No capítulo VIII refletimos sobre alguns dos paradoxos que a indeterminação da Teoria Quântica fez incidir sobre o que pode ser entendido como realidade física. Vimos as restrições que Einstein tinha em relação à interpretação de Copenhague, e também como Bohm conseguiu criar uma nova teoria, partindo de uma ontologia totalmente distinta, mas que produz resultados equivalentes à TQ. Vimos também que, embora o spinozismo não seja incompatível com a indeterminação e a contingência, os entende como formas de conhecimento provisório vigorando apenas até o momento em que causas até então ocultas sejam reveladas, restituindo a necessidade dos fatos que decorrem uns de outros de forma unívoca. Einstein se aproximou muito desta ideia, embora sua crítica à TQ fosse mais ampla, estendendo-se à não-localidade dos colapsos da realidade sobre o observador. Bohm, da mesma forma, introduzindo variáveis ocultas na axiomática da teoria, resgatou o determinismo dos acontecimentos microscópicos. Ambos, portanto, optaram por uma atitude spinozista na Física, subtraindo do observador, ou do ato de observação, a centralidade cognitiva dos processos da natureza. Afinal, os gatos de Schrödinger não precisam de observadores humanos para lhes dizer se estão mortos ou vivos…
Neste capítulo iremos além dessas questões, extraindo da história da Física, a partir do Renascimento, uma crítica à forma antropomórfica vigente de se pensar, fazer e ensinar a Ciência hoje. Como creio, esta forma é consequência do pensamento contemporâneo, que confere ao homem uma posição decodificadora e ontologicamente central no universo, e da qual decorre a excessiva importância atribuída ao observador humano. Mostrarei também a compatibilidade da metafísica spinoziana (na qual a natureza é entendida como uma cadeia causal de acontecimentos físicos, paralela a outra cadeia silogística de ideias) com a epistemologia moderna que demanda que uma boa teoria não só descreva, mas também preveja fatos novos.
No próximo capítulo, vislumbrarei as possibilidades de uma pedagogia filosofante, descentralizada e descentralizadora, de fundamentação spinozista, em que mestre, aprendizes e o fluir do conhecimento são modos finitos, ressonantes e emaranhados de uma única substância infinita.
Desta forma, naquilo que considero uma vigorosa atitude descen-tralizadora da metafísica spinoziana, buscarei elementos que conduzam a uma práxis oposta à epistemologia do sujeito voluntarioso e central, vigente na Ciência contemporânea. Isto será completado, ao longo desse capítulo, culminando, no próximo, com a proposta de uma pedagogia da Física que, ao operar na modificação finita do aprendiz, o dispensa de orbitar em torno de um mestre-sujeito centralizador do seu conhecimento. Isso implica que cada ato, do qual participe o aprendiz, ganhe uma dimensão cosmológica, percebendo-se ele como um modo extenso e pensante, imerso nas forças da natureza, e não apenas um mero calculador de previsões. Será proposto ainda que a descentralização do mestre-sujeito demande a descentralização da sala de aula como locus central do aprendizado. Assim, mestre e aprendizes, estabelecendo um diálogo num campo de ressonâncias com a natureza, serão percebidos como singularidades imersas num campo de forças, e não mais como sujeitos transcendentais externos, resultando daí uma pedagogia que devolva ao aprendiz a possibilidade de ressoar os apelos do mundo, ao qual sempre pertenceu, como um de seus entes ou modos de ressonância. Em suma, proponho uma pedagogia da Física sem sujeitos, objetos e uma ciência sem os observadores sobrenaturais que habitam o universo da interpretação de Copenhague. Começarei com uma rápida investigação histórica que tornará mais claros os propósitos deste capítulo.
Desde o advento da Filosofia moderna com Descares no séc. XVII, culminando com a grande construção epistemológica kantiana, o sujeito humano, dotado de uma razão transcendental, visa à construção de representações do mundo, tornando-o um inevitável centro de referência. O que deixar de ser-lhe referenciado será considerado apenas um pseudoproblema, pois só ao homem, e à sua razão, oferecem-se problemas autênticos. O mundo físico foi assim confundido com o mapa mundi das representações humanas. O homem, aprisionando-se numa redoma epistemológica, e perdendo sua dimensão modal finita, afastou-se da substância do qual é um modo de ser, julgando-se ainda o senhor da linguagem e do pensamento. É possível acompanhar esse longo processo de altivez do sujeito, através da História da Física.
