionadas, as ideias sucedem-se na mente na mesma ordem em que as afecções se sucedem no corpo. Assim, à guisa de exemplo, só poderemos ter uma ideia da explosão da estrela Alfa Centauro, quando a luz proveniente dessa estrela afetar nosso corpo, informando-nos de sua explosão, o que ocorrerá cerca de quatro anos após esse mesmo evento ter afetado outro corpo que esteja nas cercanias dessa estrela. Mas, por sua vez, se a explosão da Alfa teve por causa a colisão com um cometa que, por isso, teve sua trajetória desviada, todas essas ideias sucedem-se em nossa mente na mesma ordem, e à medida que nosso corpo é afetado pelos sinais luminosos (ruídos, odores, paladares etc.), provenientes dos vários corpos pelos quais somos afetados. A mente só pode conhecer o mundo através de seu próprio corpo. Essa questão será de essencial relevância à pedagogia da Física que pretendo, e a ela voltarei cuidadosamente, propondo que na Teoria da Relatividade a ideia sequencial de tempo, segundo a ordenação antes, agora e depois, resultará relativa, pois também está intimamente relacionada às sucessivas afecções corpóreas de um observador que se move em relação a outro (ver capítulo VI).
No entanto, é importante realçar que, ao contrário do empirismo, onde “tudo que está na mente passou antes pelos sentidos,” na metafísica spinoziana ocorrem duas sequências independentes, porém correlatas, de acontecimentos: as afecções do nosso corpo e as ideias de nossa mente. Portanto, não são as ideias que nos produzem afecções corpóreas, nem estas que produzem as ideias, mas simplesmente ambas são projeções de uma mesma realidade que se projeta sobre nós nessas duas formas. Assim, até mesmo os mais sutis pensamentos científicos ou lógico-matemáticos têm no corpo o seu correlato, pois todas as ideias, sejam elas científicas, paixões, vontades etc., e o corpo, expressam, em linguagens distintas, a mesma e única realidade.
Spinoza (e em geral os filósofos do séc. XVII) denomina de conatus (esforço em latim) à perseverança de um ente ou modo para existir, sendo que nos seres vivos o conatus está ligado à vontade e capacidade de sobrevivência. O conatus é assim uma força ou potência metafísica que mantém um modo na existência:
Toda coisa se esforça, enquanto está em si, por perseverar no seu ser.
O esforço pelo qual toda coisa tende a perseverar no seu ser não é senão a essência atual dessa coisa30.
Quando um corpo é composto por várias partes, o conatus também pode ser entendido como uma concessão do poder do todo a cada uma de suas partes para que, assim, o todo e as partes sejam preservados em sua existência. As partes também poderão organizar-se, constituindo organismos, fundindo seus conatus parciais num único conatus coletivo. Assim, qualquer um dos órgãos do corpo humano, ao se preservar, preservará o corpo humano como um todo. Nenhum dos órgãos poderá prescindir do conatus dos demais, e todos eles juntos também não poderão prescindir do conatus de cada um deles. Assim, uma parte passa a ser um órgão quando emaranha seu conatus com os demais órgãos que constituem a organização de um corpo composto.
A essência humana é a intensidade do conatus que, no corpo humano, se caracteriza como apetite ou vontade de atuar sobre os objetos materiais que nos cercam, enquanto na mente pelo desejo de pensar livremente.
Por virtude e potência entendo a mesma coisa, (…) a virtude, enquanto que se refere ao homem, é a própria essência ou natureza do homem enquanto tem o poder de fazer certas coisas, que só podem ser compreendidas, pelas leis da própria Natureza31.
Tratarei agora de refletir sobre os conceitos de ação, paixão, causa adequada e inadequada que são frequentemente considerados os mais obscuros, ou talvez os mais complexos de toda a obra do filósofo sefaradita. Segue-se um pequeno ensaio sobre esses conceitos, o qual pode ser considerado uma continuação, ou talvez um adendo, às seções anteriores. Esses conceitos serão importantes quando inseridos numa proposta mais ampla de educação científica, que será apresentada logo mais adiante.
A partir da definição metafísica de conatus, Spinoza introduzirá em seu sistema filosófico duas noções de surpreendente contemporaneidade: no corpo, o conatus manifesta-se como apetite, enquanto na mente como desejo. Dizer-se assim que somos apetite corporal e desejo psíquico significa que às afecções do corpo (emoções) correspondem os afetos (sentimentos) da mente. Afecções e afetos exprimindo o conatus obedecem à lei natural de sobrevivência (permanência na existência), determinando a intensidade do conatus. Veremos logo adiante que, quando os afetos são produzidos por fatores desconhecidos e externos à própria mente, nos tornamos causa inadequada de nossas ações, enquanto que, quando os afetos são causados pelo conhecimento que a mente adquire a partir de seu corpo, somos causas adequadas de nosso agir. Isto significa que na medida em que o pensamento é associado a afecções, relativas a corpos sobre os quais não podemos atuar com autonomia (como remover uma montanha, p.e.), ou dos quais desconhecemos a causa, a mente terá do mundo que a rodeia um esquema ilusório ou imaginativo (como duendes ou bruxas). Daí surgirem os ódios, superstições, crendices, simpatias, os diversos medos e fobias, além dos preconceitos que geram rancores e ódios que podem levar desde as guerras quanto a um mau aprendizado. Darei mais adiante alguns exemplos pedagógicos, mas para tal necessitamos de definições mais precisas de paixão, ação, causa adequada e inadequada:
Chamo causa adequada aquela cujo efeito pode ser clara e distintamente compreendido por ela; chamo de causa inadequada ou parcial aquela cujo efeito não pode ser conhecido por ela32.
Digo que somos ativos quando se produz em nós, ou fora de nós, qualquer coisa que (da qual) somos a causa adequada (…), mas ao contrário, digo que somos passivos (sofremos) quando em nós se produz qualquer coisa de que (da qual) não somos senão a causa parcial.
Por afecções entendo afecções do corpo pelas quais a potência do corpo é aumentada ou diminuída (…) Quando, por conseguinte, podemos ser a causa adequada de uma dessas afecções, por afecção entendo uma ação; nos outros casos uma paixão33.
A alma (mente) está sujeita a um número de paixões tanto maior quanto maior é o número de idéias inadequadas que tem (…)34.
As ações da alma nascem apenas das idéias adequadas, as paixões dependem apenas das idéias inadequadas35.
Digo expressamente que a alma não possui de si, nem de seu próprio corpo, um conhecimento adequado, mas sim confuso, todas as vezes que pelo encontro fortuito das coisas ela é determinada do exterior a considerar isto ou aquilo e não quando esta determinação lhe vem de dentro36.
O corpo humano, devido à sua finitude, não pode atuar nem ser afetado onipresentemente por todos os corpos do mundo. Assim, nem sempre a mente humana poderá ter uma percepção clara dos fenômenos que cercam seu corpo, já outras vezes a mente alça vôos mais altos do que o corpo pode alcançar. Ora, segundo o paralelismo entre corpo e mente da metafísica spinoziana, sob o atributo do pensamento geram-se ideias que serão sempre paralelas e isomórficas às afecções do corpo. Desta forma, se faltar um elo na cadeia de causas corpóreas (materiais) romper-se-á necessariamente a cadeia de ideias lógicas. Isto implicará, ora em desconhecimento das causas do fenômeno, ora em vontades muito além das condições materiais que o corpo pode alcançar, instalando-se em seu lugar uma paixão da mente. As paixões surgem para preencher o vazio da mente quando um dos elos da cadeia paralela for rompido. Dito de outra forma: toda vez que, por carência de afecções do corpo finito, a mente (que só pode conhecer o mundo através do corpo) não tiver um conhecimento das causas de um fenômeno, seja ele natural ou humano, produzir-se-ão nela as paixões. Em outras oportunidades, é a mente que se sobrepuja ao corpo demandando-lhe vontades que este não poderá satisfazer.
A metafísica spinoziana é particularmente feliz para o entendimento do medo, seguramente a mais renitente e permanente das paixões humanas. Quando não soubermos a gênese de certo fenômeno, este nos atemorizará. Do momento em que o fenômeno for conhecido por suas causas, o medo desaparecerá, ou pelo menos será bastante mitigado. A escuridão física é uma das fontes do medo, pois o corpo não pode ver o que o cerca, o que leva necessariamente à escuridão da mente. A luz subitamente restitui a visão, e com ela ilumina-se a mente com a claridade do conhecimento. Certamente as bruxas, duendes e os bichos-papões, que atemorizavam a nossa infância, e os demônios de muitos adultos, são as ideias inadequadas a que se refere Spinoza.
Outras paixões igualmente permanentes e intensas na história da humanidade, como o ódio, a ira ou a raiva, das quais resultam as várias formas de racismo, como o antissemitismo, a homofobia ou o ódio aos negros, também podem ser muito bem entendidas a partir da concepção spinoziana das paixões. São certamente produtos da ignorância acerca daqueles que são odiados. O ignorante odeia o diferente porque desconhece a diferença, imerso que está em sua escuridão mental. Essa me parece ser a essência da concepção spinoziana das paixões como oriundas de ideias inadequadas, isto é aquelas das quais não resultam efeitos conhecidos, e que são vulgarmente chamadas de ignorância.
Há uma outra ocasião em que se instalam as paixões humanas, partindo-se dessa vez de uma vontade excessiva da mente que demanda que o corpo humano finito produza fatos inatingíveis. Recorrendo-se novamente ao paralelismo entre corpo e mente, a finitude do corpo humano frente à infinitude do universo faz com que o corpo não possa ser a causa eficiente de todos os acontecimentos, nem a causa adequada de todas as ações. O único estado dinâmico da matéria, que não depende de nenhum outro corpo, é a inércia. Portanto, qualquer movimento de mudança do corpo humano (até os atos mais prosaicos do cotidiano, como caminhar, levantar-se, ir à rua) depende de uma miríade de outros corpos cujos efeitos quase nunca podem ser determinados com precisão. Assim, o corpo não é a única causa de suas ações. Na Física clássica newtoniana, é certo que se conhecermos todas as causas que afetam um corpo, poderemos calcular o efeito de nossa ação isolada das demais (isto é possível graças à linearidade das leis de movimento) (ver A pequena física de Spinoza e a grade mecânica de Newton, deste capítulo). Desta forma, classicamente, é possível (pelo menos teoricamente) que o corpo humano seja a causa adequada de algum acontecimento do qual participe, porque pode determiná-lo a priori. No entanto, mesmo no mundo cotidiano, regido pela física determinista, é impossível conhecer todas as causas que afetam um ente físico. Que sentido tem, portanto, a continuação da definição 3 da EIII?
Quando, por conseguinte, podemos ser a causa adequada de uma dessas afecções, por afecção entendo uma ação; nos outros casos uma paixão37.
