Capítulo VI: Encontros metafísicos de Einstein com spinoza: uma didática spinozista da teoria da relatividade

Creio que estamos aptos a adentrar num dos núcleos centrais do problema abordado neste livro, qual seja, caracterizar as afinidades e os pontos de tangência entre o programa de pesquisa científica de Einstein e a metafísica de Spinoza, para assim vislumbrar horizontes multidisciplinares, não só para uma filosofia, como também para uma pedagogia da Teoria da Relatividade (TR). Os capítulos anteriores encontrarão aqui o seu ponto de convergência e equilíbrio.

Procurar-se-á então estabelecer até que ponto o pensamento de Einstein em sua totalidade e, em particular, a TR, possui afinidades com a obra de Spinoza. É evidente que existe uma grande diferença de épocas e contextos separando os dois pensadores, o que faz com que as analogias devam ser feitas com cautela. Ainda assim, arriscarei dizer que a TR, notadamente ao que se refere à concepção do espaço-tempo, como cenário de coisas existentes e conectadas através de um princípio ontológico de causalidade, possui elementos em comum com a metafísica de Spinoza. A ideia de uma Natureza, cujas leis não podem depender de como são descritas ou conhecidas por observadores em estados particulares de movimento, e, portanto, em estados particulares de relação com o mundo, parece-me um forte elemento comum. Vislumbrarei a possibilidade de que esse princípio, introduzido na TR na forma de seu primeiro postulado, possa ser entendido como uma projeção de algo ainda mais essencial de uma metafísica que pressupõe a natureza como causa e razão de si própria, não podendo assim submeter-se às intenções ou vontades humanas, estas, sim, submetidas a um princípio ontológico de causalidade estendida.

Refletirei, pois, que tanto a Ética de Spinoza como a Relatividade de Einstein buscam um fundamento único, substrato do Real, descentralizando o papel do observador, e com isso a ideia de tempo perde o seu sentido de ordenação absoluta, correspondendo a uma sequência relativa de afecções corpóreas do observador, imaginariamente numeradas segundo antes, agora e depois. Enfatizar-se-á que também a duração será resgatada nos dois sistemas, com o sentido originário de tempo como comparação entre existências, resultando relativas à ordem e frequência de como são produzidas as afecções no corpo (relógio) dos observadores.

Operando analiticamente, em cada um dos sistemas de pensamento, do geral ao particular, apresentarei uma introdução de alguns aspectos do pensamento spinozista, que presumivelmente teriam influenciado a chamada religião cósmica de Einstein, para, em seguida, poder perceber nos postulados, e nas consequências da TR, alguns elementos metafísicos comuns, já pincelados acima. Procurarei então refletir que, a partir dos postulados da TR, deduzem-se conceitos de espaço-tempo e simultaneidade compatíveis com o paralelismo spinoziano entre corpo e alma. Em Spinoza esses conceitos, ao contrário do que ocorre na Física newtoniana (na qual o espaço-tempo é substancializado) ou ainda no criticismo kantiano (no qual ele é intuído de forma absoluta), surgem paralelamente às sucessivas afecções corpóreas do observador, em movimento relativo às causas dessas afecções. Por outro lado, porei em relevo que a TR resultará incompatível com qualquer teísmo transcendental, que pressuponha uma ação divina instantânea à distância, além de uma simultaneidade absoluta e universal, mas será, no entanto, compatível com o panteísmo imanente de Spinoza, que não requer tais decretos divinos. Finalmente, especularei sobre a possibilidade de que a renitente busca de um Einstein, maduro e consagrado, por uma teoria unificada, poderia ter sido sugerida pelo unitarismo substancial da metafísica spinoziana. Comentarei en passant, em que medida Einstein, ao introduzir em sua teoria a constante cosmológica, assumiu pressupostos metafísicos com vistas a produzir um modelo que descrevesse um universo eterno e estacionário, tal como os atributos divinos da filosofia de Spinoza. Tal fato merece, entretanto, um trabalho mais aprofundado, pois foi um dos episódios mais marcantes e polêmicos da carreira de Einstein.

Seria, no entanto, prudente começar este capítulo alertando aos leitores que não se pretende, aqui, descrever fatos biográficos que caracterizariam a influência que o pensamento de Spinoza teria exercido sobre Einstein, ou seja, não se propõe reunir documentos comprobatórios, para estabelecer as evidências dessa influência. Para tal, este livro teria de prolongar-se muito além de meus objetivos, adentrando por competências de historiador que me são, por ora, inacessíveis, além de obrigar-me a apresentar provas documentais às quais não tive acesso. Assim, com o aval de biógrafos mais qualificados, e mais bem equipados (Paty, Schilpp, Pais, Jammer, Papp, dentre outros), quaisquer influências spinozianas, porventura exercidas sobre Einstein, serão tidas inicialmente como um pressuposto. Desta forma, as citações, bem como as manifestações de apreço do físico em relação ao filósofo, serão consideradas tão-somente como indícios, e não como evidências do presumível spinozismo do pensamento científico einsteiniano. Isto será sugerido por outra via: a da reflexão filosófica operada no interior da TR. Não se trata, portanto, de uma tentativa de perscrutar a vida de Einstein, mas de uma reflexão metafísica acerca dos elementos essenciais comuns às obras dos dois pensadores. Para evitar equívocos ou falsas expectativas, enfatizo que, como influências spinozianas diretas pressupõem o estabelecimento de nexos causais ao longo da vida de Einstein, validados com documentos que não disponho; contentar-me-ei em fazer com que o leitor vislumbre as afinidades filosóficas que julgo existir entre os núcleos centrais desses dois sistemas de pensamento, e, caso seja ele professor, que as possa transmitir aos seus aprendizes. Tais afinidades serão muito mais abduzidas do que deduzidas ou induzidas factualmente. Ao invés de provas cabais dessa relação, buscar-se-ão indícios, pistas, pegadas metafísicas.

Creio também que a identificação de elementos metafísicos, comuns em Spinoza e Einstein, poderá contribuir para um melhor entendimento da TR, geralmente ensinada nas salas de aula como uma construção interna da Física, e, portanto, gerada a partir de pressupostos apenas necessários à dinâmica evolutiva da Ciência pura. Esboçar-se-á uma percepção multidisciplinar da TR, acompanhada por uma proposta alternativa de seu aprendizado, já posta em prática ao longo de minha trajetória docente. Peço assim vênia aos leitores pelos (não poucos) trechos em que a especulação filosófica poderá sobrepor-se à narrativa factual histórica, esboçada no capítulo anterior.

O “Spinoza de Einstein”: um paralelismo biográfico e filosófico

Tentarei inicialmente resumir algumas ideias de ordem geral da metafísica de Spinoza que supostamente influenciaram o pensamento de Einstein, aqui representado por algumas citações que podem ser indícios desta influência. Essas ideias, que aqui serão resumidas, serão notadamente a desantro-pomorfização, infinitude, unidade e imanência divinas; a causalidade não mecanicista, o realismo, o paralelismo entre as afecções corporais e as ideias da mente; elementos estes que resultarão, na obra de Einstein, numa invariância das leis da natureza, numa rigorosa causalidade transportada por sinais eletromagnéticos que, alçados à condição ontologicamente central de invariantes mensageiros universais, transformam o universo num bloco de eventos observáveis. A relativização do espaço-tempo, e uma busca febril pela unificação dos princípios da Física, também serão tidos como consequências de uma ontologia que situa a natureza em primeiro plano.

Como já foi suficientemente caracterizado nos capítulos I e II, Spinoza rejeitava a concepção teísta tradicional de um Deus criador transcendente ao universo, negando-lhe ainda quaisquer propósitos ou finalidades. Viu-se também que, na obra do pensador luso-holandês, o universo e a natureza confundem-se com Deus, sendo regidos por leis imutáveis de causa e efeito, e não de acordo com intenções divinas deliberadas ou sobrenaturais. Embora, ao longo da Ética, Spinoza empregasse constantemente o termo Deus, só o aplicava a uma substância cujas modificações infinitas seriam a estrutura e as leis que regem a ordem cósmica impessoal, negando também à ideia divina, quaisquer princípios de vontade, bondade, providência, finalidade, pois os considerava tão-somente representações ou expectativas humanas. Paty1 enfatiza que para Spinoza, Deus, como causa sui, não pode ser onisciente, piedoso ou sábio, sendo a suposta vontade divina não mais que um refúgio da ignorância humana, e a teleologia tida como preconceito antropocêntrico. Mas ninguém melhor do que o próprio Spinoza para aclarar o que podemos chamar de “desantropomorfização” das ideias de bem e de mal:

(…) tudo o que na natureza nos parece ridículo, absurdo ou mal, não tem essa aparência senão porque nós conhecemos as coisas somente em parte, e ignoramos na maior parte a ordem da natureza inteira e as ligações que há entre as coisas, de modo que queremos que tudo seja dirigido conforme a nossa razão, e, contudo o que a razão afirma ser mau não o é, se considerarmos a ordem e as leis do Universo, mas unicamente se atendermos somente às leis de nossa natureza2.

Com Spinoza, todos os valores antropocêntricos são destronados, tendo-se a primeira crítica rigorosa acerca da existência ontológica do bem e do mal, podendo haver apenas o “bom” e o “ruim” na vida prática humana. “O bem e o mal estão no nosso entendimento e não na natureza, sendo assim entes da razão”. A moralidade e a obediência são varridas para fora, em prol da liberdade e do conhecimento, pois é este último que nos permite saber o que é “bom ou “ruim,” enquanto apenas modos. Einstein, em perfeita ressonância, converge para essas ideias quando, num texto de 1930, escreve:

A leitura de alguns livros científicos populares convenceu-me que a maioria das histórias da Bíblia não poderia ser real (…) Essa experiência fez com que passasse a desconfiar de todo o tipo de autoridade, adotando uma atitude céptica quanto às convicções vigentes em qualquer ambiente social específico – uma atitude que jamais abandonei, embora mais tarde tenha sido amenizada por uma visão mais perfeita das conexões causais(…) Além de mim, fora de mim, estava o mundo imenso, que existe independente dos seres humanos e que se nos apresenta como um enorme e eterno enigma, em parte acessível à nossa observação e ao nosso pensamento. A contemplação desse mundo acenava-me como uma força libertadora, e percebi que muitos daqueles a quem aprendera a respeitar e admirar haviam encontrado, por esse meio, liberdade interior e a segurança. (…)3 (Os grifos feitos na citação acima têm por finalidade realçar os aspectos comuns anteriormente apontados.)

