PALAVRAS DEGELADAS
A família Auriol encantou o começo dos meus estudos de medicina. Florence, que viria a ser minha mulher, era amiga de Jean-Claude, que nos convidava para aquele bando familiar. Tudo era bonito na casa deles. Os olhos azuis, as explosões de riso, os gestos, as discussões, a maneira de falar, os móveis, as acomodações, tudo era bonito na casa deles. Nós nos encontrávamos com regularidade no cais Gesvres, à beira do Sena, para trabalhar, rir, discutir política. Um mainá1 dentro da gaiola imitava a campainha do telefone, seguia-se a voz de Jacqueline Auriol chamando o filho: “Jean-Paul! Telefone!” O filho vinha correndo, todo mundo ria, o passarinho impassível não acrescentava uma palavra.
Uma vez por ano, Vincent Auriol recebia de Luret, sua cidade natal perto de Toulouse, um enorme cassoulet que ele nos convidava a compartilhar. Ele se sentava em uma poltrona, alguém o servia, os adultos pegavam as cadeiras, e os jovens se instalavam onde podiam. A festa culinária, afetuosa, amistosa, e as discussões se estendiam até 2 da madrugada.
Eu voltava a pé para o meu quartinho da rue Rochechouart, perto de Barbès. Para dormir, enrolava uma perna da calça no pescoço, a outra em torno da cabeça, pois as paredes eram geladas. O despertador tocava às 4 horas, e eu ia encontrar Adolphe no mercado de Argenteuil. Eu gostava muito desse contraste, que me dava a impressão de viver intensamente. Uma situação sublinhava a outra, mas com quem falar delas? Os Auriol se interessariam pela minha infância. Teríamos falado de guerra, de nazismo, de perseguição, de orfandade e miséria. Eu ainda não era capaz, e teria quebrado o encanto. Dora e Adolphe também teriam se interessado. Teriam me feito algumas perguntas e, intimidados, teriam pensado que eu os traía por já não pertencer ao mundo deles. Então eu não compartilhava essa experiência agradável. No mercado, eu era comerciante. E na casa dos Auriol bancava o intelectual, comentava o vinho como convém e chorava de rir quando o mainá imitava a campainha do telefone.
Eu era duplo. Depois de alguns anos difíceis no começo dos meus estudos, acabei me tornando médico e especialista em neuropsiquiatria, como sonhara. Esse sucesso pode ser atribuído ao benefício secundário da minha clivagem neurótica. Se eu tivesse sido equilibrado, não teria estudado, não naquelas condições pelo menos. Não tinha medo de adoecer trabalhando demais, suportando duras condições de existência. A marca do passado me ensinara que superar o sofrimento leva à liberdade: “Sofrer torna-se uma forma de existência, um modo de escapar ao poder do outro.”2 Todo sonho com o futuro metamorfoseia a maneira como suportamos o presente. Isso significa dizer que o sonho nos torna capazes de desprezar o sofrimento?
Numerosos estudos foram realizados para saber o que aconteceu com os jovens sobreviventes dos campos da morte, cinquenta anos depois.3 Na Europa, estima-se em 200 mil o número de crianças judias que sobreviveram à guerra (eram 2 milhões ao final dos anos 30). A maioria conheceu uma infância inacreditável, uma cascata de traumas, de agressões físicas e psíquicas. Algumas foram felizes durante a guerra, às vezes até mais felizes do que quando a paz voltou. Serge Erlinger escreve: “Cara Romaine, caro Eugène. Como lhes agradecer, hoje que vocês já não estão aqui, a ternura que me deram durante os quatro anos junto de vocês? Mesmo separado dos meus pais e do meu irmão, confiado a vocês pela Assistência Pública para escapar da barbárie nazista, vivi com vocês, graças a vocês, alguns dos anos mais belos da minha vida.”4
Já não me lembro do nome da mulher que me explicou que tinha passado quatro anos no paraíso, sozinha com a mãe em um quartinho em Paris, enquanto o pai lutava contra a morte em um campo de concentração. Na Libertação, ele voltou magro, desvairado, sombrio, com explosões de violência. “Ele trouxe o inferno para dentro de casa”, dizia-me ela. “Detestei-o. Achei que o fato de não ter morrido era a prova de que havia compactuado com os nazistas.”
