A GUERRA AOS 6 ANOS
Eu nasci duas vezes.
No meu primeiro nascimento, eu não estava. Meu corpo veio ao mundo no dia 26 de julho de 1937, em Bordeaux. Disseram-me. Sou obrigado a crer, uma vez que não tenho nenhuma lembrança.
Do meu segundo nascimento, tenho plena memória. Uma noite, fui preso por homens armados que cercavam minha cama. Vinham me buscar para me levar para a morte. Minha história nasceu naquela noite.
Aos 6 anos, a palavra “morte” ainda não é adulta. É preciso esperar um ano ou dois para que a representação do tempo dê acesso à ideia de uma parada definitiva, irreversível.
Quando a senhora Farges disse “Se o deixarem viver, não lhe diremos que é judeu”, fiquei muito interessado. Portanto, aqueles homens não queriam que eu vivesse. A frase me fazia compreender por que eles apontaram o revólver para mim quando me acordaram: lanterna em uma das mãos, revólver na outra, chapéu de feltro, óculos escuros, colarinho do paletó levantado, que evento surpreendente! Então é assim que se vestem quando querem matar uma criança.
Fiquei intrigado com o comportamento da senhora Farges: de camisola, ela juntava minhas roupas em uma pequena mala. Foi então que ela disse: “Se o deixarem viver, não lhe diremos que é judeu.” Eu não sabia o que era ser judeu, mas acabara de ouvir que bastava não dizer para ser autorizado a viver. Fácil!
Um homem que parecia o chefe respondeu: “É preciso fazer com que essas crianças desapareçam, senão elas vão se tornar inimigas de Hitler.” Portanto, eu estava condenado à morte por um crime que ia cometer.
O homem que nasceu em mim naquela noite foi plantado na minha alma por essa encenação: revólveres para me matar, óculos escuros à noite, soldados alemães de fuzil nas costas no corredor e sobretudo a estranha frase que revelava minha condição de futuro criminoso.
Imediatamente concluí que os adultos não eram sérios e que a vida era apaixonante.
Vocês não vão me acreditar quando eu disser que levei muito tempo para descobrir que, na ocasião daquela noite impensável, eu tinha 6 anos e meio de idade. Precisei de referências sociais para concluir que o evento se passou no dia 10 de janeiro de 1944, data da prisão em massa de judeus bordeleses. Para esse segundo nascimento, foi preciso que me fornecessem marcos exteriores à minha memória1 para que eu pudesse tentar entender o que tinha ocorrido.
Em 2011, fui convidado a um programa sobre literatura em Bordeaux pela RCF, uma rádio cristã. Ao me acompanhar em direção à saída, a jornalista disse: “Pegue a primeira rua à direita e verá, ao final, a estação de bonde que o levará à place des Quinconces, no centro da cidade.”
O dia estava bonito, o programa fora simpático, eu me sentia leve. Subitamente, fui surpreendido por um surgimento de imagens que se impunham a mim: de noite, na rua, a barreira de soldados alemães armados, caminhões com toldos ao longo das calçadas e o carro preto dentro do qual me empurraram.
O dia estava bonito, eu era esperado na livraria Mollat para outro encontro. Por que, subitamente, esse retorno de um passado longínquo?
Chegando à estação, eu li, esculpido na pedra branca de um grande edifício: “Hospital das Crianças Doentes”. De repente me voltou a proibição de Margot, a filha da senhora Farges: “Não vá pela rua do hospital das Crianças Doentes, há muita gente, podem denunciá-lo.”
Estupefato, volto pelo mesmo caminho e descubro que acabara de atravessar a rue Adrien-Baysselance. Passara em frente à casa da senhora Farges sem me dar conta. Não a revira desde 1944, mas creio que um indício, o mato entre as pedras desconjuntadas do calçamento ou o estilo das escadarias, desencadeara na minha memória o retorno da história da minha prisão.
Mesmo quando tudo vai bem, basta um indício para despertar um traço do passado. A vida cotidiana, os encontros, os projetos enterram o drama na memória, mas, à menor evocação, o mato no meio do calçamento, uma escada mal construída, uma lembrança pode surgir. Nada se apaga; acreditamos ter esquecido, apenas isso.
Eu não sabia, em janeiro de 1944, que teria de fazer minha vida com essa história. Tudo bem, não sou o único que passou pela iminência da morte: “Atravessei a morte, ela se tornou uma experiência da minha vida...”,2 mas aos 6 anos tudo deixa traços. A morte se inscreve na memória e se torna um novo organizador do desenvolvimento.
O falecimento dos meus pais não foi um acontecimento para mim. Eles estavam ali, e depois já não estavam ali. Não tenho os traços da morte deles, mas recebi as impressões de seu desaparecimento.3 Como viver com eles e depois, subitamente, viver sem eles? Não se trata de um sofrimento; não se sofre no deserto, morre-se, simplesmente.
Tenho lembranças muito claras da minha vida de família antes da guerra. Mal começara a aventura da palavra, uma vez que tinha 2 anos, mas ainda guardo lembranças de imagens. Lembro-me de meu pai lendo o jornal à mesa da cozinha. Lembro-me do monte de carvão no meio da peça. Lembro-me dos vizinhos de andar em cuja casa eu ia admirar o assado sendo preparado. Lembro-me da flecha de borracha que meu tio Jacques, de 14 anos, atirou bem na minha testa.
Lembro-me de ter gritado bem alto para que ele fosse punido. Lembro-me da paciência exausta da minha mãe, esperando que eu calçasse os sapatos sozinho. Lembro-me dos grandes barcos no cais. Lembro-me de homens desembarcando nas costas imensos cachos de banana e lembro-me de mil historietas sem palavras que, hoje ainda, dão forma à minha representação de antes da guerra.
Um dia meu pai chegou de uniforme e eu fiquei muito orgulhoso. Os arquivos me explicam que ele se alistara no Regimento de Infantaria de Voluntários Estrangeiros, tropa composta de judeus estrangeiros e republicanos espanhóis. Eles combateram em Soissons e sofreram perdas enormes.4 Na época, eu não tinha como saber. Hoje, eu diria que tinha orgulho de ter um pai soldado, mas que não gostava de seu quepe, cujas duas pontas me pareciam ridículas. Eu tinha 2 anos: era de fato o que eu achava ou vi em uma fotografia depois da guerra?
O encadeamento dos fatos dá sentido ao acontecimento.
Primeira historieta: o exército alemão desfila em uma grande avenida perto da rue de La Rousselle. Eu acho aquilo magnífico. A cadência dos soldados batendo no chão todos juntos produz uma impressão de poder que me encanta. A música abre a marcha e grandes tambores de cada lado dos flancos de um cavalo dão o ritmo e provocam um maravilhoso temor. Um cavalo escorrega e cai, os soldados o levantam, a ordem é restabelecida. É um drama magnífico. Surpreende-me ver que à minha volta alguns adultos choram.
Segunda historieta: estamos no correio com minha mãe. Os soldados alemães passeiam pela cidade em grupos, sem armas, sem quepes e até sem cinturão. Noto neles o ar menos guerreiro. Um deles vasculha o bolso e me estende um punhado de bombons. Minha mãe pega-os brutalmente e devolve ao soldado, injuriando-o. Admiro minha mãe e lamento pelos bombons. Ela me diz: “Nunca se deve falar com um alemão.”
Terceira historieta: meu pai está de licença. Passeamos no cais do Garonne. Meus pais sentam-se em um banco, eu brinco com uma bola, que rola até outro banco onde estão sentados dois soldados. Um apanha a bola e me entrega. Eu recuso inicialmente, mas, como ele está sorridente, aceito.
Pouco depois, meu pai torna a partir para o exército. Minha mãe nunca mais o verá. Minha memória se entorpece.
Minhas lembranças retornarão mais tarde quando Margot for me buscar na Assistência. Meus pais desapareceram. Eu me lembro então de ter falado com os soldados apesar da proibição, e esse encadeamento de lembranças me faz pensar que, se meus pais morreram, é porque, sem ser de propósito, devo ter dado nosso endereço ao falar.
Como uma criança pode explicar o desaparecimento dos pais quando ela não sabe que existem leis antijudaicas e que a única causa possível é a transgressão da proibição: “Nunca se deve falar com os alemães”? O encadeamento desses fragmentos de memória é que dá coerência à representação do passado. Organizando algumas lembranças esparsas, concluí que eles morreram por minha causa.
Em uma quimera, tudo é verdadeiro: o ventre é de um touro; as asas, de uma águia; e a cabeça, de um leão. Contudo, o animal não existe. Ou melhor, ele só existe na representação. Todas as imagens postas na memória são verdadeiras. É a recomposição que organiza as lembranças para delas fazer uma história. Cada acontecimento inscrito na memória constitui um elemento da quimera de si.
Depois, um simples encontro pode revelar o traço: Sidney Steward, soldado do exército americano em 1945, foi deportado para um campo japonês. Morre-se tanto à sua volta que ele se surpreende por sobreviver. Psicanalista em Paris, não acredita na culpa dos sobreviventes e sustenta ter sido poupado. Até o dia em que uma de suas pacientes lhe conta que ela, criança, estava na fila que levava à câmara de gás em Auschwitz. De repente, ela largou a mão da mãe e se afastou. Sua irmã menor imediatamente tomou o seu lugar. Foi ela que entrou no pavilhão com a mãe. A porta foi fechada, obrigando a irmã mais velha a não morrer. A intersubjetividade entre o psicanalista e a paciente provocou “uma explosão de lembranças que ela tentara ocultar até então”.5
Eu não armazenava lembranças senão quando havia vida em torno de mim. Minha memória se extinguiu quando minha mãe se extinguiu. Na escola maternal da rue Pas-Saint-Georges, vivia-se intensamente. Margot Farges, a professora, encenava com os pequenos atores de 3 anos de idade a fábula O corvo e a raposa. Ainda me lembro da perplexidade na qual me mergulhara o verso: “Mestre Corvo, numa árvore empoleirada...” Eu me perguntava como era possível empoleirar uma árvore* e nela pôr um corvo, mas isso não me impedia de aderir plenamente ao meu papel de Mestre Corvo.
Ficava particularmente indignado com o fato de duas meninas se chamarem “Françoise”. Cada criança, pensava eu, devia ser designada por um nome sem outro igual. Imaginava que, dando um mesmo nome a várias meninas, se desconsideravam suas personalidades. Eu já começava minha formação psicanalítica!