No séc. XV, Copérnico propõe, na obra “Das Revoluções dos Corpos Celestes,” o sistema heliocêntrico, em que todos os planetas descrevem órbitas circulares concêntricas em torno do Sol. É uma descrição matematicamente muito mais simples do que a complicada engenhoca escolástica, proposta por Ptolomeu, com seus artifícios tais como os epiciclos, eqüantes e deferentes, ou das complexas esferas homocêntricas de Eudóxio, criados tão-somente para salvar os fenômenos, sob o ponto de vista geocêntrico. Esta cosmovisão vigorou desde os tempos bíblicos até o Renascimento. Quando, por exemplo, no episódio bíblico em que o líder Josué pede ao Sol que permaneça imóvel nos céus para assim prolongar o dia, permitindo aos judeus guerrear contra seus inimigos, em plena luz do dia, trata-se, como não poderia deixar de ser, de uma abordagem geocêntrica do cosmos perfeitamente condizente com os tempos bíblicos. Já entre os gregos, somente Aristarco de Samos ousou desafiar o geocentrismo, e a visão preponderante entre quase todos os grandes pensadores pós-socráticos era a de um universo constituído por uma majestática Terra central, circundada por “sete céus” ou sete esferas homocêntricas de cristal, a saber: a esfera lunar, as cinco esferas dos planetas visíveis a olho nu (Mercúrio, Vênus, Marte, Saturno e Júpiter), e a última esfera, a das estrelas fixas, seria o horizonte visível deste cosmos finito. O universo aristotélico que vigorou até o Renascimento, tinha assim o tamanho do olhar desnudo do homem. Este, lançando olhares desde um ponto central e privilegiado do mundo, era, segundo o sofista Protágoras, “a medida de todas as coisas sejam elas existentes ou não“. Quando Copérnico propõe seu modelo heliocêntrico, muito mais simples que as construções geocêntricas de Eudóxio e Ptolomeu, não poderia imaginar as profundas implicações filosóficas e religiosas que isto teria, desalojando a Terra e o homem do centro do universo, e catapultando-os para um ponto qualquer do espaço. Descobriu-se depois que a Terra gira a uma considerável distância do Sol, estrela de quinta grandeza que gira, por sua vez, em torno do centro de uma galáxia insignificante, a Via Láctea que gira, por sua vez, como bilhões de outras, em torno de um grande atrator, que, por sua vez, também se move. O princípio escolástico tudo que se move, assim o faz devido a outro, implicava necessariamente na existência de um motor imóvel, causa primeira e central de todas as coisas. O modelo de Copérnico foi o primeiro passo para superar de vez as ideias de repouso absoluto e de centro. O monge dominicano Giordano Bruno foi ainda mais longe, sendo queimado nas fogueiras da Inquisição por afirmar que o universo, assim como tudo que é infinito, não tem centro.
Kepler, após exaustiva análise de dados colhidos pelo astrônomo dinamarquês Tycho Brahé, aprimora o sistema copernicano, concluindo que as trajetórias dos planetas sequer eram circulares, mas sim, elípticas. Derrubando outro dogma, caríssimo de toda a civilização ocidental pós-socrática: os astros como criaturas perfeitas e quintessenciais do universo, deveriam mover-se em movimento circular uniforme, pois o círculo era uma figura sacralizada por sua total simetria em relação a um único centro, este reservado à majestosa figura humana, feita à imagem e semelhança divina. Kepler com sua elipse assimétrica de eixos distintos, além de dois inaceitáveis focos, desferiria mais um golpe mortal ao narcisismo humano. Mas o homem ainda se apegava à sua majestática e egóica posição central.
Galileo Galilei costumava responder aos cardeais escolásticos da Igreja, com que propósito teria Deus construído um mundo em que todos os céus mover-se-iam diuturnamente, de leste a oeste em torno da Terra e o Sol percorreria anualmente o cinturão zodiacal. Pergunta ironicamente Galileo, com seu vigoroso estilo, encarnado em seu alterego Salviati, que Deus tão perdulário ou tão pouco inteligente produziria tais movimentos somente para deixar o homem e a sua Terra solene e imóvel, como centro deste desnecessário maquinismo? O sábio toscano, além de seus incansáveis argumentos em favor do sistema de Copérnico, também consegue contestar o geocentrismo com argumentos de pura racionalidade energética: afinal o que é mais fácil arrastar o banquinho do pianista até o piano ou puxar o piano para aproximá-lo do banquinho?
Em seguida, apontando seu telescópio para os céus percebe, com seus próprios olhos, que estes não são feitos da quintessência etérea, mas dos mesmos materiais com que são feitas as coisas terrenas. Os sete céus desabavam sobre a Terra, mas o homem preferiu entender que ele é que subia aos céus. Rompidas as esferas supra e sublunar, a orgulhosa criatura, feita à imagem e semelhança de seu Criador, voltou-se altiva a si mesmo depois que a hierarquia escolástica entre o sagrado e o profano havia ruído.
Paradoxalmente, a revolução copernicana, enquanto subtraía da Terra a condição de centro estático do mundo, conferiria ao seu morador a condição de sujeito central. Assim, desde o Renascimento o homem atribuiu-se o papel de protagonista, ou proto agonista, o primeiro combatente do drama universal. Já no final da Idade Média surgem várias ilustrações pictóricas desse esplêndido protagonista abarcando o mundo. O Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci, retratado de braços e pernas estendidos, ocupando a grande esfera que contém o universo centrado em seu umbigo; e o David de Michelangelo, majestoso em sua exuberância anatômica, são os ícones do orgulho renascentista de um homem-sujeito que deixava de ser a passiva criatura frente ao seu Criador, buscando ultrapassar seus limites e transgredir a sua finitude.