A mãe de Serge não trouxe o inferno, mas, quando foi buscar o filho na época da Libertação, ele lhe deu pontapés, pois, por amar o filho, ela partia o elo que ele tecera com Romaine e Eugène.
Quando Dora veio me buscar no Gai Logis, em Villard-de-Lans, provocou sem querer minha exclusão do grupo no qual eu era aceito. Eles rezavam juntos, enquanto eu, encostado na parede, me via sozinho outra vez.
A estrutura do trauma estrutura o psiquismo, e a história atribui a uma mesma situação significados opostos.
Para a maior parte dessas crianças, a guerra foi um horror. A clivagem de suas personalidades, sob efeito de uma história e de um contexto ameaçadores, deu-lhes uma coragem mórbida: trezentas pessoas foram localizadas, em 1994, cinquenta anos depois de terem passado pelo tumulto da guerra.5 Quase todas tinham vivenciado, depois da guerra, alguns anos de depressão, salvo as que tinham executado alguma ação heroica, um ato de resistência, ou vivido um acontecimento que lhes dera uma boa opinião sobre si mesmas. Todas experimentavam uma hipermemória muda. Depressivas ou não, não pensavam senão no passado, mas jamais falavam. O trauma de suas infâncias tornara-se um novo organizador do eu, como uma terrível estrela do Pastor que orientava sua existência. O “encriptamento” criara ao mesmo tempo um mundo psíquico doloroso e um sucesso profissional excepcional.6 Elas não tinham medo do sofrimento e sabiam que, superando-o, ganhariam a liberdade. Triste vitória de um vencedor ferido. Os que foram muito feridos permaneceram prisioneiros do passado, sofrendo sem cessar com um passado sempre presente. Suas memórias não fizeram o trabalho de afastar o acontecimento para o passado. As feridas sangram ainda.
Depois da guerra, a escola não tinha a importância que tem hoje. Era preciso aprender a ler, escrever, contar e rapidamente arranjar um trabalho. O corpo nos socializava: quando se era camponês, era preciso resistir ao frio, à lama, curvar-se na terra e fazer permanentes esforços físicos. Quando se era operário, era preciso permanecer de pé e executar rapidamente movimentos repetitivos. No ginásio, podíamos continuar a desenvolver nossas personalidades, pois tínhamos muitas ocasiões para nos encontrar. Assim, os companheiros da mesma idade participavam do prosseguimento de nosso desenvolvimento. Escapávamos da modelação psicológica de nossos pais tão logo as circunstâncias nos permitiam nos integrar em um pequeno bando extrafamiliar. Ao ginásio, local de instrução programada, acrescentava-se, desde os 11 anos de idade, uma educação implícita7 que escapava aos pais. Os professores ofereciam frequentemente modelos identificadores, e os pares podiam servir de tutores de resiliência implícita.8
Meu tutor de resiliência implícita nos primeiros anos de ginásio chamava-se Gilbert Ozun. Nós morávamos no mesmo bairro, ele em um grande apartamento perto da porte Clignancourt, eu em um conjugado na rue Ordener. Dora acabara de se separar de Émile, o que representava para mim uma centésima ruptura afetiva. Gilbert foi minha primeira estabilidade amistosa. Voltávamos a pé do ginásio e não parávamos de conversar. Ele era bom aluno, bom jogador de futebol e representante de turma, só para ver o tipo. Eu matava as aulas de ginástica a fim de treinar rúgbi segundo meus próprios métodos, que eu julgava melhores. Ele me explicava que era melhor ouvir o professor, tomar distância e fazer exercícios com os braços para “ficar com as costas bem retas”. Não vão pensar que ele fosse um submisso, um aluno apagado! Depois de ter sido bom aluno, decidiu se tornar groom de um grande hotel, recebeu um par de tabefes da mãe, veio se refugiar na minha casa, retomou os estudos e se tornou um dos melhores nomes da cirurgia plástica francesa.
