Depois das reflexões acerca da descentralidade ontológica da natureza, feitas no capítulo anterior, acredito que estamos aptos a mais uma reflexão de cunho propositivo. Após a didática filosofante da Teoria da Relatividade, desenvolvida no capítulo VI, com mais um passo adiante, proporei uma pedagogia spinozista filosofante e pensante para a Física, com vistas a uma Educação para e através da Física.
O termo proposto, pedagogia filosofante e pensante, poderá soar a ouvidos críticos como vazio ou como a glacê de um bolo de noiva confeitado, mas feito com uma massa insossa. Tomo, portanto, o cuidado de justificá-lo. O termo foi inspirado no cosmocentrismo ou naturocentrismo de Spinoza, que percebe o fenômeno humano como modalidade de uma Natura, ao mesmo tempo extensa e pensante. Nem a Natura naturans nem a Natura naturata se reduzem à descrição das leis físicas espaço-temporais, pensadas por um sujeito que lhes é transcendental, mas são pensantes por si e para si: a natureza em Spinoza não é pensada, mas pensante. Uma pedagogia será pensante nesse mesmo sentido e será filosofante porque inspirada numa metafísica spinozista. Entendo que Einstein, provavelmente inspirado em Spinoza, ao afirmar: “quando a resposta a um problema se nos apresenta com simplicidade, foi Deus quem o resolveu,” percebe a natureza como causa e razão de si própria, e, assim, quando pensa, o homem o faz em acordo ou ressonância com o pensamento originário do qual é modo ou manifestação. Desta forma, uma lei da natureza apreendida pela razão humana não resulta de um ato gnosiológico de uma mente singular intencional, mas é a própria lei expressa por via de um dos modos finitos da natureza. Dito de forma mais simples: na metafísica de Spinoza, o homem pensa ressoando junto, e não sobre uma natureza do qual está apartado, como se depreende claramente do texto de Delbos:
[em Spinoza] A lei não é uma forma universal de explicação, mais ou menos exterior ao seu objeto, ela é a relação imanente imediata que une as coisas particulares, é a expressão do ato pelo qual os indivíduos (modos finitos) se completam e se unem, pelo qual exprimem na diversidade de suas existências a unidade essencial do Ser infinito1.
Quando o homem formula uma lei que se verifica na extensão de suas observações sensíveis, ele não estará descrevendo algo que lhe é externo, mas será ele próprio a natureza em ato, refletindo e refletindo-se na referida lei, exprimindo-se esta através dele. Enganam-se assim certos comentadores kantianos, como Erdmann (ver capítulo II), que pensam que na ontologia spinozista os atributos e as leis da natureza são formas do espírito humano transcendental para organizar um mundo amorfo. Em Spinoza, as leis formuladas por um ser finito pensante são descobrimentos “da unidade essencial do Ser infinito,” e não invenções de sua mente.
Assim como para os poetas, o logos manifesta-se como homologuein, para o cientista, a matemática é o logos que ele expressa estabelecendo aquilo que se convencionou chamar de uma verdade científica. (ver Quadro 1, itens 4 e 5). Essa concepção de verdade, como campo ressonante de forças, suscita, por outro lado, várias outras indagações desafiantes. Se a verdade resultaria de uma correspondência do homem co-participante com a natureza em ato, como entender a precariedade de seu conhecimento; seria então um erro, um equívoco ou uma teoria falsa, outra forma de correspondência? Na tradição aristotélica, a verdade é definida por correspondência entre os juízos emitidos por um sujeito e as coisas do mundo objetivo, que lhe são externas. O sujeito colocado à parte do mundo emite juízos sobre este. No entanto, como se falar de verdades, falsidades, erros ou acertos em uma fenomenologia desprovida de sujeitos e objetos, mas constituída apenas por substância, atributos, modos e afecções? Para Spinoza, existe uma rigorosa isonomia entre as afecções do corpo e as ideias da mente, assim uma definição de verdade ou falsidade no sentido aristotélico, carece de sentido. Qualquer juízo (ideia) fará parte de uma cadeia de ideias paralela à outra, constituída das afecções corpóreas, e ambas sempre estarão em relação de correspondência unívoca posta pela, muitas vezes repetida, proposição EII, VII: “ordo et conexio idearum idem est ac ordo et conexio rerum“. Existem, entretanto, ideias que pertencem a uma malha lógica e outras que não lhe pertencem. A essas ideias Spinoza chama de ideias inadequadas (rever capítulo II). No entanto, elas também correspondem a afecções corpóreas, e nesse sentido, são tão verdadeiras quanto as ideias adequadas. Em suma, se existem ideias verdadeiras e verdadeiras ideias, que podem estar equivocadas, como então distingui-las? No ordo et conexio spinozista, as primeiras relacionam-se entre si de uma forma silogística, formando cadeias lógicas que correspondem a redes de eventos (percebidos pela mente em