No séc. XVII, as escalas naturais pitagóricas, geradas a partir dos modos harmônicos de vibração dos corpos, sucumbem frente ao recém-inaugurado ideal racionalista, sendo substituídas pela escala cromática, rigorosamente dividida em 12 semitons idênticos à décima segunda raiz de 21. Os teclados foram assim temperados, segundo esta conta de chegada. Surge a elaborada música de um sujeito racional, em substituição à música em estado de natureza. Bach, e seus prelúdios e fugas do Cravo Bem Temperado, inauguram esplendorosamente essa nova “música do sujeito,” elevando novamente o protagonista aos céus, em pungentes diálogos com seu Criador. No entanto, o homem esquecera a origem natural de seus sons, e a música, a Ciência e o pensamento que se seguiram refletem sua postura orgulhosa diante do mundo, não mais fonte, porém cenário para suas ações. Ele então se apegava à sua majestática posição central, arrastando todo o universo para fazê-lo girar em torno de suas representações.
Desde o dia em que Newton avistou em seu jardim de Whoolsthorpe, uma maçã se desprendendo da macieira, em 1666, foram necessários mais vinte anos de profunda reflexão para maturar e ordenar as suas ideias. Finalmente isto ocorreu em 1687, quando foi publicado Os Princípios Matemáticos da Filosofia Natural que constituem a primeira grande exposição e a mais completa sistematização da Física clássica, sintetizando em uma única obra toda a cinemática de Galileo e a Astronomia de Kepler. Maçãs, luas, planetas, sóis, cometas, homens, pedras ou formigas seriam regidos pelo mesmo conjunto democrático de leis, acabando-se com mais de dois milênios de dicotomia entre o imperfeito e transitório mundo de coisas inanimadas e o transcendental mundo das vontades e motivações humanas: sob o ponto de vista mecânico não há diferenças entre homens e pedras, todos os entes da natureza movem-se sob as mesmas leis de força e movimento. A vontade humana teria também que se submeter às mesmas leis. Mas o homem insistia em atribuir-se leis supramateriais que o descreveriam como uma vontade livre e soberana sobre os demais entes da natureza. Segundo o dualismo cartesiano, enquanto o corpo movia-se mecanicamente, a vontade humana era posta acima das leis da natureza. Assim, o homem revestido de livre arbítrio absoluto, poderia optar livremente entre o bem e o mal, sendo-lhe imputado crime e castigo por seus atos, escolhidos por uma vontade autônoma.
Como já vimos nos capítulos V e VI, Einstein, em 1905, elimina o último cenário imóvel, aristotélico e privilegiado do universo, sepultando de vez a ideia de um éter em relação ao qual as leis da Natureza poderiam ser escritas de maneira única e singular, propondo, ao invés, uma democratização de todos os sistemas de referência em que estas leis, e apenas estas, seriam absolutas e universais, sendo invariantes para quem quer que as observe. Cairia assim o espaço-tempo newtoniano absoluto, como sensório e hálito de Deus, assim como o último bastião escolástico: o éter quintessência que permeava as esferas de cristal do mundo. Não existiriam mais tábuas estáticas de salvação às quais se agarrar, para manter o homem a salvo de sua insignificância cósmica.
Por que as evidências de uma progressiva descentralidade cosmológica da natureza levaram o homem, na contramão, a uma posição epistemológica de centralidade? Por que o cogito cartesiano e as categorias kantianas seguiram-se à queda do geocentrismo escolástico? Em suma, por que a revolução copernicana aponta, na astronomia, numa direção descentralizadora, ganhando na Filosofia o sentido oposto? Parece-me que a busca por uma resposta a essa questão faz convergir o projeto científico de Einstein à metafísica de Spinoza. Quando fiz este questionamento à Profa. Nancy Unger, comentadora das mais renomadas da obra de Heidegger, ela sugeriu-me algo que aponta para essa convergência. Segundo ela, a hierarquia aristotélica dos céus fazia do homem um prisioneiro da esfera central sublunar, domínio das transitoriedades, assim essa centralidade, longe de lhe conferir uma centralidade ontológica, o afastava da perenidade e da ordem dos céus. Rompida, com o sistema copernicano, a hierarquia escolástica entre céus e a Terra, esta e seu mais eloqüente morador passavam a flutuar nos céus. O homem deixava assim de ser a criatura afastada de seu Criador, tornando-se protagonista de uma nova ordem: a criatura tornava-se sujeito. O centro astronômico do universo foi transferido para as entranhas do pensamento humano Muitos aspectos desse antropocentrismo vigoram até hoje, engessando o pensamento do homem, aprisionando-o em sua egoidade, como centro ontológico e cognitivo do universo, pois o homem apegou-se à posição central de sua subjetividade transcendental. É nesse sentido estrito de uma descentralidade ontológica do homem que, a meu ver, a metafísica de Spinoza, e a Física de Einstein convergem para mais um ponto comum, pois em Spinoza o pensamento do homem é um modo do pensamento da substância, enquanto seu corpo é um modo da extensão. Para Einstein, a pretendida unificação das leis da natureza universalmente válidas, englobaria e estabeleceria as próprias condições para a existência humana. A realidade vige por si mesma, independente de um sujeito transcendental, feito pela filosofia pós-metafísica, como centro epistemológico do mundo. Não seria este o sentido das já citadas palavras do físico ressoando aos apelos spinozianos?