Quando Mouzel me indicou para o Concours général, eu não podia me preparar porque não tinha livros suficientes em casa. Eu sabia de cor os livros militantes que Jacquot trazia para me convencer da degradação das sociedades capitalistas. Vá fazer um Concours général com isso! Na biblioteca da prefeitura do século XVIII, perto de Jules-Joffrin, recusavam-se a me emprestar livros explicando que eu só tinha direito à Biblioteca Rosa.* Eu, que recitava passagens inteiras de Zola, de Jules Vallès, algumas frases de Marx e de Jeannette Vermeersch, achava a Biblioteca Rosa uma bobagem. O regulamento da biblioteca me protegia da leitura, fonte de todas as poluições morais. Então Gilbert desviava alguns livros das prateleiras de seu pai, um professor que lia as fábulas eróticas de La Fontaine ilustradas por Dubout9, nas quais se viam religiosas de touca copulando com um asno e padres dançando a bacanal com moças alegres, ou seja, de má vida. Compreende-se por que não obtive prêmio no Concours général.
Foi, de fato, Gilbert quem deu um foco aos meus anos de ginásio, com seu trabalho regular, sua aplicação de bom aluno, as horas passadas comigo diante de versões latinas, nossas partidas de futebol e de pelota basca contra uma parede mais ou menos lisa, nossos passeios de bicicleta até Jumeauville, à casa do pai dele, onde esvaziávamos as garrafas... só até a metade. Depois completávamos o nível acrescentando água, convencidos de que ele não ia reparar. Faltavam-nos alguns progressos em matéria de enologia.
Quando Dora e Adolphe foram morar em Sannois, fiquei em Paris, o que preservou meu foco, com Mouzel, com o ginásio e com Gilbert. Eu ia muito a Sannois, onde me dava com outra turma de adolescentes. Fiz em Versailles a prova de nadador salva-vidas a fim de ganhar um pouco de dinheiro no verão, o que me aproximou da piscina de Ermont, a cidade vizinha. Nesse outro contexto, eu teria estudado? Os instrutores de natação eram simpáticos, mas outros colegas de bairro me explicavam que “um homem, um homem de verdade, vai para a obra ganhar a vida e sustentar a família. Só as moças e os maricas estudam”.
Não me deixei convencer. Segui meu caminho. Foi difícil, sobretudo durante os primeiros anos de medicina. Eu não tinha bolsa, tinha de trabalhar e conseguir outra ocupação remunerada cada vez que o estágio no hospital mudava. Se tivesse sido equilibrado, não teria precisado deste sonho louco: ser psiquiatra! Já pensaram? A demissão às vezes me tentou, porque era tranquilizadora. Vender coisas não é desagradável! Teria tido colegas, teria também construído um lar. Na verdade, eu estava alienado, possuído pelo meu sonho, precisava mantê-lo. Gilbert me mostrou o caminho ao se inscrever em medicina, minha coragem mórbida fez o restante.
Cada encontro nos modifica, mas não encontramos ao acaso. Eu não encontrei o pedreiro que me dizia que só moças e maricas estudam, cruzei com ele, só isso. Ele me surpreendeu, mas não convenceu. Não foi um encontro, pois ele não me desviou do meu caminho. Ele não deixou uma marca em mim, salvo a de uma frase surpreendente que caracterizava seu grupo de adolescentes.