Spinoza reformulou, portanto, a concepção judaico-cristã de um Deus, pessoal, transcendente, voluntarioso ou providencial. O que a Bíblia descreve como milagres ou intervenções de Deus, Spinoza considerava como o curso da natureza em sua permanente atividade e atualidade. Algumas referências de Einstein, de caráter geral, embora não explicitamente evidentes, parecem sinalizar para o fato de que a sua chamada “religião cósmica” convergia para elementos spinozianos como a necessidade de uma hermenêutica bíblica, a causalidade restrita e uma realidade inteligível, e em parte cognoscível, independente do homem que a quer conhecer:

Sabe-se que, em 1903, o físico tomara conhecimento da Ética, tornando-se, a partir de então, um dos mais ilustres leitores e admiradores desta obra. Segundo Abraham Pais4, foi somente em 1903 que Einstein, então com 24 anos, juntamente com o amigo Max Talmude e outros, travaram conhecimento com a obra de Spinoza. Juntos constituíram uma espécie de confraria à qual denominaram de Akademia Olímpia, onde:

(…) Jantavam juntos, geralmente entretendo-se enormemente, e discutiam Filosofia, Física e literatura, de Platão a Charles Dickens. Estudaram a Ética de Benedictus Espinosa, o Tratado sobre a natureza humana de David Hume, o sistema lógico de John Stuart Mill e a crítica da experiência pura de Richard Avenarius5.

Em um de seus textos acerca do aparente conflito entre a Ciência e a Fé, Einstein criou o termo “religião cósmica” com uma conotação muito semelhante à ideia spinoziana. Portanto, não será despropositado assegurar que Spinoza, na citação acima, tenha sido um dos “muitos daqueles a quem aprendera a respeitar e admirar,” fato esse sugerido pelo texto abaixo:

É muito difícil esse sentimento (a religiosidade cósmica) a qualquer um que seja totalmente desprovido dele, especialmente porque não há uma concepção antropomórfica de Deus que lhe corresponda. Os gênios religiosos de todas as eras distinguiram-se por esse tipo de sentimento religioso, que não conhece dogma ou Deus concebido à imagem do homem; assim não pode haver igreja cujos ensinamentos centrais sejam baseados nele. Por isso é precisamente entre os hereges de cada era que encontramos homens imbuídos desse elevado tipo de sentimento religioso e foram em muitos casos vistos por seus contemporâneos como ateus, às vezes como santos. Vistos sob esta luz, homens como Demócrito, São Francisco de Assis e Spinoza ficam proximamente ligados (…) Em minha opinião, a função mais elevada da arte e da ciência é despertar esse sentimento (…) Assim chegamos a uma concepção da relação entre ciência e religião muito diferente da comum. Quando encaramos a questão historicamente, ficamos inclinados a ver a ciência e a religião como antagonistas irreconciliáveis, e por um motivo muito óbvio. O homem que está completamente convencido da operação universal da lei da causalidade não pode por um instante sequer admitir a idéia de um ser que interfere no curso dos eventos (…) É, portanto fácil ver porque as igrejas sempre combateram a ciência e perseguiram os seus devotos. Por outro lado, defendo que o sentimento religioso cósmico é o motivo mais forte e mais nobre para a pesquisa científica (…) Um contemporâneo disse que nesta nossa era materialista os cientistas sérios são as únicas pessoas profundamente religiosas (…)6.

Como vimos no capítulo II, Deus, para Spinoza, é definido como uma substância infinita, ilimitada, dotada de infinitos atributos dos quais apenas dois seriam acessíveis ao nosso entendimento: a extensão e o pensamento. O mundo, tal qual o vemos, é constituído por entes finitos que Spinoza denomina de modos, ou seja, modificações singulares da substância que a manifestam, sob dois atributos distintos, como coisas extensas (matéria) e como coisas pensantes (ideias). Deus é uma coisa extensa e pensante assim como seus modos. Portanto, no sistema spinoziano, a mente pensa concomitantemente ao corpo extenso, quando este é afetado fisicamente, não havendo uma determinação da primeira sobre o segundo, ou vice-versa, simplesmente porque corpo e mente são modos isonômicos e correspondentes da substância, manifestos através de dois atributos distintos. Não há, portanto, nenhuma ideia que não corresponda a um corpo extenso e, vice-versa, onde existir um corpo no espaço haverá também ideias a ele associadas. Assim, qualquer corpo extenso terá ideias correlatas às afecções que sofre dos demais corpos dispostos em sua vizinhança. É importante notar que essas ideias não são ideias humanas acerca de um corpo externo, como poderia se supor na epistemologia kantiana, ou uma sensação, como na filosofia empirista, por exemplo. As ideias a que se refere o pensador luso-judeu são afecções singulares da substância que se exprime sob seu atributo pensamento, e que ocorrem paralelamente às afecções físicas sofridas pelo corpo, sob outro de seus atributos, a extensão. O mesmo se aplica ao corpo humano, e a sua mente associada, que, a não ser pelo fato de poder dispor-se de muitas e variadas formas distintas, não possui nenhuma primazia sobre os demais corpos extensos da natureza (revejam o capítulo II). Portanto, na metafísica de Spinoza, existem ideias associadas ao corpo humano, bem como ideias associadas a qualquer outro corpo extenso. O elogio explícito que Einstein faz a Spinoza, desta feita, não deixa dúvidas quanto à afinidade do físico em relação tanto ao panteísmo quanto ao paralelismo e à isonomia entre corpo e mente (alma):

Sou fascinado pelo panteísmo de Espinosa, mas admiro ainda mais sua contribuição para o pensamento moderno, por ele ter sido o primeiro filósofo a lidar com a alma e o corpo como uma coisa só, e não como duas coisas separadas7.

A substância-Deus é o fundamento do Real do qual o homem é, tal qual qualquer outro ente, tão-somente um duplo modo singular finito. O real, expresso por leis eternas da natureza, não pode assim depender de como é descrito, falado, imaginado ou pensado pelo homem, ou qualquer um dos modos, pois que o pensamento é atributo da substância, que se exprime através de seus modos singulares. Assim, para Spinoza, não é o homem que se expressa através de uma linguagem que descreve o seu conhecimento das leis da natureza, mas é esta que se expressa através do homem, quando ele a descreve. Da mesma forma, não é o homem que pensa, mas sim Deus é que pensa através de cada um de seus modos, inclusive a mente humana. Nesse último sentido, a filosofia de Spinoza difere radicalmente do “eu penso” cartesiano, expressão esta de um sujeito pensante ontologicamente central, e aproxima-se do homologuein heraclitiano em que o homem ente da physis corresponde ao Logos (ver capítulo X). E o que se chama vulgarmente de “vontade de Deus,” não é mais do que as leis da natureza em ato, e, portanto, a vontade singular do homem (ou de qualquer outro modo) deve também se submeter às leis mais gerais através das quais a natureza evolui como um todo.

Portanto, os homens não possuem, segundo Spinoza, qualquer livre arbítrio, ou seja, vontade ou capacidade de decidir entre aparentes opções, pois que todo o universo segue um curso determinado por suas leis, estas sim universais, invariantes e independentes de como, e por quem, são observadas, uma vez serem elas modos infinitos da substância-Deus8

A contingência, o acaso e a liberdade de escolha de nossa vontade, que imaginamos existir, decorrem do desconhecimento total ou parcial das causas em razão das quais nós mesmos ou os outros corpos existem no espaço. Quanto maior o desconhecimento das causas, maior será a contingência aparente. Não poderia ser este o sentido das jocosas palavras de Einstein quando se refere ao desejo de fumar o seu cachimbo? (revejam o capítulo II)

Sinceramente não consigo entender o que as pessoas querem dizer quando falam sobre a liberdade do arbítrio humano. Sinto, por exemplo, que desejo isto ou aquilo, mas que relação tem isso com a liberdade, eu simplesmente não compreendo. Sinto que desejo acender o meu cachimbo e o faço, mas como posso associar isso à idéia de liberdade? O que está por trás do ato de acender o cachimbo? Um outro ato de arbítrio?9

Reciprocamente, um conhecimento adequado das causas leva necessariamente a uma sequência de ideias claras, necessariamente dedutíveis umas das outras. Um homem e um objeto qualquer não diferem senão pelo grau de complexidade de seus corpos, e das causas que os movem, o que corresponde também a distintos graus de complexidade de suas mentes (capítulo II)10. É importante, pois, enfatizar novamente que, para Spinoza, mentes e corpos não pertencem aos homens, ou quaisquer outros modos, mas são modificações, sob atributos paralelos, da substância, cuja essência envolve a existência, pois que esta decorre necessária e suficientemente de sua definição (capítulo II). A ênfase dada, para que se entenda o pensamento científico de Einstein em toda a sua extensão, é para que não se cometa o equívoco muito comum de reduzir a ontologia spinoziana a uma epistemologia centrada no sujeito humano (ver capítulo X).

Dos atributos divinos, deduzem-se os modos infinitos, ou seja, as leis da natureza, e destas resulta o universo modal, do qual fazemos nós, e os objetos que nos cercam, duplamente parte, como extensão (corpo) e como pensamento (mente). Em resumo, para Spinoza, e, como suponho, já num estado mais avançado de certeza, também para Einstein, todos os eventos mundanos são regidos por uma magnífica estrutura de leis e relações necessárias que podem ser postas sub specie aeternitatis (sob o aspecto da eternidade), e não por um caprichoso e invisível monarca sentado nas nuvens. Certa vez, Einstein, quando solicitado a escrever um artigo sobre Spinoza, assim se expressou:

Não tenho conhecimento especializado para escrever um artigo acadêmico sobre Espinosa. Mas posso expressar em poucas palavras o que penso desse homem. Espinosa foi o primeiro a aplicar ao pensamento, ao sentimento e à ação humanas, com rigorosa coerência, a idéia de um determinismo generalizado. Em minha opinião, seu ponto de vista só não ganhou a aceitação geral de todos os que lutam pela clareza e pelo rigor lógico porque não exige apenas coerência de pensamento, mas também uma integridade, magnanimidade e modéstia incomuns11.