Além de mim, fora de mim, estava o mundo imenso, que existe independentemente dos seres humanos e que se nos apresenta como um enorme e eterno enigma […]2.
Apesar de todas essas evidências antiantropomórficas, certos sistemas filosóficos, ditos pós-metafísicos, apenas deslocaram a metafísica para o interior da consciência humana, tornando-se ela própria uma substância. Insistem ainda em manter o homem como senhor da linguagem e do pensamento, como se depreende do texto de Heidegger:
O homem se comporta como se ele fosse criador e senhor da linguagem, ao passo que ela permanece sendo a senhora do homem. É salutar o cuidado com o dizer. Mas esse cuidado é vão se a linguagem continuar apenas a nos servir como um meio de expressão3.
O texto abaixo de Jonhatan Rée, num ensaio sobre Heidegger, ressoa também de forma inequívoca a descentralidade, que pretendo em Einstein e Spinoza, do homem frente ao mundo em que vive:
Não, somos, enquanto cuidado, um objeto fixo no interior do mundo, mas uma extensa rede de atenções para com ele (…) não podemos nos aproximar da autenticidade tentando ausentar-nos do mundo, mas apenas identificando-nos escrupulosamente com as tramas de cuidados que amarram o mundo. O cuidado revela nossa existência como sempre “à-frente-de-si-mesma-ao-já-estar-em-um-mundo”4.
Em oposição aos que reivindicam para o homem uma primazia ontológica, e uma posição epistemológica central municiada por uma razão categorial apriorística ou de uma epistemologia humana centralizadora, acredito na metacosmologia de Spinoza onde a ação, a linguagem e o pensamento humanos, como modos finitos, têm a mesma importância ontológica que a Terra; no sistema copernicano: a morada do homem situada num pequeno planeta periférico de uma pequena galáxia periférica. Que papel poderia ser atribuído às ações humanas diante de uma natura infinita na qual não existem centros, nem pontos, nem referenciais singulares ou privilegiados? Em que diferiria, na metafísica spinozista, o pensamento humano de um pensamento universal no qual pedras, átomos, estrelas ou a poeira cósmica também pensariam refletindo-se na autoconsciência do universo? Segundo Spinoza, diferiria apenas na medida da complexidade de seu corpo e de seu pensamento. Mas muito antes de Spinoza, nas origens fundantes do pensamento ocidental, não seria então a infinitude da natureza, expressa pelo princípio heraclitiano Hεν Παντα (En Panta) “tudo é um,” o ponto de partida para apreender o ser finito do homem em relação permanente com o universo? Afinal, segundo o filósofo de Éfeso: “(…) só uma coisa é sábia, conhecer o pensamento que governa tudo através de tudo“5.
Neste caso, não seria então razoável supor que se o homem está revestido de humanidade, como dizem os humanistas, estariam da mesma forma, as pedras revestidas de pedreidade, a água de aquosidade, a lua de luneidade e o universo de universalidade? Tais questões nos remetem não só a uma ecologia do homem numa Terra não antropomorfizada, mas, principalmente, a uma pedagogia filosofante, pensante, e não apenas pensada, de onde é subtraída ao homem a sua egoidade, construtora de categorias cognitivas com as quais ele, situado fora do mundo, o visa representar. A partir do cogito cartesiano, e principalmente depois do criticismo de Kant, o homem despregou-se da natureza, porque a tem como algo disforme à qual tem de acrescentar a sua razão ordenadora que a restaura enquanto forma, sentido e inteligibilidade. Assim, em torno da grande catedral kantiana, entre a natureza e o homem, ergueu-se uma parede de vidro intransponível, sendo oferecida ao homem apenas possibilidades de representações de um mundo bruto, desprovido de relações e organicidade, que lhe é extrínseco e ontologicamente inferior, e do qual pode apenas esboçar representações. É lhe vedada a porta de acesso ao ser da substância, simplesmente porque o homem deixou de se perceber como um modo de ser, evadindo-se da natureza, trancando-se em seu cogito, o que, por outro lado, é também um modo de ser: o modo de ser do sujeito transcendental pós-renascentista.
Que bons argumentos podemos dar a nossos aprendizes acerca da escolha de uma teoria científica em detrimento de outra? No capítulo VI refletimos sobre a Teoria da Relatividade, mostrando como a partir de uma axiomática muito simples Einstein construiu uma teoria que, para pequenas velocidades, retrovê os mesmos resultados que a teoria newtoniana, mas que, para grandes velocidades, prevê fatos inteiramente novos. No capítulo anterior mostramos como a Teoria Quântica e a Teoria de Variáveis Ocultas descrevem e fazem previsões semelhantes, partindo de axiomáticas totalmente distintas. Qual delas é a melhor? Existe um critério de seleção de teorias? Poderemos, ainda mais radicalmente, questionar se a própria ciência é uma descrição do mundo superior à religião ou à mitologia? Será isto verdade ou mero preconceito?