Mudamos de estilo relacional quando trocamos de amigos. Alteramos de projetos quando mudamos de meio. É claro, a mudança se faz a partir do que já se era. É uma inflexão, não é uma metamorfose, mas é suficiente para modificar o curso de nossa existência. Um verdadeiro encontro provoca uma influência recíproca. Dois mundos íntimos interagem, e um modifica o outro.10 Cada sujeito responde à ideia que ele faz de si mesmo, mas essa representação de si (no sentido teatral do termo) expressa-se diferentemente segundo o contexto familiar e cultural. Com uma mesma história e os mesmos acontecimentos, um sujeito pode se calar em um meio e falar muito em outro. Mas, quando fomos feridos na infância, é difícil destrancar a cripta que se instalou na nossa alma.
No ano em que completei 13 anos, morei durante uns meses com os Sergent, ignoro por quê. Esse casal de jornalistas me hospedou na rue Raynouard, perto do Trocadéro, vocês se dão conta? Diziam que ela era bela como Marlene Dietrich, com sua cabeleira loura que descia até a cintura. Ele era muito simples e muito sorridente. Nós nos separávamos de manhã, eles partiam para a rádio, eu ia para o ginásio. Nós nos encontrávamos à noite, alguém nos servia a refeição. É tudo.
Aos domingos, eu pegava meus patins de rodinha para descer correndo a escadaria do Trocadéro. Encontrava-me com alguns garotos que vinham de outros bairros para patinar nas esplanadas. As crianças dos bairros bons raramente estão sozinhas nas ruas. Em Montmartre, na rue Ordener, era na rua que aprendíamos a jogar, a falar e a fazer biscates que nos permitiam ganhar uns tostões. À noite, sujos e suados depois de patinar o dia todo, íamos com frequência tomar banho no Sena, junto dos degraus, sob a ponte Iéna.
Outra lembrança ainda hoje me diverte. Os Sergent falavam muito de um cantor que eles queriam gravar para a rádio. Eles instalaram na sala de jantar do seu apartamento, no térreo, uma ou duas grandes máquinas. Um técnico plantou-se no meio da rua para avisar caso um carro passasse. Nenhum carro atrapalhou o cantor, e Jean Sablon pôde tranquilamente gravar:
“Por que marcar encontro comigo sob a chuva,
Menina de olhos tão doces, tesouro que amo?
Sozinho, como um idiota, espero e me entedio
E tenho também alguns problemas.”
Após alguns meses passados na casa dos Sergent, numa acomodação confortável de um dos mais bonitos bairros de Paris, voltei com prazer para o conjugado de Adolphe e Dora. Na casa deles havia mais vida. Apesar de sua gentileza, beleza e cultura, não houve encontro com os Sergent, eu morei com eles, amavelmente.
Um período sensível da minha infância, quando de repente se impregnou dentro de mim uma imagem que deu sentido à existência, ocorreu em Stella-Plage, uma colônia de férias da CCE.11 Jacquot conseguira um trabalho de monitor e me inscreveu para o verão. Eu tinha 14 anos, e pela primeira vez na vida vivia em um meio judeu. Nenhuma palavra sobre judaísmo. Unicamente relatos sobre a história do povo judeu, sua cultura, suas músicas e sonhos de futuro. Uma judeidade sem Deus, como me convinha. Muitas histórias da Resistência, de filosofia, de literatura, de música. Até então, ninguém me falara assim sobre a condição judaica: magnífica, grave, alegre, apaixonante. Nenhuma palavra sobre o extermínio.
Mesmo os que ainda tinham pais não conheciam quase nada do judaísmo: algumas festas, ditas religiosas, serviam de pretexto para encontros familiares, algumas citações literárias ou filosóficas, só pelo prazer de se referir aos grandes homens judeus.