Em casa, uma não vida entorpecia nossas almas. Nessa época, quando os homens se alistavam no exército, as mulheres só podiam contar com a família. Não havia ajuda social em 1940. Mas a família parisiense da minha mãe desaparecia. Uma irmã mais nova, Jeannette, de 15 anos, desaparecera assim. Nenhum sinal de detenção, nenhuma prisão em massa, nada – de repente ela já não estava lá. “Desaparecida” é a palavra.
Possibilidade de trabalhar também não havia, era proibido. Tenho a vaga lembrança da minha mãe vendendo objetos da casa, em cima de um banco, na rua.
Enorme buraco de memória entre 1940 e 1942. Eu ignorava as datas e vivi durante muito tempo em um caos da representação do tempo. “Eu tinha 2 anos quando fui preso... não, é impossível, eu devia ter 8 anos... não pode ser, a guerra tinha acabado.” Algumas imagens de uma precisão surpreendente persistiam na minha memória, incapaz de situá-las no tempo.
Recentemente, informaram-me que minha mãe me colocou na Assistência Pública na véspera de sua prisão, em 18 de julho de 1942. Não tive vontade de verificar. Alguém deve tê-la prevenido. Jamais achei que ela tivesse me abandonado. Ela me pôs lá para me salvar. Depois voltou para casa, sozinha, uma habitação vazia, sem marido, sem filho. Foi presa de madrugada. Não tive vontade de pensar sobre isso.
Devo ter ficado um ano na Assistência, não sei. Nenhuma lembrança. Minha memória voltou no dia em que Margot foi me buscar. Para me sossegar, ela levou uma caixa com torrões de açúcar e foi me dando regularmente até o momento em que se recusou, dizendo: “Acabou.” Era, eu acho, dentro de um vagão que vinha não sei de onde e ia para Bordeaux.
Na família de Margot, minha memória voltou a viver. O senhor Farges, inspetor de escola, ameaçava “ficar furioso”. Eu fingia ficar impressionado. A senhora Farges criticava a filha: “Você podia ter nos avisado que ia buscar esta criança na Assistência.”
Suzanne, a irmã de Margot, professora em Bayonne, me ensinava a ver as horas no grande relógio da sala, e a comer como um gato, ela me dizia, com pequenas lambidas, e não como um cachorro, que engole tudo de uma vez. Creio ter dito a ela que eu não concordava.
Os Farges tinham reuniões estranhas em volta de um grande rádio, no qual se ouvia: “As uvas ainda estão verdes... eu repito... as uvas ainda estão verdes” ou “o pequeno urso mandou um presente à borboleta... eu repito...” Um barulho de matraca cobria essas palavras às vezes difíceis de entender. Eu não sabia que se chamava Rádio Londres, mas achava que não era sério reunir-se em torno de um rádio para escutar com gravidade frases engraçadas.
Deram-me algumas missões naquela família: cuidar do jardinzinho, ajudar na limpeza do galinheiro e ir buscar o leite que era distribuído em uma portaria, perto do hospital das Crianças Doentes. Eu preenchia meu tempo com isso, até que um dia a senhora Farges disse: “A partir de hoje você vai se chamar Jean Bordes. Repita!”
Eu provavelmente repeti, mas não entendia por que era preciso mudar meu nome. Uma mulher que às vezes vinha ajudar a senhora Farges nos trabalhos da casa me explicou gentilmente: “Se você disser seu nome, vai morrer. E os que o amam morrerão por sua causa.”
Aos domingos, Camille, o irmão mais velho de Margot, vinha se juntar à mesa familiar. Todo o mundo ria tão logo ele aparecia. Um dia, ele veio vestido de escoteiro com um jovem colega. Esse amigo, educado, reservado, cacheado como um carneiro, mantinha-se atrás e sorria quando Camille fazia rir seu pessoal chamando-me de “o pequeno aborda” e me perguntando: “O que você aborda, Jean?”
Nunca consegui me lembrar do nome que me escondia... Bordes?... Laborde? Nunca soube. Muito tempo depois, no hospital La Pitié, em Paris, onde fui interno de neurocirurgia, havia um jovem médico chamado Bordes. Quase lhe disse que ele tinha o nome sob o qual tinham me escondido durante a guerra. Mas depois me calei. Pensei: ‘Será que não era Laborde?’ Eu teria de dar tantas explicações!
Dois anos depois da Libertação, quando me devolveram o nome na escola, tive a prova de que a guerra acabara.
Minha tia Dora, irmã da minha mãe, me recolheu. O país estava em festa. Os americanos davam o tom. Eles eram jovens e esbeltos, e, assim que apareciam, a alegria entrava nas casas com eles. Suas gargalhadas, o sotaque divertido, suas histórias de viagens, seus projetos de existência me encantavam. Esses homens distribuíam chicletes e organizavam orquestras de jazz. As mulheres davam muita importância às meias de náilon sem costura e aos cigarros Lucky Strike. Um jovem americano que usava pequenos óculos redondos decidiu que Boris não era um nome adequado, parecia russo demais. Batizou-me de Bob. Esse nome tinha luz, significava “retorno à liberdade”. Todo mundo aplaudiu; eu o aceitei sem prazer.
Só quando me tornei estudante de medicina, passei a ser chamado de Boris. Nesse momento, tive a impressão de que o nome podia ser pronunciado longe dos ouvidos de Dora, sem risco de feri-la. Para ela, Boris ainda era o nome do perigo, ao passo que Bob era o nome do renascimento, da festa com os americanos, nossos libertadores. Nos farrapos da minha família, eu ainda estava escondido, mas longe deles podia me tornar eu mesmo e me fazer representar tal como eu era, pelo meu verdadeiro nome.
Após a visita dos dois escoteiros, a vida na casa de Margot também se extinguiu. Uma noite, fui acordado por gritos e luzes. O senhor Farges morrera dormindo. A senhora Farges tornou-se sombria, Suzanne saía para dar aula em Bayonne e Margot desaparecia segunda-feira de manhã, para assumir o posto de professora em Lannemezan, eu acho. A casa ficava silenciosa, sem movimento, sem rádio engraçado, sem visitas. Bastara eu me chamar Bordes (ou Laborde?) para já não ter o direito de ir buscar o leite, ficara perigoso, alguém podia me denunciar... Denunciar?
Um dia, chegou uma mulher que eu não conhecia. Margot disse: “Ela vai levar você para ver seu pai.” Meu pai? Eu achava que ele tinha desaparecido. Nem alegria nem dor, eu estava entorpecido. Aquele mundo não tinha coerência. A mulher tinha do lado direito do peito uma estrela de tecido amarelo, brilhante, bordado de preto, que eu achava muito bonita. Margot disse, mostrando a estrela: “Como você vai fazer com isto?” “Vou dar um jeito”, respondeu a mulher.
A viagem foi silenciosa, um longo trajeto desolador para chegar ao campo de Mérignac. Ao se aproximar dos soldados que guardavam a entrada do campo, a mulher desenrolou a echarpe e, com um alfinete de fralda, prendeu-a no casaco a fim de tapar a estrela. Ela mostrou documentos, nós nos dirigimos a um acampamento. Um homem me aguardava, sentado em uma cama de madeira. Mal reconheci meu pai. Logicamente, ele deve ter dito algumas palavras. Nós fomos embora.
Muito tempo depois da guerra, recebi sua cruz de guerra, com um certificado assinado pelo general Hutzinger: “Soldado corajoso... ferido antes de Soissons.” Eis por que meu pai permanecera sentado. Ele fora preso no seu leito de hospital, por ordem do departamento de polícia, e levado para o campo de Mérignac, que mandava para Drancy, depois para Auschwitz.
No dia seguinte, ouvi Margot contar em voz baixa que, ao chegar a casa, a farmacêutica (era, pois, a profissão da mulher) estava sendo esperada pela Gestapo. Ela pulou pela janela.
Falar era perigoso, pois se corria risco de morte. Calar-se era angustiante, pois a ameaça pesadamente sentida vinha não se sabe de onde. Quem ia me denunciar? Como me proteger? Achei que eu ia ser responsável pela morte dos Farges, uma vez que eles eram bondosos comigo.
A casa tornou-se sombria e muda. Nada teve vida ali durante vários meses. Eu tinha 6 anos, não sabia ler nem escrever, sem rádio, sem música, sem amigos, sem palavras. Pus-me a andar em volta da mesa da sala onde ficava fechado. O atordoamento me acalmava ao me dar uma curiosa sensação de existência. Quando ficava cansado de rodar tanto tempo, deitava-me no sofá e lambia os joelhos. Em 1993, quando estava em Bucareste com os Médicos do Mundo, observei o mesmo comportamento autocentrado nas crianças abandonadas e isoladas sensorialmente.
Provavelmente foi por isso que vivenciei minha prisão como uma festa. O retorno da vida! Não fiquei assustado com a barreira de soldados e os caminhões alinhados que fechavam a rue Adrien-Baysselance. É hoje que acho pitoresca esta situação: um exército para prender uma criança!
O que mais me impressionou foi que, dentro do carro no qual me empurraram, um homem chorava. Seu pomo de adão me fascinava de tanto que era saliente e móvel.
Diante da sinagoga, fomos postos em fila. Assim que transpúnhamos a porta, éramos orientados para duas mesas. Entre as duas, havia um oficial de botas de couro e pernas afastadas, como num filme ruim. Creio lembrar-me de que, com uma varinha, ele nos orientava na direção de uma mesa ou da outra. O que significava aquela escolha? Eu ouvi:
– Devemos dizer que estamos doentes. Ele vai nos orientar para a mesa que nos inscreve para o hospital.
– De forma alguma – diziam outros homens. – Devemos dizer que estamos com boa saúde para nos enviarem ao STO,6 para trabalhar na Alemanha.
Ao transpor a porta, vi atrás da mesa da fila da esquerda o escoteiro cacheado como um carneiro, o amigo de Camille. Saí da fila para me dirigir a ele. Ao me ver, ele teve um sobressalto, sua cadeira caiu e ele saiu a passos largos.
Então compreendi que era ele quem tinha me denunciado.