conexão e sucessão às afecções corpóreas) que, por sua vez, relacionam-se causalmente entre si. Uma ou mais ideias serão adequadas se pertencerem a uma malha de ideias coerentes que correspondam a uma cadeia de causas e efeitos corpóreos que, diante da finitude do corpo e da mente humana, será também finita. O pensamento humano embora finito coincidirá localmente com o infinito pensamento de Deus. Assim, pode-se conjecturar que devido à finitude do homem, suas verdades científicas não podem ter validade eterna, pois em algum ponto ou momento haverá um desacordo entre suas ideias e suas afecções corporais, rompendo-se a conexão entre estas. O homem que havia antes ressoado um particular modo de pensar passará a ressoar outros mais amplos que envolvam o anterior, rumo a uma infinitude inatingível. Desta forma, por uma regressão ao infinito, para pensar exatamente como a Natureza pensa, o homem teria de ser infinito, e, portanto idêntico à Natureza, mas pensando regionalmente o que a Natureza pensa como um todo a precipitará fielmente como uma antena de alcance limitado. No entanto, o que dizer das ideias inadequadas ou daquelas vulgarmente consideradas como erradas, equivocadas, irracionais ou até mesmo falsas? Se um determinado homem (modo corpo e mente) as tem, seguramente pertencem, tanto quanto as demais, ao mundo, fazendo parte da natureza humana. Ainda que a essas ideias não possa corresponder uma sequência de afecções corpóreas ordenadas causalmente, elas não poderão ser consideradas como falsas, mas tão-somente confusas ou, no jargão spinozista, inadequadas. Essas ideias, que comumente chamamos de erros, enganos ou paixões, são, de alguma forma, decorrentes de uma falta de conhecimento. Mas afinal se uma antena não capta bem as imagens ou as distorce, estará errada, equivocada ou apenas mal posicionada no espaço? Um erro decorreria tanto do posicionamento corpóreo-mental de um particular ente humano frente à totalidade da natureza, como da finitude das regiões de onde provêm as afecções corpóreas, aquém do alcance necessário.
Tendo isto em mente, posso retornar à pedagogia filosofante e pensante, pois estamos agora aptos a refletir sobre um desdobramento da descentralidade do universo, visando superar uma pedagogia que há muito é centrada nos limites do estritamente humano. Há séculos que se pensa que o ensinar-aprender tem dimensões protagóricas: inicia-se e termina no homem e na sua finitude. Também na pedagogia clássica, a relação entre o mestre protagonista e seu discípulo é a de um sujeito frente a um coadjuvante objeto de pesquisa. O primeiro, utilizando-se de uma metodologia de aprendizagem e avaliação, visa atuar modificando seu aluno-objeto, conduzindo-o do estado de desconhecimento ao de conhecimento, de escuridão às luzes, através de ações e estratégias predefinidas, seguindo um enredo previamente estabelecido. Enquanto o mestre “transmitiria” seus conhecimentos ao segundo, este os “absorveria,” com maior ou menor intensidade, a depender de atos de sua vontade, preparo, competência, esforço, conhecimento prévio, condições sociais etc., em algum lugar denominado de “sala de aula,” monitorado por livros, um arsenal de textos avulsos e uma bateria de exercícios (ver Quadro 1, item 15-4).
Mais recentemente, o aprendiz “adquiriu” a condição de um “segundo sujeito,” e o mestre, adentrando-lhe a mente, tentaria auscultar-lhe os anseios, as dificuldades, as carências materiais e afetivas, consumando-se assim o aprendizado, num dueto intersubjetivo, através de uma relação não apenas pedagógica, como também, psicológica. O orgulhoso mestre renascentista assume agora o papel de um confidente. Ainda assim acredito que estariam os dois sujeitos enclausurados, em uma redoma de vidro, constituindo uma relação simbiótica bipolar, imunes aos apelos da natureza e do mundo, pois para consumar-se o aprendizado, enquanto ao aprendiz bastaria encontrar a escola e os mestres adequados (aqueles com postura caridosamente psicossocial), a estes bastaria indicar-lhes pacientemente as fontes e meios de conhecimento. Embora esse diálogo seja necessário, está longe de ser suficiente. Crê-se que o conhecimento pode fluir diretamente de um sujeito a outro sem a mediação das forças da natureza. Proporia, ao invés, uma pedagogia que romperia a redoma da cognição meramente pessoal de um sujeito cognoscente, ou até mesmo interpessoal de uma coletividade de sujeitos cognoscentes, que buscam um consenso. (Ver quadro X-1 itens 6 e 7)
Em francês, o termo “conhecimento” é particularmente feliz, connaissance, isto é co-nascimento. Conhecer é, pois co-nascer, nascer junto com algo, emaranharando-se o sujeito ao seu objeto, como modos finitos de uma substância infinita, de tal sorte que desapareça o dualismo fictício que os separa. Acredito inclusive que o co-nascer não é um atributo apenas humano, e sequer apenas de seres vivos2.