Poder-se-ia então concluir que as paixões decorrem inevitavelmente do desconhecimento dos efeitos das ações de nosso corpo que, por sua finitude, não poderá ser sempre uma causa adequada? Estariam as paixões sempre presentes nos atos da vontade? Mudar o mundo, segundo a vontade (veremos adiante que, segundo Spinoza, a vontade não seria mais que uma ideia produzida por causas ignoradas, podendo, ou não, levar a uma ação do corpo), implica o surgimento de paixões, toda vez que não exista uma previsibilidade (determinação completa) do efeito da ação que o corpo realizou para satisfazer à vontade da mente. Mas, como vimos, a finitude do corpo e a infinitude de uma rede complexa de causas fazem com que seja impossível a existência de causas exclusivamente originadas a partir de nosso corpo finito. O conceito de causa adequada parece-me assim uma idealização válida apenas para corpos (modos de extensão) infinitos porque somente estes podem conter todas as causas eficientes. Ou seja, somente Deus, que é causa sui, e que tem infinitos atributos infinitos, e dentre eles a extensão infinita e o pensamento infinito, está imune às paixões.
Concluímos assim que a paixão é uma condição inexorável da finitude do modo humano que quer mudar os demais. Restam assim duas possibilidades para mitigar as paixões e o sofrimento humanos: abster-nos completamente de qualquer vontade, e assim viver em estado de inércia, pois que não seremos causa de nada, e nada nos afetará (muitos burocratas e normóticos vivem nesse estado de letargia); ou aceitar modestamente que não temos um corpo que pode ser causa adequada, senão para algumas ações limitadas no espaço e no tempo, restringidas até o ponto em que esta ação possa ser mais intensa que as ações dos demais corpos. Isso implicará em agirmos com modéstia sobre os corpos mais próximos, e sobre os quais temos uma relativa autonomia de ação. O exemplo a seguir visa esclarecer mais uma das complexas causas das paixões humanas:
Consideremos os seguintes desejos ou vontades:
a) caminhar até a sala de aula, e dar uma boa aula de Teoria da Relatividade.
b) fazer com que os aprendizes aprendam a TR.
c) querer que os alunos sejam capazes de entender os mais complexos problemas acerca da TR.
Analisemos agora as paixões associadas a essas vontades:
a) Até o momento em que não há um terremoto ou uma bala perdida, posso caminhar até a sala de aula sem sofrimentos, por serem as minhas pernas e minhas anotações as causas de minha boa aula. Assim, raramente sofrerei por esta modesta vontade.
b) Posso descrever minuciosamente ao aprendiz o que é a TR, pois meu corpo é suficiente para isto, sendo a única causa da ação; mas começarei a sofrer desde o momento em que a vontade de fazer o aluno aprender se chocar com a sua ausência de vontade ou incapacidade de entendimento. Portanto, o melhor que posso fazer é dar-lhe a melhor explicação que me for possível, sem, contudo, nada esperar em retribuição.
c) Sofrerei sempre por esta utópica vontade, pois sua realização depende muito pouco de mim (não sou a causa adequada). Portanto, é melhor esquecer qualquer pretensão em converter alunos em gênios da Filosofia ou da Física.
As paixões resultariam assim de uma vontade superdimensionada: querer além do alcance das ações que são naturalmente limitadas pelo nosso corpo.
À luz da ciência contemporânea, onde reina o indeterminismo, fica difícil sustentar o conceito spinoziano de causa adequada como uma causa da qual decorra certamente um efeito bem definido. No entanto, vimos nos exemplos acima que existe uma graduação contínua de causas mais adequadas (o caminhar até a sala que depende quase que exclusivamente de mim) até às mais inadequadas (transformar os aprendizes em gênios).
A aceitação da finitude do modo humano com o consequente reconhecimento da limitação de suas ações em contraposição ao vislumbre de uma realidade infinita, que se produz a si mesma, já é suficiente para mitigar o sofrimento da mente, que é condição inexorável de sua finitude. Sofremos (padecemos de paixões) porque somos finitos e a finitude é a mãe do tempo, este é o pai da morte, enquanto apenas o infinito é eterno. A contemplação de uma estrutura infinita se parece muito com a audição de uma sinfonia cósmica, e nessa obra cosmomusical temos a humilde tarefa de violinistas executando uma pequena parte dela. As paixões da mente vêm da impossibilidade de audição de toda a sinfonia, e assim a pequena parte que tocamos, parece-nos desconectada ou isolada das demais. Resta-nos, todavia, a possibilidade de olhar para o infinito, pois quanto para mais longe olharmos menos sofreremos… e melhor entenderemos a nossa própria natureza finita como parte da Natureza infinita.
Como diz o filósofo Carlos Portillo:
Sub espécie aeternitatis, todas as cadeias causais são vividas ativamente e se entendem a partir de nossa própria natureza. (…) Spinoza diria que sub specie aeternitatis podemos perceber-nos como causa adequada de muitas mais coisas e, portanto, não sofrer afecções tristes ao perceber a diminuição de nosso conato, senão alegres, já que ao nos perceber como causa adequada de mais coisas percebemos um aumento do conato38.
As paixões são assim produzidas em mão e contramão: da mente ao corpo e do corpo à mente. Elas surgem como carência de conhecimento ou excesso de vontade. São assim consequência da ignorância das causas de um fenômeno, e, por outro lado, de uma vontade onipotente instalada na mente que a finitude do corpo, e o alcance limitado de suas ações, não permitem.
Dos exemplos dados acima, acredito que a lição mais relevante a extrair da filosofia das paixões é que elas resultam, ora da ignorância mútua entre indivíduos, ora de uma expectativa superdimensionada de mudança que uns querem impor a outros. Ambas têm em comum um momentâneo rompimento da cadeia de causas e ideias adequadas, instalando-se ideias inadequadas em seu lugar.
Com relação a mestres e aprendizes, vimos, nos exemplos acima, que os primeiros imaginam que, com sua ação em sala de aula, podem conseguir o conhecimento dos segundos, e estes, por sua vez, imaginam também poder ser modificados em seus estados iniciais de desconhecimento rumo ao conhecimento, por uma simples ação dos primeiros. Desta forma, de parte a parte, resultam vontades (pretensões) que serão associadas a causas francamente inadequadas, no sentido spinoziano, isto é aquelas que não se associam às motivações internas da mente nem de ações que o corpo pode executar. Assim, se a motivação do mestre volta-se exclusivamente para o resultado pedagógico de seus discípulos, ele fatalmente se frustrará (padecerá de paixões e sofrerá), pois jamais poderá ser causa exclusiva ou até mesmo preponderante sobre os efeitos. Reciprocamente, os aprendizes que imaginam poderem ser modificados pela ação do mestre, já estarão a priori imersos num campo de causas inadequadas, isto é, aquelas que dependem fortemente de fatores alheios, com efeitos imprevisíveis, os quais, segundo Spinoza, são as causas de paixões e sofrimento. Assim, mestre e seus aprendizes não estarão voltados sobre si, buscando internamente os motivos de suas ações, e se mirarão em espelhos que refletem imagens externas e ilusórias… É necessário, pois, que tenham, todos, consciência (conhecimento) da finitude de suas existências, de seus corpos, bem como de suas ações, entendendo que a realidade nunca é tão atraente quanto a desejamos, mas tampouco é tão atemorizante quanto imaginamos.
É importante continuar refletindo sobre a vontade, pois nos conduzirá a importantes ilações pedagógicas. Carl Friedrich von Weizsäcker, físico do círculo de amizades de Werner Heisenberg, e epistemólogo dos mais conceituados da Teoria Quântica, a introduziu como elemento relevante da realidade quântica, tema que abordarei nos capítulos finais deste livro. Aqui, neste momento, duas importantes metafísicas da vontade, a de Arthur Schopenhauer (1788, 1860) e a de Spinoza, serão postas frente a frente.
Ao contrário de Schopenhauer, que faz da vontade o pilar numênico de seu sistema filosófico, vendo-a como a coisa-em-si, Spinoza a considera tão-somente como uma ideia persistente que “ocupa o espaço mental”. Assim como dois corpos não podem ocupar a mesma extensão do espaço, as ideias, obedecendo à mesma ordem e conexão das coisas materiais, também se excluem momentaneamente podendo, a que prevalecer, associar-se à ação, devido a sua persistência.
Spinoza tampouco considera a vontade como a causa da ação, pois que esta pertence ao atributo extensão, enquanto que aquela, ao atributo pensamento, e, na sua filosofia, modos projetados em dois atributos distintos, embora relacionados, não se podem causar, resultando daí uma de suas mais discutidas proposições:
Nec corpus mentem ad cogitandum nec mens corpus ad motum, neque quitem nec aliquo (si quid est) aliud determinare potest (nem o corpo pode determinar a alma a pensar, nem a alma determinar o corpo a se mover ou repousar – ou qualquer outra coisa, se acaso houver outra coisa)39.
A vontade é, pois, tão-somente uma ideia que persiste, sobrepondo-se às demais, e sendo assim correspondente à ação desencadeada pelo corpo:
A vontade e a inteligência são uma só e mesma coisa, ou seja, idéias singulares40.
Assim, enquanto a vontade é causada por outras ideias, a ação é, por sua vez, causada por outras ações. Ambas, segundo Spinoza, são elos de uma rede universal de ideias e eventos regidos por um determinismo universal. No entanto, a vontade, tanto para Spinoza como para Schopenhauer, está associada a corpos externos aos quais visamos modificar: o educador quer educar seus aprendizes, o pintor quer mudar as cores de suas telas, o escultor quer dar formas à pedra bruta e o trabalhador quer deslocar seus objetos de trabalho. Enquanto para Schopenhauer a vontade é numênica e, portanto, uma espécie de substância irremovível; para Spinoza, a vontade que se volta ao exterior poderá suscitar mais ou menos paixões, a depender das causas serem mais ou menos próprias ao ser voluntarioso. Segundo o filósofo alemão, em seu opúsculo Livre arbítrio41, com respaldo do próprio Spinoza, a vontade não é contingente ou absolutamente livre, pois, se dentro de certos limites físicos e sociais posso fazer o que quero, será que posso querer o que quero? Não será neste exato sentido que Einstein parece fazer coro às concepções convergentes de Spinoza e Schopenhauer, não reconhecendo nenhuma sorte de livre-arbítrio à vontade de acender seu cachimbo?
Sinceramente não consigo entender o que as pessoas querem dizer quando falam sobre a liberdade do arbítrio humano. Sinto, por exemplo, que desejo isto ou aquilo, mas que relação tem isso com a liberdade, eu simplesmente não compreendo. Sinto que desejo acender o meu cachimbo e o faço, mas como posso associar isso à idéia de liberdade? O que está por trás do ato de acender o cachimbo? Um outro ato de arbítrio?42
Queremos livremente as coisas ou o mundo determina de alguma maneira a nossa vontade? Seria esta apenas a ponta visível de um grande iceberg que é o desejo que seria livre o suficiente para desejar coisas opostas? Segundo esses pensadores, a vontade é determinada e, para Spinoza, associa-se às ações que o corpo humano realiza sobre os demais corpos que o cercam, ocorrendo paralelamente a um conjunto de ideias que a mente tem de seu próprio corpo atuante. Assim, para Spinoza, e por tabela para Einstein, nada existiria no universo de contingente, casual ou arbitrário, incluindo-se o próprio livre arbítrio, definido como a liberdade da vontade para escolher entre várias opções. Esta concepção leva os religiosos a acreditarem que, sem a graça divina, o indivíduo fatalmente incorrerá no pecado e no vício, enquanto os racionalistas pretendem que o livre arbítrio deva ser guiado pela razão.