Os axiomas fundamentais do sistema spinoziano são eternos, como os da geometria, deduzindo-se deles princípios necessários e atemporais, resultando daí, como veremos adiante, um tempo, como modus cogitandi, ou seja, forma de pensamento associada às afecções do corpo.

Parafraseando Spinoza sobre a possibilidade do conhecimento de Deus, ao invés de uma simples crença num Deus pessoal, Einstein, quando um rabino americano perguntou-lhe se acreditava em Deus, teria respondido:

O Deus no qual acredito é o Deus de Spinoza, que se revela na harmonia ordeira daquilo que existe, e não num Deus que se interesse pelo destino e pelos atos dos seres humanos12.

Para ambos, assim, Deus não é objeto de crença, apaziguador de medos nem fonte de esperanças, mas sim de conhecimento.

O homem que se mira no espelho

Em 1894, Einstein, então com 16 anos, perguntava-se o que aconteceria à imagem de um homem que se afastasse de um espelho com a velocidade da luz. Simplesmente a imagem refletida desapareceria, pois a luz não teria como atingir jamais o espelho. Por outro lado, como as ligações moleculares que mantêm qualquer corpo coeso são, assim como a luz, de origem eletromagnética, o homem imaginado por Einstein, antes de perder a sua imagem, deixaria para trás seu próprio corpo. Como imaginar uma mente pensante sem o corpo associado? Poderia ter perguntado Einstein, depois de ter lido a Ética, em 1903. Percebeu assim que a velocidade da luz não era como qualquer outra, uma simples velocidade, mas o próprio limite universal de transmissão dos processos causais, ou seja, um limite para a própria ordem e conexão das coisas ou modos.

Vejamos o que Einstein nos diz acerca do homem que observa um raio luminoso viajando ele próprio com a mesma velocidade:

Gradualmente perdi a esperança de descobrir as leis verdadeiras (…) Quanto mais me dedicava a esse objetivo, mais me convencia que só a descoberta de um princípio formal universal poderia levar a resultados seguros (…) Após dez anos de estudo, o princípio surgiu, resultando de um paradoxo com o qual me defrontara quando tinha 16 anos: se um raio for perseguido a uma velocidade c, observamos esse raio de luz como um campo eletromagnético em repouso, embora com oscilação espacial. Entretanto, aparentemente, não existe tal coisa, quer com base na experiência, quer de acordo com as equações de Maxwell. Desde o início, tive a intuição clara de que, segundo o ponto de vista desse observador, tudo devia acontecer de acordo com as mesmas leis aplicáveis a um observador que estivesse em repouso em relação à Terra. Pois, como poderia o primeiro observador saber ou determinar o que está em estado de movimento rápido uniforme?13

Essas ideias tiveram uma longa maturação até que, em junho de 1905, no já mencionado artigo publicado na Annalen der Physik 17, 891-921, Zur Elektrodynamic bewegter Korper (Sobre a Eletrodinâmica dos corpos em movimento), Einstein formularia uma das mais concisas, elegantes e revolucionárias teorias de nossos tempos. Como vimos no capítulo anterior, ele partiria de apenas dois postulados universais e atemporais enunciados sem demonstração, construindo daí uma cadeia silogística com consequências dramáticas não só para todo o entendimento como para a percepção sensorial comum: a desconstrução do espaço e do tempo absolutos.

O primeiro postulado (revejam o capítulo V) é um princípio de universalidade das leis da natureza já enunciado por Galileo, mas que foi mais radicalmente expresso por Spinoza, como vimos antes numa nota de rodapé:

A Natureza é sempre a mesma; a sua virtude e a sua potência são unas e por todas as partes as mesmas, isto é, as leis e as regras da Natureza, segundo as quais tudo acontece e passa de uma forma a outra, são sempre e por todas as partes as mesmas; por conseqüência, a via reta para conhecer a natureza das coisas, quaisquer que elas sejam, deve ser também una e a mesma, isto é, sempre por meio das leis e das regras universais da Natureza14

Como exemplo, poderíamos perguntar que sentido teria o universo se Paulo dissesse que “nas equações de Maxwell aparece uma constante c“ e Pedro, que se move com velocidade v em relação a Paulo15, dissesse que “nas mesmas equações aparece uma constante c-v?” Segundo Einstein, se as leis fossem distintas, para os dois observadores se estaria diante de uma subjetividade do universo que se manifestaria de forma distinta para cada observador em estado particular, e o mundo seria convertido em uma Torre de Babel, como nos é aqui sugerido:

Desde o início, tive a intuição clara de que, (…), tudo devia acontecer de acordo com as mesmas leis aplicáveis a um observador que estivesse em repouso em relação à Terra16.

A violação do primeiro princípio da Relatividade implicaria também na violação da já comentada proposição VII da Ética II: “A ordem e a conexão das idéias é o mesmo que a ordem e a conexão das coisas“ Como vimos no capítulo II, a proposição acima estabelece a equivalência entre coisas (modos sob atributo extensão) que se produzem causalmente uma às outras, e ideias (modos sob atributo pensamento), acerca dessas coisas, que decorem logicamente uma das outras. Como a proposição acima exige que a uma cadeia causal de coisas corresponda apenas uma cadeia de ideias, ela estabeleceria um realismo, ou seja, uma universalidade e invariância das leis, em relação a distintos modos singulares. Enfaticamente, repito o esquema abaixo:

C → E (a causa produz seu efeito)

IC → IE (ideia da causa implica na ideia do efeito)

Einstein também formula o seu ordo et conexio, da seguinte forma:

Vejo de um lado a totalidade das experiências sensoriais, de outro, a totalidade dos conceitos e proposições. As relações entre os conceitos e as proposições são de natureza lógica e o processo do pensamento lógico é estritamente limitado à efetivação da conexão entre os conceitos e as proposições entre si, de acordo com regras firmemente estabelecidas, que constituem a matéria da lógica. Os conceitos e proposições adquirem “sentido” ou “conteúdo” apenas através de suas conexões com as experiências sensoriais17.

Entendo assim que o primeiro postulado é compatível, e necessário, aos dois sistemas. As leis da natureza, que podem ser interpretadas como sendo os modos infinitos (imediatos ou mediatos) projetados sob atributo extensão, teriam assim nos dois sistemas estatutos ontológicos, inexistentes no sistema kantiano ou em qualquer sistema dito pós-metafísico.

Em carta dirigida a Schlick ele faz uma clara distinção entre uma realidade objetiva e independente do observador e uma realidade apenas fenomenológica relativa aos diversos observadores. Desta forma, o campo gravitacional ou o espaço, considerados isoladamente, são reais apenas no segundo sentido, enquanto o tensor métrico ou o quadrivetor espaço temporal são reais no primeiro. E completa:

As leis da natureza só podem ser definidas através de objetos invariantes. A física deve ser formulada com estes e somente eles fazem parte da ontologia da teoria18.

Como esclarecimento acerca da invariância e universalidade das leis, pode-se imaginar o seguinte exemplo. Se numa geometria plana, na ausência de campos gravitacionais, diz-se que a soma dos ângulos internos de um triângulo é igual dois retos, em outro ponto do espaço, onde há um forte campo gravitacional (por exemplo, cerca do Sol), como vimos no capítulo anterior, o espaço se encurva e a soma dos ângulos pode ser maior que dois retos. Poderia isto significar que as leis do universo não são as mesmas em sítios diferentes? Estaria assim sendo violada a universalidade das leis? Não, se considerarmos que as equações de Einstein, que estabelecem a curvatura do espaço (o tensor métrico) em função da distribuição local de matéria, podem ser entendidas como sendo ainda mais básicas do que os postulados da geometria euclidiana, sendo válidas em toda a extensão do universo. O realismo einsteiniano (e spinoziano) demanda que, quando uma lei (modo infinito segundo minha interpretação) se reveste de um caráter apenas local ou de validade relativa a um conjunto restrito de observadores, ela perde o seu estatuto de lei da Natureza e deve ser substituída por outra, de caráter universal e invariante, da qual é um caso particular. As leis da natureza adquirem, nesses dois sistemas que estou comparando, um estatuto ontológico, e não apenas epistemológico, com a mera função de organização de um mundo amorfo.

A grande novidade einsteiniana é o segundo postulado, que, como vimos no capítulo anterior, alça a velocidade da luz ao patamar da universalidade que antes não tinha. A velocidade da luz passa a ser o limite universal para todos os processos de transformação ocorridos na natureza. Embora seja quase impossível admitir que Spinoza tenha pensado desta forma, de acordo com a TR, os modos finitos produzir-se-iam uns aos outros, dentro de uma cadeia causal que não pode ultrapassar a velocidade da luz. Em física relativística, diz-se que todo evento tem linhas de horizonte além das quais nada poderemos conhecer, e a essas linhas denomina-se de cone de luz. As regiões externas ao cone não são passíveis de conexão causal com o evento em questão e se denominam alhures (ver Figura VI-1)

Já vimos que o segundo postulado tem, pelo menos, duas consequências drásticas, e quase incompreensíveis, para a ideia que comumente fazemos do tempo, e que vale a pena recordar: a inexistência de uma simultaneidade universal, tornando os conceitos de passado, presente e futuro, relativos; e durações de tempo distintas para observadores em movimento relativo, implicando que um relógio em movimento torna-se mais lento, quase parando à medida que se aproxima da velocidade da luz.

Figura VI-1: o cone de luz

Realismo e monismo

As consequências da Relatividade ferem brutalmente o senso comum, e, portanto, não poderiam ser diretamente obtidas da experiência sensorial, como defenderiam os empiristas clássicos19. São assim produto de um pensamento racional disparado pela ideia de um menino de 16 anos que imaginava constantemente um homem viajando à velocidade da luz.

Mas o que mais teria a TR em comum com a filosofia de Spinoza? Há também uma semelhança formal. Como vimos no capítulo anterior, a TR, semelhantemente à Ética e aos Elementos de Euclides, foi construída dedutivamente a partir de axiomas básicos, atemporais, como um more geométrico, forma muito utilizada no séc. XVII, contudo muito pouco comum no início do séc. XX. Assim como Spinoza, Einstein foi, desde a infância, um entusiástico admirador da geometria euclidiana.