Um exemplo pedagogicamente relevante que um mestre despojado de preconceitos pode oferecer aos seus aprendizes é a de um relâmpago sendo observado por um grego dos tempos helênicos, um teólogo escolástico e por um físico. O primeiro exclamará “É Vulcano!“ O segundo, “É Deus!“ Enquanto o cientista dirá “São elétrons“ Será alguma dessas descrições mais verdadeira que as demais? Qual delas descreve melhor a realidade de um relâmpago a ofuscar-lhes a visão? Convidados a argumentar porque o seu relato é mais verdadeiro, o físico dirá orgulhosamente que sua teoria do elétron descreve não só o fenômeno recém-observado, mas também uma variedade de outros, como a atração de uma pedra de âmbar atritada, um choque na tomada, o deslocamento dos ponteiros de um amperímetro, o funcionamento e a construção de vários aparelhos, hidrelétricas etc. No que será prontamente contestado pelo teólogo que dirá “Alto lá! Deus é a causa e a razão de absolutamente todos os fenômenos!“ E o grego calado até então dirá timidamente que “sempre soube que Posseidon move os mares, Apolo conduz o Sol, e Vulcano produz os raios, enquanto que Zeus enfurecido os atira“ O físico, já com ares vitoriosos, dirá então que, não só a sua teoria eletrônica descreve uma variedade maior de fenômenos (Figura IX-1), como também os pode prever com antecedência e precisão matemática, interferindo no curso dos acontecimentos. Concluirá assim estar convencido da superioridade e da existência de seu elétron em relação aos demais entes que não passariam de crendices ou ficções.
Em que sentido, a descrição científica poderá ser considerada melhor ou “mais verdadeira” que as demais? Não seria a Física uma mitologia moderna permeada de novas metáforas? Além de uma previsibilidade, que, aliás, nem sempre é possível, em que sentido as metáforas modernas podem ser consideradas melhores? Não será esta também uma crença? Existe ainda uma outra crença, muito comum nos meios científicos menos críticos, à qual denomino de “realismo ingênuo”. Segundo ela, os signos que habitam a linguagem científica, tais como fótons, elétrons, ou mésons, existem em si, exatamente como os imaginamos, ao invés de simbolizarem, respectivamente, fenômenos tais como o acender de uma lâmpada, relâmpagos ou o aparecimento de bolhas numa câmara.
O mestre poderá sugerir aos seus aprendizes refletir que, sob o ponto de vista humano, a descrição cientifica é útil, uma vez que faz previsões, abre-se a aplicações práticas e utilidades tecnológicas que as outras não podem oferecer. De fato, a representação “elétrons” prevê os relâmpagos, permitindo a construção de pára-raios assim como a representação “vírus” permite a elaboração de vacinas, prolongando, com isso, a existência humana que hoje pode chegar facilmente aos 80 anos, enquanto na Idade Média raramente passava dos 40. Sob a égide do pragmatismo, o conhecimento científico é a escolha verdadeira, ou melhor, é a própria verdade. No entanto, sob o ponto de vista spinozista, não se pode discernir o bem do mal, o belo do feio e até mesmo o fenômeno humano de qualquer outro fenômeno natural. Afinal, se a vacina é boa para o homem, é péssima para o vírus… Num plano ontológico, o pragmatismo das ações humanas fica assim desprovido de sentido. Necessitamos, portanto de outros critérios universais que lidem com as barreiras da finitude humana.
Do realismo ingênuo de alguns cientistas ao pragmatismo de outros, pode-se intuir mais uma postura epistemológica que denominarei de realismo spinozista, no qual a relação dos fatos, entre si (mediados por um humano que os observa), são manifestações de uma natureza una que se produz a si própria, através de princípios invariantes e atemporais de causalidade a ela imanentes. A ordo et conexio6 (reveja capítulo II) nos revela a existência de duas cadeias paralelas e independentes de acontecimentos. Em uma delas acontece a gênese e a produção de ideias por outras ideias obedecendo às leis do pensamento enquanto, paralelamente a esta, fatos são produzidos por outros fatos, obedecendo às leis físicas da natureza. Em ambas ocorre a mesma ordem e conexão de seus elementos, pois cada uma a seu modo expressa a substância. Será esta metafísica dos atributos paralelos compatível com a epistemologia contemporânea? Ou apenas um ultrapassado anacronismo metafísico? A epistemologia demanda que a Física, e toda a ciência moderna, descrevam a realidade enquanto suas previsões convierem, dentro de uma faixa de precisão razoável, com os fatos da sensibilidade. Em suma, as teorias produzem números teóricos enquanto os experimentos produzem números empíricos, a verdade científica ocorre quando esses dois conjuntos de números coincidem dentro de uma faixa de tolerância. No momento em que a teoria deixa de descrever essa verdade por correspondência aos fatos, ela é substituída por outra que o faça melhor, sendo esta última alçada à condição de descrição do “real”. A mitologia, a escolástica e posteriormente a Física newtoniana seriam antigas descrições da realidade, enquanto as teorias da Relatividade e Quântica, as novas. Resistirá a metafísica de Spinoza a esta conta de chegada do teórico ao empírico?