Os homens enganam-se quando se julgam livres, e esta opinião consiste apenas em que eles têm consciência de suas ações, e são ignorantes das causas pelas quais são determinados. O que constitui, portanto, a idéia de sua liberdade é que eles não conhecem nenhuma causa de suas ações. Com efeito, quando dizem que as ações humanas dependem da vontade, dizem meras palavras das quais não têm nenhuma idéia. Efetivamente todos ignoram o que seja a vontade e como é que ela move o corpo43.
Segundo Schopenhauer44, a diferença entre a representação (para ele o mundo é vontade e representação) e uma realidade resistente e inacessível à vontade é também a causa de nossos sofrimentos, que decorrem porque percebemos um mundo de objetos que resiste à vontade, e sabemos que jamais lhe poderá ser submisso. Se um objeto se curvou à nossa vontade, imediatamente outro o substituirá, perpetuando-se o sofrimento humano ad infinitum. Na insubmissão do mundo à vontade, reside o padecimento humano, e com este manifesta-se a existência de um sujeito e de um objeto claramente distintos. Para Schopenhauer, existir é, pois, querer algo distinto do que já é, é querer a mudança, o movimento e a mudança do movimento.
Já em Spinoza, como vimos, as paixões ou sentimentos de dor irrompem na mente, ora porque raramente podemos ser a causa única e completa (adequada) de nossas ações, ora pelo desconhecimento das causas das coisas que cercam nosso corpo. Enquanto o homem “seguir a sua própria natureza” aceitará a finitude de sua existência e de seu raio de ação, e saberá que os demais modos, assim como ele próprio, são manifestações de uma natureza infinita, causa de si própria. Por outro lado, se ele imaginar (quiser) que todos os demais modos não sejam nada senão efeitos de si próprio, então padecerá de paixões tão mais intensas quanto forem as ideias (inadequadas) associadas a esses corpos externos que visa inutilmente modificar45. No terceiro livro da Ética, Spinoza define um grande número de paixões humanas, podendo ser elas reduzidas à tristeza, medo e ódio, que diminuem o conatus, e à alegria e ao amor, que o aumentam. Enquanto a alegria aumenta a potência do corpo humano de atuar sobre os demais, ampliando a potência da mente de poder pensar, a tristeza a diminui, parecendo à mente que seu corpo está separado da natureza que o contém. Desta forma, a mente padecerá porque as paixões serão a consequência de uma ideia persistente, a de se estar apartado do restante da natureza:
(…) padecemos quando algo se produz em nós de que não somos senão a causa parcial, algo que não pode deduzir-se só das leis de nossa natureza46.
Pelo contrário, seguir “as leis de nossa natureza” é entender (aceitar) que não podemos atuar sem limites, pois, como já se viu suficientemente, a finitude humana impede que sejamos sempre a única causa dos efeitos que nos cercam. Para o filósofo de Amsterdã, portanto, a essência do ser não está na vontade, apenas uma ideia, mas sim no conatus, este gerando os instintos que por sua vez produzem os desejos que produzem o pensamento correspondente à ação. Enquanto a alegria e o afeto são as paixões que aumentam o conatus, levando-nos à livre ação, isto é, à potência de existir em ato; a tristeza, o medo e o ódio o diminuem.
Ninguém pode desejar ser feliz, agir bem e viver bem que não deseje ao mesmo tempo viver, agir, e ser, isto é existir em ato (…) Não se pode conceber nenhuma virtude anterior ao esforço para se conservar a si mesmo (…) E a felicidade consiste em o homem poder conservar o seu ser47.
Portanto, a virtude (termo que deriva de virtus que deriva, por sua vez, de vis que em latim é força) maior é a felicidade, e ainda segundo Spinoza: “Não sou apenas feliz porque virtuoso, mas sim virtuoso porque feliz“. Enquanto na tradição religiosa ocidental, a felicidade é o prêmio maior oferecido aos virtuosos, para Spinoza, pelo contrário, a virtude é a própria felicidade. Como já vimos também, a mente só pode conhecer-se através das afecções do corpo, portanto, se este não afeta ou não é afetado por um corpo externo, a mente não poderá conhecê-lo, nem se conhecer:
A mente humana não conhece o próprio corpo humano nem sabe que este existe, senão pelas idéias das afecções de que o corpo é afetado48.
A mente não se conhece a si mesma, a não ser enquanto percebe as idéias das afecções do corpo49.
Também a concepção de mente de Spinoza é radicalmente revolucionária em relação às tradições religiosas e filosóficas anteriores. Segundo M. Chauí50, em Platão, a mente é prisioneira do corpo enquanto, em Aristóteles, o corpo não passa de organum da mente, ou seja, de instrumento ou órgão pelo qual a mente se comunica com o exterior. Na tradição religiosa ocidental, a mente é perene e imortal enquanto o corpo é mutável e perecível. Para Descartes, como já havia comentado, corpo e mente habitam domínios distintos que se contatam apenas na glândula pineal, enquanto, para Spinoza, o corpo e a mente são uma e única coisa regidas por atributos distintos: de um lado a matéria extensa, os corpos e suas afecções, de outro, o pensamento, o sentimento e as paixões, expressam a mesma realidade. Spinoza dessacraliza a mente, percebendo-a como “a ideia do corpo” e este, por sua vez, como a matéria em movimento. A cada fato corporal corresponderia um fato anímico e vice-versa. A mente pensa sobre a matéria corporal, não podendo existir sem esta, sendo assim o corpo pensante. A um corpo ativo corresponde uma mente pensante e ativa, enquanto a um corpo inativo corresponde uma mente igualmente inativa. Se triste estou, triste está meu corpo, prostrado na cama, desesperado ou desesperançado. Se irado estou, irado está meu corpo, com o dedo em riste fazendo ameaças ou blasfemando contra o mundo. Se ignoro as causas de existência de um corpo próximo que afeta o meu, temo-o. Se o conheço em sua plenitude, respeito-o. Se feliz está a mente, todo meu corpo vibra ativo: estou em estado virtuoso. Paixões, ideias e a matéria corpórea, embora habitando em moradas distintas, operam cada uma em seu domínio, de forma similar. Só a alegria pode suplantar a tristeza, como só o amor pode suplantar o ódio. Pela primeira vez na História da Filosofia, corpo (domínio da matéria) e mente (domínio da razão e das paixões) são tratados em pé de igualdade, sendo esta a ideia daquele e, os afetos residentes na mente, isonômicos às afecções do corpo. Spinoza torna a mente, e suas paixões (anima pathema), algo tão natural como o corpo e seus movimentos; estando ela sujeita às leis da natureza que são modificações infinitas (ver capítulo VI) de um Deus sive natura imanente ao universo. Spinoza retira a mente (alma) do reino transcendental em que foi posta pela tradição da Filosofia pós-socrática, e de praticamente todas as religiões. Ao refrear as paixões (medo, tristeza, ira, indignação e várias outras paixões que Spinoza cuidadosamente define em seu livro III) que diminuem o conatus, além de diminuir os efeitos das ideias inadequadas (imaginações, crendices, pensamentos megalomaníacos) que delas decorrem, como fontes dos preconceitos, ignorância, superstições, preocupações desnecessárias, temores injustificados, angústias catastróficas etc.; ao substituí-las pelo amor, afeto e alegria, que aumentam o conatus, estaremos dando um passo rumo à sabedoria e à felicidade. Claro que se trata de tarefa para gigantes, como Spinoza, cuja biografia mostra que chegou quase a atingir os níveis da santidade.
Várias ilações com consequências pedagógicas podem ser feitas. A dualidade entre um mestre-sujeito e seu aprendiz-objeto resultará da vontade de modificação daquele sobre este. Como vimos, enquanto para Schopenhauer, a vontade como coisa em si é causa irremovível do sofrimento, para Spinoza, a vontade (enquanto ideia inadequada) será causa de paixões, tais como medos, angústias, indignações, ódios, ressentimentos, invejas etc., com grande prejuízo para o aprendizado, sempre que estiver associada a ações que dependam fortemente do exterior, ou seja, de outros. Assim, quando o mestre (rever o exemplo c da seção anterior) visa mudar o estado de desconhecimento de seu aprendiz sofrerá e o fará sofrer (ambos padecerão de afecções tristes) quando deslocar sobre este a expectativa de sua vontade. Neste caso, o mestre será uma causa inadequada da modificação de seu aprendiz, pois que projetará em outro, e não em si, o resultado de sua ação, já que:
Nós padecemos na medida em que somos uma parte da natureza que não pode conceber-se por si mesma e sem as outras. Diz-se que nós padecemos quando algo se produz em nós de que não somos senão a causa parcial, algo que não pode deduzir-se só das leis de nossa natureza51.
Se, pelo contrário, o mestre caminhar à sala, e transmitir o que sabe, com a alegria de saber-se causa de seu próprio conhecimento, de sua caminhada e de sua fala, convidando seus aprendizes a participarem de sua alegria, sem nada querer que não resulte de sua ação (rever exemplo a), estará dando um passo rumo à sabedoria e à felicidade, ou seja, estará se aproximando da verdadeira Educação. Reciprocamente, o aprendiz que se dirigir ao seu mestre com a vontade de que este o transforme, padecerá das angústias e frustrações decorrentes de estar a sua vontade dirigida a outrem. Mas se, pelo contrário, perceber-se alegremente como causa e matéria-prima de seu próprio aprendizado, convidando o mestre a conhecer seus progressos, saberá evitar as afecções de tristeza, dando também um outro passo convergente rumo à sabedoria.
Spinoza confere ao corpo humano um estatuto filosófico tão elevado quanto à mente. Na sua ontologia não existe primazia desta sobre aquele, mas, pelo contrário, como corpo e mente são modos sob atributos distintos, existe entre eles uma perfeita isomorfia e equivalência. Como a mente não conhece o mundo exterior e não se conhece internamente, a não ser através de seu corpo, conhecer a mente humana requer um conhecimento da dinâmica do corpo humano e suas leis. Na época de Spinoza pouco se sabia acerca da bioquímica neural, e a própria Física estava praticamente restrita às leis planetárias de Kepler, à estática, que estuda os corpos em equilíbrio e à cinemática da queda dos corpos de Galileo. No entanto, a grande ciência da mecânica seria criada por Isaac Newton, apenas um ano depois da morte de Spinoza. Este concluiu a Ética em 1675 falecendo em 1677, enquanto Newton publicou os Princípios Matemáticos da Filosofia Natural (ou resumidamente os Principia) somente em 1678. Portanto, é impossível que Spinoza conhecesse a obra de Newton. Embora a Ética seja um livro de filosofia pura, contém, no início da segunda parte, algumas definições, lemas e axiomas relativos ao corpo humano que podem ser considerados como pertencentes ao domínio da Física, e, de fato, essa parte da obra é chamada por alguns comentadores de “a pequena física”. Devido à importância que o corpo humano adquire ao longo de todo o texto da Ética, seria interessante contextualizar a “pequena física” no âmbito mais geral das leis da mecânica de Newton.
O núcleo central dos Principia são as três leis fundamentais do movimento, que Newton assim formulou:
Lei I: “Todo corpo permanece em seu estado de repouso ou movimento uniforme em linha reta, a menos que seja obrigado a mudar seu estado por forças impressas nele“.
Lei II: “A mudança do movimento é proporcional à força motriz impressa, e se faz segundo a linha reta pela qual se imprime esta força“.
Lei III: “A uma ação sempre se opõe uma reação igual, ou seja, as ações de dois corpos um sobre o outro, são iguais e se dirigem a partes contrárias“52.