A sinagoga fervilhava de gente. Lembro-me de pessoas deitadas no chão, apertadas contra a parede para deixar espaço de passagem. Lembro-me de uma mulher gorda que procurava as crianças para juntá-las em cima de um cobertor estendido no chão. Hoje digo que desconfiei daquela mulher e seu cobertor. Foi de fato o que senti naquela noite de janeiro de 1944? Em cima daquele cobertor, algumas crianças se esforçavam para dormir. Sobre duas cadeiras ao lado, algumas caixas continham leite condensado. Sei porque me deram. Lembro-me de ter pedido uma ou duas caixas, depois de ter me escondido com aquele tesouro e ido me sentar em uma cadeira vermelha afastada, encostada em uma parede.
De tempos em tempos, a porta se abria, a luz e o frio entravam com uma coorte de recém-chegados. Eles se inscreviam em uma das duas mesas e depois procuravam um canto para se sentar. Éramos regularmente despertados para fazer fila entre duas carreiras de arame farpado, no meio da sinagoga. Recebia-se uma xícara de café muito quente, ao dar o nome. Um adulto sempre me pedia o café.
Um soldado de uniforme preto veio se sentar perto de mim. Ele me mostrou o retrato de um menino da minha idade, seu filho provavelmente. Esse homem, comentando a fotografia, me fez compreender que eu era parecido. Ele foi embora sem sorrir. Por que eu tenho lembrança tão clara da cena? Foi o espanto que a fixou na minha memória? Por que ainda tenho a impressão de ter sido importante? Por não poder viver no medo, eu tinha necessidade de pensar que há traços de humanidade mesmo nos perseguidores?
Eu não ia mais pegar as caixas de leite condensado, uma enfermeira vinha me trazer. Como ela estava vestida? De enfermeira provavelmente, pois me lembro claramente que era uma enfermeira. Ainda vejo seu rosto, que eu achava muito bonito, o louro de seus cabelos e as caixas de leite condensado que ela me trazia. Creio me lembrar de ter segurado o pescoço dela. Eu deixava minha cadeira toda hora para ir explorar a sinagoga. Seguia os garotos que queriam se evadir. Compreendera suas intenções porque eram os únicos que olhavam para cima, para as janelas. Um deles disse: “Nos mictórios a janela é muito alta, pequena e gradeada.”
Dois homens perto da porta não se comportavam como prisioneiros. Eles avaliavam a multidão, e o que usava uma roupa de trabalho disse: “Recebemos a ordem de pôr as crianças no vagão salgado.” Aos 6 anos, eu não conhecia o significado da palavra “selado”*. Achei que iam pôr as crianças em vagões salgados e que certamente era um tortura cruel. Eu tinha de fugir. Olhei para o alto, impossível, alto demais. Voltei ao mictório para ver se de fato a janela era inacessível. Houve uma grande confusão dentro da sinagoga. Atrás da porta de uma privada algumas placas de madeira pregadas desenhavam um Z. Consegui subir até o alto sem muita dificuldade. Creio ter apoiado as pernas em uma parede e as costas na outra. Fiquei surpreso ao constatar que podia me manter sem esforço. O barulho era intenso dentro da sinagoga. Um homem em traje civil entrou e abriu uma por uma as portas dos banheiros. Não levantou a cabeça. Fazia menos barulho agora. Um soldado também entrou e examinou as privadas. Se ele tivesse erguido a cabeça, teria visto um menino acuado sob o teto. Esperei o silêncio e me deixei cair no chão. A sinagoga agora estava vazia. A grande porta aberta deixava entrar o sol. Eu me lembro da poeira flutuando na luz. Achei aquilo bonito. Homens em trajes civis falavam, numa roda. Passei perto deles, tenho a impressão de que me viram, não disseram nada, eu saí.
Na rua, os carros se afastavam. Alguns soldados esparsos junto das grandes escadarias arrumavam as armas. A enfermeira bonita, perto de uma ambulância, me fez sinal. Eu atropelo os degraus e mergulho sob um colchão no qual uma mulher está morrendo. Um oficial alemão sobe na ambulância e examina a moribunda. Ele me vê sob o colchão? Dá o sinal de partida.
Quando criança, eu me lembrava dessa cena e achava que ele tinha me visto. Estranho. Não tenho certeza. Será que eu tinha necessidade dessa certeza para me ajudar a pensar que o Mal não era inexorável? Como o soldado de preto com o retrato do filho? Dá esperança, não é?
Tempos depois, no encadeamento das lembranças, revejo-me em um grande refeitório quase deserto. Os adultos me cercam – explode uma violenta discussão com o cozinheiro-chefe. Como fiz para saber quem era o chefe? Seria porque mais longe, na sala, outros cozinheiros baixavam a cabeça e não tomavam a palavra? O chefe berra: “Não quero esta criança aqui, ela é perigosa.” Pedem-me que entre em um caldeirão. Dizem-me que não saia. Eu sou perigoso, não é?
Depois que recebeu a autorização de partir, a enfermeira dirigiu-se para a cantina da faculdade de direito onde ela conhecia um estudante, que se propôs a me esconder por uns dias.7
Ainda vejo a forma do rosto do cozinheiro. É um homem parrudo, com poucos cabelos negros, com um avental dobrado na barriga. Ele berra, depois aceita que eu fique no caldeirão, mas só por algumas horas.
Lembrança seguinte: a caminhonete roda durante a noite... puseram-me atrás, dentro de um saco de batatas, e arrumaram na minha frente outros sacos... Em uma barreira, os soldados verificam alguns sacos e não abrem o meu... O carro para na praça de um vilarejo... os adultos batem a uma grande porta... Uma freira de touca mostra a cabeça e diz: “Não, não, nem pensar, esta criança é perigosa.” Ela torna a fechar a porta, gritando.8
Estou em um pátio de escola. Desde quando? Quatro ou cinco adultos, professores, eu diria, me seguram, põem uma pelerine nas minhas costas e pedem que eu puxe o capuz sobre o rosto. Eles gritam para fazer os alunos voltarem para as salas, cercam-me para que não me vejam, acompanham-me até um carro que me espera e dizem: “Depressa, os alemães estão chegando!”
Acho a reação deles boba. Vejo o rosto das crianças colado em todas as janelas. Essa maneira de me esconder me põe em evidência e os faz correr perigo. Os adultos não são espertos.
Eu não disse nada. Sinto-me um monstro.
Em Pondaurat, a vida retorna. Eu me lembro do nome desse vilarejo porque depois da guerra, quando soube que minha tia se chamava Dora, fiquei surpreso com uma ponte ter o nome dela.* Será que ela a comprara?
Nesse pequeno vilarejo não fui infeliz. Dormia no celeiro, em cima de um monte de palha, junto com outra criança da Assistência, um menino grande, de 14 anos. Ele me tranquilizava bastante, explicando-me como evitar o asno que queria nos morder com seus grandes dentes amarelos e como fazer para que os adultos acreditassem que nós contáramos os carneiros no fim do dia, ao voltar: bastava dizer em voz alta “oitenta” e tudo estava resolvido. Ele sabia afiar a foice e abrir um caminho para evitar a fossa de esterco que levava ao celeiro. Eu me sentia bem junto daquele garoto grande.
Tenho uma lembrança muito clara do poço de onde eu tinha de tirar água e de seu rebordo, que me assustava, pois tinham me explicado que muita gente caíra no fundo e nunca tinham tirado seus cadáveres.
Gostava das noites em que os trabalhadores agrícolas comiam com Marguerite, a rendeira, destacando-se na cabeceira da mesa. Lembro-me da lâmpada lúgubre que pendia no meio da mesa com a fita de papel mata-moscas, onde agonizavam os insetos colados. Lembro-me das noites em que eu fazia o pessoal rir pondo pimenta demais na minha sopa, e depois gritando “chamem os bombeiros” a fim de apagar o incêndio da minha boca com os copos de vinho que me serviam. Todo mundo ria, e assim era possível recuperar o lugar entre os humanos.
A rendeira era rude. Raramente passava perto de nós sem nos ameaçar com uma paulada. Uma paulada não é um trauma. Dói na hora e acabou. Mas eu revia com frequência, como em um filme interior, o momento da prisão na casa de Margot, o confinamento na sinagoga, a mulher morrendo em cima de mim, o caldeirão e a freira que me deixara do lado de fora, de noite, gritando que eu era perigoso.
Além do “Grande” e de mim, o “Pirralho”, havia naquela fazenda outra criança: Odette, a Corcunda. Ela trabalhava sem uma palavra, evitava todo mundo, dormia em um quarto de verdade com lençóis brancos e cortinas de renda. Eu achava que era assim que dormiam as crianças: as meninas em cama, os meninos em cima de palha. Isso não me chocava. Perturbavam-me bem mais os pequenos gestos que humilhavam a Corcunda. Quando os operários voltavam do trabalho, ela tinha de ajudá-los a tirar os tamancos. Para evitar as bolhas, eles os enchiam de palha, que o suor do dia fazia inchar. O homem entrava e se deixava cair em cima de uma cadeira perto da porta. A menina se acocorava diante dele e puxava o tamanco. Com frequência, o operário punha o outro pé no peito da Corcunda e, quando de repente o tamanco se soltava, ela caía para trás, como em uma cambalhota, sua calcinha aparecia e todo mundo ria. A Corcunda não dizia nada. Eu não gostava daquela brincadeira.
Um acontecimento despertou o vestígio do passado. Um dia, o Grande me disse: “Pirralho, nós vamos pescar.” Mais uma felicidade! Nós nos instalamos no alto de uma pedra que fazia uma espécie de barragem embaixo de uma ponte e começamos a pescar. A água calma cintilava. Eu adormeci e acordei afogando-me. Lembro-me de ter pensado: ‘Que pena morrer agora que a felicidade está voltando.’ Quando recuperei a consciência, eu estava na cama da Corcunda! Marguerite, a dura, dissera a Odette: “Ceda sua cama para ele, depois do que lhe aconteceu.” Dormi em lençóis, admirando a janela com as cortinas de renda. Que felicidade!
Pouco tempo depois, na praça do vilarejo, alguns meninos começaram a me xingar. Eles me olhavam de lado, eu notava o desprezo em seus olhares, percebia que falavam mal de mim, mas não sabia por quê. Um deles disse em voz suficientemente alta para que eu escutasse: “Com os judeus é assim. Eles nunca agradecem.” Então compreendi que tinha sido o pai dele que me tirara da água, mas como eu poderia ter sabido? Não o conhecia e tinha perdido a consciência. Compreendi também que as crianças do vilarejo sabiam que eu era judeu, mas como tinham sabido? Como sabiam sobre mim coisas que eu não sabia?