Consideremos que a mente faça uma construção teórica constituída de n axiomas T = {A1, A2, …An}, que produzirão, por sua vez, um conjunto de m previsões teóricas t = {t1, t2,…ti, tm}. Paralelamente, no mundo material (atributo extensão), uma configuração E do universo evoluirá causalmente produzindo fatos empíricos que se projetarão sobre um determinado observador-experimentador, afetando-lhe o corpo e manifestando-se como um conjunto de medidas e={e1,e2…ei…em}. Ora, segundo Spinoza, essas duas cadeias descrevem a mesma realidade (substância), sendo a primeira através do atributo pensamento e a outra pelo atributo da extensão:
T → t = {t1, t2, ti….tm}
E → e = {e1,e2, ei… em}
As relações de ordem e conexão entre o pensamento (teórico) e fatos empíricos obrigam-nos a escrever que:
(a) entre teoria e experiência existem as mesmas proporções: ti/ tj = ei /ej para todo i e j. O que nos leva a ti = aei.
(b) entre teoria e experiência existem as mesmas variações: ti – tj = ei – ej → a(ei – ej) = ei –ej → a=1, ou seja ti = ei
Portanto, o paralelismo spinoziano implica que as previsões teóricas sejam, na medida do possível, iguais aos fatos. Neste caso a teoria T será tão próxima quanto possível à realidade física E
T → E
Se T não convergir para E uma outra teoria T’ deve ser testada e somente podem ser consideradas teorias científicas aquelas que podem ser submetidas a esse teste Essas duas condições são a essência da epistemologia contemporânea, proposta inicialmente por Popper7, e aprimorada por seu discípulo Imre Lakatos, em sua metodologia dos programas de pesquisa8. Segundo este epistemólogo húngaro, raramente um cientista descarta completamente uma teoria, com a qual está familiarizado, para propor ou render-se a outra. Os programas de pesquisa são um conjunto de teorias (ou apenas uma), constituídas por um núcleo duro de axiomas, leis ou postulados permanentes, que não devem ser modificados, e por um cinturão protetor de hipóteses, que podem ser modificadas ou ajustadas, para melhor descreverem os fatos empíricos. Essa proposta é mais realista que a de Popper, pois uma teoria pode ser “reformada” apenas no seu cinturão protetor, sendo mantida sua estrutura ontológica que é o núcleo duro. A história da ciência nos mostra que a comunidade científica opera muito mais freqüentemente na reforma parcial da teoria do que na sua completa rejeição. Um programa é dito progressivo, quando prevê fatos novos, e regressivo, quando apenas descreve fatos já conhecidos, e muitas vezes já previstos por outro programa rival. Segundo Lakatos, a evolução da ciência ocorre ao longo de um processo contínuo, quando um programa regressivo é substituído por outro progressivo.
Acredito que os autores de um programa progressivo têm maior alcance de percepção ou mais sintonia com a natureza e o universo, e, portanto maior poder de previsão de fatos. Sabem não só quando e como modificar o cinturão protetor de hipóteses auxiliares, numa hábil estratégia chamada de heurística, como também, em alguns casos mais heterodoxos, mudar o núcleo duro, ou seja, propor um novo programa. Einstein soube, como ninguém, operar nos dois sentidos…
É importante realçar que na dupla cadeia convergente da ordo et conexio spinoziana, o sujeito-homem-observador não precipita sobre si o real porque é ele mesmo, juntamente com os fenômenos que ele relaciona, elementos da natureza pensante, e, portanto do real. Ao contrário das interpretações mais comuns da Física contemporânea, o observador e sua mente humana não pairam acima da realidade como fantasmas supramateriais porque simplesmente a ela pertencem como modos finitos pensantes e extensos. A disposição coerente e unívoca da mente humana com as afecções corpóreas imersas nas forças da natureza, não seria apenas uma descrição do real, como julgam os físicos ortodoxos, mas a própria realidade projetando-se nas suas duas faces: a natureza pensante e a natureza extensa A verdade seria então a correspondência biunívoca entre as duas faces: uma ideia relaciona-se com outra por necessidade, assim como seus ideados, por causalidade. Esta última forma de realismo, que subtrai ao homem a condição de sujeito ímpar à procura de juízos sobre seus objetos, conferir-lhe-ia apenas um papel descentralizado de porta-voz do Logos, expressão de uma realidade já instalada na natureza, como um campo de forças. A verdade científica é assim a sintonia do homem com a natureza. Parece-me ser essa a forma de realismo adotada por Spinoza e Einstein. Pensar é convir com o pensamento à medida, e à mesma proporção, que o corpo recebe e acolhe as afecções da extensão.