A lei de inércia enuncia que um corpo permanecerá indefinidamente em seu estado inercial, a não ser que uma força o tire deste estado. A segunda lei afirma que um corpo pode agir sobre outro, modificando seu movimento, através de uma força motriz que se origina no primeiro e atua no segundo; e quanto maior for a mudança de movimento, mais intensa terá de ser a ação. Portanto, na mecânica de Newton, uma força não produz movimento, como na Física aristotélica, mas mudança de movimento, que pode ser medida pela aceleração do segundo corpo. A mudança, na mecânica newtoniana, é a medida não mais do movimento ou velocidade do corpo, mas sim de sua aceleração, ou seja, a variação de sua velocidade. A terceira lei ou lei de ação ou reação nos adverte que o primeiro corpo, de onde se origina a força, não poderá realizar nenhuma mudança impunemente, pois que o corpo que teve seu movimento modificado responderá com uma reação igual e contrária sobre ele. De posse de um conhecimento preliminar das leis de Newton, passo agora à pequena física de Spinoza. Vale a pena repeti-la em parte:
Axioma I: Todos os corpos estão em movimento ou em repouso.
Axioma II: Todo corpo se move, ora mais lentamente, ora mais rapidamente.
Lema I: Os corpos distinguem-se uns dos outros em razão do movimento e do repouso, da rapidez e da lentidão.
Lema II: Todos os corpos têm algo em comum. (Estão todos sob o mesmo atributo, podem mover-se ora mais lentamente ora mais rapidamente e podem mover-se ou estar em repouso).
Lema III: Um corpo, quer em movimento, quer em repouso, deve ser determinado ou ao movimento ou ao repouso por outro corpo, o qual, por sua vez, foi também determinado ao movimento ou ao repouso por outro (…) assim até o infinito.
Corolário: Daí se segue que um corpo em movimento se moverá até que seja determinado ao repouso por um outro e que um corpo em repouso assim permanecerá até que um outro corpo o determine a mover-se53.
A partir dos axiomas e dos lemas acima, Spinoza constrói uma mecânica que regerá as coisas sob o atributo extensão. Entendo que o lema III e seu corolário situam a metafísica spinoziana mais próxima de Newton do que da escolástica aristotélica. Vejamos o por quê: segundo Aristóteles, um corpo move-se verticalmente para ocupar seu lugar natural, independentemente da existência ou não de outros corpos, e move-se horizontalmente até esgotar a ação impressa por um segundo corpo, quando então pára, independentemente da existência ou não de um terceiro corpo. Ora, a primeira sentença do corolário do lema III assegura que um corpo em movimento somente parará sob a ação de um outro corpo, o que é justamente a lei de inércia de Newton, quando substituirmos o segundo corpo pela força que este exerce sobre o primeiro. Uma outra consequência do fato de um corpo parar em função da ação de outro, é que esta causa lhe é externa, pois está situada em outro corpo, e não em si. A essa causa externa, Newton denominou de força (vis), tendo esta um sentido bem distinto da vis viva de Leibniz ou do impetus escolástico, pois estes são imanentes ao corpo, dele não se separando até que se esgote, quando o corpo finalmente pára (ver capítulo III). Spinoza, provavelmente pela influência de Descartes, aproxima-se assim da Física newtoniana, em dois sentidos: inércia e força externa.
Vejamos mais um de seus axiomas:
Todos os modos pelos quais um corpo qualquer é afetado por outro corpo segue-se da natureza do corpo afetado e, ao mesmo tempo, da natureza do corpo que afeta, de tal modo que um só e mesmo corpo é movido de diferentes maneiras, em razão da diversidade de corpos que o movem e, reciprocamente, diferentes corpos são movidos de diferentes maneiras por um só corpo54.
Não seria este axioma compatível com a segunda lei de Newton, F = ma, quando por “natureza do corpo afetado” Spinoza poderia estar antecipando a ideia de massa m, inédita na Física até então? Faltar-lhe-ia, no entanto, estabelecer a proporcionalidade entre a causa e o efeito do movimento55. Depois de mais alguns axiomas e lemas relativos a corpos compostos, a Ética passa a tratar do corpo humano, que é o objeto de interesse do filósofo.
Postulado III: (…) o corpo humano é afetado de diversas maneiras pelos corpos exteriores.
Postulado VI: O corpo humano pode mover os corpos exteriores de numerosíssimas maneiras56.
A seguir, Spinoza relaciona o corpo afetado com a mente. Sendo a já citadas proposições XIX e XIV as mais enfáticas das que se seguem:
A alma humana não conhece o próprio corpo nem sabe que este existe, senão pelas idéias das afecções pelas quais o corpo é afetado57.
A mente humana é apta a perceber um grande número de coisas, e é tanto mais apta quanto o seu corpo pode ser disposto (a afetar as coisas externas) de um grande número de maneiras58.
Desta forma, na pequena física de Spinoza, a reação do corpo externo sobre o corpo humano é que sobre este produzirá uma afecção que será percebida pela mente. Portanto, poder-se-ia acrescentar que se um corpo reage, ele será percebido pela mente na medida desta reação sobre o corpo humano, e não em si mesmo.
Embora em alguns aspectos a pequena física pareça compatível com as leis da mecânica terá, no entanto, a metafísica spinozista como um todo sobrevivido ao vendável provocado pela Física newtoniana, surgida apenas uma década após a morte de Spinoza? Ou, pelo contrário, as leis da Física, que regem o mundo extenso, excluem totalmente a existência de um mundo de ideias que lhe é paralelo e isonômico? Em suma, pode haver uma mente que conhece o mundo externo somente através de seu corpo humano, tido como receptáculo das reações dos corpos externos? Essa questão pode ser expressa de outra forma: as leis da Física autorizam uma teoria do conhecimento fundada no paralelismo entre corpo e mente?
Refletirei agora sobre dois aspectos essenciais dessa teoria. O primeiro deles é a isonomia e a equivalência entre duas cadeias de acontecimentos correlatos: o afeto (affectuus) corpóreo e a correspondente ideia da mente, cuja consequência mais importante é a impossibilidade da mente conhecer-se senão através dos afetos de seu corpo. Neste caso, haverá isonomia entre as ideias da mente e a cosmologia newtoniana? O segundo deles é a hierarquia das mentes estabelecida por Spinoza, não antropomorficamente, como em todas as metafísicas rivais, mas em função da riqueza das disposições do corpo, como expresso na proposição XIV acima citada.
Relevante para os físicos, nos axiomas, postulados e proposições acima, são os termos “corpo afetado,” “corpo que afeta,” “afecções” que se originam na mecânica dos corpos, constando predominantemente no desenvolvimento das questões tratadas no terceiro livro da Ética intitulado justamente de “Das origens e da natureza das afecções“ Nas duas proposições acima, Spinoza, através da isonomia entre corpo e mente, relacionará univocamente as afecções físicas do corpo humano às afecções da mente, passando de uma física dos corpos a uma “física das mentes”. Cabem neste ponto reflexões de relevância, tanto para a Física como para a Filosofia. Movimentos corporais iguais poderiam estar associados a diferentes ideias e vice-versa? No entanto, neste caso, ao relacionar estados iguais do corpo humano com diferentes ideias da mente, não estaria o filósofo caindo em contradição? Imaginemos três configurações do corpo e da mente59:
1a. Desejamos pela manhã levantar-nos da cama. Acionamos a musculatura do corpo pressionando o colchão para baixo, deformando as suas molas, e estas por reação nos impelem para cima.
2a. Não desejamos levantar-nos da cama e um mecanismo externo contrai as molas do colchão e a seguir as libera de forma que somos ejetados da cama, contrariando a nossa vontade.
3a. Estamos ainda dormindo, e o malfadado dispositivo nos ejeta da cama.
Uma vez que o movimento resultante nas três situações é o levantar-se da cama, a resultante das forças mecânicas que nos impelem acima será a mesma pelas leis de Newton. Aparentemente, nas três situações acima descritas, não existe diferença entre as configurações do nosso corpo nem dos corpos externos que nos afetam. Por conseguinte, segundo a proposição XIX, a mente deveria ter delas a mesma percepção, e assim a mesma ideia. Mas não é isso que ocorre: na primeira situação, penso “Quero me levantar,” enquanto que na segunda o pensamento é “Não quero me levantar” e simplesmente, na terceira, “Não penso em nada,” pois ainda estou dormindo. Estaria assim Spinoza equivocado ao dizer que mente só pode ter ideias a partir das disposições de seu corpo? Estaria sim, se as três configurações mecânicas fossem exatamente as mesmas. Embora o movimento resultante seja exatamente o mesmo, no primeiro deles, a musculatura se contraiu antes das molas, e no segundo depois. Existe ainda outra diferença sutil: a contratura muscular para o erguer voluntário não é exatamente a mesma da contratura contra a nossa vontade, e também diferente do levantar-se indiferente. Na verdade, as disposições dos corpos são sutilmente distintas, sendo assim, a proposição XIX é lógica e mecanicamente coerente.