Assim como o conhecimento é co-nascimento buscando o alargamento das linhas de horizonte do pensamento, a pedagogia spinozista que ora proponho é mais que uma ação coletiva, é cosmocoletiva, pois tem na natureza a fonte, a mediação e o receptáculo do aprender, visando o cosmosenso. Da mesma forma que o homologuein dos poetas, o aprendizado decorreria também de disposições ressonantes do aprendiz com a natureza que o cerca. Assim o mestre é apenas um dos pólos ou fontes de irradiação da natureza que o aprendiz ressoará. Mas ambos estão inextricavelmente imersos em um mesmo campo (substância-ser) do qual não poderão desprender-se, singularizando-se como sujeitos. Ensinar-aprender é ensinar-aprender a habitar o mundo e viver em acordo com suas forças básicas. Aprende-se não só em convívio com colegas e mestres, mas com a natureza-mestre, pois todo conhecimento, como co-nascimento, pressupõe que os entes ou modos, imersos neste processo, transitem livremente entre estados de solidariedade inter-humana e de solitariedade na natureza, e nesta última é que se entranha o saber. A relação dialógica entre parte e todo é constituída de solidariedade e solitariedade: cada modo é assim solitário em sua existência modal singular para ser solidário em seu substancial existir-no-mundo, sendo a recíproca também verdadeira. Assim, mestres e aprendizes solidariamente reunidos em sala de aula compartilharão um saber, mas é fora da sala que cada aprendiz solitariamente ressoará o saber, qualificando-se como nova força da natureza, tornando-se apto a compartilhá-lo com o mestre, com outro colega-aprendiz e com outras forças da natureza. No entanto, todos, como modos (entes) pensantes e cognoscentes, estarão imersos nessa dramaturgia cosmocoletiva que determina as condições concretas, ou seja, a modificação de suas existências.
Acredito assim que os mais prosaicos eventos que compõem o cotidiano das pessoas, pedagogicamente podem ser tão ou mais relevantes que as lições dos mestres com hora marcada, nas salas de aula. Um acender de uma chama; o líquido engarrafado que se congela a um toque de nossa mão; a água que ferve evaporando-se rapidamente em fogo alto, e que apenas ferve em fogo brando, o feijão de nossa cozinha que fica pronto rapidamente em panelas bem tampadas; as cores sequenciais do arco-íris, e a existência necessária de dois arcos; as fases da lua relacionadas às marés; a dança de uma árvore ao sabor da música do vento; o gotejar inclinado da chuva nas janelas de um carro em movimento; os sons ora agudos ora graves das ruidosas buzinas do trânsito; o repicar dos sinos da igreja mais próxima, contendo a riqueza de seus harmônicos; os meteoros riscando o céu e o raio de luz de Einstein, inspirador da Teoria da Relatividade. São alguns exemplos de modos extensos que se revestem de uma importância cósmica, e com os quais o aprendiz convive e co-nasce, co-pertencendo a uma infinita malha de acontecimentos que determinam a sua existência, e dos demais modos da substância. (ver Quadro 1, itens 8, 9 e 10).
Como pude constatar ao longo de mais de trinta anos em salas de aula, lecionando Física em várias universidades brasileiras, o ensino tradicional das ciências, ao impor ao aprendiz a resolução de imensas listas de problemas preestabelecidos, opera na direção oposta, desestimulando-o a ter o devido cuidado com a observação cotidiana. (ver Quadro 1, item 15-4).
O aprendiz sai da sala de aula com a responsabilidade de resolver intermináveis listas de pseudoproblemas gerados de dentro para fora, quando a transformação das ideias deveria ser exatamente o contrário: o aprendiz deveria vir com suas questões formuladas de fora para dentro da sala de aula. Ao invés de condicionar-se a oferecer soluções a problemas artificiais propostos, resolvidos através de fórmulas, ele encontraria na sua cotidianidade o material mundano e natural para a formulação das questões que seriam discutidas com o mestre e com seus colegas. As respostas a problemas fictícios seriam substituídas por questões extraídas diretamente da verdadeira origem e fim do conhecimento: a natureza e o mundo. (ver Quadro 1, itens 8, 9 e 10).
Solitariamente, na formulação das perguntas, começa-se a encontrar as respostas, e assim uma pedagogia filosofante e pensante substitui as certezas por dúvidas a serem pensadas solidariamente. Um mestre descentralizador poderá introduzir o fenômeno da decomposição da luz, por exemplo, sugerindo ao aprendiz que observe atentamente um arco-íris e descreva a sequência das cores. Qual delas está no centro e quais estão na extremidade? Poderá ainda introduzir a relação de Clayperon, PV = nRT, sugerindo que o aprendiz vá à sua cozinha para observar em que medida o tempo de cozimento de seu feijão diário é alterado, se a panela estiver destampada ou muito bem tampada (panela de pressão). Poderá ser ainda estimulado a observar a inclinação das gotas de chuva que riscam as janelas laterais do seu carro, quando em movimento, ou convidado a descrever para seus colegas como as marés se comportam em relação às fases da Lua. Desta forma, os prosaicos eventos da cotidianidade seriam atentamente observados, sentidos como fontes de conhecimento. Assim esse modo cognoscente, ou co-nascente, encontrar-se-á diuturnamente com uma quantidade imensa de outros modos com os quais interagirá forjando fortemente a sua realidade, envolvendo-se neste processo contínuo de conhecimento, adentrando num mundo rico de relações e significados, consumando-se então o ato pedagógico, apenas sugerido em sala de aula. (ver Quadro 1, itens 8, 9 e 10).