No entanto, as afinidades entre a obra de Spinoza e a Relatividade aprofundam-se, a meu ver, quando esta última institui o espaço-tempo como cenário de uma rede universal de eventos, que se causam uns aos outros, pelas cadeias infinitas segundo as quais podem ser as coisas criadas, transformadas ou modificadas. Esse cenário causal e determinista, imaginado por Einstein, é muito bem caracterizado por Ilya Prigogine, quando este critica abertamente o monismo determinista que resulta da TR. Curiosamente, as críticas de Prigogine a Einstein estendem-se a Spinoza:

Espinosa e Einstein estavam acuados em uma forma de monismo. Esse monismo temos dificuldade de aceitá-lo hoje, porque na realidade esse monismo faz do homem um autômato que se ignora. Em meu livro cito uma carta de Einstein a Tagore na qual ele escreve: “Se perguntássemos à Lua porque ela se move ela responderia sem dúvida porque tomou esta decisão. E isso nos faz sorrir. Mas devíamos igualmente sorrir da idéia segundo a qual o homem é livre, porque o determinismo não tem nenhuma razão para se deter no cérebro”. O determinismo é a concepção clássica da Ciência transposta para esse monismo (…) Eis, portanto uma concepção de realidade bastante difícil de aceitar. A Ciência clássica forçava as pessoas seja ao dualismo, como em Descartes, seja ao monismo em que tudo é autômato como em Einstein e Espinosa20.

A crítica de Prigogine é relevante à medida que o físico-químico considera os dois sistemas de pensamento, que julgo serem afins, “acuados” num automatismo determinista e monista, não só vigente no universo como na própria condição humana. Entretanto, Spinoza não poderia prever, como Einstein, um limite de velocidade para as cadeias causais, resultando daí que todo evento deve a sua ocorrência a outros pertencentes ao seu cone de luz, mas estará desconectado daqueles que estão alhures. Desta forma, a Relatividade institui uma região limitada de ações causais que determinam algo (um determinado modo) a ser necessariamente o que é, ou seja, cada modo deve a sua existência aos demais a ele conectados causalmente. Em suma, a Relatividade, como critica Prigogine, vislumbra um universo determinista em bloco no qual nada pode existir sem uma íntima conexão causal com as demais coisas existentes em seu cone de luz.

A Duração em Spinoza e na Teoria da Relatividade

Como se depreende dos três fragmentos de textos dos Pensamentos Metafísicos que abaixo transcrevo, Spinoza reduz o tempo a uma ideia (modus cogitandi), obtida, por comparação, da duração da existência dos modos singulares:

A duração é o atributo sob o qual concebemos a existência das coisas criadas enquanto perseverarem em sua atualidade (…) Quanto mais se subtrai a duração de uma coisa, tanto mais se subtrai, sua existência. Para determinar a duração nós a comparamos com a duração daquelas coisas que possuem movimento certo e determinado. Esta comparação chama-se tempo21.

Assim, o tempo não é uma afecção das coisas, mas apenas um modo de pensar (…) Com efeito, é um modo de pensar que serve para explicar a duração. Deve-se notar aqui que a duração é concebida como maior ou menor, como composta de partes o que é um atributo da existência e não da essência22.

(…) Antes da criação, não podemos imaginar nenhum tempo ou duração, mas esta começou com as coisas, pois o tempo é a medida da duração, ou melhor, apenas um modo de pensar e não pressupõe somente alguma coisa criada, mas, sobretudo, homens pensantes. Por sua vez, a duração cessa onde cessam as coisas criadas e começa onde começam a existir as coisas criadas (…) Assim, a duração pressupõe, ou pelo menos supõe, as coisas criadas. Aqueles que imaginam a duração e o tempo antes das coisas criadas são vítimas do mesmo preconceito que aqueles que forjam um espaço fora da matéria (…)23.

As três citações acima dos Pensamentos Metafísicos são de grande relevância, pois resgatam o sentido originário do tempo, que vigorava anteriormente ao mecanicismo. Como tentarei demonstrar adiante, Einstein, através da TR Especial, desconstruirá, de uma forma análoga, as durações absolutas de tempo. Sobre elas, portanto, vale a pena refletir com redobrado cuidado, sendo recomendável que os mestres de Física também o façam com seus aprendizes, nos moldes que se seguem e com os destaques em itálico merecendo especial atenção.

Segundo Martins e Zanetic24, historicamente, o tempo só ganhou o estatuto de variável independente da Física quando introduzido pela primeira vez por Galileo, para descrever a lei da queda dos corpos na relação de proporcionalidade da velocidade dos corpos cadentes com o tempo de queda (v = at). Antes, entretanto, Galileo tentara inutilmente relacionar a velocidade com o espaço (v = ax). A passagem do tempo t de coadjuvante a protagonista das relações matemáticas da Física só foi possível, no entanto, com o concomitante avanço da mecanização dos relógios, iniciada pelo próprio Galileo e aperfeiçoada por Christian Huygens. Para H. L. Barros25, o tempo medido antes por gnomons e clepsidras estava diretamente ligado aos fenômenos físicos, e não tinha assim um estatuto de substancial independência em relação a estes. Ele era assim simplesmente a sombra do Sol produzida por um gnomon ou o nível de água no interior de uma clepsidra. Desta forma, dizer-se que a queda de um corpo depende do tempo seria o mesmo que dizer que a queda de uma pedra depende da queda de outro corpo, a água no interior da clepsidra. A partir do séc. XVII começou a se produzir relógios mecânicos de pêndulo que movem engrenagens e estas, por sua vez, os ponteiros que associam números precisos de horas e minutos. O tempo se tornava um ente matemático abstrato, e desprendia-se do maquinismo que lhe dera origem. As durações dos fenômenos, ao invés de serem comparadas diretamente entre si, passaram a ser mediadas por um tempo que lhes servia como moeda de troca. Não é sem razão que se diz até hoje que “tempo é dinheiro,” pois da mesma forma que a moeda mediava as trocas de mercadorias, antes feitas diretamente, o tempo passou a mediar as durações. E assim como o salário substituiu o escambo ou as trocas diretas de mercadorias, o tempo tornava-se a variável t independente da Física para mediar as existências dos fenômenos. Tomando emprestado a Lucaks o termo reificação, como fenômeno histórico em que o acúmulo de capital torna-se independente do próprio processo de produção das mercadorias que lhe deu origem, diria que na Física ocorreu a reificação do tempo.

Assim as coisas passaram a existir no tempo ao invés do tempo existir nas coisas, como se depreende das três citações de Spinoza O império do tempo foi consolidado por Newton, quando o físico inglês o coroou como a substância que flui independentemente do mundo que lhe deu origem. Este passou a fluir em função do tempo e a Física de Newton tornou-se a ontologia do tempo. Segundo Norbert Elias26, o tempo não existiria em si, não seria um dado objetivo, como sustentava Newton nem uma estrutura a priori do espírito, como nos ensinou Kant. Segundo ainda o sociólogo e historiador, o tempo é uma ideia humana desenvolvida ao longo de séculos de civilização, resultado de um longo processo de aprendizagem. Cita Elias, como exemplo, o fato de que em sociedades menos desenvolvidas tecnologicamente é muito comum indivíduos, aos quais se pergunta sobre “quando ocorreu a grande enchente,” responderem “quando meu pai morreu” ou “quando eu era criança” ou coisas do gênero. A atribuição de uma data precisa a um evento é, pois produto da civilização tecnológica e não algo intuitivo ou substancial. A intuição leva-nos, em contrapartida, a comparar fenômenos com outros ocorridos simultaneamente, sem a mediação de datas ou horas precisas.

Acredito que as três citações dos Pensamentos Metafísicos resgatam a noção de um tempo dependente das coisas, e que é tão somente uma ideia humana associada à comparação entre durações de fenômenos. Entendida de forma mais simples, a duração (intervalo) de tempo é a comparação de um movimento com um movimento periódico padrão que chamamos de relógio. Este pode ser tanto a Terra girando em torno do Sol, produzindo a alternância das estações do ano, como ainda o movimento de rotação da Terra em torno de si própria, gerando os dias que se sucedem às noites. O que de fato existe é alternância rítmica dos dias, noites, estações e fases lunares que nosso corpo finito experimenta com os movimentos da Terra e da Lua, igualmente finitas, que nos servem de relógio.

A esta altura, para tornar o diálogo com os aprendizes, ou leitores deste livro, mais lúdico, perguntarei a um deles que idade tem. Este que se chama João, responder-me-á “tenho 20 anos”. Direi então à turma que “João tem 20 anos” é uma forma sucinta de dizer: “João existe enquanto a Terra deu 20 voltas em torno do Sol,” podendo ainda completar o quão seria tedioso se todos respondessem dessa forma quando perguntados sobre a idade que têm… Constatei que esta intervenção lúdica costuma ser muito bem recebida pelos aprendizes, acarretando divertidas reflexões e acaloradas discussões. A duração temporal pode ser subdividida em intervalos submúltiplos do período padrão do relógio, criando-se assim novas unidades como os minutos e segundos que se repetem também periodicamente no tic-tac dos relógios, nos batimentos de um pêndulo ou em outros ritmos biológicos, como os batimentos cardíacos, produzindo a alternância da sístole e da diástole. Talvez não seja coincidência que William Harvey, que descobriu o mecanismo da circulação sangüínea, seja um contemporâneo de Spinoza.

Não podemos ter da duração das coisas singulares (tempo) que existem fora de nós senão um conhecimento extremamente inadequado27.

Para Spinoza, então, o tempo não é uma realidade clara e distinta, mas tão-somente concebida através de comparações de existências. O sentido desta última citação é que o homem finito convive com as durações divisíveis, mas que não possuem a escala da Natureza como um todo, não podendo ser jamais determinadas pela natureza das coisas existentes nem pelas causas eficientes que as fazem mover. Estas sim, no sistema spinoziano, formam uma rede universal de necessidades conectando todas as coisas, assim como todas as ideias, entre si, constituindo a essência atemporal do todo que se confunde com a essência de Deus. O tempo, entretanto, não é essencial, para Spinoza, mas tão-somente uma ideia construída pela finitude da mente incapaz de abarcar a totalidade em sua plena necessidade28.