Passemos agora à proposição XIV segundo a qual a riqueza da mente é tanto maior quanto maior o número de possibilidades que se oferecem ao seu corpo. Não estaria esta hierarquia da mente em contradição com o fato de que o corpo humano é impelido a mover-se exclusivamente pelas leis mecânicas, e estas não distinguem um objeto inanimado como uma estátua de um ser vivo? De fato, ambos, estátua e corpo humano, movem-se obedecendo às mesmas leis: aceleram ou desaceleram sob a ação de forças externas, persistem em seu movimento retilíneo uniforme, sem a presença delas, e, portanto, sob ação das mesmas forças, executam exatamente os mesmos movimentos. Em outras palavras, utilizando as leis da mecânica ou apenas observando seus movimentos, não se pode saber se um ser é vivo ou não. Então, sob o ponto de vista mecânico, não haveria diferença alguma entre um homem e uma estátua? Não, enquanto estiverem exatamente sob a ação das mesmas forças externas. No entanto, vimos que, ao pensamento “quero,” corresponde uma contratura muscular distinta de “não quero” e, portanto, não ocorrerão em ambos as mesmas configurações de forças (afecções do corpo). Enquanto uma estátua não se contrai, nem antes nem depois do movimento, um homem pode contrair o seu corpo de várias formas distintas, correspondendo, a cada uma delas, diferentes ideias. Um ser vivo, notadamente o ser humano, ao contrário da estátua, pode assim dispor seu corpo a uma maior gama de configurações de forças que o impelirão ao movimento o que torna a sua mente, segundo a proposição XIV, mais apta a ter um maior número de ideias, ou seja, mais apta a pensar. Neste ponto, para não recairmos em erro, será necessário uma nova reflexão. Se reduzirmos o corpo humano apenas às disposições musculares de seus membros, não se poderia concluir apressadamente que um contorcionista circense teria ideias brilhantes, ganhando o prêmio Nobel de Física, contorcendo-se ao entrar numa pequena caixa?! Relevante aqui é entender que o corpo humano não se reduz aos seus membros nem à sua musculatura, mas é extraordinariamente mais complexo, composto de órgãos internos, tecidos e vísceras, que se comunicam com o cérebro através de uma inextricável rede de terminações nervosas. Todas as afecções originadas, não só nos órgãos sensoriais, ou nos membros externos, mas em toda essa complexa malha corpórea, serão conduzidas e mapeadas no cérebro, que por sua vez também é parte do corpo, pois é feito de matéria, sendo, portanto, pertencente ao atributo da extensão. A esse complexo mapa neural, construído no cérebro, a partir de todas as afecções corpóreas, é que corresponderá finalmente uma ideia ou sentimento. Assim, enquanto no corpo ocorrerá uma sucessão de transformações e modificações de causas e efeitos físicos, tendo como consequência a revelação de uma fotografia cerebral do estado de mundo corporal, na mente ocorrerá, paralelamente, uma cadeia de ideias que se sucedem decorrendo umas das outras. É importante notar que, ao contrário do que possa parecer ao nosso senso comum, no sistema spinozista, entre as ideias da mente e as afecções materiais do corpo, não há uma relação causal direta, mas apenas uma associação ou correlação. Ou seja, não é a vontade ou uma ideia qualquer que impele o corpo ao movimento nem este que a produz. Pode-se concluir que a mente é tanto mais rica em ideias e vontades quantas forem as disposições de seu corpo. Assim, o homem tem uma mente mais complexa que o Adão de barro, por ter um corpo mais apto ao movimento externo e interno. O sopro divino, que lhe foi instilado, é de toda sorte, uma excelente metáfora para se perceber que na filosofia de Spinoza a mente humana é a ideia de um corpo ativo e que ambos são atributos divinos…
Agora, já com o aval da mecânica, a isonomia entre as cadeias de ideias e as afecções corpóreas nos habilita a uma importante reflexão com consequências pedagógicas. Como, na filosofia spinoziana, nem a mente predomina sobre o corpo, nem este sobre aquela, o aprendizado tampouco ocorre através de um esforço exclusivo da mente, nem de um material empírico projetado sobre o corpo humano, mas de uma atenção corpórea e mental que ocorrem conjuntamente. Quanto mais o corpo se habilitar a receber as afecções provindas do mundo externo, mais a mente estará apta a pensar adequadamente sobre ele. Os aprendizes devem ser, portanto, estimulados por seus mestres a ter um corpo ativo e atento às sinalizações do universo para que a mente possa estabelecer os nexos causais que sobre ela projetar-se-ão naturalmente. Não se fazem grandes pensadores, mas grandes pensamentos que se apresentarão a quem atento estiver.
Spinoza discordava de Descartes sobre a possibilidade de um método para desenvolver o pensamento correto. Em sua famosa obra, Discurso sobre o Método60, o filósofo francês estabelece quatro regras metodológicas, às quais o pensamento deve se submeter para chegar à verdade, enquanto, para o sábio luso-judeu, o pensamento aprimora-se por si mesmo até tornar-se verdadeiro, sem a necessidade de regras. Para ilustrar sua discordância em relação a Descartes, Spinoza dá um precioso exemplo: Como se forjou o primeiro martelo se para tal é necessário outro martelo? Usou-se uma pedra bruta produzindo-se um martelo tosco. Em seguida, com esse martelo imperfeito produziu-se um segundo martelo melhor, e assim sucessivamente até se chegar ao martelo adequado. Da mesma forma, para Spinoza, o pensamento, tal qual uma ferramenta de precisão, vai sendo forjado gradativamente até o seu aprimoramento, sendo o conhecimento verdadeiro um índice de si mesmo: quem tem uma ideia verdadeira saberá também que esta é verdadeira. Daí também resultam algumas ilações pedagógicas de grande valia. O ensino e o aprendizado das ciências não fogem a essa suprema regra. O estado inicial de desconhecimento do aprendiz não deve ser descartado, mas tido no exemplo acima, como o primeiro, e por certo ainda tosco, martelo com que se forjará um conhecimento mais aprimorado, que, por sua vez, possibilitará um outro conhecimento mais elaborado, e assim sucessivamente… O simples fato de o aprendiz existir como modo singular (ente) num mundo pleno de relações, voltando a estas a sua atenção, dispondo seu corpo das mais variadas maneiras possíveis (caminhando, olhando, ouvindo, sentindo, cheirando, apalpando as coisas em seu redor) já o habilitará a ser um primeiro conhecedor. O aprendizado, a partir de então far-se-á com o próprio caminho a ser trilhado, e não com regras preestabelecidas por um mestre-sujeito alheio e externo a esse caminhar.
Como ficou claro, na metafísica de Spinoza, a qualquer corpo situado no espaço, existe a ele associado um conjunto de ideias paralelas às afecções que este corpo sofre do exterior; então cabe agora questionar se é lícito supor que todos os corpos têm também a eles associados estruturas pensantes, sejam esses corpos pétreos ou humanos. Assim, existiriam pedras pensantes, como existem homens com pensamento empedernido?! Porém, qual é o pensamento do qual estamos falando afinal? Pensamento com o qual temos a capacidade de entender a Ética de Spinoza? É certo que as pedras não podem entender Spinoza, como grande parte dos homens também não… Falo de um pensamento que é a capacidade de estabelecer relações. O pensamento assim definido é tão mais complexo quanto são as relações que podem ser estabelecidas. Neste sentido restrito, até a configuração mais elementar da matéria, ou seja, um átomo de hidrogênio pode estabelecer relações entre suas partes. O elétron e o próton de um átomo de hidrogênio estão conectados por relações que estabelecem uma estrutura global tão complexa que faz com que as partes estejam inextricavelmente ligadas, gerando um espectro de energia e um festival de números quânticos. A esta arquitetura de conexão entre as partes, geratriz de leis e de estruturas lógicas, pode-se chamar de “pensamento do átomo”. O que se pode questionar — com justa razão — é se este pensamento é “do átomo” ou é “o pensamento do homem sobre o átomo”. Se a última hipótese for correta, qual seria o sentido dos modos finitos sob o atributo pensamento? Seria um conjunto de ideias, ou seja, uma teoria, que um humano tem sobre as coisas? Parece-me que este ponto de vista afasta-se diametralmente do núcleo central da metafísica spinoziana.
À guisa de clareza didática, imaginemos um sistema composto que consiste em um ser humano que observa um pequeno invertebrado ou até mesmo uma bactéria. Sobre isto podemos fazer as seguintes considerações: a)Há dois corpos que são modos finitos sob o atributo extensão. b) A bactéria produz afecções no corpo humano, via microscópio, e este produz afecções no corpo da bactéria. c) Às afecções do corpo humano correspondem ideias que ele tem da bactéria. Ou seja, aos seus estados físicos e cerebrais, enquanto séries causais no atributo da extensão correspondem, sob o atributo pensamento, uma cadeia de ideias acerca da bactéria. (d) Por sua vez, às afecções no corpo da bactéria correspondem, sob o atributo pensamento, uma cadeia de sensações que reordenam a bactéria depois que ela foi afetada pela observação.
Dessas várias considerações pode-se entender que há uma simetria completa entre dois modos sob extensão e dois modos sob pensamento; nenhum dos modos sob extensão reduz-se a um modo pensamento e vice-versa, porque são isonômicos e independentes. Tampouco os pares de ideias, que se projetaram sob o atributo pensamento, associadas aos dois corpos, reduzem-se às ideias humanas, simplesmente porque não existem, na metafísica de Spinoza, ideias humanas, mas ideias de Deus que se exprimem através de um particular modo humano. Assim, não há na Ética nada que torne o pensamento humano melhor ou essencialmente distinto do pensamento de qualquer outro modo. Isto sim seria absurdo, pois levaria às causas finais através das quais o homem seria a finalidade última da criação. Tudo o que se pode dizer é apenas que um humano é mais complexo que a bactéria — ou qualquer outra forma de vida da cadeia evolutiva —, e assim seus pensamentos são proporcionalmente mais complexos. A Ética assegura-nos portanto uma simetria total entre os modos finitos, pois que ontologicamente eles são precedidos pela substância. Dessa forma, supor que nós pensamos, e qualquer outra coisa não, é romper a simetria essencial dos postulados da Ética e cair num idealismo sem solução. No sistema cartesiano há, de fato, uma assimetria ontológica entre o “eu” e as coisas, porque parte do “cogito ergo sum“. Então é importante não se confundir o sistema simétrico da Ética com o sistema assimétrico do cogito cartesiano, ainda que este também opere com dois atributos. Como já disse, na Ética a única assimetria existente entre os modos são as complexidades de cada um deles. Existem matérias — e formas de vida — mais ou menos organizadas assim como existem sistemas lógicos de pensamento mais ou menos complexos, às quais estão associados. Desta forma, não pode haver uma bactéria sem que a ela não esteja associado um conjunto de ideias, o que poderemos denominar de “mente da bactéria”61. Tampouco na metafísica spinoziana poderá haver modos pensantes (“eus”) privilegiados, sendo os demais modos inertes ou inanimados. Pensar que somente o homem pensa e ordena o mundo com seu espírito é afastar-se da filosofia spinoziana, sem jamais tê-la entendido. Portanto, no sentido acima apresentado, qualquer modo pensa independentemente das ideias humanas porque as relações que se estabelecem são inerentes à substância e não ao humano que as observa. Assim, se admitirmos que haja uma isonomia e isomorfismo entre os atributos extensão e pensamento, pensariam as bactérias, as pedras e o homem, sobre si mesmos e sobre os demais corpos que os afetam. Repito que a equivalência, a simetria e a isonomia de todos os modos finitos, sejam eles sob o atributo extensão, sejam sob o atributo pensamento, implica que homens, pedras ou bactérias pensem, pois nas premissas nada há que centralize um “eu pensante” cercado por coisas inanimadas, uma vez que na Ética não há lugar para palavras tais como “eu penso“ ou “meu pensamento,” mas sim o “pensamento de Deus que se expressa através de minha mente ou de qualquer outra“. Essa questão é muito bem explicitada por Spinoza no escólio da proposição XIII da Ética II:
(…) Com efeito, tudo o que até aqui demonstramos são coisas comuns e aplicam-se tanto aos homens como aos outros indivíduos, os quais, embora em graus diferentes, são, todavia animados. Efetivamente, de qualquer coisa existe necessariamente a idéia em Deus e Deus é a causa dessa idéia da mesma maneira que é a causa da idéia do corpo humano; e, por conseqüência, tudo o que dissemos da idéia do corpo humano deve necessariamente dizer-se da idéia de qualquer coisa62.
Devido à sua essencial importância, voltarei a citar este trecho em outros pontos deste livro, quando defender o ponto de vista de que a Teoria da Relatividade é compatível com a isonomia entre o corpo e a mente; e o pensamento filosófico de Einstein como um todo, compatível com o realismo substancial.
A isonomia corpo-mente desdobra-se ainda numa outra questão desafiadora de grande complexidade. Se a um corpo material associa-se uma mente que se constitui no conjunto de ideias paralelas e isomórficas às afecções desse corpo, existirão ideias que se associarão a cada uma das partes que compõem o corpo em questão? Em caso positivo, como essas ideias parciais constituem a ideia total do corpo composto?
Se a questão acima se referir ao corpo humano, digamos de Pedro, a que parte de seu corpo estará associado seu pensamento paralelo enquanto que “pedroforme”? Estará este pensamento associado unicamente a seu cérebro? — E o que dizer dos pensamentos de suas partes “pancreiforme,” “cardioforme,” “gastroforme” ou “enteroforme”? Usualmente acredita-se que Pedro pensa apenas com seu cérebro, e assim seria aceitável supor que o pensamento “pedroforme” é o seu pensamento “cerebriforme”.