Em Castillon-la-Bataille, eu devia ter 7 anos. Minha memória dessa época alonga-se no tempo. Já não é simplesmente composta de flashes, imagens breves de antes da guerra, nem mesmo de curtas sequências, ela se torna um verdadeiro pequeno filme de mim, no sentido teatral do termo. Eu me revejo dormindo em um leito de campanha no corredor da casa do diretor da escola. Eu não ia para a aula, mas podia brincar no pátio, depois que os alunos iam embora. Eu vagueava pelo vilarejo, onde conheci meu primeiro colega e meu primeiro amor.
Ela se chamava Françoise, como todas as meninas. Era morena, tinha olhos azuis e os dentes de cima separados. Eu gostava muito de ficar perto dela, vê-la simplesmente, e falar com ela. É curiosa a heterossexualidade: já na escola maternal da rue Pas-Saint-Georges em Bordeaux, eu procurava falar com as meninas. O pátio da escola era virtuosamente separado em dois por uma cerca, os meninos de um lado, as meninas do outro. Eu me aproximava da cerca para dizer a elas duas ou três palavras.
Essa lembrança não é coerente, uma vez que, na classe de Margot, eu me lembro de um pequeno Ali e de duas Françoises. Mas é assim mesmo na minha memória.
Não me lembro do nome de meu colega de rua, pois, como meninos, preferíamos as ações. Partíamos para os vinhedos para roubar uva-moscatel, que comparávamos com a moissac. Comíamos tanto que passávamos mal. Jogávamos pedras um no outro para aprender a evitá-las. Colhíamos nozes e ameixas, catávamos ovos, caçávamos borboletas, xeretávamos por todo lado, com total independência. Ficava contente por ele ser pobre; assim eu podia me sentir mais próximo. Eu ia procurá-lo em casa, a dois passos da escola. Ele morava com a mãe em um único cômodo, com um monte de carvão no meio. Eu a revejo sentada, vestida de preto e sorridente. Tenho dessa época uma lembrança de sol, de gentileza e de total liberdade, em plena guerra.
Uma noite, fui acordado por uma luz forte. Dois oficiais alemães estavam junto de mim, com uma lanterna na mão, na companhia do senhor Lafaye, o diretor da escola. Não senti medo nem sofrimento, apenas a pesada sensação: recomeçou! Ia ser preso e provavelmente morto. Os três homens partiram, e eu voltei a dormir.
No dia seguinte, o pátio da escola estava cheio de soldados. As mesas estavam do lado de fora; os homens, de torso nu ou só de camiseta, estavam ocupados lavando-se ou fazendo bricolagem. Quando eu passava perto deles, eles me falavam com gentileza e brincavam comigo. Eu me lembro de que um deles se divertia levantando-me só pela cabeça. Eu procurava evitá-lo. No alto da escola havia um mirante onde um soldado montava guarda. Este não brincava. Quando, com meu amigo, quisemos lhe fazer uma visita, ele nos expulsou a pontapés.
Na estrada, em cada obstáculo havia uma metralhadora montada. Dois soldados a alimentavam e, para nos divertirem, atiraram em uma parede com balas explosivas que fizeram estourar as pedras. Era muito interessante.
Alguns dias depois, a escola de repente se esvaziou. Senti saudades do burburinho de vida, que desapareceu. Disseram que os soldados tinham se reunido no centro do vilarejo, onde as FFI (Forças Francesas do Interior) os tinham esmagado. Os resistentes tinham cercado os alemães e tinham lhes causado pesadas perdas.
Depois da batalha, eu me lembro de uma discussão entre um habitante que eu não conhecia e um resistente, fácil de reconhecer porque usava uma arma e uma braçadeira. O resistente disse: “Temos um morto e três feridos graves.”
Eu disse: “Só isso!” A frase me escapou porque eu pensava nas centenas de pessoas amontoadas na sinagoga e despachadas nos trens. O resistente me lançou um olhar de desprezo, e o morador explicou: “Ele perdeu toda a família.” O resistente se acalmou, e eu me perguntei como aquele desconhecido podia conhecer minha história. Ele podia ter me denunciado quando os alemães estavam lá.
Meu amigo chegou correndo: “Venha rápido. O padre quer que soemos os sinos.” A festa recomeçava. No vestíbulo coberto, antes de entrar na igreja, a corda do sino passava por um buraco do teto e pendia no meio daquele espaço. Era preciso puxar para baixo acocorando-se a fim de inclinar o sino, pois, quando o pêndulo o fazia voltar para o outro lado, a corda nos levava cada vez mais para o alto e era preciso soltá-la depressa. Ao subir com a corda, um menino não ousou deixar-se cair e foi subindo até o teto, onde bateu com a cabeça. Foi assim que nós soamos os sinos, que anunciavam a libertação de Castillon. Nossa missão era importante.
Nos dias que se seguiram, eu ouvia os adultos falarem de “desembarque”. O halo afetivo, quando eles pronunciavam essa palavra, me transmitia uma alegria leve. Eles diziam alegremente “La Rochelle”, mas seu rosto se tornava sombrio quando falavam de “Royan”. Eu sentia claramente que certas palavras eram portadoras de esperança e outras de inquietação. Quando a felicidade se instalava em torno de mim, veiculada por palavras estranhas, eu me sentia liberto.
Foi no centro de um vilarejo (Castillon?) que vi pela primeira vez alemães prisioneiros. Sentados, abatidos, esfarrapados, imóveis, eles olhavam para o chão, sem uma palavra. Esses soldados, que tinham nos vencido, esmagado, dominado na vida cotidiana, os “besouros-da-batata”,9 como eram apelidados, pareciam agora acabrunhados pela desgraça. Não fiquei feliz com seu desmoronamento (eu ia quase dizer: “Eles nunca me fizeram mal!”). Eu me surpreendia com seu revés, ao lembrar-me deles triunfantes, desfilando em Bordeaux com suas armas, seus cavalos, suas músicas e seus bombons.
Voltei para a casa de Margot. A família Farges também recomeçava a viver, com suas mesas concorridas, amigos e rádios sem matraca. Falava-se em voz alta agora, comentavam-se os jornais.
Eu achava existir naquelas folhas de papel um poder mágico, visto que nelas era possível ler acontecimentos inauditos desenrolados em outros lugares. Então eu me posicionava bem protegido, debaixo da mesa, e tentava decifrá-los. Foi por isso que ninguém me viu quando ouvi a senhora Farges discutir com Margot: “Mas você não entende que os pais dele não voltarão nunca mais, nunca mais!”
Pronto. Estava dito. Eu ia agora precisar aprender a viver sem eles. Imediatamente voltei a mergulhar nas minhas tentativas de leitura. Uma vez que os papéis falavam de acontecimentos ocorridos em outros lugares, necessariamente daria para achar o rastro dos meus pais. Algumas palavras escritas iriam me contar a história deles. Eu precisava aprender a ler.
Um dia, Margot chegou radiante. Corremos para a place des Quinconces. Antes da guerra, minha mãe às vezes me levava lá para tomar ar e brincar em volta de um enorme conjunto de cavalos de bronze que cuspiam água. Os cavalos tinham desaparecido; havia uma multidão naquele dia. Falava-se, ria-se, e todo mundo se abraçava. Fiquei espantado de ver desconhecidos enlaçarem Margot, que se deixava abraçar, rindo. Eu ouvia palavras alegres: “Hiroshima... fim da guerra... 200 mil mortos.” Uma louca alegria, a guerra acabara! Esperavam-se muitos milhões de mortos no Japão, mas graças à bomba atômica não seriam senão 200 mil: um bom negócio, a guerra acabara!
Foi então que revi a bonita enfermeira, a que havia me dado caixas de leite condensado, a que me havia feito sinal para eu mergulhar sob a mulher moribunda. Acho que ela foi até a casa de Margot convidar-me para passar alguns dias com ela e o noivo no Grande Hotel de Bordeaux, em frente ao teatro. O general De Gaulle ia fazer um discurso lá, e ela conseguira que eu fosse escolhido para entregar a ele um buquê de flores.
O noivo me agradava porque eu o achava elegante em seu uniforme azul-marinho. Seu boné, sobretudo, era magnífico com os bordados dourados. Ele me emprestou, eu me exibi adotando ares marciais: grande sucesso! Todo mundo ria, depois os noivos se afastaram para conversar intimamente. Eu descobri cortinas fechadas com uma corda fina dourada, que tratei de pegar emprestado para fazer para mim um boné imaginário. Temor do jovem casal, que se zangou ao acreditar que eu tinha arrancado os fios do boné do marinheiro. Lembro-me do sentimento de injustiça e tristeza que experimentei por ter causado transtorno a pessoas que eu admirava e que tinham me achado capaz de fazer tamanha bobagem: pequeno contrassenso entre gerações.
No dia seguinte, Margot não gostou de que os noivos tivessem me levado ao teatro, pois, naquela noite, o espetáculo tinha sido feito por bailarinas nuas, cobertas de plumas. Margot, zangada, dizia: “Não é bom para um menino pequeno.” Já eu tinha achado bom: pequeno desacordo entre as gerações.
Na noite anterior à cerimônia, escutei uma grande comoção no corredor do hotel. Saí do meu quarto e vi sentado em uma cadeira um homem chorando. Ele segurava a cabeça, e seu rosto sangrava. Um FFI com armas me explicou: “É um miliciano que conseguiu penetrar no hotel, ele queria assassinar De Gaulle.” Outros homens armados de pé perto do miliciano lhe aplicavam, de tempos em tempos, uma coronhada, um soco, um pontapé. O homem sangrava e chorava. De manhã, ele tinha caído, lentamente morto por um soco aqui, outro ali. Esse linchamento foi minha primeira decepção política. Eu devia ter 7 anos; teria gostado de que os libertadores que acabavam de vencer o exército alemão manifestassem um pouco mais de nobreza. Meus heróis estavam se comportando como milicianos. Eu queria tanto que eles não se parecessem!