O essencial dos dias era dedicado ao esporte e à preparação das vigílias, quando se elaboravam as ideias e os temas de nossa existência. Falava-se mais de lutas sociais e de história dos povos do que de religião. Todos nós sabíamos que éramos judeus, mas ninguém sabia o que era ser judeu. Decididamente, isso me perseguia. Nós nos sentíamos em família, podíamos portanto nos interessar por outra coisa.
Duas mulheres dinamizavam aquela pequena instituição: Louba e Ana Vilner. A presença delas era um acontecimento, elas não paravam de nos incentivar a brincar, refletir e dançar. Ensinavam-nos a cantar:
“Ó terra de aflição
Onde devemos sem cessar
Labutar... Labutar...
Mas um dia a vida voltará
A primavera reflorirá...”
Eu percebia naquela música uma alusão à balbúrdia da guerra e à esperança renascente.
Gostava também da queixa ídiche:
“Es brennt, Es brennt, O briderler, Es brennt.”12
Convinha-me que falássemos de sofrimento, sob a forma de uma alusão rapidamente transformada em música ou poesia, única maneira de falar dele. Relatar o sofrimento sem metamorfoseá-lo não podia senão estimular o sofrimento, como uma queixa. Era preciso, ao contrário, fazer alguma coisa com a nossa ferida. Para isso, o comunismo parecia uma arma eficaz, e em especial a Resistência.
Falava-se muito mais das FTP13 do que dos Éclaireurs israélites, não comunistas e religiosos que tinham combatido nas FFI.
Uma música glorificava a Resistência:
“Amigo, estás ouvindo o voo negro dos corvos sobre nossas planícies
Amigo, estás ouvindo os gritos surdos do país sendo acorrentado
Eia, partidários, operários, camponeses, é o alarme...”14
Esses cantos provocavam em mim uma deliciosa tristeza. Certo, tinha havido a guerra, o incêndio, a terra de adversidade e o país acorrentado. Mas a primavera reflorescerá, o alarme sairá da palha, os fuzis e a metralhadora da libertação. Uma epopeia, podem crer. A beleza, a liberdade: eis, em termos simples, o que eu sentia quando cantávamos nossas feridas com nossa voz de criança.
Durante o dia, era preciso se mexer, brincar e praticar esporte. À noite, era preciso falar e ver os espetáculos nos quais devíamos encenar os temas de nossas reflexões.
Uma tarde, depois de caminharmos muito tempo na floresta, as crianças se sentaram em volta de Jacquot e ele falou sobre... sua resistência!15 Graves e empolgados, escutávamos sem uma palavra. Eu deveria dizer “eles escutavam sem uma palavra”, porque eu estava desorientado. “Ele pode contar em público o que não diz na vida privada! Ele pode buscar as palavras, os encadeamentos de imagens que lhe permitem compartilhar sua experiência, ao passo que, na vida em família, ele não faz o trabalho de comunhão da existência!” Eu estava feliz, surpreso e confuso, e portanto mudo!
Em Stella-Plage, pediram-me que dividisse o quarto com um coleguinha do ginásio Jacques-Decour. Não hesitamos: tornamo-nos amigos. Durante o dia, organizávamos as exposições de pinturas, as decorações florais nas paredes, as manifestações a favor dos mineiros cuja greve se prolongava. Roland contestava todas as ordens de Louba e de Ana, dizendo que não devíamos nos deixar manipular pelos adultos. Eu era muito mais desapaixonado do que ele. Se a ordem me convinha, eu a aceitava. Se não me convinha, não a aceitava. Não tinha necessidade de me opor para me afirmar. Então nós discutíamos, argumentávamos pelas noites adentro. Ele não perdia uma ocasião de rir, o que, de resto, era para ele uma forma de contestação. Quando uma ordem lhe desagradava, quando um argumento o irritava, ele ria tanto, que isso lhe dava a vitória.