A isonomia entre corpo e mente da filosofia de Spinoza, se levada às suas últimas consequências lógicas, parece lançar-nos a um aparente paradoxo: o pensamento de um ser humano é o pensamento de seu cérebro ou de todas as partes que compõem seu corpo, mapeadas no cérebro? Para entendermos melhor essa questão, em primeiro lugar, é necessário definir o que na metafísica spinoziana é chamado de pensamento. Lembremo-nos que: 1 – Um modo se expressa, ou melhor, expressa a substância, de duas maneiras distintas, como modo corporal extenso e como modo mental do pensamento. 2 – Como extensão, uma parte interage com o restante das partes do corpo por relações e nexos causais, ou seja, por influências que se propagam no espaço-tempo. 3 – Como pensamento, o modo é uma “ideia,” e produz outras ideias de forma (não local e não causal) distinta dos modos-extensão. Portanto, ideias e corpos (materiais) são distintos, e não redutíveis uns aos outros, por um motivo muito simples: produzem-se através de leis distintas. As leis causais são locais e se propagam no espaço, enquanto ideias produzem-se através de encadeamentos lógicos que não são espaço-temporais. 4 – A cada objeto material, e sua configuração de afecções (modo extensão), corresponde univocamente uma ideia (modo pensamento), e esta ideia não sendo extensa não poderá estar situada em algum local ou corpo particular.
Desta forma, se um sistema composto, como o corpo humano, é constituído por n órgãos que estão em interação, existirão também n ideias associadas a estas afecções. O sistema é totalmente solidário, não podendo o todo existir sem as suas partes, e, por sua vez, as partes sem o todo, pois os conatus das partes e do todo estão inextricavelmente relacionados. À guisa de exemplo, o coração (ou qualquer outro órgão) não poderá permanecer ativo indefinidamente, depois de ter sido retirado do corpo, sendo a recíproca também verdadeira. Existirá assim uma ideia solidária, uma espécie de consenso entre todas as partes que será a ideia sistêmica do todo. Desta forma, as ideias que estão associadas às afecções corpóreas, segundo o “ordo et conexio,” não estão localizadas no cérebro nem a este correspondem exclusivamente. Pode-se dizer apenas que a um mapa neural situado no cérebro, depois deste receber as informações do restante do corpo, corresponderá uma ideia incorpórea que não poderá mais ser localizada no espaço-tempo. Na metafísica spinoziana, a mente não pode ser reduzida ao cérebro, e, pelo contrário, a ideia que tem do seu corpo, longe de ser “cerebral,” é um consenso de todas as ideias que os órgãos vitais têm de suas afecções particulares, podendo o conatus ser entendido como um contrato metafísico de existência coletiva. O corpo todo pensa! No sistema panteísta de Spinoza, todos os organismos estão emaranhados como modos de uma única substância que se produz a si mesma (causa sui), produzindo também o universo. Esta é uma visão possivelmente precursora das doutrinas ecológicas que hoje estão em voga como, por exemplo, a hipótese de Gaia, que vê nosso planeta como um vasto organismo vivo ou ainda o hino ecológico: “maltrate o mundo e você estará maltratando a Deus e maltrate o próximo e estará maltratando a si mesmo“.
Em contrapartida, a visão preponderantemente ocidental, como a natureza é criada, sendo hierarquicamente inferior ao criador que lhe é transcendente, pode ser impune e irrestritamente modificada pelo homem. Pelo contrário, em Spinoza, a natureza se confunde com Deus, que lhe é imanente e por isso deve ser respeitada. Um simples pedregulho por nós chutado no caminho adquire a importância ecológica de existir no universo: a destruição ou a transformação de um simples modo acarreta uma reação em cadeia de fatos e pensamentos que acabam por afetar todo o universo. Na metafísica de Spinoza, tudo está emaranhado a tudo, tanto os fatos materiais como as sequências de ideias. Qualquer modo é uma manifestação de uma única substância indivisível que impregna cada milímetro cúbico do universo. Os modos estão tão inextricavelmente ligados à substância quanto os instrumentos musicais à orquestra do qual são partes integrantes. Isolados, eles nada significam, porém seus discursos musicais ganham um significado apenas quando ouvidos na partitura completa.
Há uns meses atrás, quando comecei a cantar no naipe de baixos, em um coral de vozes mistas, o nosso regente deu, a cada integrante, uma partitura individual, que em Música é precisamente denominada de parte. Levei a minha parte para casa e comecei a solfejá-la, soando-me algumas notas sem sentido algum, e parecendo-me, ora que o compositor havia simplesmente se equivocado, ora que escolhera essas notas ao acaso. Telefonei primeiramente para um colega tenor, relatando-lhe minhas dificuldades. Para minha surpresa, o colega confessou-me que tinha as mesmas impressões acerca de sua parte. Telefonei então para o regente comunicando-lhe que, não só as vozes dos baixos como a dos tenores, pareciam erradas, pois que muitas notas não faziam sentido musical. O regente disse-me que tivéssemos calma, pois que no primeiro ensaio geral entenderíamos o que o compositor pretendia com aquelas notas despropositadas. E foi justamente o que aconteceu, assim que o grande coral a oito vozes começou a cantar, os sons que separadamente soavam bizarros, ganharam repentinamente um sentido coletivo e uma lógica coerente. As partes não foram compostas para serem tocadas separadamente, mas sim coletivamente, ganhando somente assim uma necessidade e determinação que antes parecia pura contingência ou erro. O que separadamente pode parecer errado, confuso, contingente, aleatório ou feio, o é apenas em função de sua finitude, mas quando imerso na infinitude substancial adquire dimensões infinitas e com isto clareza, necessidade ou harmonia.
A questão acima levantada refere-se à relação do todo e das partes. Se há um todo constituído por partes, haverá tantos pensamentos quantas são as partes, havendo um pensamento do todo que é um consenso coerente de todas as ideias parciais. A título de exemplo, creio que seria interessante relatar que, num grupo de discussão de Spinoza (http://www.eListas.net/lista/spinoza), o Prof. César Castañeda propôs um debate on line sobre a isonomia entre corpo e mente, lançando a seguinte questão: se alguém espetasse Pedro no peito, haveria duas ideias de dor, a do peito e a do cérebro de Pedro? Romper-se-ia, neste caso, a bijeção entre corpo e mente? Responderia que não, pois a dor é sistêmica e única, tal qual a temperatura de um corpo é uma propriedade sistêmica única. Separadamente, o peito não faz uma ideia de dor, da mesma forma como uma molécula não tem temperatura, no entanto, o peito sofre uma afecção externa da agulha e existe uma ideia “peitiforme” associada a esta configuração (peito + agulha). Mas existe também uma outra configuração mais ampla: agulha + peito + nervos + cérebro = dor de Pedro. Além disso, haverá também uma ideia associada à dor de Pedro, e uma outra ideia da família de Pedro, quando ouve seu grito de dor, e assim ao infinito.
Pode-se agora entender porque um órgão como o cérebro pensa enquanto órgão, e criando o mapa do pensamento total do corpo ao qual pertence. De fato, o pensamento “pedroforme” é um consenso coerente do pensamento, “cardioforme,” “peitiforme,” “cerebriforme” etc., como uma peça para coral é o pensamento coerente do pensamento “baixoforme,” “tenorforme,” “sopranoforme” e “contraltoforme”.
As consequências pedagógicas da metafísica do emaranhamento dos conatus do todo e de suas partes, são ricas e variadas. Mestres devem estimular seus aprendizes a manterem seus corpos saudáveis e ativos, pois como vimos o pensamento não é uma atividade exclusivamente cerebral, como normalmente se acredita no ocidente, mas uma orquestração harmônica de todos os órgãos que compõem o corpo humano. Portanto, os aprendizes, notadamente de Física, deverão ser constantemente estimulados a manter seus membros ativos, e seus sentidos aguçados e atentos para os acontecimentos do mundo físico, pois a Ciência não é uma atividade de um sujeito isolado, mas resultado de um pensamento coerente com as forças que movem o universo. Ao longo de mais de trinta anos de magistério, tenho insistido que não se faz Física só com giz e quadro-negro, nem só com papel e caneta, mas com o corpo imerso no mundo e a mente atuando conjunta e simultaneamente. À medida que estamos com o corpo ativamente imerso na malha universal das afecções físicas, surgirão na mente (que não se reduz ao cérebro) concomitantemente as ideias acerca dessas mesmas afecções. Esta me parece uma das lições mais importante do ordo et conexio, e da isonomia entre corpo e mente.
Acredito que os vários exemplos dados serão úteis para o desenvolvimento de ideias que serão apresentadas mais adiante sobre as teorias da Relatividade e Quântica. Estamos aptos a aprofundar a questão do pan-animismo em Spinoza.
Será a Ética compatível com a existência de uma matéria pensante? Isto é, a matéria dita bruta teria a ela associada uma ou mais ideias que poderiam ser a sua mente? Em que medida a mente humana é superior às mentes de outros indivíduos, se é que estas existem? Depois de uma atenta leitura da Ética II, volto a refletir sobre essas questões, com o objetivo de mostrar que a ideia de uma matéria inteligente não é tão herética nem heterodoxa, como muitos comentadores idealistas da obra de Spinoza pensam, pois, na verdade, está muito bem sustentada por algumas das proposições que anteriormente já havia citado. Senão vejamos:
O objeto da idéia que constitui a alma (mente) humana é o corpo, ou seja, um modo determinado da extensão, existente em ato, e não outra coisa63.
Repito agora um trecho maior do escólio desta mesma proposição:
(…) Com efeito, tudo o que até aqui demonstramos são coisas comuns e aplicam-se tanto aos homens como aos outros indivíduos, os quais, embora em graus diferentes, são todavia animados. Efetivamente, de qualquer coisa existe necessariamente a idéia em Deus e Deus é a causa dessa idéia da mesma maneira que é a causa da idéia do corpo humano; e, por conseqüência, tudo o que dissemos da idéia do corpo humano deve necessariamente dizer-se da idéia de qualquer coisa. E, no entanto, não podemos negar que as idéias diferem entre si como os próprios objetos, e que uma idéia é superior a outra e contém mais realidade, na medida, em que o objeto de uma é superior ao objeto da outra e contém mais realidade. Por essa razão, para determinar em que é que a alma humana difere das outras e é superior a elas, é-nos necessário, como dissemos, conhecer a natureza de seu objeto, isto é, a natureza do corpo humano (…) Digo, que quanto mais um corpo, comparativamente a outros, é apto para realizar simultaneamente um maior número de coisas ou para as suportar, tanto mais a sua alma é apta, comparativamente, às outras, para perceber simultaneamente um maior número de coisas; e, quanto mais as ações de um corpo dependem dele só, quanto menos outros corpos concorrem com ele na ação, tanto mais a alma desse corpo é apta para compreender distintamente. Por aqui, podemos reconhecer a superioridade de uma alma sobre as outras (…)64.