Assim, para Spinoza, aos olhos da razão, só existe a ordem necessária e divina da Natureza, pois que esta em sua perfeita necessidade se confunde com Deus. E segundo ele, imaginamos comumente que as coisas poderiam ter ou não acontecido ou ainda que pudessem ter acontecido de outra forma e acreditamos também que os acontecimentos futuros dependem de nosso livre arbítrio, da providência divina e até mesmo da sorte ou do azar. Na verdade, para o filósofo judeu, nenhum futuro é imprevisível ou depende apenas dos caprichos da sorte, pois tudo tem uma causa que podemos até desconhecer, em razão do complexo emaranhado de causas e efeitos que formam a cadeia dos acontecimentos, invalidando a própria noção de futuro. Vimos anteriormente que é justamente contra essa concepção de um tempo reversível, condicionada à causalidade, que Prigogine relacionará negativamente Einstein a Spinoza.

Continuarei questionando com redobrada atenção se o tempo einsteiniano, enquanto duração medida por relógios materiais em movimento relativo, e o tempo de Spinoza, pensado pela mente concomitantemente às afecções corpóreas do observador, são de fato a mesma coisa. Estariam os dois falando a mesma linguagem, quando se referem ao tempo? Em minha opinião, sim. No sentido das três proposições dos Pensamentos Metafísicos, e dessa última da Ética, Einstein também resgatará o sentido original de tempo como comparação das durações de fenômenos periódicos, que afetam o corpo do observador.

Será necessário, a partir deste momento, refletir com muito cuidado, para que não se recaia em analogias simplistas. Imaginemos, pois, um relógio constituído por dois espelhos paralelos. (ver Figura VI-2a)

Um raio de luz é produzido no ponto 1, refletido no ponto 2 e novamente refletido no ponto 1. Se esse relógio estiver em repouso (em relação a nós), a distância entre os pontos 1 e 2 será perpendicular aos dois espelhos, sendo assim a menor possível. Imaginemos um relógio idêntico, porém em movimento em relação a nós. Para a luz atingir o ponto 2, terá de percorrer uma distância maior que a perpendicular, e o mesmo se sucederá quando ela retornar ao ponto 1. No primeiro caso, a frequência “1 e 2 e 1 e 2…” será maior que no segundo. Entendendo o tempo como uma ideia que o homem associa ao ritmo (período) com que se sucedem os eventos “1 e 2” ele será menor com o relógio em repouso. Na Física newtoniana, a freqüência seria a mesma nos dois casos, pois ainda que a luz precise percorrer maiores distâncias com o relógio em movimento, a sua velocidade seria proporcionalmente maior.

Figura VI-2a: (A sequências (1 e 2 e 1) e (1’ e 2’e 1’), medidas por um relógio em repouso e outro em movimento. O tic tac do relógio em movimento é mais lento quando visto por O, porque a luz precisa percorrer distâncias maiores para conectar as partes!)

A contração do comprimento de um objeto como uma régua (chamada de contração de Lorentz) pode ser entendida de uma forma simples, mas pouco difundida nos livros-texto: a imagem que vemos de um objeto em movimento é construída por pontos luminosos que nos chegam simultaneamente, mas que não são produzidos simultaneamente. Se estivermos no centro de uma régua inicialmente em repouso, vemos suas extremidades simultaneamente. Mas se repentinamente ela passa a se mover, a sua traseira estará se aproximando enquanto que a dianteira se afastando de nós.

Conseqüentemente, a imagem que vem da traseira leva menos tempo, do que a imagem dianteira, para chegar a nossos olhos. Formamos assim uma imagem mais recente da traseira que da dianteira, desta forma esta se atrasa em relação à primeira, estando menos à frente. Vemos assim um objeto com comprimento menor do que quando o víamos em repouso. Olhar um objeto em movimento é como fazer uma fotomontagem deste objeto com suas partes vistas em tempos diferentes! Parece que o velho Parmênides tinha razão: o movimento é uma ilusão… (ver Figura VI-2b).

Figura VI-2b

Nesse ponto, é muito importante fazer com que o aprendiz perceba a profunda revolução filosófica introduzida pela TR no conceito de espaço-tempo, sendo, portanto, mister prosseguir com cristalina clareza. Enquanto na Física clássica o tempo é uma substância que independe dos acontecimentos, e a velocidade da luz é relativa aos observadores, na TR, ao contrário, o tempo perde seu estatuto substancial de algo que flui independentemente dos fatos. A propagação das ondas eletromagnéticas (luz) é que ganha, por sua vez, um estatuto de absoluto, pois é ela a responsável pela gênese das coisas materiais por outras coisas materiais, sendo assim a gênese da própria causalidade. A defenestração do tempo como uma substância e a invariância das leis da natureza, estas sim, alçadas a um estatuto ontológico, a meu ver, aproxima a TR mais da metafísica spinoziana do que da epistemologia kantiana, onde a causalidade é uma categoria do espírito humano transcendental. Por outro lado, o tempo entendido como uma comparação de frequências de eventos periódicos, conectados pelos sinais luminosos, que afetam os corpos e as mentes dos observadores (relógios), também se aproxima mais das citações dos Pensamentos Metafísicos do que de uma intuição a priori da consciência humana, que não poderia variar ao sabor dos estados particulares de movimento do corpo.

Sobre esse ponto em particular, vale a pena reproduzir um trecho do diálogo de Carl Friedrich von Weizsäcker, físico do círculo de amizades de Werner Heisenberg, muito ligado nas questões epistemológicas da Física moderna, com a filósofa neokantiana Grete Hermann. Enquanto Weizsäcker argumentava que a Física moderna violava alguns aspectos da filosofia kantiana (notadamente o a priori), Hermann buscava preservá-la tanto das investidas dos físicos quânticos quanto dos relativistas:

– O senhor pretende […] enfraquecer toda análise kantiana da experiência?

– Não, não pretendo. Kant percebeu com muita perspicácia o modo como efetivamente obtemos a experiências. E creio que a análise dele é essencialmente correta. Mas, ao fazer das formas intuitivas do “espaço” e do “tempo” e da categoria da “causalidade” condições a priori da experiência, ele corre o risco de postulá-las como absolutos e de afirmar que elas devem estar presentes no conteúdo de quaisquer teorias da mesma maneira. Isso não acontece, como mostraram a relatividade e a teoria quântica29.

Em Spinoza, o tempo é reduzido apenas a uma ideia humana que surge paralelamente às experiências sensoriais de seu próprio corpo (afecções na linguagem spinoziana) em interação com o restante do universo. Da mesma forma, para Einstein, essas afecções só podem atingir o corpo físico do observador (seu relógio) através de algum agente causador, sendo a onda eletromagnética não só o mais rápido deles, como também de velocidade invariante em relação a observadores em movimento. Desta forma, para Einstein e Spinoza, ao contrário da concepção newtoniana de um tempo-substância que flui independentemente dos acontecimentos, ou da concepção kantiana de um tempo como intuição anterior à própria experiência; não poderá haver nenhuma percepção do tempo possível, sem que o corpo ou o relógio (extensão do corpo) do observador seja afetado. Acredito ser este um ponto essencial da ontologia relativística que deve ser sempre exaustivamente debatido, e realçado pelo mestre aos seus discípulos.

Assim se expressa Desiderio Papp acerca do espaço-tempo da Teoria da Relatividade:

Existe uma relação, uma interdependência entre o movimento da luz, comprimentos de barras métricas e o ritmo dos relógios. Assim como uma agulha magnética se orienta de acordo com o campo magnético local, o comprimento das barras e o ritmo dos relógios se orientam sobre o campo métrico determinado pelos raios de luz. A geometria destes é a geometria das barras e relógios (…) uma barra relativista é tudo aquilo que possui um comprimento, quer dizer, todos os objetos do mundo; e um relógio relativista é tudo que tem um ritmo periódico: um planeta que gira em torno de seu eixo, como um coração humano que bate, um relógio de areia, como um elétron que gira em torno do núcleo, no interior do átomo. Esta afirmação – que a geometria da luz é a geometria do mundo – converte o espaço e o tempo em espaço e tempo da Física30.

Sugiro que esta última citação seja lida pelo mestre para relevar o conceito de tempo enquanto comparação de existências, além de que o corpo humano é ele próprio um relógio.

A simultaneidade em Spinoza e na Teoria da Relatividade

Continuarei refletindo, com mais alguns exemplos simples, sobre o fato que Einstein produziu, quase três séculos depois de Spinoza, a maior mudança no conceito de espaço-tempo ocorrida desde Newton. Ele parece responder ao filósofo de Amsterdã quando, por ocasião da morte de um de seus melhores amigos, o italiano Michele Besso, ocorrida em 15 de março de 1955, apenas poucas semanas antes de sua própria morte, ocorrida em 18 de abril do mesmo ano, profetizou:

Agora ele partiu deste estranho mundo, um pouquinho antes de mim. Isso não quer dizer nada. Para nós físicos fiéis, a separação entre passado, presente e futuro têm apenas o significado de uma ilusão, se bem que uma ilusão persistente31.

E nesse hipotético diálogo, Spinoza confirma:

O homem experimenta pela imagem de uma coisa passada ou futura a mesma afecção que pela imagem de uma coisa presente. (…) E por tanto tempo quanto é afetado pela imagem de uma coisa, considerá-la-á como presente, ainda que ela não exista (…) o estado do corpo (humano), é o mesmo, quer a imagem seja de uma coisa passada ou futura, ou de uma coisa presente32.

Assim, quando contemplamos o céu noturno, embora estejamos frente a uma remota imagem do passado, ela nos afeta da mesma forma que se estivesse presente. Ou seja, para Spinoza, o tempo só pode ser percebido pela mente quando o corpo é afetado fisicamente, sendo este momento, o presente, o dito agora. Nesse sentido, a proposição EII, XXVI e sua demonstração esclarecem de modo inquestionável a íntima conexão entre qualquer ideia — inclusive a de tempo — com as afecções corpóreas:

A alma humana não percebe nenhum corpo exterior como existente em ato, a não ser pelas idéias das afecções de seu próprio corpo.