De que serve a transmissão de pacotes de informações prontas, em hora e local marcados, se a maior parte do tempo o aprendiz permanece desatento às forças vitais que o cercam a cada instante? Esse adestramento para processar fórmulas preestabelecidas é muitas vezes confundido com conhecimento. Assim, torna-se necessária uma descentralidade do locus convencional de aprendizado, como a sala de aula e os mestres com hora marcada. A descentralidade do universo requer também a descentralidade do aprendizado, e de seus instrumentos clássicos que, muitas vezes, ao invés de facilitar, constituem-se em intransponíveis barreiras ao livre fluir do verdadeiro conhecimento (connaissance). Desta forma, estaríamos passando do paradigma de uma “pedagogia pensada e centralizadora do sujeito” para um novo paradigma da “pedagogia filosofante, pensante e não apenas pensada” (ver Quadro 1, item 10).
Outro ponto que carece ser questionado é o fato da maioria das escolas e academias ocidentais do pós-guerra querer transformar seus aprendizes em bibliotecas ambulantes, pretendendo que suas mentes sejam extensas memórias de arquivos bibliográficos. Cada vez menos, ensina-se a pensar, e cada vez mais, em arquivar dados e referências bibliográficas. Os livros tornam-se obstáculos a serem transpostos, e os mestres seus oraculares intérpretes. Julgo que, pelo contrário, o aprendiz deve ser estimulado a pensar sobre um texto, a dialogar com seus autores, sem para tal ter de recorrer a bibliotecas de dimensões babilônicas, respaldando-se numa bateria de referências, e perdendo-se num labirinto de citações de comentadores terceirizados. Consumou-se nas academias o hábito de exigir que o aprendiz respalde seu entendimento sobre um determinado texto, com a opinião de um sem-número de especialistas, como se seu primeiro entendimento intuitivo, possivelmente ainda não lapidado, não merecesse crédito, necessitando de álibis ou testemunhas para ser validado. Entendo, inspirado em Spinoza, que é este conhecimento primeiro, e possivelmente ainda tosco, que servirá como um primeiro martelo com o qual se forjará uma segunda ferramenta mais lapidada, e assim sucessivamente. Um mestre esclarecido não descartará o conhecimento de seu aprendiz ou criticará a precariedade de suas referências, por mais rudimentares que sejam (ver Quadro 1, item 13). Existem artigos científicos com referências bibliográficas maiores que o próprio texto, como se isso fosse prova de embasamento teórico e metodológico! Muitas vezes os trabalhos acadêmicos são julgados por sua bibliografia, e não pelo seu valor intrínseco. A leitura desses textos é quase sempre maçante, desencorajando qualquer um de seguir por suas labirínticas notas de rodapé e referências. (ver Quadro 1, item 15-3). Nem mesmo o autor deste texto, que ora o leitor tem em mãos, se desvencilhou totalmente da camisa de força imposta pelas normas acadêmicas… Gostaria, em breve, poder escrever outro livro sem notas de rodapé e sem referências!
Borges em seu magistral conto Funes, o memorioso3, relata a existência de um indivíduo capaz de memorizar todos os fatos e textos de jornais ocorridos ao longo de sua vida sem, contudo, ser capaz de relacioná-los entre si. Funes torna sua existência um arquivo morto de fatos irrelevantes, pois são textos irrelevantes, ideias ou eventos que não têm relação com o mundo que lhes deu origem, conferindo-lhes uma temporalidade. Nossos aprendizes são, muitas vezes, adestrados para serem os Funes da ciência.
Também não posso me calar diante da febre metodológica que assola, como epidemia, extensos setores das academias, induzindo os estudantes a escolherem trabalhos cada vez mais estreitos, para que caibam em um método dado a priori. Os alunos são desestimulados a abordar temas multidisciplinares, ou até mesmo interdisciplinares, e instados a seguir por estreitas trilhas monotemáticas que se encaixem em alguma metodologia preestabelecida. Será o método soberano que deve determinar a extensão do tema ou é a vastidão do tema que deve alargar o método? Afinal uma bela foto deve ser recortada para que caiba no álbum ou este é que deve ser adequado às dimensões da foto? (ver Quadro 1, item 15-5)
Rubem Alves expressa bem, a mesma preocupação:
Qualquer análise interdisciplinar, empreendida por um pesquisador, tem, necessariamente, de ser frouxa do ponto de vista metodológico. Mas é isso que a comunidade científica não perdoa! Rigor acima de tudo! Reprimidos pelo fantasma do rigor os pesquisadores se põem a campo não em busca de problemas interessantes e relevantes, mas de problemas que podem ser tratados com os magros recursos metodológicos de que dispõem.(…) A obsessão com o rigor, especialmente quando se leva em consideração que este é um critério básico a ser invocado pelas bancas de tese de mestrado ou doutorado, força o pesquisador a abandonar os problemas importantes (são muito complexos) e a eleger problemas triviais que são passíveis de um tratamento metodológico fechado4.