Por outro lado, grande parte da ciência que se faz hoje seguindo na esteira das representações, e da construção kantiana, pretende superar a metafísica com a razão pura, questionando a própria metafísica, e quaisquer outras manifestações do espírito humano. Acredito que através das categorias a priori não se pode compreender que a razão pode estender-se, em toda a sua abrangência, substancialmente além de uma representação coerente de uma natureza que lhe é externa. Como buscou Einstein até o final de sua vida, a mente pode mergulhar nas profundezas da cognição como a apreensão do ser das coisas mesmas, através do conhecimento da natureza da qual é parte indissociável. Deixaria assim a mente e suas ideias (teorias), de ser um simples mapa mundi, mas, pelo contrário, uma das forças ou ressonâncias básicas da natureza a quem espelha, reflete e revigora. Assim, à mente que já é um modo de ser na natureza, se oferece a coisa em si e a possibilidade de vislumbrar a substância-ser. Penso ser este o diálogo que Einstein quis ter com um Deus “complexo, mas não malicioso”.
Acredito que esta crítica à ciência e à técnica modernas poderá ser o ponto de partida para uma pedagogia que pode transpor as redomas de vidro na qual o físico pós-kantiano se aprisionou, julgando-se um rei sentado num trono epistemológico detendo o poder de precipitar o real sobre si da maneira que melhor lhe aprouver. O humano e a natureza são feitos da mesma essência, ou seja, o homem é modo ser da natureza e não está fora dela como um sujeito transcendental que, munido de uma razão pura, universal, estruturada por categorias e intuições a priori, qualifica-se como representante das coisas. Ser é ser modificação finita ou co-pertencer às forças da natureza. Desta forma, Spinoza conseguiu desvencilhar-se das redomas da filosofia do cogito cartesiano cercado por objetos representados como miragens inacessíveis, refletidas difusamente pelo solipsismo da razão transcendental, e de uma egoidade aprisionada e aprisionante. Como vimos exaustivamente, na ontologia spinoziana, o homem é tão somente um modo (ente) finito imbricado em uma substância infinita a qual pode vislumbrar de dois planos distintos convergentes ao ponto de fuga: extensão e pensamento. Assim, a presença extensiva das coisas é uma projeção num desses planos, enquanto que a ideia da coisa é a outra. Visam encontrar-se no final do processo de produção acima descrito T→E. A substância, entretanto, só se deixa desvelar nesses planos, permanecendo infinitamente eclipsada para o homem finito. Spinoza geometriza a metafísica sendo a verdade não uma véritas à qual o sujeito acede por correspondência ou coerência, mas sim uma aletheia geometrizada em dois planos de desvelamento. Vimos o quanto Einstein e Bohm, cada um a seu modo, se aproximaram destas ideias. Ambos fizeram o observador imergir para as profundezas da realidade, tirando-o do pedestal situado acima das leis da natureza, que lhe concedera a filosofia dita pós-metafísica e uma de suas filhas, a Escola de Copenhague. Será justamente sobre este ponto nevrálgico que, em seguida, focalizarei o olhar através de uma lente convergente.
Segundo Spinoza, a natureza, tal qual a percebemos, é constituída por entes finitos que ele denomina de modos, ou seja, singularidades de uma substância (Deus), que se manifesta simultaneamente como coisas extensas (matéria) ou como coisas pensantes (ideias). Deus é então uma coisa extensa e pensante assim como todos os seus modos, sendo um campo fundamental e fundamentante do real no qual o homem é, tal qual qualquer outro ente, um modo singular finito. Na filosofia de Spinoza, o real, expresso por leis eternas da natureza, não pode assim depender de como é descrito, falado, imaginado ou pensado pelo homem ou qualquer um dos modos, pois o pensamento é atributo infinito da substância, e não de seus modos. Assim, para Spinoza, não é o homem que se expressa através de uma linguagem que descreve a natureza, mas é esta que se expressa através do homem quando ele a descreve através da linguagem, agora já vigorando, como um Λoγoζ (logos) heraclitiano. Desta forma, não só a linguagem como o próprio pensamento não são privativos do homem, mas estão na natureza e no mundo oferecendo-se ou projetando-se sobre ele para que os faça viger, sendo precisamente neste sentido, e não em outros, que ele se distingue dos demais entes (ou modos): porta-voz da linguagem e mensageiro do ser. É no homem que afluiriam ser e linguagem numa correspondência, que Heráclito denominou de oμoλoγυειν (homologein), falar como o Logos fala, corresponder ao Logos na mencionada unidade da natureza Eν Παντα (“tudo é um”).
(…) ouvindo o som que o Logos diz só se pode filosofar em língua própria, e para ser exato e coerente, a partir de um Logos ouvido como acontecimento da diferença que a Tudo une no mesmo Um9.