Se o corpo humano não foi afetado de nenhuma maneira por qualquer corpo exterior, também a idéia do corpo humano, (…) isto é a alma (mente) humana não foi afetada de alguma maneira pela idéia da existência desse corpo; por outras palavras, ela não percebe de nenhuma maneira a existência desse corpo exterior33.

Atentemos para o fato de que, enquanto na Física clássica existe uma simultaneidade absoluta ou um “agora” universal, na TR, tal momento é inconcebível. Sigamos mais uma vez com redobrado cuidado para que haja um correto entendimento, e que assim o leitor, que por ventura seja também professor, possa transmitir com igual clareza aos seus aprendizes, os conceitos filosóficos alternativos de simultaneidade, envolvidos na TR. É objeto de minha crítica o fato de que grande parte dos livros textos de TR costumem dar o exemplo (abaixo), muito comum, para explicar a relatividade da simultaneidade, sem, contudo, chegar à essência da questão. Passo a repeti-lo.

Imaginemos que dois relâmpagos sejam percebidos simultaneamente por certo observador, situado simetricamente aos dois eventos. Para outro observador, que comece a se deslocar para a direita com velocidade v em relação ao primeiro, partindo do mesmo ponto central, o relâmpago da direita será observado primeiro (ver Figura VI-3)34. Cumpre assim o exemplo a precípua finalidade de mostrar aos aprendizes que o que é simultâneo a um observador, poderá não ser para outro em movimento. Apesar de muito simples, o exemplo acima deixa velado algo que é essencial: segundo a Teoria da Relatividade, o observador em movimento não só perceberá o raio da direita antes porque seu corpo é por ele afetado antes, como não lhe restará outra conclusão senão a de que o raio da direita foi produzido antes, uma vez que as velocidades com que os raios dele se aproximam são iguais a c Já na Física clássica, a explicação seria bem distinta: se, por um lado, for indubitável que o raio da direita atinge antes o corpo do observador em movimento, isto se deve unicamente ao fato de ter este raio uma velocidade maior (c+v) em relação ao observador35 e não porque foi produzido antes. Assim, enquanto na Teoria da Relatividade, para cada observador, a ordem de produção das coisas é a mesma que a ordem das suas afecções corporais; o mesmo não ocorre na Física clássica onde, no exemplo acima, coisas observadas seqüencialmente foram produzidas simultaneamente, e assim a ordem de produção das coisas não é necessariamente a mesma que a das afecções corpóreas do observador.

Figura VI-3: Pela TR, o raio da direita atinge o corpo do observador O’ antes porque é anterior.

Pela Física clássica: o raio da direita atinge o corpo do observador O’ antes porque tem vel. (v+c), enquanto que o da esquerda tem vel.(v-c), mas foram ambos produzidos simultaneamente.

Acredito que este adendo acima, enfaticamente grifado, desvela a essência da TR, e do conceito de simultaneidade, aproximando-a inequivocamente da metafísica spinoziana, devendo ser constantemente repetido ao aprendiz para que este perceba, em toda a sua extensão, onde estão claramente situadas as mudanças paradigmáticas da concepção einsteiniana. Afinal, qual das duas teorias, a Física clássica ou a TR, aproxima-se mais do ordo et conexio spinoziano?

A simultaneidade e a ordenação seqüencial dos fenômenos da TR requerem dos mestres mais cuidados com seus aprendizes, demandando-lhes exemplos ainda mais reveladores acerca das essências do espaço-tempo e da causalidade. Voltemos, pois, ao evento de falecimento de Michele Besso, o grande amigo e confidente de Einstein. Imaginemos que o relógio de Besso indique o instante exato tB em que este faleceu e o relógio de Einstein indique tE., no instante em que o físico faleceu (ver Figura VI-4). Consideremos também que os relógios de Besso e Einstein estejam sincronizados36.

Figura VI-4: As mortes de Einstein e Besso. Para o referencial O, a morte de Besso ocorre em tB e a de Einstein em tE,. Para O’, que se move para a direita com vel. V, a depender de sua vel., os 2 eventos poderão ser simultâneos ou até mesmo sua sequência invertida no tempo.

Para um observador O, parado em um ponto central do segmento L que liga estes dois eventos, tE > tB, isto é, a morte de Einstein ocorrerá depois, e, portanto, no futuro, em relação à morte de Besso. Chamemos Δt = tE– tB. (este intervalo de tempo, como vimos, foi na realidade de algumas semanas). No entanto, um observador O’ que está se deslocando para a direita com uma velocidade V em relação a O, medirá de acordo com as transformações de Lorentz para o tempo:

t’ =(t – Vx/c2)/(1-V2/c2)1/2 –> Δt’= t’B – t’E = γ(Δt – VL/c2)

onde: γ = 1/(1-V2/c2)1/2

Portanto, para o referencial O’:

1 – se (Δt – VL/c2) = 0 –> V= c2 Δt/L, Einstein e Besso morrerão simultaneamente,

2 – se V > c2 Δt/L, Einstein morreu antes de Besso!

As condições acima, no entanto, só seriam possíveis se:

c > V > c2 Δt/L – > L > cΔt, (a distância entre os eventos deve ser maior ou igual à distância que a luz percorre no intervalo de tempo que os separa) significando que um dos eventos deve estar fora do cone de luz do outro. Assim eventos que não podem se influenciar (space like) ocorrerão em uma ordem temporal arbitrária, a depender de qual sistema de referência forem observados, comprometendo seriamente as noções de futuro, presente e passado37. Comprometendo seriamente também a noção aristotélica de tempo como ordenação do movimento segundo antes, agora e depois. O que é uma imagem para um observador, no sentido spinozista38, poderá ser uma ideia de um objeto presente, para outro.

Na Figura VI-5 (abaixo), um observador O’ se move com velocidade v para a direita, em relação a O. Quanto maior for v, mais os eixos x’ e t’ se aproximam da linha de horizonte x = ct. Para o observador O, o lugar geométrico de eventos simultâneos a (0,0) será o eixo x horizontal, enquanto que para O’ será o eixo ox’ inclinado em relação a ox. Qualquer evento futuro, situado fora do cone de luz de (0,0), poderá ser tornado simultâneo através de uma mudança conveniente de referencial.

Figuras VI-5: Representação gráfica das transformações de Lorentz: x’ e t'podem ser obtidas graficamente através de coordenadas oblíquas.

Nas zonas hachuriadas da Figura VI-6, o que é futuro para O (t>0) é passado para O’(t’<0) e vice-versa. Se o evento (0,0) for a morte de Besso, a morte de Einstein ocorrerá no futuro para O (t>0) e ocorreu no passado de O’(t’<0).

Figura VI-6: Nas zonas hachuriadas ocorre inversão temporal

A condição necessária para que isto ocorra é que não haja nenhuma influência causal entre os dois eventos (se ocorrerem na Terra em lapso de tempo igual ou inferior a 0,04 seg.).

Imaginemos dois clones39 A e B que, no sistema de referência O, são gerados simultaneamente em x = a e x = b, (L= b – a) (ver Figura VI-7). Para o observador O, no instante t = t1 eles são dois jovens de mesma idade t1 enquanto que em t = t2, eles são dois velhos em seus leitos de morte. O observador O’ que se move com velocidade v1 = c2t1/L, verá um jovem em B simultaneamente ao nascimento de seu clone A e dirá, portanto, que B nasceu antes de A (t’B<0). Já um observador O’’ que se move com v2 = c2t2/L, verá um velho em seu leito de morte em B, enquanto seu jovem clone nasce em A!

Os exemplos e os gráficos acima apresentados deverão merecer do mestre redobrada atenção com seus discípulos, pois são muito significativos e esclarecedores da relatividade das durações, bem como da simultaneidade. Com certeza muitas dúvidas surgirão, e muitas perguntas serão feitas, e todas elas serão um bom motivo para que o mestre estimule seus discípulos à reflexão filosófica. Alusões a Spinoza com respeito à precariedade do tempo, como comparação de existências feitas pele mente humana, são, em minha opinião, especialmente úteis para a construção de um pensamento multidisciplinar emaranhando a Teoria da Realidade à metafísica spinozista.

Figura VI-7: O paradoxo dos clones A e B: para o ref.O eles nascem e morrem simultaneamente, mas para O’, quando A nasce, B é um jovem e para O” quando A nasce, B morre!

Consequências teológicas da Teoria da Relatividade

Com a TR, perde-se assim a noção usual de um tempo substancial que ordena universalmente uma sequência de eventos segundo antes, agora e depois, e este fato traz consigo dramáticas consequências em níveis teológicos. Como conceber a ideia de um Deus transcendente, sentinela do universo que tudo vê e que a qualquer instante poderá interferir, providencial e simultaneamente, no curso dos acontecimentos? Como entender assim os milagres ou as profecias? Se admitirmos um referencial privilegiado de onde Deus comanda o universo, estaremos contradizendo o primeiro postulado da TR. Por outro lado, se não existem tais observadores privilegiados, como poderá Deus, do alto de sua transcendência, influir em eventos que a depender da escolha do sistema de referência ocorreriam no passado? Como curar uma pessoa já morta como Besso, no exemplo acima? Se não há mais sentido em se falar de um tempo como sucessão de instantâneos, a não ser no interior de uma limitada região, o cone de luz, onde predominam as relações de causa e efeito? Como, no âmbito da Teoria da Relatividade, entender a ideia de um Deus que aja à distância numa escala que abarque toda a Natureza em sua constante atividade, e que contenha todos os referenciais e eventos possíveis? Além disso, a ideia de um Deus transcendente e onipotente viola o mais renitente axioma einsteiniano, o realismo local que não comporta, de forma alguma, ações telepáticas, mas apenas afecções causadas por sinais. Como vimos nos exemplos anteriores, quaisquer que sejam dois eventos, caso não estejam no mesmo cone de luz, a sua ordem temporal não poderá ser estabelecida40. Em outras palavras, que sentido poderia ter o tempo para um universo em bloco, visto como um todo? Como poderia Einstein entender o tempo sem a noção de um princípio ontológico de causalidade que lhe confere o sentido de sucessão de existências de causas e efeitos, mas que, por outro lado, limita a região espaço-temporal onde isto possa ocorrer?