As disciplinas científicas assim enquadradas nas academias comparam-se a castelos medievais cercados por fossos onde vicejam os crocodilos guardiões do feudo. As pontes levadiças são erguidas e abaixadas para permitir apenas a entrada e a saída dos súditos do castelo. A academia se divide assim em vários cantões feudais, cada qual concessionário de uma franquia temática, guardada a sete chaves em seu castelo unidisciplinar, delimitado pelo fosso do método e seus atentos guardiões. Professores e estudantes são orientados a permanecer nesses domínios rigidamente circunscritos, e aqueles que inadvertidamente quiserem cruzá-los, fatalmente serão abocanhados pelos afiados guardiões do castelo (ver Quadro 1, itens 15-1 e 15-5).
Na prática isso equivale a uma espécie de sentença de excomunhão velada a partir da qual os professores transgressores não conseguem bolsas de pesquisa ou de estudo para seus orientandos, publicações em revistas importantes ou ganhar qualquer tipo de concurso público. Criam-se, nas academias, autênticas franquias cada qual delimitando rigidamente como deve ser redigido, divulgado e ensinado o “seu” tema franqueado. Não é incomum essas franquias temáticas desenvolverem extensos tentáculos que se alastram pelas agências de fomento5, bancas examinadoras de teses e concursos, além dos conselhos editorais de revistas especializadas. Os artigos, livros, defesas de tese e projetos de pesquisa, ou até mesmo uma simples iniciação científica, devem se ajustar rigorosamente aos padrões exigidos pelos guardiões da “boa ciência,” resultando daí uma monótona pasteurização dos textos ou projetos que se tornam maçantes e desprovidos de invenção e criatividade. O jargão acadêmico e suas palavras de ordem devem dominar o texto, sendo os arroubos de liberdade de pensamento considerados “heresias,” e seus autores não mais queimados em fogueiras reais, como na Idade Média, mas fritados ou cozidos em banho-maria em seus departamentos, onde se limitam a dar aulas de graduação, sem qualquer possibilidade de galgar os quadros dirigentes da academia. Os estudantes, por sua vez, devem buscar professores que tenham o nihil obstat daqueles mesmos crocodilos guardiões do castelo, sede da franquia e de seus limitados e limitadores métodos, pois, se buscarem os heréticos (que na verdade os atraem mais), estarão seriamente ameaçados de não conseguirem bolsas de estudo para seus cursos de pós-graduação ou até mesmo graduação.
Para contabilizar e fiscalizar a produção acadêmica do corpo docente, tais como artigos, livros e demais trabalhos, criou-se um sistema oficial de avaliação numérica6 como se a qualidade de um texto ou a originalidade de uma ideia pudessem ser mensuradas por números. Este sistema, que é sistematicamente utilizado pelos zelosos guardiões do castelo, fez surgir uma nova geração de professores especializados em construir seus vitae de acordo com esses cânones numéricos, extraindo a máxima pontuação possível. Este livro, que ora o leitor folheia, em alguns aspectos trafega na contramão de quase tudo que se faz nas academias. Nele não há fronteiras rígidas entre as várias disciplinas como a Metafísica, a Física e a Educação, e elas se entrelaçam desrespeitando deliberadamente os recortes metodológicos, cultuados como dogmas intocáveis pela academia. O livro é longo demais para os padrões atuais, pois hoje vários autores preferem se associar em co-autoria para escrever artigos curtos produzidos em série, contabilizando, nas agências de fomento, 1(um) título para cada qual. Além das co-autorias, a fragmentação dos trabalhos num maior número possível de papers é outro recurso utilizado. Na vertente contrária, esta é uma obra de um único autor solitário que a produziu num longo período de gestação, praticamente recluso em sua casa de campo, totalizando em seu favor apenas um único trabalho em vários anos. Quando nas academias brasileiras vive-se hoje uma febre delirante por publicação e pontuação, este texto foi pensado e escrito sem compromissos de espécie alguma com grupos de pesquisa financiados pelas agências fomentadoras e sem preocupação de pontuação em plataformas oficiais de curriculae vitae7. Apesar da inquisição velada e de todas as dificuldades impostas pelas academias, preferi pensar sem fossos nem recortes, estabelecendo relações e organicidade entre as várias disciplinas de saber que devem se entrelaçar para chegar ao autêntico e verdadeiro conhecimento científico.
Como modos da natureza que somos, precisamos dar a cada fato do qual participamos, inclusive às nossas próprias existências, um cosmosentido, não podendo enquadrar nossas ideias em feudos de conhecimento, ou recortá-las para caberem nos limitados porta-retratos da metodologia, que em última análise servem de armaduras aos ilustres oficiais da ciência.
Pensar e viver são o mesmo, e viver é ressoar e co-nascer junto com as forças da Natureza ou com as precipitações modais de uma substância una e indivisa. Como Spinoza, entendo então que aprender a pensar é pensar “como a Natureza pensa;” é ser e expressar um modo de pensar do pensamento substancial ou do Ser. Princípio este seminalmente enunciado por Parmênides, “Ser e Pensar é o mesmo“. A identidade a que se refere o eleata não é decorrente da implicação coercitiva do cogito ergo sum (penso logo sou), pois, para os pré-socráticos, não é o pensar que me faz ser, mas é o pensar que se faz ser através de mim, que sou modo de ser, a partir de minha aspiração natural ao ser.