Ele gostava de dizer que Topor significava “machado” em polonês. “Foi por isso que meu pai teve de fugir da Polônia”, acrescentava. “Para não ser machadado.” Então alguém, inevitavelmente, perguntava: “Ele fugiu dos pogroms?” – “Não”, esclarecia Roland Topor. “Fugiu dos judeus piedosos que ele não podia suportar.” E tinha uma explosão de riso tonitruante. “Explosão” é a palavra, pois, diante da sonoridade de seu riso, nada se podia objetar.
Durante alguns meses dividimos o quarto, os sonhos e as discussões noturnas que nunca acabavam. Depois nossos caminhos divergiram.
Eu me levantava cedo para ganhar um pouco de dinheiro, antes de ir para a faculdade. Ele se levantava tarde para ganhar o dele. Alain Lavrut, um colega do ginásio, achara um trabalho de lavador de chão e tinha me feito entrar na empresa. Antes do bac, inscrito em PCB,16 bastava me levantar às 4 horas da manhã e pedalar à noite, através da Paris deserta, para chegar aos belos edifícios de Champs-Élysées, onde tínhamos três horas para esfregar os assoalhos e lavar os ladrilhos antes da abertura dos escritórios. Em seguida era preciso pular de novo na bicicleta e pedalar através dos engarrafamentos, para chegar a Jussieu por volta das 9 horas e assistir às aulas até meio-dia. Às vezes eu ia acordar Roland lá pelas 13 horas. Ele se levantava e tomava, pela ordem, um copo d’água, um café, e comia um bife com fritas.
O pai dele era um homem adorável, tinha sempre uma observação engraçada para fazer, uma espécie de filosofia do deboche. Era artesão de couro e poeta. Cada vez que vendia um artigo de couro, oferecia ao comprador uma pequena coletânea de poemas que ele mandara imprimir por conta do autor. Roland dizia: “Quanto mais carteiras ele vende, mais pobres nós ficamos.”
Foi só depois da sua morte que descobri que Roland tivera uma infância comparável à minha.17 Seu pai, polonês apaixonado pela França, que exaltava Chopin e Adam Mickiewicz, teve a sorte de não passar em um concurso de escultura. Como ainda estava no segundo ano, em vez de receber uma grande soma de dinheiro conseguiu uma bolsa de seis meses para estudar em Paris. O antissemitismo desenvolvia-se tanto na Polônia, que ele preferiu ficar na França e tornar-se artesão de couro. Quando a guerra estourou, foi chamado à delegacia pela polícia de seu país de acolhida e não pelo ocupante alemão. Foi preso e encerrado em Pithiviers. Roland foi visitá-lo, assim como eu visitei meu pai uma última vez no campo de Mérignac. Durante todo o restante da guerra, Roland foi perseguido, como eu também fui: “Eu não completara 5 anos”, dirá ele depois, “mas já tinha todas as polícias da França no meu encalço”. Nós nunca falamos disso!
Depois de Stella-Plage e sob a influência de Jacquot, decidi me associar à UJRF.18 O comunismo me parecia a única nobreza: a URSS esmagara o nazismo, o comunismo falava de igualdade, de amanhãs que cantam e de paz no mundo. Durante esse tempo, os americanos faziam a Guerra da Coreia, depois a do Vietnã, onde lançavam napalm sobre vilarejos de camponeses. Diante da tal escolha, vocês teriam hesitado?
O Exército Vermelho cantava divinamente bem, as festas comunistas eram um encantamento de amizade e alegria. Na praça do Trocadéro, comboios traziam os operários vindos de Aubervilliers para assistir a Lorenzaccio, em que Jean Vilar e Gérard Philipe entusiasmavam as multidões com um cenário muito simples. Íamos ouvir A ópera de três vinténs, praticávamos esportes ao ar livre, camping em Fécamp, escalada em Fontainebleau, esqui barato em Valloires, e excursionávamos pela Inglaterra de carona, em albergues da juventude. Preparávamos a reunião semanal em um local, na rue Navarin, perto do circo Medrano. As meninas dos ginásios vizinhos participavam dos debates em que discutíamos greves, arte, história, a União Soviética, a paz e a prosperidade que ela ia trazer ao mundo. Durante esse tempo, os americanos bombardeavam o planeta e estabeleciam entre os países relações de hierarquia: desgraça dos pobres! Como era possível não ser comunista?