Agora creio que se pode entender, em toda a sua extensão, o que Einstein queria dizer “(…) a separação entre passado, presente e futuro tem apenas o significado de uma ilusão”. Parece-me assim razoável supor que, a partir de 1903, (os anos de leitura da Akademia Olímpia, quando Einstein tomou conhecimento da Ética) tenha se cristalizado, na mente do físico, a noção de um tempo que só tem sentido na presença das afecções físicas sofridas por um particular observador munido de seu próprio corpo-relógio. Esse tempo perde o sentido em referência ao universal, como expressa a proposição XVIII:

(…) o estado do corpo humano (ou relógio, acrescento), é o mesmo, quer a imagem seja de uma coisa passada ou futura, ou de uma coisa presente.

Novamente aqui a TR e a metafísica de Spinoza poderão ser relacionadas em prol da construção da multidisciplinaridade e do bom entendimento.

Suporei também que Einstein como homem munido de sentimentos religiosos profundos, ainda que pouco tradicionais, não deva ter ficado indiferente frente às dramáticas consequências que a sua teoria acarretava para a teologia teísta bíblica. Não ousaria, no entanto, arriscar que essas ideias tenham sido germinadas a partir da leitura da Ética, pois seria inverossímil sustentar que as questões centrais da Relatividade Especial tivessem sido geradas e concluídas em apenas dois anos. Porém, arriscaria dizer que as proposições de Spinoza, não só acerca do tempo, mas também acerca de uma Natureza em atividade causal, que exprime a substância divina, seguramente não passaram despercebidas. Elas poderiam ter influenciado Einstein, no sentido de consolidar suas ideias ou dotá-las de um substrato metafísico de grande relevância para um irrequieto jovem de 24 anos, em busca de respaldo para suas heterodoxas ideias científicas e religiosas. A impossibilidade de um Deus transcendente que aja à distância, como sentinela universal, conduziria Einstein necessariamente ao ateísmo ou ao puro materialismo? Não! Pois o “Deus sive natura“ de Spinoza cairia como uma luva para a religiosidade cósmica de Einstein, semeada em sua infância com atenta leitura da Torah, a Bíblia judaica, mas transformada em sua juventude em função de seus questionamentos filosóficos e científicos. A Natura spinozista poderia ser a solução metafísica para os muitos problemas teológicos que a Relatividade acarretava, pois que, sendo Una e imanente, produz-se a si própria, através de leis invariantes e imutáveis, não se conflitando com nenhum dos postulados einsteinianos. Acredito assim que possa ser esse o provável sentido das famosas palavras de Einstein quando afirmou certa feita que: “O Deus em qual acredito é o Deus de Spinoza,” ou de outra feita que “Deus é o jardim e não o jardineiro,” pois qualquer transcendência O poria acima e fora das leis da natureza, o que seguramente incomodaria aos dois pensadores.

Tempo como o número da causalidade

A questão do tempo com referência à causalidade merece mais uma investigação crítica com fins pedagógicos. Para Spinoza, as ideias e as coisas extensas são manifestações de uma mesma substância una e indivisível, assim os relógios da Relatividade e os movimentos da mente (ideias) estão em íntima e profunda conexão.

O tempo medido por relógios locais e finitos não pode medir senão atividades locais, conectadas causalmente com o observador. No entanto, se esse mesmo relógio viajar à velocidade da luz desprender-se-á de todos os vínculos materiais que o une à realidade local e deixará de medir o fluxo temporal registrando a eternidade. Esse argumento fica novamente justificado pela transformação de Lorentz do tempo:

Δt’ =(Δt – vΔx/c2)/(1 – v2/c2)1/2,

o que implica que quando v→ c, Δt’→ ∞, para qualquer Δx finito. Isto significa que quando a barreira causal é rompida, o tempo medido, por um observador descolado do restante do universo, entra em colapso. Qualquer duração medida por quem escapa da causalidade torna-se indefinida. Pode-se assim concluir que na TR, as noções de tempo e de causalidade afastam-se da epistemologia kantiana41, pois não são intuições ou categorias independentes, mas, pelo contrário, a primeira é uma ideia da segunda, pois o pensamento humano não abarca a infinita rede causal geratriz das coisas. Poder-se-ia dizer, como Spinoza, que temos do tempo (duração das coisas) um conhecimento muito precário uma vez que temos da nossa, e demais existências, um conhecimento apenas parcial:

Não podemos ter da duração das coisas singulares que existem fora de nós senão um conhecimento extremamente inadequado.

Cada coisa singular, com efeito, do mesmo modo que o corpo humano, deve ser determinada a existir e a agir de uma certa e determina maneira, por uma outra coisa singular; e esta, por sua vez, por uma outra, e assim até o infinito42.

Portanto, é esse conjunto de causas que faz mover os corpos ao longo do tempo e essa cadeia temporal foge à nossa compreensão humana, pois “depende da ordem geral da Natureza e da constituição das coisas43

Se pela TR com a velocidade da luz os vínculos causais do corpo material desfazem-se, indeterminando o tempo, a mente, segundo Spinoza, como modo sob atributo paralelo, da mesma forma, congelará o tempo ao cessarem-lhe todos os pensamentos. Lembremo-nos de que, na metafísica do filósofo de Amsterdã, a mente e o corpo são estruturas paralelas e intimamente conectadas pelo já citado princípio do “Ordo et conexio“ Ademais a mente não pode conhecer a realidade física a não ser através do corpo, como se depreende das quatro proposições abaixo:

Tudo o que acontece no objeto da idéia que constitui a alma humana deve ser percebido pela alma humana; por outras palavras: a idéia dessa coisa existirá necessariamente; isto é se o objeto da idéia que constitui a alma humana é um corpo, nada pode acontecer nesse corpo que não seja percebido pela alma (mente)44.

O objeto da idéia que constitui a alma humana é o corpo, ou seja, um modo determinado da extensão, existente em ato, e não outra coisa45.

A alma humana não conhece o próprio corpo humano nem sabe que este existe, senão pelas idéias das afecções de que o corpo é afetado46.

A alma humana não conhece a si mesma, a não ser enquanto percebe as idéias das afecções do corpo47.

Portanto, na metafísica spinoziana, a mente só pode conhecer (ter ideias) na mesma ordem e conexão das afecções do corpo, pois ela não conhece o seu próprio corpo (EII, prop. XIX), nem um corpo exterior (EII, prop. XXVI) e nem a si mesma (EII, prop. XXIII), a não ser pelas afecções que o seu corpo sofre dos demais. Assim, a um corpo humano desconectado de quaisquer causas corresponderá uma mente esvaziada de quaisquer pensamentos. Ora, a TR institui uma rede integrada, em bloco, de relógios e réguas sendo o próprio corpo humano, um relógio-régua biológico. Nesse sentido, os tempos einsteiniano e spinoziano parecem novamente ser compatíveis: o relógio humano, desconectado das causas materiais, pois que voa à velocidade próxima da luz, e a mente, esvaziada de quaisquer ideias, registram a mesma indefinição de tempo.

Nas proposições EII, XXX e XXXI, Spinoza já havia proposto que o tempo e a cadeia universal de causas e efeitos são uma única coisa. Perguntar por que algo existe, é situar esse ente como elo atual de uma cadeia causal que remete ao passado. Dessa forma, instituir o tempo é instituir a causalidade e revogá-lo implica em aboli-la. Não surpreende, portanto, o fato de que relógios e corpos que se desprendam da rede causal, ao se despedaçarem, fiquem congelados no tempo, ou melhor, revoguem as ideias que lhes correspondem, desfazendo-se assim o próprio tempo.

A TR, através de postulados atemporais, restitui o absoluto e o eterno que existe nas leis da Natureza No entanto, como estudamos no capítulo anterior, segundo o físico Arnold Sommerfeld, a expressão dada por Planck a esta teoria suscitou muitos equívocos, sendo preferível “Teoria do Eterno e do Absoluto” ou “Teoria da Invariância”. É exatamente neste contexto de defenestração do observador privilegiado, readquirindo as leis da natureza um estatuto ontológico (que lhes foi suprimido a partir da epistemologia kantiana) tão bem expresso por Sommerfeld, que proponho estabelecer mais uma das afinidades ou convergência de ideias entre Einstein e Spinoza. Sugiro, pois, aos mestres, que instilem na mente de seus discípulos tais questio-namentos.

Em busca da unidade

Proponho mais uma questão que parece tangenciar tanto a física de Einstein quanto a filosofia de Spinoza e que pode ser assim expressa: se o campo eletromagnético mantém as coisas materiais ligadas em estado de existência, e essas justamente são as fontes do campo gravitacional que, por sua vez, determinam a métrica do espaço-tempo, onde as próprias coisas existem (ver Figura VI-8), parece plausível que Einstein vislumbrasse nessa circularidade existencial, a base lógica para a unificação das forças da natureza:

Se tivéssemos as equações do campo total, seríamos levados a exigir que as próprias partículas pudessem ser representadas como solução das equações do campo completo (…) Só então a Teoria da Relatividade geral seria uma teoria completa48.

Figura VI-8: A circularidade existencial entre os campos, a matéria e o espaço-tempo

Embora perseguisse o campo total unificado até o final da vida, Einstein jamais conseguiu realizar esse grande intento. Jammer arrisca que essa motivação quase religiosa poderia ser inspirada no monismo de Spinoza. Afinal, o filósofo judeu já havia proposto: “Deum unicum, hoc est in rerum natura non nisi unam substatiam dari“ (Deus é uno, logo na natureza das coisas apenas uma substância é dada”49. Segundo Paty50, seria, entretanto, irrelevante estabelecer analogias entre um conceito científico do séc. XX, como o campo unificado de Einstein e outro metafísico do séc. XVII, como a substância de Spinoza, como propõe explicitamente o físico russo B. Kouznetzov51. Paty evitaria também conclusões contundentes, como a de S. Zacs, que escreveu: “a metafísica de Espinosa prenunciou a física de Einstein52.