Acredito que educar é a possibilidade de que um indivíduo designado como educador A e outro como educando B, ressoem como modos de ser provisórios da Natureza, com as forças que fizeram o primeiro ressoar, permitirem ao segundo, ressoá-las também. Em algum momento, ambos vibrarão como músicos em consonância entre si, ressoando o mundo: co-nascendo. Neste instante, desfazem-se os estados provisórios de A e B, educador e educando, ou mestre e aprendiz, e ambos integram-se a uma identidade tautológica A = A, subjacente a uma diferença existencial A = B, o que ocorrerá quando à existência B oferece-se a potencialidade de ser igual a A. Será neste momento não temporizado que ser e pensar fundem-se na indiscernibilidade A = A e ambos (A e B) agora idênticos na diferença “pensam-como-a-natureza-pensa”. Segundo Platão, “o fim último da Educação é fazer o homem assemelhar-se a Deus“ (Platão, Teeteto, 176 b), mas assemelhar-se a Deus é pensar como Deus pensa. E pensar e ser são o mesmo, segundo Parmênides. Assim, quando dois modos cognoscentes convierem em suas respostas estarão não apenas convindo entre si, mas com o uno na identidade de indiscerníveis. Assim, quando dois dados idênticos (A = A) são lançados ao desvelamento de uma de suas seis faces, para cada face precipitada de um deles corresponderão, no outro, cinco distintas e apenas uma idêntica. A identidade A=A desfaz-se na precipitação do acontecer de A e B, mas nesta diferença precipitada subjaz a identidade essencial. No desvelamento da diferença dos modos, retrai-se a identidade da substância, e, reciprocamente, na unidade desta, retrai-se a diferença dos modos. A dialética do senhor e do escravo vigora também no mestre e aprendiz, pois no existir de cada um deles contradiz-se a diferença8, visando à unidade no outro, rumo à identidade do ser ou da substância. Como se poderá pensar num mestre sem um aprendiz e vice-versa? Em suma, A = B significa tão-somente que A poderá tornar-se igual a B, pois ambos são modificações finitas da substância ou precipitações extensas e pensantes do ser, e não sujeitos e objetos separados em interação (ver Quadro 1, item 14).
Finalizo a proposta de uma pedagogia pensante e filosofante, de cunho spinozista, retomando a pergunta que não quer calar: o que há de central no pensamento humano? Será cada homem uma Terra estática em torno do qual gira o cosmos? Insisto que não, embora possa acreditar também que o homem como ser complexo é capaz de dispor-se a vários estados ressonantes da Natureza, o que, no entanto, não lhe conferem a primazia sobre os demais modos. Repito aqui, novamente à guisa de clareza, e sem medo da veemência, que muitos sistemas filosóficos e pedagógicos contemporâneos não conseguiram romper com a centralidade epistemológica de um sujeito representador, como também com o éter pré-einsteiniano ou com o criacionismo bíblico, fazendo do homem o referencial privilegiado, o éter estático e único a partir do qual se (d)escreve a natureza.
Ao contrário, prefiro pensar, como Spinoza, num homem como modo da Natureza que pensa junto com — e não sobre — ela, ressoando-a a cada estado de disposição corpóreo-mental. Como modo de uma substância pensante ou fragmento pensante, vislumbro no judeu de Amsterdã uma cosmodinâmica na qual cada movimento é determinado pelos demais, conferindo ao todo e às partes o conatus de persistência no existir (ver capítulo II). Da unicidade do ser provém a diversidade dos entes, como a precipitação do uno na diferença. Creio também poder conjecturar, a partir de um núcleo essencial da metafísica spinozista, que a ideia de liberdade da qual dispomos como humanos não é a do indivíduo, separado e ilhado do mundo. Tampouco é a de uma coletividade de indivíduos, mas sim a liberdade emanada do princípio maior de unidade e infinitude da substância, ou seja, a liberdade da natureza é a mesma de uma substância una e infinita, que não age por constrangimento externo, mas por sua essência que envolve sua existência (ver capítulo II). Em ambos os sistemas pode-se perceber que a liberdade do indivíduo existe à medida que existe a liberdade do ser que sem constrangimentos se oferece, como apelo ao homem. Mas, se esse apelo do ser oferece-se a todos os modos do universo, que papel protagonista atribuir ao homem, à sua linguagem da qual se julga senhor, à sua lógica cheia de paradoxos e contradições, e à sua ciência que diante do microcosmo se revela eclipsada pela contingência? Sustento, pois, que conceder ao homem o papel de árbitro universal do qual depende a verdade de suas proposições, além da escolha da realidade, é assim retornar aos epiciclos de Ptolomeu e à Terra central e majestática.