Pois da mesma forma, em Spinoza, não é o homem que pensa, mas sim a Substância-Deus, através de cada um de seus modos, inclusive o homem.
A alma (mente) humana é parte da inteligência infinita de Deus; e, conseqüentemente quando dizemos que a alma humana percebe tal ou tal coisa, não dizemos senão que Deus, não enquanto é infinito, mas enquanto se exprime pela natureza da alma humana, ou seja, enquanto constitui a essência da alma humana, tem tal ou tal idéia (…)10.
E o que se chama vulgarmente de “vontade de Deus’’, não é mais do que as leis da natureza em ato, e a vontade singular do homem (ou de qualquer outro modo) deve submeter-se também às leis mais gerais através das quais a natureza evolui como um fluxo natural e único. Portanto, homens, pedras, planetas ou estrelas não possuem, segundo Spinoza, qualquer livre arbítrio individual, pois que todo o universo segue um fluxo determinado por suas leis naturais, estas sim universais, invariantes e independentes de como, e por quem, são observadas, uma vez serem elas, modos infinitos imediatos da Substância-Deus (ver capítulo VI) e segundo Einstein não há nada que faça que o determinismo do universo se detenha na mente humana11 Assim, a liberdade da vontade não se encontra num plano modal (individual), mas, sim, é atributo da totalidade substancial, trata-se assim de uma cosmoliberdade. Segundo Spinoza, somente Deus é absolutamente livre, pois como ser infinito não pode ser constrangido a agir por outro(s) ser (es).
Cabe agora dialogar com Spinoza, contrapondo-lhe alguns questionamentos inevitáveis. Não seria um retorno às origens naturais da condição humana, um retrocesso a partir do qual ficaria obliterado o processo civilizatório constituído, ao longo dos últimos séculos? Em suma, o rompimento com a filosofia do sujeito poderia dar conta da história da civilização e particularmente da Física? Trata-se de uma árdua e incômoda tarefa pensar a História, a partir da condição humana como ente natural finito, e esboçar os contornos do fenômeno humano, a partir de sua naturalidade. Como entender, dessa forma, a construção pelo espírito humano das ciências, das artes, da linguagem, da política e da própria Filosofia, em suma, de todas as ontologias regionais, que não seja através de sua condição de sujeito? Afinal pedras não filosofam, plantas não compõem sinfonias e estrelas não estão submetidas às paixões humanas. Negar ao homem a sua singularidade é tão absurdo quanto isolá-lo do restante da natureza à qual pertence.
Sigo conjeturando com duas metáforas muito simples que poderão ser facilmente imaginadas pelos leitores. Na primeira delas, o homem é comparado a um esplêndido computador que recebe digitados no teclado os dados a serem computados pelo processador central. Nesta metáfora, o teclado seria o corpo e suas sensações, enquanto a mente, reduzida ao cérebro, o processador. Eventualmente esta formidável máquina poderia exprimir suas ideias simplesmente falando ou as imprimindo numa folha de papel. Esta é de fato uma imagem que bem representa a ideia vigente do homem-calculador. No entanto, podemos imaginá-lo também de uma forma distinta. Quando sintonizamos um rádio em uma determinada frequência, captamos ondas hertzianas que navegam no espaço vazio com a mesma frequência sintonizada no rádio. Um novo ajuste de sintonia no dial e uma nova frequência (emissora) passará a ressoar. O som ouvido não é próprio do rádio, mas uma ressonância dos circuitos deste, em resposta aos estímulos vindos do espaço vazio. Podemos então entender que o homem é um modo de ser capaz de ressoar as frequências da natureza, quando ambos são dispostos em sintonia ressonante. Da mesma forma, como existem rádios mais bem antenados, mais sensíveis, que podem captar com poucas distorções o que vem do espaço, enquanto outros emitem estranhos ruídos devido ao mau posicionamento de sua antena ou à pouca sensibilidade de seus circuitos, também os homens podem ressoar com mais ou menos precisão e intensidade os apelos da natureza. Temos assim formadas as imagens do homem calculador e a do homem ressonante. É neste sentido que o homem pode ser considerado um ente singular, pois é capaz de ressoar vários modos de ser: o pensar, o ouvir, o fazer artístico, o fazer científico, o poetar, o compor musical. Quando ele é capaz de ressoar dentro de si, o logos universal, ele estará disposto a falar como o logos fala, ou seja, ao homologuein. Assim, o homem tornar-se-á porta-voz do logos e mensageiro do ser ou modo pensante do Pensamento, pois, um modo finito qualquer da substância pode manifestá-la como Linguagem-que-a-Substância-fala (as leis da Natureza) ou Pensamento-que-a-Substância-pensa (as boas teorias científicas).
Percebe-se que tanto na obra de Spinoza quanto no pensamento filosófico de Einstein vige o homem ressonante, ao invés do calculador ou construtor de representações. É esta ressonância humana com a natureza que nos sinaliza, em seguida, para a proposta de uma pedagogia spinozista da Física, pois tanto mestre como aprendizes estarão imersos nas forças da natureza, fazendo ressoá-las dentro de si.