Eu gostava muito das reuniões da UJRF. Nós as preparávamos lendo L’Humanité, indo ao teatro, polemizando com gente da extrema direita. Era preciso dar provas de erudição e de capacidade de respostas vigorosas. Eu não sabia que naquele ginásio um aluno em cada três era judeu. Jamais falávamos disso, não era um valor. O que contava no pós-guerra era avançar, tentar uma aventura humana. Para adiante!
Duas pequenas sombras alteravam contudo essa paisagem idílica. As reuniões nem sempre eram exaltantes. Às vezes era preciso ver filmes “realistas socialistas”, e, como se esperava que falássemos bem, por vezes olhávamos durante horas uma torneira pingando em uma panela vazia. Era socialismo, porque a panela era de um lar pobre, e era realismo, porque se podiam observar por muito tempo as gotas caindo dentro. As discussões eram menos animadas depois de tais filmes.
“Nos últimos anos, demonstrou-se que um impacto físico importante é transmissível a várias gerações por modificações ditas epigenéticas. Não apenas há uma transmissibilidade hereditária bem previsível pelo próprio contexto familiar, mas também uma transmissão hereditária real, felizmente bastante lábil.”19 Mitchourine e Lyssenko, amigos de Stalin, sustentavam que o meio modificava a hereditariedade das características adquiridas – o que significava implicitamente que uma sociedade bem organizada, ou seja, comunista, fazia as pessoas felizes e com boa saúde através das gerações. Um professor de universidade, biólogo conhecido, vinha nos explicar que o pensamento perfeito de Lenin e de Stalin nos proporcionaria saúde e felicidade.
Durante esse tempo, o jornal Aurore publicava testemunhos sobre a imensa miséria social e intelectual dos países comunistas que contradiziam o professor. Foi então que os primeiros filmes coloridos saíram na França: eles eram soviéticos, explicavam-nos, provando assim que a tecnologia comunista era melhor do que a dos capitalistas!20
Nosso pequeno grupo de jovens comunistas devia, pois, celebrar essa vitória. Nos anos 1950, havia perto de Barbès um imenso cinema, chamado Louxor porque sua decoração lembrava o Egito. Lá se projetaram os primeiros filmes soviéticos em cores! Nesses filmes, tudo era cor pastel, suave e claro como o marshmallow, que é mole e açucarado. Em um dos episódios, viam-se dois jovens declararem sua paixão diante de um trator laranja e, no fundo, um pôr do sol rosa. Com poucos recursos, o jovem casal decide pedir conselho ao camarada Stalin. O Paizinho dos pobres recebe-os em seu escritório, trajando uma túnica branca de colarinho fechado, à moda russa. Depois de escutá-los afetuosamente, Stalin lhes diz: “Antes de se casarem, meus filhos, esperem o fim do plano quinquenal.”
Nós duvidávamos da realidade dessa cena. Mas vários professores comunistas que admirávamos nos explicaram que era assim que acontecia nas democracias populares. Atribui-se até a Roger Garaudy ter respondido que, segundo a teoria de Ivan Mitchourine, papa da biologia vegetal e amigo de Stalin, a sociedade comunista era tão bem organizada que as vacas produziam mais leite. Não é errado dizer que uma vaca não estressada dá mais leite, mas é o regime comunista que a deixa tranquila?