Sigo perguntando por que este modo finito, cujo corpo raramente passa de dois metros em qualquer de suas dimensões, sua massa raramente passa de 100 kg e sua idade quase nunca passa dos 100 anos, se outorga o direito de escolher, a depender do que pensa, fala e age, aquilo que pode ser chamado de real? Por que este modo de ser julga ter o real que passar por seus crivos e categorias cognitivas? Porque em relação ao finito tanto o infinito quanto o infinitésimo aparecem indeterminados, e a um modo finito, a substância com os seus infinitos atributos infinitos se esconde, pensando o homem poder se desprender do fluxo universal Eν Παντα isolando-se em sua centralidade de sujeito transcendental. Sinto como Spinoza que a liberdade é, pois, se deixar levar por um fluxo natural que emana de tudo para todos e de um para o todo, fazendo o conatus transitar das partes ao todo e deste novamente às partes. É necessário fazer da finitude do homem o seu projeto, e não a sua prisão. Tornar, pois, o homem, e todas as suas manifestações, um centro ou um éter estático a partir do qual tudo é escrito, falado e pensado, é voltar ao geocentrismo, condenando Galileo a abjurar de suas heresias e excomungando Spinoza por ter descentralizado o homem e seu Deus pessoal e antropomórfico. É com esse modesto olhar de um modo finito que contempla um universo infinito sem centros que proponho a construção de uma pedagogia pensante e filosofante que se ofereça a qualquer modo, como resposta à sua atenção ao mundo, sem hora ou local marcados (ver Quadro 1, itens 6 e 7).
Encerro este último ciclo de reflexões defendendo que uma grande Filosofia, como a de Spinoza, busca a Natureza que há dentro do homem, fazendo-o ressoá-la dentro de si, entendendo também que cada elétron de nosso corpo e cada ideia de nossa mente são projeções do pensamento substancial. O homem é um modo finito existente na natureza, mas muitos ainda pensam que é a natureza, um modo pensado pelo homem, como nos explicita Galeffi:
(…) não há dados naturais dotados de conteúdos humanos, e sim conteúdos humanos dotados da naturalidade de processos gerativos auto-reguladores9.
Ter isto em mente, de forma muito clara, é restabelecer mais um elo, há muito perdido, da longa corrente rompida do pensamento humano. É através desse elo restituído que se nos oferece a possibilidade de uma grande e profunda ressonância entre o sistema spinozista, ainda eivado de um latim escolástico, e uma ontologia do ser, contemporânea e desprovida de centros cognitivos privilegiados que, por sua vez, nos conduz a uma pedagogia filosofante e pensante. Para Spinoza, a substância é o Ser em si, por si e para si, o Ser do qual tudo depende e que não depende de nada; o Ser que não tem causa ou que é causa de si mesmo; o Ser absoluto, o Ser absolutamente ilimitado e infinito. Não será esta também a fonte de motivação de Einstein para buscar a unidade intrínseca em todas as leis da Natureza?
Finalizo com algumas manifestações de apreço de algumas persona-lidades, ao filósofo ao qual foi dedicado este livro, compiladas da bibliografia disponível.
Leibniz, embora um contumaz crítico de Spinoza a quem considerava um “inimigo genial a ser combatido,” acrescentou:
Os filósofos banais começam por filosofar sobre as coisas, Descartes começou pela mente e Spinoza por Deus10.
Em 1877, na inauguração de um monumento em homenagem a Spinoza, em Haia, Ernest Renan disse:
Ele, do seu pedestal de granito, ensinará a todos a via da felicidade que encontrou, e, pelos séculos, o homem culto que passará pelo Pavilioensgracht dirá a si mesmo: é daqui, talvez, que “Deus foi visto de mais perto“11
O poeta inglês William Wordsworth captou de forma sublime a filosofia de Spinoza, com estes versos:
Algo que habita a luz de sóis poentes
e o oceano redondo e o ar vivo
e o céu azul e a mente do homem.
Um movimento e um espírito que impele
todas as coisas pensantes,
todos os objetos de todos os pensamentos,
e atravessa todas as coisas12.
Pelos motivos e argumentos expostos em sua filosofia, que não prescinde em qualquer uma das suas proposições da ideia de Deus, Spinoza foi considerado pelo poeta Friedrich von Hardenberg Novalis:
“O homem embriagado de Deus” (Der gotbetrunkener Mensch)13.
O escritor Sully Prud'homme também lhe dedica um poema de terna devoção:
C'etait um homme doux, de chetive santé
Qui, tout en polisssant de verres de lunnetes,
Mit l'essence divine en formules très nettes,
Si nettes, que le mond en fut épouvanté (…)14
Segundo Goethe:
Esse homem que me modificou tão maravilhosamente e que estava destinado a afetar de forma tão profunda o meu modo inteiro de pensar, era Espinosa (…) Depois de procurar em vão por todo o mundo um meio para desenvolver a minha natureza, deparei-me com a Ética desse filósofo (…) Na Ética encontrei apaziguamento para minhas paixões; pareceu-me que se abria ante meus olhos uma visão ampla e livre sobre o mundo físico e moral. A imagem deste mundo é transitória; desejaria ocupar-me somente das coisas duradouras e conseguir a eternidade para meu espírito, de acordo com a doutrina de Spinoza15.