Depois de Hiroshima, a guerra acabou. As pessoas tentavam reaprender a viver. Para alguns, o balanço era pesado. Revi minha prima Riquette quando ela tinha 13 anos. Eu tinha a lembrança do pai dela, irmão de meu pai, engenheiro em uma fábrica em Espiet, perto de Bordeaux. Estive algumas vezes na casa da tia Hélène, antes da guerra, e tinha uma porção de lembranças felizes. O pai desapareceu durante a guerra, a mãe e os dois filhos foram perseguidos. Eu me lembro daquela menina grande explicando à mãe: “Não podemos ficar em um país que fez isso conosco. Temos de ir para a Palestina.” Creio lembrar-me de que a mãe queria ficar. “Estou apreensiva”, repetia ela, com uma palavra nova para mim. Riquette me explicava: “Lá há uma terra sem povo para um povo sem terra. Faremos crescer flores no deserto.” Eu achava a fórmula bem bonita, mas replicava, do alto dos meus 8 anos: “Mesmo que essa terra seja um deserto, é um deserto palestino. Não se deve ir para lá.” Riquette achava que a França tinha nos agredido. Eu julgava, ao contrário, que ela tinha nos protegido. Eu já não tinha família, mas achava que Margot Farges, Marguerite, a rendeira, o senhor Lafaye, diretor da escola, Descoubès, a enfermeira, e muitos outros tinham corrido riscos enormes para abrigar e proteger uma criança que não conheciam. Para mim, os franceses que tinham colaborado não eram verdadeiros franceses, pois tinham ficado do lado dos alemães.
Éramos crianças muito politizadas no fim da guerra. Nossas opiniões divergentes iam nos engajar em caminhos de vida diferentes.
Quarenta anos de silêncio.
Isso não quer dizer quarenta anos sem relatos íntimos. Eu me contava muito minha história, mas não a contava a ninguém. Teria gostado de falar dela. Eu fazia alusão, evocava os acontecimentos passados, mas, cada vez que deixava escapar uma migalha de lembrança, a reação dos outros, embaraçados, dubitativos ou ávidos de desgraças, fazia-me calar. Sentimo-nos tão melhor quando nos calamos... Teria gostado de falar simplesmente, mas era possível falar simplesmente?
Por felicidade, as circunstâncias inventam acontecimentos que dão a palavra. Em 1985, Philippe Brenot, psiquiatra-antropólogo em Bordeaux, organizou um seminário cujo tema era “Linguagens”. Muita gente famosa, gente que eu admirava: Jacques Cosnier (psicanalista-etólogo), Claude Bensch (fisiologista), De Ceccati (histologista, especializado em comunicação celular).
É a primeira vez que eu voltava a Bordeaux desde 1945. Tudo correu bem, as pessoas eram alegres, amistosas e interessantes. Eu fiz uma exposição sobre os sinais que os animais dirigem à própria imagem no espelho. Claude Bensch me cumprimentou, o que não deixou de ser bom.
Antes da minha fala, contudo, tive uma pequena perturbação. Nos corredores do espaço Malraux, uma moça se aproximou de mim e disse: “Sou a filha de Suzanne Farges.” Suzanne, a irmã de Margot que vinha aos domingos e tentava me ensinar a comer como um gato. Se a moça tivesse se aproximado de mim, cara a cara, eu teria me apresentado segundo os rituais de uso. Como havia muita gente, ela teve de se insinuar para chegar ao meu lado e se dirigir a mim. Como o ritual de apresentação não foi executado apropriadamente, fiquei sem jeito, fui chamado à tribuna. As circunstâncias estragaram o encontro. O que dizer a uma desconhecida que conhecia minha infância, uma infância escondida, uma infância de que eu não falava?
Depois da exposição, passou-se às perguntas dos profissionais presentes na sala. Um senhor pede o microfone, levanta-se e, com uma voz que se prepara para chorar, diz: “Boris, eu escondi você durante a guerra.” O que dizer? Há quinhentas pessoas na sala, aquele senhor chora contando um episódio da minha infância de que eu não tenho nenhuma lembrança. Entendo mal o que ele diz, de tanto que ele soluça e conta coisas que falam de uma criança que eu não conheço. Ninguém ousa lhe cortar a palavra.
“Pergunta seguinte?” Um etólogo do CNRS me faz uma pergunta técnica que me repõe no eixo, uma vez que não é afetiva.
No final da sessão, o senhor permanece na cadeira. Vou me sentar perto dele. Ele fala, fala, dá-me um cartão de visita e conta que, quando eu estava na casa dele, não parava de repetir: “Eu também, eu antes tinha uma mãe.” Ele diz que mora atualmente numa casa de repouso, trocamos nossos endereços, alguém vem me chamar, ponho o cartão de visita na minha bolsa, no meio de uma dezena de outros, não ouvi o nome dele, já não sei qual é o cartão com seu endereço. Mais um encontro que falhou.
Margot me dirá depois que aquele senhor, em 1944, arriscou a vida para me esconder. Chamava-se André Monzie. Não tenho nenhuma lembrança. Nós nos correspondemos com polidez: o que dizer? O mais intenso não é suficiente.
Em 1995 (talvez), a FR3 Aquitaine me convidou para apresentar um de meus livros. Depois do programa, uma jornalista me estendeu um pedaço de papel: “Uma mulher telefonou, ela se pergunta se você não seria o pequeno Boris que ela ajudou a fugir. Este é o telefone dela.”
Um táxi me leva à casa dela, uma grande casa de subúrbio. Sua alegria e simplicidade imediatamente me põem à vontade. Ela se chama Descoubès: é a bonita enfermeira que me deu caixas de leite condensado, que eu abracei quando tinha 6 anos e que me fez sinal para eu mergulhar embaixo do colchão da mulher moribunda. O marido está lá; seguramente é o jovem oficial de marinha que estava com ela no Grande Hotel, na noite em que o miliciano foi linchado. Ele é sorridente, ausente, e me repete muitas vezes que seu oficial superior não o esperava quando eles chegaram à Síria.
Conto minhas lembranças à senhora Descoubès, distraímo-nos confrontando nossas memórias. Partilhamos as mesmas imagens, quase em detalhes, maravilhamo-nos com a fidelidade de nossas reminiscências. Evocamos alegremente nosso encontro na sinagoga, nosso passado comum durante a guerra naquela espécie de prisão. Eu lhe digo que hoje acho divertido ter conseguido me evadir aos 6 anos, graças a ela, mas me espanta que os alemães tenham autorizado a presença de uma ambulância embaixo das escadas da sinagoga. Não era uma ambulância, ela esclarece, “era uma caminhonete”. Então eu me lembro do oficial que entrou na “ambulância” para examinar a mulher moribunda, um médico necessariamente. Creio lembrar-me de que ele suspendeu uma ponta do colchão, que me viu e ainda assim teria dado o sinal de partida.
“Era o capitão Mayer”, diz a senhora Descoubès. Ele não levantou o colchão, mas viu a moribunda e disse: “Que ela morra aqui ou em outro lugar, o importante é que morra.”
Eu tinha adaptado minhas lembranças para dar coerência à minha representação do passado. Uma vez que ela era enfermeira e que havia uma moribunda, o veículo era necessariamente uma ambulância e o oficial alemão era seguramente médico. Era lógico porém falso. Uma caminhonete tinha sido requisitada, pois a mulher que recebera coronhadas na barriga estava morrendo no chão. Efeito ruim para um exército que tinha como missão seduzir a população francesa. A multidão na calçada, atrás do cordão de milicianos, olhava como se embarcavam os judeus para eliminá-los. Era preciso lhes mostrar que o exército alemão efetuava sua missão com grande correção.
Adaptei minhas lembranças para suportá-las sem angústia. Na minha representação do acontecimento, acalmava-me pensar que o oficial alemão tinha me visto e ainda assim dado o sinal de partida para a liberdade. Eu não estava verdadeiramente certo, parecia-me... aquela intencionalidade não consciente me permitia remanejar a representação dos acontecimentos passados a fim de torná-los suportáveis e não sentir a lembrança como uma condenação inexorável. Graças a essa adaptação, eu não era prisioneiro do passado e escapava ao trauma.
Eu sabia que o nome da senhora Descoubès era Andrée ou Dédé. De onde me vinha esse conhecimento? Será que ouvi seu noivo chamá-la assim no Grande Hotel, na noite do assassinato do miliciano? Duas fontes diferentes podem, pois, confluir para resultar numa só lembrança!
Ela disse: “Você repetia o tempo todo: ‘Ah! Um dia como este eu nunca vou esquecer!’” Estava me chamando de “você” porque me conhecera criança? Não sei. Espanta-me eu ter dito que jamais esqueceria. Como fiz para pensar que, na vida que me aguardava, eu jamais esqueceria, enquanto poucos minutos antes tinha compreendido claramente que queriam me matar?
Ela devia ter uns 75 anos na tarde desse encontro. Ainda era bonita com seus cabelos brancos. Confessei-lhe que, quando ela me trazia caixas de leite condensado, eu a achava muito bonita com seus cabelos louros. Ela sorriu, levantou-se e voltou com uma foto sua, uma moça com uniforme de enfermeira da Cruz Vermelha, de fato bela, com seus cabelos pretos como um corvo.
A vida é louca, não é? É por isso que é apaixonante. Imaginem se fôssemos equilibrados, se nossa existência fosse pacífica; não haveria acontecimentos, nem crise, nem trauma por superar, unicamente a rotina, nada para colocar na memória: nós não seríamos sequer capazes de descobrir quem somos. Sem acontecimentos e portanto sem história, sem identidade. Não poderíamos dizer: “Foi isto o que me aconteceu, sei quem eu sou porque sei de que sou capaz diante da adversidade.” Os seres humanos são interessantíssimos porque a existência deles é louca.
Há dois meses, fui convidado para fazer uma conferência em Orange, Montrouge. Organização perfeita, pessoal sorridente, uma mulher se aproxima de mim e diz com ar cúmplice: “Depois da palestra, o senhor vai ter uma bela surpresa, a senhora Blanché está aqui.” Nesses casos, tenho o costume de adotar um ar extático e dizer com voz trêmula “Aaaah...”, pois não sei quem é a senhora Blanché.
Depois da conferência, sou levado para uma pequena sala onde uma moça me diz: “Eu me chamo Valérie Blanché, sou a neta da mulher moribunda sob a qual o senhor se escondeu ao se evadir.” Pessoas que eu não conhecia assistem, maravilhadas, a um encontro cujo sentido eu não compreendo. Acabo entendendo que a moribunda se chamava Gilberte Blanché, que sua neta está na minha frente; eu acabo confundindo as datas e os nomes, então nós decidimos nos rever em um local silencioso.