Após uma leitura atenta do trecho acima citado, especialmente os grifos, não é absurdo supor que a matéria bruta também teria uma mente, e, portanto, pensaria. Como vimos no exemplo do homem que quer levantar-se da cama, seus pensamentos são muito mais complexos quando comparados aos de uma estátua, pois um corpo rígido pode realizar e suportar um número muito reduzido de movimentos. No entanto, não seria absurdo entender que, segundo o filósofo de Amsterdã, até um corpo rígido poderia pensar65. Veremos adiante, quase no final deste livro, que a ideia de uma matéria autoconsciente está sintonizada com as ideias de alguns físicos contemporâneos…
Para muitos comentadores66 da obra de Spinoza, a suposta isonomia entre corpo e mente não é sustentável. Para eles, existe um conceito de autoconsciência que rompe com dita ideia: a mente humana poderia conceber ideias sem relação ao corpo, enquanto pode conceber suas próprias ideias, ou a ideia da ideia. Segundo essa vertente interpretativa de Spinoza, é possível remontar-se ao infinito na concepção das ideias. Isto sustentaria que podem ocorrer muitas coisas ou modificações no pensamento que não estão relacionadas com a extensão, com o que a isonomia se romperia. Por outro lado, certos comentadores defendem também que a mente será concebida na parte V da Ética, já não como uma ideia de um corpo, senão como um modo que é parte da infinita ideia de Deus e que, portanto, pode ser concebida sem relação a um corpo existente em ato. De fato, no final do quinto livro da Ética, no escólio da proposição XL, Spinoza revela que, na medida em que a mente compreende, há uma parte dela que é eterna, sendo esta um modo eterno de pensar que constitui a inteligência eterna e infinita de Deus. É necessário, no entanto, interpretar com clareza o que nos diz o filósofo: o que sobrevive ao corpo não é a mente como algo separado do corpo, mas o conhecimento, ou seja, as ideias adequadas e verdadeiras que em algum momento estavam associadas ao corpo enquanto existente em ato, e são eternas enquanto fazem parte do Intelecto de Deus. As leis de Newton, a Teoria da Relatividade, as sinfonias de Beethoven ou as telas de Rembrandt são algumas dessas ideias que sobreviveram aos corpos físicos de seus autores.
Assim, no caso do ser humano, a ideia sobre os modos da extensão, que é a mente, tem a peculiaridade de ser consciente individualmente do corpo e de si mesma. Isto é, segundo esses comentadores, o que faz que, na metafísica spinoziana, pedras não pensem, mas os seres humanos, sim. Segundo essa ótica, sob o atributo pensamento existiria em Deus, uma cadeia de modos finitos (um conjunto de ideias que compõe a mente) e paralelamente a esta, uma outra cadeia de ideias que a mente tem de si mesma (a autoconsciência individual). Ou seja, a mente humana ganha um status central que nenhum outro modo (outro ser natural, como dizem) possui: pensar sua própria cadeia de ideias, ou seja, ser autoconsciente. Acredito que essa interpretação da mente humana (que só os humanos possuem, ou melhor, que somente está associada ao corpo humano e a nenhum outro corpo físico) converte-a em um reino dentro de um reino, rompendo-se assim, a meu ver, a simetria modal da natureza, dando brechas a uma interpretação kantiana de Spinoza e à filosofia do sujeito. Desta forma, pretende-se superar a metafísica, instituindo o primado da representação humana em que o mundo se oferece ao sujeito tão-somente como uma representação construída a partir de uma consciência ontologicamente central. Creio, entretanto, que a “ideia da ideia,” além de não ser um privilégio da mente humana, como interpretam esses comentadores, também não rompe a isonomia corpo-mente. Dizem estes que “eu posso ter a ideia de João, que é sua essência objetiva, porém ao mesmo tempo, posto que a dita ideia é um ente (modo) em si mesma, possui sua própria essência formal, a qual pode ser objeto de uma nova ideia ou essência objetiva, e assim ao infinito”. Repetirei três importantes proposições de Spinoza que se referem à mente humana, e que a meu ver depõem contra a ideia de um sujeito transcendental.
o objeto da idéia que constitui a alma (mente) humana é o corpo, ou seja, um modo determinado da extensão, existente em ato, e não outra coisa67.
A alma humana não só percebe as afecções do corpo, senão também as idéias destas afecções68.
A alma (mente) não se conhece a si mesma senão enquanto que percebe as idéias das afecções do corpo69.
As três proposições somente podem ser autoconsistentes se a ideia de uma afecção do corpo for paralela a uma nova afecção no corpo. Se Gregor Samsa70 percebe a existência de uma barata, por exemplo, sua imagem e seu movimento produzem-lhe uma afecção corporal a qual se reflete em sua mente uma “ideia de barata”. Porém, “a ideia de barata,” por sua vez, está paralelamente associada a uma nova afecção corporal, e esta última está refletida em sua mente como uma nova ideia que é “a ideia da ideia da barata”. Em suma, ao pensar na barata, mesmo sem a sua presença, o infeliz Gregor Samsa terá uma série de afecções corporais que podem ser desde medo, náusea e até o pânico total que o imobiliza — como muitas mulheres podem confirmar. Concluímos isto por coerência com a proposição XIII. Não há assim quebra da isonomia, posto que cada nova ideia tem, a si associada, um novo estado corporal. Não deduzo tampouco das muitas proposições citadas, nenhum privilégio da mente humana de produção de “uma duplicação da ideia da ideia” sem referência ao corpo. Pois que a mesma “ideia da ideia” pode ser atribuída a uma formiga ou a qualquer outro modo sob extensão: os corpos em interação se afetam mutuamente, e a cada nova afecção de um deles se associa uma ideia em Deus e uma nova afecção no outro corpo, e assim sucessivamente. Paralelamente, sob pensamento existe em Deus uma cadeia de ideias (de ideias) (de ideias) até o infinito. Se, em contrapartida, extrairmos das proposições citadas, a consequência de que possa haver uma mente privilegiada que tem ideias de si mesma sem referência ao corpo, ocorrem duas contradições, no seio da axiomática da Ética: a) as ideias passam a não ter contrapartida na extensão, ou seja, a isonomia entre pensamento e extensão se rompe, a não ser que exista algo como a “extensão da extensão” ou o “corpo do corpo”. Como não existem, todavia, tais conceitos, o atributo pensamento torna-se superior à extensão, pois que é autoengendrável e a um único fato corporal corresponderia uma infinidade de ideias, sem contrapartida extensa. b) A existência de um modo pensante sem referência ao corpo contradiz a proposição EII, 13, que repito grifada, à guisa de clareza: “o objeto da ideia que constitui a mente humana é o corpo, ou seja, um modo determinado da extensão, existente em ato, e não outra coisa“. Além dessas contradições, a existência de uma única espécie de mentes autopensantes torna assimétrica e inconsistente a metacosmologia da Ética I na qual nada pode existir que não seja na, e através da, substância infinita que possui infinitos atributos infinitos. Ora, o que é infinito não tem centro nem referenciais privilegiados, sendo uma coleção de mentes autopensantes, um centro ou uma referência privilegiada no seio de um oceano infinito de coisas apenas pensantes em Deus. Novamente, recair-se-ia num inevitável transcendentalismo da filosofia do sujeito. Conceder uma mente autoconsciente apenas ao homem viola toda a isotropia, isonomia e isomorfia da Ética I, além de violar explicitamente o escólio da citada proposição. XIII, que insistentemente sublinho: “Com efeito, tudo o que até aqui demonstramos são coisas comuns e aplicam-se tanto aos homens como aos outros indivíduos, os quais, embora em graus diferentes, são, todavia animados“. Creio assim convictamente que a “ideia da ideia” além de não romper a isonomia, corpo e mente, tampouco é privilégio humano.
No entanto, jamais discordaria de que haja uma hierarquia de mentes, segundo a complexidade dos corpos que lhes correspondem. A ideia da ideia abre aos humanos um rico universo de representações quadraticamente complexas, como a Arte, a Ciência e a linguagem, capazes por si próprias de novas afecções, sentimentos ou paixões como medo e tristeza. Assim, neste sentido, a mente humana é superior à mente de uma formiga na mesma proporção da complexidade de seu corpo. Lembro, no entanto, que uma formiga é também um indivíduo muito complexo, pois constituindo seu corpo existe uma miríade de átomos, constituídos por nêutrons e prótons que se ligam por forças muito complexas e que têm em seu redor uma nuvem de elétrons regida por complexas equações quânticas. A formiga, embora não faça literatura nem música, pode também perceber muitas coisas que ocorrem em seu corpo… Se Deus pensa (como todos spinozistas parecem concordar) sobre o homem, tem de pensar sobre a bactéria, descontadas as proporções e complexidades corporais, posto que esta é a evolução natural e eficiente daquele, como sabemos após Darwin. Não pode assim Deus outorgar “autonomia pensante” ao um modo singular humano e não a outro que é sua causa material e eficiente! Afinal causa aequat effectum e o conhecimento do efeito envolve o da causa. Não vejo assim sentido em haver uma mente humana cercada de objetos brutos, desalmados ou mentecaptos, a não ser que o homem proviria ou de um sopro divino de um Deus transcendental ou seria ele próprio um sujeito transcendental cercado por um mundo amorfo ao qual visa ordenar. É necessário resistir à tentação de reduzir a Ética a uma filosofia de cunho transcendental pós-kantiana.
A milenar disputa metafísica acerca do que seria precedente, se a essência ou a existência, polêmica que remonta aos tempos da Filosofia grega, já se caracterizava na contraposição do ser eterno e atemporal de Parmênides de Eléia (c. 544-450 a.C.) e do vir a ser (devir) mutável de Heráclito de Éfeso (sécs. VI-V a.C.). Aristóteles (séc. IV a.C.) resolveu o problema dividindo o universo em duas esferas: sublunar e supralunar. A primeira conteria o espaço que está entre a Terra e a Lua, e seria o reino das transitoriedades e imperfeições que observamos no cotidiano, ao passo que a segunda seria o domínio das essências perfeitas, como as estrelas em seus eternos movimentos circulares. A primeira seria o reino dos quatro elementos enquanto a segunda seria feita da quintessência.
Como Spinoza resolve este milenar conflito entre as coisas eternas e as transitoriedades? Haveria, segundo o filósofo sefaradita, duas naturezas: Naturada e Naturante (Natura Naturans e Natura Naturata). A primeira, seria o espírito-razão da substância, a natureza em sua essência divina, enquanto a segunda seria a manifestação da substância, onde todas as coisas finitas habitariam em seus atributos (dimensões), ora espaço-temporal (o universo, a matéria e a natureza como os conhecemos), ora mental (ideias ou pensamentos singulares). Enquanto a primeira seria o domínio da essência e dos atributos atemporais, a segunda seria a morada da existência dos modos mutáveis, em constante movimento.
Deve entender-se como Natureza Naturante o que existe em si e concebido por si, ou, por outras palavras, aqueles atributos da substância que exprimem uma essência eterna e infinita, isto é, Deus enquanto é considerado como causa livre. Por Natureza Naturada, porém, entendo tudo aquilo que resulta da necessidade da natureza de Deus, ou, por outras palavras, de qualquer dos atributos de Deus, enquanto são considerados como coisas que existem em Deus e não podem existir nem ser concebidas sem Deus71.
A Natureza Naturante seria aquilo que é eterno, infinito, imutável e indivisível, causa de si própria e de todas as coisas e ideias singulares, sejam elas finitas ou infinitas; enquanto a Natureza Naturada seria a natureza criada, como somatório de todos os efeitos imanentes, que expressa a causa sem dela se separar. Atributos e modos; ordem eterna e temporal, natureza ativa e passiva, causa e efeito, Deus e o universo, são dualidades coincidentes que manifestam a essência única em seus infinitos acidentes.