O filósofo existencialista Karl Jaspers, a menos de um “quase,” também deixa poucas dúvidas quanto a sua admiração por Spinoza:
Em Spinoza a visão intelectual do universo apresenta-se, de um só golpe, quase perfeita16.
O filósofo F. Schleiermacher, um dos criadores da hermenêutica contemporânea, jamais ocultou seu spinozismo radiante:
Rendei commigo aos manes do sancto Spinoza… Penetrou-o sublime espírito do mundo, o infinito foi seu começo e seu fim, o universal o seu único e eterno amôr; vivendo em sancta innocencia e humildade profunda, elle se mirava no mundo terno, e era o seu espelho fiel; sim, elle foi cheio de religião e cheio de espírito sancto; por isto mesmo se nos mostra só e sem egual, mestre em sua arte, mas elevado acima do mundo profano, sem discípulo e sem direito de cidade17.
Para Hegel, a filosofia spinozista é o primeiro e necessário patamar a ser atingido, rumo à altitude maior:
O pensamento deve absolutamente se elevar ao nível do spinozismo antes de se elevar mais alto ainda. Quereis ser philosophos? Começae por ser spinozistas; nada podereis sem isto. É preciso antes de tudo banhar-se neste ether sublime da substância única, universal e impessoal, onde a alma se purifica de toda a particularidade e rejeita tudo aquillo em que tinha até então acreditado, tudo, absolutamente tudo18.
O próprio professor Farias Brito, assim se expressa em relação ao filósofo ao qual dedicou grande parte de seus estudos:
Em ninguém foi maior a paixão do conhecimento; em ninguém foi mais tenaz e vigoroso o esforço pela verdade. Poderão combatel-o, mas ninguém deixará de admiral-o. Sua philosophia apresenta-se na história do pensamento com a mesma imponência com que se apresentaria em vasto deserto uma montanha de cristal dominando o alto e na qual batessem em cheio os raios de sol. Em vão sopra sobre ella com fúria a poeira do tempo; nada lhe poderá enfraquecer o brilho imperecível19.
Embora o inconsciente freudiano possa ter sido influenciado pelo conceito de preservação inconsciente da existência, expresso pelo conatus spinoziano, Freud jamais citou explicitamente o filósofo. No entanto, quando questionado a respeito, numa carta a Lothar Bickel, de 1931, ele explica a omissão:
Confesso sem hesitar a minha dependência no que diz respeito aos ensinamentos de Spinoza. Mas se nunca me dei o trabalho de citar o seu nome explicitamente é porque não deduzi os princípios de meu pensamento da obra desse autor, mas sim das conseqüências que ele produziu20.
Frederic Pollock acredita que Spinoza tenha influenciado o pensamento biológico moderno, notadamente a obra de Darwin e Wallace, e completa enfaticamente:
Spinoza é cada vez mais o filósofo dos homens de ciência21.
O pensamento de meu amigo e correspondente espanhol César Castañeda resume bem o grande projeto spinozista:
Enquanto que a maioria dos filósofos modernos constrói uma filosofia do homem dentro da natureza, Spinoza constrói uma Filosofia da Natureza dentro do homem22.
De fato, a metafísica de Spinoza pode ser mais bem entendida como a de um homem que é modo de ser da Natureza do que uma natureza que é modo de pensar do homem. Sua epistemologia não leva à construção teórica do universo por um sujeito central, mas à ideia do cosmos em que o homem humildemente se posiciona como um modo corpóreo, pensante e finito, que ausculta suas leis, abrigadas sob o manto da essência eterna da Substância Única e Infinita. Por sua vez, Einstein jamais se conformou que uma teoria científica fosse apenas uma útil conta de chegada ao empírico, sendo aceita provisoriamente ou descartada definitivamente por restritos critérios epistemológicos. Para ele, uma teoria científica, muito além de satisfazer tais critérios e além de uma descrição útil, deveria estar fundamentada em “elementos de realidade,” ou seja, aqueles que vigem por si mesmos, e não dependem da observação humana ou de quem quer que seja. Desta forma, ele ousou a ontologia da equação única que estabelecesse uma geometria do mundo perene e verdadeira. O próprio homem, e todas as demais coisas, seriam singularidades desta Geometria. Nesse sentido os dois projetos convergem. Einstein percebeu ainda que o Deus Sive Natura de Spinoza refletia-se do mais ínfimo spin eletrônico às mais extensas galáxias do universo. A Ciência teria assim uma dimensão religiosa. Para ambos, Deus é a Realidade inteligente e autoconsciente, sempre muito mais ampla do que qualquer coisa que possa ser descrita apenas por números ou palavras, sendo o jardim que não carece de jardineiro, pois se faz por si mesmo. O ser humano é tão-somente um pequenino arbusto de existência limitada, corpórea e pensante, plantado neste Jardim ilimitado que a ele se desvela com mistério e espanto.
Concluo estas páginas com um verso que o autor da Teoria da Relatividade dedicou ao seu filósofo predileto, e que me deu uma motivação a mais para escrevê-las:
Como amo esse nobre senhor,
mais do que expressar sou capaz.
Com sua auréola de esplendor,
Temo, porém que ficará a sós.
(Albert Einstein, Zu Spinozas Ethic)23