Valérie me entrega uma pequena pasta com fotografias da avó, que se parece com um protótipo de mulher espanhola. Ela nasceu em Bordeaux, tinha 26 anos quando foi presa ao mesmo tempo que eu e 227 outras pessoas. Eu me lembro de que ela tinha recebido uma coronhada que lhe rompera o baço e que estava morrendo de hemorragia interna.
Curiosa, essa lembrança! Com 6 anos, eu conseguia entender que ela estava morrendo, mas e a coronhada, de onde eu sabia? Eu não tinha visto. E a noção de baço rompido que provoca uma hemorragia interna, de onde vinha?
Ainda tenho na memória uma imagem indiscutível: a parte de trás do veículo é escura... Em cima de um colchão uma mulher está deitada sobre seu lado esquerdo, o rosto contra a lateral do carro... A enfermeira me manda subir depressa no carro... Alguém levanta o colchão... Eu mergulho embaixo, o colchão desce... Não me mexo... Sinto o peso da mulher sobre mim. Vejo o soldado alemão entrar na caminhonete para examinar a mulher. É impossível que eu o tenha visto. Devo ter ouvido seus passos, sentido alguns movimentos em cima de mim, mas visto, certamente, não.
Para compor essa lembrança, acrescentei imagens precisas, outras informações tais como o barulho, os movimentos do soldado, algumas palavras talvez ouvidas: “Podemos partir?... Ela vai morrer?...” e uma noção adquirida muito tempo depois, quando era estudante de medicina e aprendi que uma pancada violenta no abdome pode romper o baço e provocar uma hemorragia interna.
Fazendo convergir fontes diferentes, fabriquei para mim uma lembrança coerente.
Valérie me conta que a avó, levada para o hospital, teve uma parede abdominal rompida pelas coronhadas. Operada, escapara de Auschwitz! Ela revelou à neta que, frequentemente, se perguntava o que teria acontecido com o garoto que se escondera debaixo dela e que ela o havia procurado durante quarenta anos. Valérie me conta que tinha 4 anos quando a avó disse: “Os alemães, ao me torturarem e me considerarem morta, nos salvaram a vida, a minha e a do menino...” A avó acrescentou uma frase que determinou grande parte de sua vida: “Não é preciso ser judeu, pois, se os alemães voltarem, eles porão as crianças em um vagão, os pais em um centro e levam-nos para... Auschwitz, para matá-los... Eu sequer sabia o que significava ser judeu...”
Na idade em que as meninas adoram histórias de princesa, é uma história de horror o que Valérie ouve sem compreender: “O que é ser judeu? Por que põem as crianças dentro de vagões para matá-las?”10
Gilberte Blanché, a sobrevivente, teria preferido calar-se, mas, uma tarde, a neta entrou de repente no quarto e surpreendeu o abdome da avó, deformado pelos rasgões e costuras cirúrgicas. Ela acreditava que o avô a tinha maltratado. Foi preciso realmente lhe explicar!
O “segredo” compartilhado reforçou a cumplicidade entre a avó e a neta, que ouvia com frequência falar do “menino”: “Eu o sujei com meu sangue”, dizia Gilberte. “É claro que não, você o salvou com seu sangue”, respondia a pequena Valérie.
Depois, Valérie interessou-se por livros que falavam de resiliência, sem pensar que o autor era justamente “o menino”. Até o dia em que ela leu Je me souviens11 [Eu me lembro] e conseguiu estabelecer o elo surpreendente: o menino fora finalmente achado, mas Gilberte deixou o mundo naquele momento, sem ter podido encontrá-lo.
Não tenho nenhuma lembrança de sangue em cima de mim, nenhuma lembrança do momento em que saí da caminhonete! Minha imagem seguinte é o caldeirão e a maldição do cozinheiro: “Esta criança é perigosa!”
Quando a memória é sadia, uma representação de si coerente e tranquilizadora constrói-se em nós: “Todos os verões, a família se reúne em uma casa de campo sem conforto, onde passamos nossos dias preparando as refeições, os passeios e os jogos com os primos e primas.” O fato de me lembrar daqueles de que gosto e daqueles que me irritam, a evocação dos jogos em que sou bom ou sou ruim me permitem planejar minhas futuras condutas. Essa representação coerente de mim me dá confiança, uma vez que, doravante, sei o que devo fazer para me sentir à vontade: vou montar a cavalo com a prima Berthe, jogar pingue-pongue com Angèle e evitar o tio Alfred, que me aborrece ao implicar comigo. Colocando em ligação tais lembranças, construo uma representação clara na qual saberei viver com confiança. A pessoa cuja memória é sadia põe à vista alguns objetos, algumas palavras, alguns acontecimentos que constituem uma representação clara.
Uma memória traumática não permite construir uma representação de si tranquilizadora, já que, quando a evocamos, fazemos voltar à consciência a imagem do choque. Repentinamente sobreveio um acontecimento insensato? Como colocar em ligação uma condenação à morte, de súbito, à noite, seguida de uma longa perseguição na qual uma simples palavra que escapa faz voltar o risco de morrer? Um gesto, traindo-nos, transforma em inimigas pessoas que, dois segundos antes, nos declaravam afeição e que subitamente gelam. Basta articular a palavra “judeu” para que tudo seja subvertido. Basta calar-se para ser autorizado a viver.
Na memória sadia, a representação de si conta a maneira de viver que nos permite ser felizes. Na memória traumática, um rompimento insensato fixa a imagem passada e baralha o pensamento.
Pode-se tentar viver ao preço de uma interdição de dizer, uma amputação de si. Faz-se silêncio apenas sobre um tema específico, o restante da pessoa expressa-se com naturalidade. Esse estilo relacional faz passar uma imagem enigmática que intriga os próximos, entretendo-os ou desorientando-os.
Sem acontecimento, o que poderíamos colocar na memória? Quando as crianças abandonadas fazem o relato de sua vida, seus longos buracos de memória correspondem a períodos de isolamento. O mundo íntimo não se enche senão com o que os outros põem lá: as festas, as brigas, os acontecimentos imprevistos. Ninguém dá o mesmo significado a um mesmo fato. A emoção atribuída ao enredo posto na memória depende da história do indivíduo, o que resulta em dizer que, em uma mesma situação, cada um constrói lembranças diferentes.
Ao ser preso, a vida voltou dentro de mim, pois antes dessa ruptura eu sofrera um isolamento protetor. No carro dentro do qual me empurraram, um homem chorava: para ele, a vida ia acabar. Se eu não tivesse me alegrado com a prisão, não teria ficado atento ao que diziam os adultos, não teria seguido os jovens que procuravam fugir, não teria encontrado a inacreditável solução de me encolher sob o teto. Abatido, eu teria me deixado tranquilizar pela mulher que reunia as crianças sobre o cobertor, atraindo-as com leite condensado, facilitando a ida delas para a morte.
O contexto é que atribui significado ao acontecimento presente. É assim que o pequeno Maurice, sobrevivente do gueto de Lodz, conta: “Eu peguei um trem, era a primeira vez, estava feliz. Ele me levava para a morte.”12
Sem acontecimento exterior, não há o que colocar no mundo interior. Quando a memória é sadia, a clara representação de si permite planejar nossas condutas futuras. Quando uma catástrofe nos dilacera, a rotina já não consegue resolver o problema imprevisto, será preciso encontrar outra solução. Mas, quando a dilaceramento nos aniquila porque é intenso demais ou porque estamos fragilizados por feridas anteriores, permanecemos sem ação, desnorteados, em agonia física.
A clínica do trauma descreve uma memória particular: intrusiva, ela se impõe como uma sequência dolorosa que se apropria de nossa alma. Prisioneiros do passado, revemos sem cessar as imagens insuportáveis que, à noite, povoam nossos pesadelos. A menor banalidade da vida desperta o dilaceramento: “A neve que nos faz pensar nos Natais na montanha faz voltar em mim a imagem dos cadáveres gelados de Auschwitz...
“O céu azul e o calor evocam incontrolavelmente o campo japonês onde por pouco não morri em 1945.”13
A memória traumática é um alerta constante para uma criança ferida: quando ela é maltratada, adquire uma vigilância gélida, e, quando viveu em um país em guerra, continua a sobressaltar-se ao menor barulho mesmo quando a paz voltou. Fascinado pela imagem de horror instalada na memória, o ferido se afasta do mundo que o cerca. Ele parece indiferente, prostrado, como se estivesse entorpecido. Sua alma, possuída pela desgraça passada, já não lhe permite se interessar pelo que vive em torno dele. Parece longínquo, estranho, enquanto seu mundo íntimo fervilha.
A posse da memória traumática provoca reações que alteram a maneira de se relacionar. Para sofrer menos, o ferido evita os lugares onde sofreu o trauma, as situações que poderiam fazê-lo pensar nele e os objetos que poderiam evocá-lo. E, sobretudo, não se permite dizer as palavras que despertariam a ferida. Não é fácil aproximar-se desse ferido mudo que coloca a si mesmo em situação de estrangeiro. Sua defesa retraída, ao encapsular o sofrimento, impede-o de compartilhar suas emoções. Prisioneiro de sua hipermemória, fascinado por uma imagem horrível, o ferido não é disponível para os outros. Perdeu a liberdade de procurar entender e de se fazer entender. Isolado entre os outros, sente-se só, expulso da condição humana: “Eu não sou como os outros... um monstro, talvez?”
Eu me pergunto por que não sofri desse tipo de memória. Rapidamente compreendi que bastava me calar para falar sem problema. Eu me explico: basta não pronunciar a palavra “judeu”. Fácil, eu não sabia o que a palavra designava. Nunca vira um judeu à minha volta. Tenho lembranças de “mãe”: o dia em que ela esperava, de pé, que eu terminasse de amarrar o sapato; o dia em que ela me forçou a entregar a pequena boneca que eu acabara de roubar em uma loja de brinquedos; o dia em que catávamos pulgas, quando caíamos na cama às gargalhadas. São muitos os eventos como esses.
Tenho lembranças de “pai”, quando ele saía para trabalhar na sua oficina de artesão de móveis, quando ele corria atrás de mim, em volta da mesa, para me punir por não sei o quê, quando ele lia o jornal dizendo “Ai, ai, ai”.
Escutei a palavra “judeu” pela primeira vez na noite em que fui preso, quando o policial explicou à senhora Farges que era preciso me pôr na prisão porque eu ia cometer um crime.