Não seria tão contundente quanto Zacs, mas tampouco tão cauteloso quanto Paty. Creio ser bastante verossímil supor que a busca de um substrato fundamental e único da Natureza, fonte do Real, é que, mais uma vez, aproxima os dois pensadores. Desta forma, dentre os vários vetores de convergência, aproximando Einstein de Spinoza, a TR, que expressa a invariância das leis da natureza, poderia ser um deles, pois é compatível com a unidade e a ontologia spinoziana expressa pela Natureza em bloco que se cria a si mesma por um princípio ontológico — e determinista — de causalidade.

Para a instituição da unidade do Real e da localidade da natureza, que se transforma através de nexos causais impressos nos corpos, paralelamente expressos por ideias, o preço que se paga é a desconstrução do tempo absoluto e do observador privilegiado. Entre a Realidade e o tempo-substância, Spinoza e Einstein optaram pela unidade da primeira. E entre supor que o homem descreve a natureza (como propõe a epistemologia contemporânea) ou a Natureza é que se autodescreve através do homem, eles optaram pela segunda hipótese.

Possivelmente as influências que Einstein sofreu de Spinoza foram inicialmente mais de caráter filosófico geral que estritamente no campo da Física, pois, como vimos no capítulo anterior, a TR pode ser concebida exclusivamente com argumentos internos à história dessa disciplina, e é, de fato, assim ensinada nas salas de aula das universidades do mundo. Creio, no entanto, que a TR é mais compatível com a metafísica de Spinoza do que com qualquer uma de suas rivais, contemporâneas ou posteriores, e esta compatibilidade pode ser posta em relevo para a construção de uma pedagogia multidisciplinar, com vistas ao um novo pensar da Física relacionada à Filosofia.

De fato, o ocasionalismo de Malebranche53 exige ação divina instantânea à distância, e, portanto, simultaneidade absoluta, ou seja, um “agora” universal. De qual sistema de referência observar-nos-á Deus, para que nos conceda uma permanente intervenção da divina providência? Por outro lado, o tempo substancial de Newton, que flui, como uma ampulheta universal, independentemente de qualquer afecção do observador, é explicitamente incompatível com a TR. O mesmo ocorrendo com o tempo a priori de Kant, pois embora não mais substancializado, como o tempo newtoniano, uma intuição apriorística deveria ser a mesma para todos observadores, independente de suas particulares relações de movimento com o restante do mundo.

Segundo Pessoa, é compreensível que Kant tenha caído na tentação de supor que as experiências devem ser ordenadas espacial e temporalmente de acordo com a geometria plana euclidiana, e de forma independente e a priori de qualquer distribuição material. Pois:

Com a formulação da Teoria da Relatividade Geral, tornou-se claro que a questão da métrica do espaço-tempo é empírica, e não deve ser parte necessária da forma pura da sensibilidade54.

Por outro lado, a julgar pelas várias manifestações de Einstein contrárias à contingência da Teoria Quântica, tampouco a metafísica de Leibniz, como terceira via entre a arbitrariedade da vontade, em Descartes, e a necessidade desta, em Spinoza, seria do agrado do físico. Pois como poderia Deus do alto de sua transcendência decretar que César, neste mundo, que é o melhor possível, atravessasse o Rubicão, e em outros não? Neste caso, haveria contingência nas ações divinas (esta questão será debatida nos próximos capítulos).

Creio assim que a compatibilidade com a metafísica spinoziana, além de não ter passado despercebida pelo autor da TR, como demonstrei com vários exemplos de caráter didático, pode contribuir de forma importante para um melhor entendimento e aprendizado dessa disciplina, não só para alunos dos cursos científicos como para um público leigo em geral. É, pois, de suma relevância que o mestre faça ressoar em seus discípulos os apelos não só de uma epistemologia do relativo que se constrói dentro dos limites internos da Física, mas principalmente de uma ontologia do absoluto, que engendra a totalidade, a universalidade e a atemporalidade das leis da natureza. Essa, a meu ver, é a maior das inspirações spinozianas da obra de Einstein.

“O maior erro de minha vida”

Não poderia concluir este capítulo, cuja questão central de investigação foi o de discutir a evolução e o aprendizado da TR à luz da filosofia spinozista, sem ao menos mencionar o marcante episódio da biografia de Einstein, denominado “introdução da constante cosmológica”. Para quem visa estabelecer a extensão da influência que o filósofo exerceu sobre o físico, este tema é digno de redobrado cuidado e aprofundamento, podendo ser retomado em futuros trabalhos, ficando aqui apenas o seu registro.

Nesse episódio, o físico foi levado, possivelmente com vistas à descrição de um universo mais condizente com as suas convicções metafísicas, a sucessivas marchas e contramarchas, avanços e recuos, certezas e arrependimentos, em relação ao problema da introdução de um termo adicional em suas equações, denominado de constante cosmológica.

O que levou Einstein a tais incertezas? Apenas as questões internas da Física poderiam tê-lo levado a sucessivas oscilações de suas convicções? Ou, pelo contrário, crenças extra científicas estão na gênese de sua relutância? Vimos no capítulo dedicado à filosofia spinoziana que a essência da infinita substância divina só poderia ser posta através de infinitos atributos infinitos, pois, em caso contrário, estar-se-ia negando a sua infinitude. Assim, segundo o filósofo judeu, “Determinatio negatio est,” tendo aqui o verbo determinar o sentido de definir. A substância é, pois, indefinível em seus infinitos atributos infinitos.

A primeira das questões a ser futuramente retomada em próximos trabalhos será então como compatibilizar, sob o ponto de vista estritamente spinozista, e por conjectura einsteiniano, uma substância infinita com um universo finito e em expansão, como previsto pelo Big Bang, teoria aceita hoje — e já no tempo de Einstein — por grande parte da comunidade científica? Ou ao revés, como imaginar um universo finito e temporal ocupando a Extensão infinita demandada pela metafísica spinoziana? Não será o universo físico demasiadamente pequeno e mutável para abrigar atributos infinitos, como a extensão? Teriam estas incongruências extra científicas influenciado as oscilações das ideias científicas de um Einstein já maduro e consagrado? De fato, apesar de que uma das soluções das equações cosmológicas, resolvidas pelo matemático soviético Alexander Friedmann, previsse um universo finito em expansão, tal qual foi observado pelo astrônomo Hubble, é possível conjecturar que uma contradição com a metafísica spinoziana tivesse levado Einstein a postular a existência de uma constante cosmológica. Ela seria responsável por uma repulsão cósmica, certamente introduzida ad hoc, para contrabalançar a atração gravitacional e assim manter a estabilidade e a perenidade do universo. Apesar de o universo proposto por Einstein ter um raio finito, era eterno e ilimitado, e assim compatível com a metacosmologia de Spinoza55. Esta atitude que Einstein considerou primeiramente como “o maior erro de minha vida” foi, no entanto, posteriormente retomada, precedida por um novo surto de arrependimento.

No âmbito da Física e de sua compatibilidade com uma metafísica imanente, uma outra questão a ser devidamente investigada e discutida nas salas de aula nas quais se ensina Física, e em particular a TR, é de como imaginar um início do universo sem uma causa transcendente. De fato, uma causa sui é contraditória com o próprio início de um processo físico de mudança. Por regressão infinita, inevitavelmente chegamos a uma causa prima voluntariosa e transcendente ao universo, espécie de primeiro motor aristotélico. Uma possível solução, para remover essa contradição lógica do seio da axiomática spinoziana, é imaginar que o Universo é eterno ou constituído por uma infinidade de universos mutáveis, como o nosso, todos em equilíbrio termodinâmico. Enquanto este nosso universo manifestaria apenas dois atributos finitos, os outros seriam regidos por outros infinitos atributos (ver capítulo II). No entanto, por ser demasiadamente metafísica e insondável à experimentação, essa solução seria inaceitável aos paradigmas científicos atuais. De fato, numa época em que pontifica uma filosofia pós-metafísica, poucos filósofos, e muito menos físicos ainda, a aceitariam.

Tendo em vista as rápidas transformações da Ciência e da Filosofia que ocorreram no séc. XX, estaria assim a filosofia de Spinoza fadada ao esquecimento e à obsolescência? Como conciliar uma filosofia “Deus sive natura“ (Deus, ou seja, a natureza) com as novas descobertas cosmológicas, como o mencionado Big-Bang que revelam um universo mutável e finito no tempo e no espaço? Como fazer caber a eternidade de Deus na temporalidade do universo? Como harmonizar um sistema que leva a razão às suas últimas consequências com o caos, incertezas e a incompletude da contemporaneidade? Teria Einstein do alto de sua madura sabedoria vislumbrado essas questões, levando-o a sucessivas revisões?

Certamente uma parte da comunidade científica não aprovaria tais especulações, e provavelmente as comparações que fiz entre o programa científico de Einstein com a metafísica de Spinoza seriam consideradas historicamente sem sentido. Dessa forma, não espero que estas ideias tenham ressonância nesses setores mais conservadores das academias, pois os conheço de perto, e sei que costumam ser avessos a raciocínios que fujam de rígidos enquadramentos metodológicos, que lhes engessam o pensamento. Assumo, entretanto, o ônus de propor um entendimento da Física (TR em particular) distinto do paradigma epistemológico vigente, que é o de conferir à Ciência um papel apenas útil e descritivo do mundo. Até o momento, e salvo melhor juízo, acredito que Einstein percebia em sua física algo mais do que uma mera representação descartável de um mundo observável. Estou convicto de que ele via, não só na obra realizada, mas principalmente na que não logrou concluir56, uma Geometria universal englobando todas as forças da Natureza numa ontológica unidade, expressando em sua simplicidade uma religiosidade cósmica que o aproximasse de Deus. Apesar de ter sido considerado por uns como uma espécie em extinção de “sábio renascentista solitário” e de ser tachado por outros de “relíquia do séc. XIX,” após o sucesso de suas duas TR, Einstein buscou febrilmente essa Geometria da Unidade até os últimos dias de sua vida, e parece-me pouco provável que essa motivação quase mística tivesse origem apenas nas questões internas da Ciência…

As especulações, pinceladas ao longo deste capítulo que ora concluo, serão postas entre parênteses, e as soluções, se é que existem, serão deixadas em aberto. Acredito, no entanto, que o aprendizado e o entendimento das ciências avançam muito menos por respostas convictas do que por renovadas e sucessivas indagações…