Dessa forma, ao contrário de Aristóteles, que separa o espaço em duas porções e distintamente de Platão, que separa o mundo permanente das ideias, do mundo imperfeito e mutável dos sentidos, Spinoza apresenta uma solução monista e abrangente, pois que ambos os domínios, Natura Naturans e Natura Naturata pertencem à mesma substância una, indivisível, infinita. Em Spinoza, não existe a dualidade entre ser e devir, pois a substância é, através de seus atributos, permanente e atemporal, e também mutável e acidental, através de seus modos. O mundo material é, pois, mutável, mas suas leis são imutáveis e devem ser consideradas, segundo Spinoza, “sub specie aeternitatis,” o que significa que a relação entre as coisas mutáveis deve ser percebida sob “o ponto de vista da eternidade”. A consciência ou o pensamento busca as relações atemporais e eternas embora as próprias coisas pensadas ou existentes, não o sejam.
Vimos, assim, que os três pilares nos quais se sustenta a metafísica spinoziana são substância, atributos e modos, enquanto os dois primeiros são o primado da eternidade e da permanência, os últimos são as mudanças e transitoriedade das coisas corruptíveis. No entanto, na gênese spinoziana, a substância produz seus atributos, e estes os modos infinitos, que, por sua vez, produzem os finitos, ou seja, as coisas do mundo. Como então entender que a transitoriedade decorre da eternidade? Não será isto uma contradição? No Tratado da Correção do Intelecto, Spinoza nos oferece um precioso exemplo:
Note-se, porém, que por série das causas e dos seres reais não entendo aqui a série das coisas singulares e móveis, mas sim, a série de coisas fixas e eternas. Realmente, seria impossível à fraqueza humana alcançar a série de coisas singulares e mutáveis tanto devido à sua quantidade que ultrapassa todo número, como devido a infinitas circunstâncias numa e mesma coisa das quais cada uma pode ser a causa da existência da coisa (…). Efetivamente, também, não é necessário que intelijamos a série delas, visto que a essência das coisas singulares e móveis não deve ser deduzida da sua série ou ordem da existência. Com efeito, esta última (a ordem da existência) não nos dá outra coisa senão denominações extrínsecas, relações, ou quando muito, circunstâncias, coisas que estão longe de constituir a essência íntima das coisas. Esta, entretanto, só há de procurar nas coisas fixas e eternas e, ao mesmo tempo, nas leis inscritas nessas coisas como seus verdadeiros códigos, e segundo as quais são feitas e ordenadas todas as coisas singulares. De fato, estas coisas singulares e mutáveis dependem tão íntima e essencialmente (por assim dizer) das coisas fixas que sem elas não podem existir nem ser concebidas. Portanto essas coisas fixas e eternas, ainda que sejam singulares, serão para nós, por sua presença em toda parte e latíssima potência, como que universais (…)72.
Imaginemos um triângulo no qual um de seus vértices é móvel. A cada momento um triângulo singular é gerado pelo movimento de seu vértice, mas em todos eles a soma dos ângulos internos é igual a dois retos. A transformação dos triângulos pressupõe a permanência da soma de seus ângulos. Nas transformações do mundo físico, da mesma forma, escondem-se permanências na forma de leis, como as de conservação de energia, momentum linear e angular, carga elétrica, paridade, spin etc. Por detrás da infinita série das coisas transitórias encobrem-se a infinitude e a atemporalidade. Creio ser esta a essência da relação spinoziana entre a mudança e permanência, bem como entre a duração e a eternidade.
Da mesma forma, a lei da gravitação de Newton, segundo a qual “a matéria atrai a matéria na razão direta de suas massas e na razão inversa do quadrado das distâncias,” vale para todos os planetas e para todos os tempos, passados e futuros. Enquanto planetas e triângulos constituem o que Spinoza chama de “série de coisas mutáveis,” as leis de Newton e de Thales são as “leis inscritas nessas coisas como seus verdadeiros códigos, e segundo as quais são feitas e ordenadas todas as coisas singulares”. Para Spinoza, as coisas finitas e mutáveis que, como já vimos, são os modos finitos sob o atributo extensão, devem ser compreendidas e arranjadas segundo as leis da natureza que são os modos infinitos e esses, por sua vez, entendidos como projeções dos atributos divinos que também são projeções, e assim até o infinito.
Esse concreto universo de coisas finitas está para Deus assim como uma construção está para seu projeto, isto é, a estrutura mecânica e matemática segundo a qual foi construída. Sem essa base de sustentação, a construção desmoronaria, ou melhor, nem existiria. Desta forma, o universo é sustentado e existente pela sua estrutura, suas leis invariáveis e relações imutáveis. Para Spinoza, todos os eventos são regidos por essa magnífica estrutura de leis e relações, e não por um caprichoso e invisível monarca sentado nas nuvens. A busca dessas leis é um dos caminhos que nos aproximam da eternidade de Deus, fazendo do cientista e do filósofo uma espécie de sacerdote que Lhe rende um culto sub specie aeternitatis.
Finalizo estes dois capítulos iniciais, dedicados à biografia e à filosofia de Spinoza, afirmando de alto e bom tom que, jamais na história do pensamento, um filósofo foi tão odiado, criticado e perseguido, mas, ao mesmo tempo, tão amado e respeitado quanto o jovem judeu português Baruch de Espinosa que, depois, tornar-se-ia o holandês cidadão do mundo Benedictus Spinoza. É impossível permanecer-se impassível frente a uma Filosofia tão bela e radical. Tanto o seu sistema quanto as suas conclusões são de uma beleza sem par na história das ideias. Se a beleza se confunde com a verdade, como dizia o poeta Keats, a filosofia de Spinoza seria a mais verdadeira de todas. Ela, de fato, não pode estar parcialmente certa e ao mesmo tempo parcialmente errada, pois não é possível efetuar-se remendos em seu sistema. Ao associar a essência divina à existência da natureza, por meio de seus infinitos atributos infinitos, elevando as leis naturais e o equilíbrio do universo às esferas do divino, Spinoza aproximaria a razão da fé e a ciência da religião, tornando-as inseparáveis. Não teria medo de afirmar que Spinoza cria uma espécie de religião da ciência da qual Einstein, como veremos, se aproximará de forma bem clara. Certa vez o filósofo perguntado se acreditava em Deus, respondeu: “Eu não acredito em Deus, eu conheço Deus“. Deus que estaria morto para Nietzsche e Marx, e que era desnecessário para Laplace, para Spinoza, porém, estava vivo na medida da força de nossa compreensão, na capacidade de observação de nossos sentidos e na liberdade de nossas ações comprometidas apenas com a necessidade e a coerência interna. Para o filósofo sefaradita, o bem é a consequência da liberdade e da virtude da livre ação coerente que decorre, por sua vez, do pensamento livre, porém lógico e necessário. O bem agir é assim um processo, e não apenas um ato isolado como fica claro nos versos do poeta Antônio Machado: “Caminante no hai camino, se hace el camino al andar“.
Um dos questionamentos que se pode fazer em relação ao sistema determinístico de Spinoza é se poderá haver felicidade em um universo determinado no qual os fatos decorrem da necessidade divina e universal. Poderão os homens perseguir e alcançar a felicidade ou pelo menos um profundo bem-estar? A felicidade, segundo o filósofo de Amsterdã, é possível. No entanto, seguramente não se a obterá querendo mudar o universo ou a si mesmo, pois que isto é impossível em um sistema onde tudo ocorre necessariamente, mas cada um conhecendo-se como uma das forças ativas da Natureza. Felicidade, para Spinoza, é assim igual ao supremo conhecimento proporcionado pelo Amor Intelectual de Deus, estado no qual divisamos claramente que tudo o que ocorre no universo, e inclusive a nós mesmos, apenas tem um sentido quando percebido em sua necessidade e totalidade indivisa.
A virtude maior é, portanto, ser livre, clarividente e feliz para assim sentir o Amor Intelectualis Dei. Como não se pode mais separar Deus de seus efeitos naturais imanentes, a Sua essência infinita, livre e eterna, manifestar-se-á como uma ilusão em nossa consciência finita, que é denominada de tempo, mas, no estágio mais elevado da sabedoria, poder-se-á sentir a eternidade suprimindo o tempo, e, nesse momento atemporal, percebe-se também a infinitude. É essa a imortalidade da mente que se desprende do corpo nas últimas linhas da Ética. Deus, para Spinoza, é observável e inteligível à nossa razão e não apenas crível à nossa intuição. É possível assim conhecer Deus.
Uma pedagogia filosofante da ciência deve, na mesma medida, democraticamente distribuir, entre mestre e aprendizes, o bem-estar proporcionado pelo conhecimento do universo e de suas relações. Não apenas o conhecimento que leva à técnica, e com esta ao consumo material, mas principalmente o conhecimento que conduz aos estados de felicidade suprema. No entanto, não será o mestre que transferirá este conhecimento aos aprendizes, pois o saber já se encontra suspenso esperando apenas o momento de sua precipitação. O conhecimento guarda com os conhecedores a mesma relação que há entre a substância e seus modos: a precipitação do infinito eterno sobre o finito mutável.
Mestre e seus aprendizes estão emaranhados entre si, e com o mundo, como elos de uma cadeia infinita de causas, relações, razões e motivos que somente a infinitude do conhecimento pode entender em sua totalidade, pois a percepção do infinito é impossível a corpos e mentes finitas. Assim, nenhum deles pode ser a causa única da modificação do outro. No entanto, padeceriam de tanto menos tristeza e mais de alegria à medida que percebessem a amplitude do espectro de ações que podem exercitar e compartilhar como causas livres e suficientes. Caminhar, preparar uma boa aula, dialogar com seus aprendizes, indicar-lhes um caminho para o conhecimento, já são motivos de contentamento em si. No entanto, querer que o mundo e os aprendizes se submetam aos desígnios prescritos pela vontade resultará sempre numa afecção triste, porque o mestre não tem o poder de modificar seus discípulos, pois para tal muitas outras causas concorrerem concomitantemente. Eis aí o sofrimento previsto por Spinoza, quando não somos (e não muitas vezes não podemos ser) a causa adequada de um determinado efeito externo que desejamos. O mundo, como uma infinita teia de causas e efeitos, se nos apresenta projetado, em razão da limitação de nossos corpos e mentes, na forma de uma roda da fortuna. Saber suportar, com a mesma serenidade, as precipitações dos acontecimentos que não dependem de nossa natureza, é a marca da sabedoria. O verdadeiro educador age pela força interna de suas ideias e de seus atos, sabendo deles extrair a sua própria alegria, sem esperar que as precipitações da roda da fortuna — os resultados pedagógicos de seus aprendizes se dêem exclusivamente de acordo com sua vontade. Sábio é alegrar-se com a pequena porção do universo sobre a qual podemos atuar.
Afinal, Deus sive natura nos ensina que o melhor caminho para conhecer Deus é buscar a natureza que não apenas nos circunda exteriormente, na forma de resultados ou representações, mas que em nós está entranhada pela mesma necessidade com que a soma dos ângulos de um triângulo é igual a dois retos…