Na ocasião da libertação de Castillon, um minúsculo acontecimento me perturbou. Quando o FFI disse: “Tivemos um morto e três feridos”, e eu respondi que não era muito. O desconhecido que falava com o resistente explicou a ele que eu respondera assim porque tinha perdido toda a minha família e por isso não deviam ficar zangados comigo. Depois ele me perguntou se eu tinha pesadelos ou raivas súbitas. Portanto, ele sabia que eu tinha sido preso, que tinha me evadido e que o senhor Lafaye me escondia na escola. Ainda que eu me calasse, aquele desconhecido sabia sobre mim o que era preciso esconder para ter direito de viver! Ele queria até entrar na minha alma a fim de saber se a cascata de acontecimentos me provocava pesadelos.
Creio ter pensado: ‘Nunca nos escondemos suficientemente. Preciso partir, ir para outro lugar, para um país onde ninguém conheça minha história. Só então estarei livre. Quanto mais eu aprender a me calar, mais poderei falar livremente.’ É hoje que penso ter pensado assim. Provavelmente, não empreguei essas palavras na minha linguagem de criança, mas devo ter tido a sensação que essas palavras hoje traduzem.
Diziam que eu falava pelos cotovelos, contava histórias, dirigia a palavra a desconhecidos na rua. Quem poderia pensar que falava para me calar? As palavras que eu dizia serviam para esconder as que era preciso não dizer. Minha estratégia relacional era clara: conversar com os outros para distraí-los, interessá-los e assim me esconder atrás das palavras não compartilhadas. Essa proteção permitia contar a mim mesmo outra história, esta sim, de boca fechada, com palavras não socializáveis que constituíam contudo a base da minha vida mental. Eu me contava com frequência o que eu não podia dizer. De tanto repetir, meu relato se simplificava. Quando certas lembranças ficavam claras, outras iam para a sombra. Eu me contava a evasão, ou melhor, eu a via como no cinema. E detalhava também a gentileza do soldado de uniforme preto, o que me mostrara a fotografia do filho dele; eu me espantava com o militar que dera o sinal da minha libertação embaixo da mulher moribunda: fazia questão de me enganar, adaptava minha memória para torná-la suportável!
O horror acabava até se tornando belo: a gentileza do soldado negro, a indulgência do médico militar, a beleza da enfermeira, a proteção do menino grande que me chamava de “Pirralho”, os risos dos trabalhadores agrícolas que me faziam beber demais, a camaradagem de meu amigo travesso com quem eu lançava pedras e roubava uva-moscatel; todas essas verdadeiras lembranças lindamente adaptadas me ajudavam a não sofrer com o passado.
Nem tudo ia tão mal, afinal. Eu punha de lado o escoteiro que me denunciara, o cozinheiro que berrava de raiva ao me ver, a freira que fechara a porta, deixando-me do lado de fora porque eu era uma criança perigosa.
Sentia uma pequena irritação contra os professores que, para me ajudar a fugir da escola, tinham posto um capuz na minha cabeça, apitado o fim do recreio e me cercado para me esconder da vista dos garotos, pendurados nas janelas e excitados com a ideia de assistir a um salvamento. Ao me protegerem daquela maneira, estavam me designando ao eventual denunciador! Corriam riscos, claro, mas creio que fingiam me proteger. Não gostei.
A adaptação da minha memória dava coerência ao insensato, tornava o horror suportável e até o transformava em uma conta vantajosa. Eu enganara os perseguidores, tinha sido mais esperto do que o exército alemão e a Gestapo juntos. Experimentava quase um sentimento de força: para ser livre, basta calar-se e agir sem se explicar.
Eu acabara de estabelecer um estilo relacional que ia caracterizar minha existência futura. O trabalho de narração íntima adaptava minha memória para embelezar o insuportável. Eu já não era um objeto arremessado pelo destino, tornava-me sujeito da história que eu me contava, talvez até o herói!
Eu não me dava conta de que, calando-me, passava para os outros uma estranha imagem minha: “Enquanto ele fala claramente, ouve-se uma espécie de eco, o murmúrio de seus fantasmas.” Após a guerra, grande número de meus colegas de escola deve ter experimentado um sentimento que corresponde a essa frase, uma vez que tinham por mim uma gentileza intrigada que revelava sua perturbação.
Eu me lembro de Max, que me cobria de presentes estranhos. Ele tinha 11 ou 12 anos, levava para o colégio, para me dar, roupas-brancas do pai cuidadosamente dobradas pela mãe. Depois me fazia muitas perguntas sobre minha família. Eu respondia enfeitando minha família de acolhida: “Meu pai [de acolhida] organiza festas de bairro. Minha mãe [de acolhida] é muito elegante e fala várias línguas.” Não estava mentindo, mas, quando dizia “meu pai”, Max devia ouvir “de acolhida”, como um murmúrio associado. E, quando eu esclarecia que minha mãe falava várias línguas, tal verdade me permitia não dizer que ela falava francês com sotaque, um pouco de polonês e o ídiche perfeitamente.
A falta de nitidez verbal me permitia proteger minha família de acolhida e apresentá-la com uma bela imagem, a fim de me mostrar como uma criança normal, como todo mundo.
Eu sabia que Max falava de mim aos pais, uma vez que eles lhe davam pequenos presentes para ele me entregar: um caderno de desenho, uma caixa de pintura, duas ceroulas, três camisas. Estranho, não? Ele me fazia muitas perguntas sobre minha família.
Quando nossos fantasmas fazem eco ao que contamos, costumam provocar pequenos atabalhoamentos: “Ele tem um modo curioso de dizer ‘minha mãe’, de falar da família dele, é estranho”, devia pensar Max. Desejando me ajudar, não podia adivinhar que me contrariava um pouco. Ao me obrigar a expor à luz o que eu queria deixar na sombra, ele me agredia sem querer. O ídiche que, na sua grande sabedoria, constatou essa perturbação amistosa, diz: “Por que me censuras tanto? Eu nunca te ajudei!”
Eu dizia “minha mãe” sem acreditar verdadeiramente, mas, se tivesse dito “minha tia”, teria direito a um rio de perguntas sobre um período da minha vida caótico, perigoso, esmagador, no qual a questão era a morte. Teria podido dizer isso simplesmente? Max, na sua gentileza intrigada, me punha pouco à vontade ao me convidar a falar de uma história que eu me contava sem cessar, mas que me parecia impossível compartilhar.
Essa relação de amizade perigosa é maravilhosamente ilustrada em Adeus, meninos, o filme de Louis Malle. No dia 15 de fevereiro de 1944, os soldados alemães cercaram o pequeno colégio des Carmes, perto de Fontainebleau. Três alunos são presos durante as aulas diante dos colegas assombrados. “Dois agentes da Gestapo, em traje civil, efetuam as prisões. Estão bem informados: vão diretamente às salas respectivas de cada um dos alunos judeus, ‘uma denúncia circunstanciada revelara à Gestapo o nome das crianças, o plano, o horário do colégio...’”14
Em outubro de 1943, Jean Bonnet conhece Louis Malle, que disputa com ele o primeiro lugar da classe.15 Tornam-se muito amigos. Os dormitórios são imensos, a comida rara, mas os padres são bastante calorosos na educação e nas relações humanas. Louis se liga a Jean, a quem admira, mas cuja mistura de maturidade e reserva o intriga. Como todas as crianças, Louis fala de sua família, e fica um pouco desorientado quando Jean, que habitualmente é claro, gagueja e responde evasivamente quando lhe pedem notícias de sua mãe.
Em uma manhã de inverno, “dois alemães em traje civil entraram na classe e interromperam a aula [...], chamaram Bonnet duas vezes. Na primeira vez, o professor fez sinal para que ele não se mexesse, e, na segunda vez, ele se levantou com serenidade, apertou a mão de todos nós. O professor estava em lágrimas. Nós não compreendíamos”.16
Subitamente, para Louis Malle, o véu se levanta, o enigma está resolvido: Jean Bonnet é judeu! Eis o que explica sua estranheza: excelente aluno, muito bom colega, era acompanhado por um fantasma que o fazia gaguejar quando questionado sobre sua família ou quando perguntavam de que cidade vinha.
Durante quarenta anos, os alunos daquela classe de quinta série prosseguiram seus caminhos de vida, guardando na memória este fenômeno incompreensível: “Nossos colegas desapareceram. Não sabemos nem seu nome, nem o de sua família. O projeto Nacht und Nebel vencera.”17
Louis Malle ficaria sabendo tempos depois que seu jovem amigo Hans-Helmut Michel, nascido em Frankfurt, entrou na câmara de gás de Auschwitz no dia 6 de fevereiro de 1944,18 enquanto o padre Jacques, diretor da escola, morria deportado em Mauthausen.
A vida inteira, Louis Malle se perguntou se, sem ter sido proposital, no momento em que subitamente descobriu o que o amigo escondia, uma criança não teria olhado para ele, designando-o com um breve olhar à Gestapo. Razoavelmente é improvável, mas, na fantasia, vá saber!19
Quando passamos por uma experiência similar, um circuito de memória traça-se dentro de nosso cérebro. Tornamo-nos hipersensíveis a um tipo de informação que, doravante, percebemos com mais acuidade do que os outros. Assim se constrói “o mundo oculto da memória implícita [...]. Quando as experiências passadas influenciam inconscientemente nossas percepções, nossos pensamentos e nossas ações”.20
O mundo que percebo com minha sensibilidade adquirida confirma as marcas deixadas pelo que se passou: porque estive em perigo, percebo mais facilmente os sinais do perigo. As crianças que foram maltratadas percebem o menor indício que pode anunciar os maus-tratos: um queixo ligeiramente crispado, uma súbita fixação do olhar, um minúsculo franzimento da sobrancelha indicam a preparação para o ato violento. Um adulto que nunca conheceu esta experiência dirá que são invenções, que certamente exageramos.
A lembrança é uma memória diferente: vou procurar no meu passado as imagens e as palavras que compõem o roteiro que me representa. Nos meus rastros de memória, só preciso das lembranças. A memória do meu corpo não precisa de roteiro para andar de bicicleta. Meus músculos e meus órgãos de equilíbrio adquiriram uma habilidade que dispensa lembranças. Mas, quando Louis Malle se lembra de sua amizade enigmática com Jean Bonnet e faz um filme sobre ela, organiza a representação do que se passou. Por isso ele pode acreditar ter talvez designado o amigo para a Gestapo, assim como pode decidir fazer um filme em sua memória. Ele não faz voltar o passado: recompõe a representação do passado.
É um pouco assim que funciona a memória traumática: uma imagem clara surpreendentemente precisa, cercada de percepções vagas, uma certeza envolta em crenças. Esse tipo de memória próxima de uma marca biológica não é inexorável, ainda que inscrito no cérebro. Ele evolui ao sabor de encontros que levam o cérebro a reagir diferentemente. Quando o meio muda, o organismo estimulado diferentemente já não secreta as mesmas substâncias. Todo trauma modifica o funcionamento cerebral: a metilação do DNA e o surgimento de histonas constituem as alterações mais frequentes. Doravante, a banda genética já não se expressa da mesma maneira e nós já não estamos atentos aos mesmos sinais. Essas modificações epigenéticas são muito precoces:21 descobre-se atualmente a importância do estresse pré-natal e do empobrecimento do nicho afetivo que cerca o recém-nascido. Ainda que a mãe seja a principal organizadora do nicho sensorial, não se pode torná-la responsável pela guerra que destrói sua família, pela precariedade social que deteriora sua habitação ou pela violência conjugal provocada por um marido alcoólatra! Em todos esses casos, o nicho afetivo que cerca um bebê fica empobrecido, e o cérebro dele já não é harmoniosamente estimulado.
As condições adversas organizam um meio que pode perturbar o desenvolvimento da criança. A cascata de pequenos traumas cotidianos reproduz feridas menos espetaculares do que uma catástrofe natural ou uma prisão pela Gestapo, mas prejudica o desenvolvimento. As dificuldades epigenéticas aumentam a vulnerabilidade da criança. A partir de então, um nada poderá feri-la.
Quando se consegue suprimir a infelicidade social ou relacional que empobreceu o nicho, quando se consegue enriquecê-lo modificando as relações, ou quando se propõe um substituto ambiental, as vulnerabilidades neurológicas adquiridas podem desaparecer.22
O que significa dizer que nem todos os cérebros reagem da mesma maneira segundo sua estruturação anterior ao acontecimento traumático. É mais difícil ferir a criança que recebeu a marca de um vínculo seguro durante os primeiros meses de vida do que a criança que já sofreu porque esteve doente, ou porque seu círculo precoce era deteriorado por uma infelicidade da existência.
O impacto de um acontecimento será menos traumatizante se a criança, antes do transtorno, já tendo adquirido um vínculo seguro, aprendeu um instrumento precioso de domínio emocional: a aptidão para verbalizar.
Certas situações espontâneas permitem analisar o fator de proteção. Entre gêmeos militares, há casos em que um só é enviado para o combate, e volta traumatizado. Os testes que permitem avaliar a memória visual e a memória verbal foram validados. Constata-se que o gêmeo traumatizado obtém um escore mais fraco em memória verbal.23 Poderíamos até dizer que tem excesso de memória visual, sofrendo de uma síndrome psicotraumática na qual as imagens de horror se impõem ao seu mundo íntimo.
Contudo, quando se faz a mesma avaliação com o gêmeo não traumatizado, constata-se que também ele tem pontuação ruim em memória verbal. Pode-se pensar que a fragilidade verbal, em caso de acontecimento aterrorizante, teria provocado, nele também, uma síndrome traumática.
Outros estudos demonstram que os soldados que sabem manipular o instrumento verbal sofrem menos de síndrome traumática.24 Pode-se portanto deduzir que os dois fatores de proteção mais preciosos são o vínculo seguro e a possibilidade de verbalizar. O fato de sermos aptos a fazer uma representação verbal do que nos aconteceu, e achar alguém a quem dirigir o relato, facilita o domínio emocional. O sentimento de segurança não permite que a memória visual se aposse do mundo íntimo e lhe imponha imagens de horror. Todos os traumatizados têm uma clara memória de imagens, e uma memória ruim de palavras.25
O desenvolvimento que fragiliza a alma e, em caso de adversidade, faz com que a síndrome traumática se instale é, pois, determinado pelo isolamento sensorial e pela dificuldade de verbalizar, anteriores ao trauma. Isso explica por que, em uma situação aterradora, os que se sentiam seguros e aprenderam a se comunicar são menos traumatizados. Contudo, quando se tem de sobreviver em condições adversas, se os microtraumas repetidos diariamente isolam e impedem a palavra, terminam impondo a vulnerabilidade da qual se escapara. Viver em condições adversas termina provocando alterações neurobiológicas análogas às de um trauma flagrante: redução do volume hipocâmpico, que altera a memória e impede o controle das emoções.26
Na memória traumática, a lembrança impõe-se. A pessoa isolada adquiriu vulnerabilidade neuroemocional. Se, ainda por cima, ela domina mal o instrumento verbal, ou se seu ambiente a impede de falar, todas as condições do sofrimento traumático estarão reunidas:27 com a memória imobilizada, o sujeito prisioneiro de seu passado não pode senão ruminar e sofrer as reminiscências.
Se, antes do trauma, o sujeito se sentia seguro e falava corretamente, se, depois do golpe, foi apoiado e escutado, a memória evolui, uma vez que é sadia. A representação do que aconteceu muda com o tempo e segundo o contexto familiar e cultural. Quando a memória é sadia, as lembranças se adaptam.
Maria Nowak era muito jovem quando as perseguições antissemitas explodiram na Polônia durante a Segunda Guerra Mundial. Sua família morreu, os amigos foram destruídos, mas ela conseguiu fugir para a França, onde atravessou a guerra refugiando-se no vão de uma escada. Anos depois, quando se tornou estudante, um amigo a convidou para jantar: “Ele me levou a um restaurante do Quartier Latin. À mesa, ele diz: ‘Você está com fome?’ Eu respondo: ‘Não, tudo bem, agora eu como todos os dias.’”28
O pequeno relato permite ilustrar como as lembranças antigas dão conotação afetiva aos acontecimentos presentes, quando a memória é viva. Maria passara fome durante vários anos. Para ela, “Você está com fome?” não podia significar “Espero que esteja com apetite esta noite.” A pergunta só poderia evocar seus sofrimentos passados. Ela respondeu à pergunta presente com uma significação passada, explicando assim como nossa história atribui afetividade aos acontecimentos presentes.
A contaminação afetiva do presente pelo passado acrescenta-se às distorções inevitáveis da representação de fatos passados. “As novas lembranças são inevitavelmente influenciadas pelas velhas lembranças, o que abre caminho para distorções relativamente frequentes.”29
Em seguida a um acidente de automóvel, o traumatismo craniano provoca um vácuo de memória. Quando, semanas depois, se pergunta aos acidentados se eles tiveram um vácuo de memória, quase todos situam a interrupção entre a última lembrança (“Eu estava entrando na estrada”) e o reaparecimento algumas horas ou alguns dias depois (“Eu estava em um leito de hospital”). Quando essas mesmas pessoas são interrogadas um ou dois anos depois, costumam garantir que jamais tiveram transtornos de memória. Lembram-se de ter ficado presas às ferragens do carro esmagado contra um muro. Não é difícil constatar que estão descrevendo as fotografias da seguradora!30
Após o atentado de 11 de setembro de 2001, em Nova York, o mesmo fenômeno foi constatado. A maioria dos sobreviventes das Torres Gêmeas, interrogados logo depois do atentado, estavam aparvalhados, compreendendo mal o que tinha acontecido, estavam lentos, confusos, imprecisos. O que aconteceu? Eu estou ferido? Vai recomeçar?, são suas perguntas habituais.
Passados alguns dias, eles respondiam melhor e começavam a fazer um relato claro. No ano seguinte, a descrição era precisa: tinham visto um avião entrar na torre, tinham descido calmamente as escadas, cruzado com corajosos bombeiros, ouvido os corpos dos que tinham se atirado pela janela explodir no chão, tinham limpado a fuligem do rosto dos amigos...31
Eles tinham reunido as lembranças esparsas a fim de dar coerência ao impensável. Fizeram convergir a memória de seus corpos (o choque, o estupor, o medo, o cansaço) com os relatos coletivos (imagens vistas em outros lugares). Essa amnésia da fonte, ao dar uma única representação da tragédia, permitia que dominassem seu mundo mental. Sentiam-se melhor, mas as lembranças que contavam eram constituídas de um patchwork de sensações diversas e relatos reunidos.
O trabalho integrador da memória explica a frequência das falsas lembranças, o que não quer dizer mentira. Podemos nos lembrar de um acontecimento que nunca ocorreu. Tal recordação utiliza fragmentos de memória de imagens e de palavras para dar uma forma consciente a uma sensação implícita: “Eu me lembro de que de repente ele me maltratou, está na minha memória” não quer dizer necessariamente que ele me maltratou de fato, mas me vem à consciência de que basta estar ao lado dele para ter a impressão de ser maltratado. A falsa lembrança testemunha um sentimento real. O contrário é também frequente, não é raro ver pessoas terrivelmente maltratadas quando crianças insistirem, vinte anos depois, em que nunca o foram. Quando se tornam finalmente felizes, veem seu passado de outra maneira.
O simples fato de escrever, de pensar com a mão, acaba adaptando a história que eu me contava. Por muito tempo acreditei ter superado razoavelmente a balbúrdia da guerra, o caos dos meus primeiros anos, graças a uma espécie de resistência mental e sobretudo graças ao silêncio que havia me salvado a vida. Hoje eu entendo que, nos meus primeiros anos, minha mãe impregnou em mim um vínculo seguro. Esse estilo relacional que facilita o encontro e a palavra tinha me ajudado a não deixar escapar as mãos estendidas, Margot Farges, Andrée Descoubès, André Monzie, André Lafaye, Marguerite – a rendeira –, um guarda cujo nome ignoro e mil outros desconhecidos cujo rosto eu não reconheceria, todos fazem parte da minha história sem palavras.
Eu acreditava ingenuamente que a balbúrdia da guerra bastava para definir o trauma. Hoje me pergunto se o fato de ser obrigado a me calar quando a paz voltou não foi uma ferida mais grave.
* “Empoleirado” traduz perché, adjetivo no masculino que concorda com Maître Corbeau. Sucede que em francês arbre (árvore) também é substantivo masculino – daí a confusão da criança. (N. do P. O.)