Após dois anos de militância estudiosa e doutas exposições extraídas de L’Humanité e de L’Avant-Garde, fui recompensado com uma viagem para o festival da juventude que, em 1953, acontecia em Bucareste. Depois de vários dias de viagem durante os quais adoramos nos fazer medo (“A fronteira é intransponível... nós vamos ser presos pelos americanos”), finalmente chegamos. Primeira surpresa na estação: homens de prontidão, de roupa azul de trabalho, nos esperavam para carregar nossas malas. Quando o recusamos, eles nos disseram que tinham sido requisitados para fazer esse trabalho, e um deles, em um francês aproximativo, explicou que, uma vez que o comunismo organizara uma sociedade perfeita e eles tinham sido designados para estar no último degrau da escada, era normal que obedecessem.
Na rua, agitavam-se bandeiras, sorriam-nos, balbuciavam para nós em franco-romeno. Era uma festa. Dormimos na escola politécnica em camas de campanha, e eu partilhava o “dormitório” com jovens universitários. Em alguns dias, decifrando os jornais, eles tinham aprendido número suficiente de palavras para se virar em romeno. Na rua, nós éramos frequentemente atraídos para cantos, onde, com olhares inquietos, alguém nos explicava que a polícia estava em toda parte e depois nos pedia que lhe vendêssemos nosso blue jeans.
A polícia estava, com efeito, presente na rua, nas manifestações e até nos teatros. Uma noite, cheguei atrasado ao espetáculo e todos os lugares já tinham sido tomados. Um policial, que pedira meu endereço, quis demonstrar sua amizade. Ele me fez acompanhá-lo até as melhores cadeiras e, com um gesto de mão, mandou um espectador se levantar para me ceder o assento.
Muitos romenos tinham lutado contra o nazismo nas FTP na França. Jacquot me dera alguns endereços de resistentes com quem eu gostaria de me encontrar. No corredor, vizinhos me diziam, fazendo com a mão um sinal de evacuação: “Sanatorium, sanatorium, Militsia.” Eu me espantei com que houvesse tantos tuberculosos entre os resistentes e perguntei por que era necessário que a polícia os levasse para serem tratados. Levei muito tempo para entender que “sanatorium” significava “asilo psiquiátrico”. Alguns antigos resistentes estavam na prisão depois de ter tido responsabilidades governamentais, e outros tinham simplesmente desaparecido.
Um domingo de manhã, antes de assistir a um espetáculo político-esportivo com desfiles, estandartes e danças de grupo, fomos insistentemente convidados para uma manifestação da qual teríamos de participar. Meus colegas da rua Ulm e eu, jovem ginasiano, nos vimos no meio de uma multidão reunida por profissão em que se gritava: “Georghiu Dedj luptator pentru pace și popor.”21
Com outros colegas da Renault, visitamos uma fábrica. A porta principal era cercada de grandes fotografias decoradas com louros. Os jovens operários se interessaram pelo ritmo do trabalho e disseram: “Se os stakhanovistas desta fábrica tivessem de trabalhar na Renault, seriam demitidos por preguiça.” Nos canteiros de obras públicas, mulheres cobertas de lama, vigiadas por um pequeno contramestre que assoviava o ritmo, suspendiam pesados canos. Outras mulheres, com pás e picaretas, cochilavam na grama dos jardins. Quando nossa intérprete brincou com elas dizendo “Tudo bem? Não estão se cansando demais?”, elas responderam rindo: “O Estado finge que nos paga, então nós fingimos que trabalhamos.” O humor é uma forma de resistência sob todas as ditaduras.
Quis visitar a faculdade de medicina. Alguns estudantes nos contaram que a prova mais seletiva da medicina não era a de anatomia, biologia ou clínica como se poderia esperar, mas a dissertação sobre marxismo, que selecionava mais severamente. Alguns estudantes desejosos de se tornarem médicos faziam o sinal da cruz antes do exame. Eles se persignavam às escondidas porque a religião era combatida. Em uma bandeirola, podia-se ler: “O cromossomo é uma invenção burguesa destinada a legitimar o capital.” Lyssenko, para reforçar a ideologia de seu amigo Stalin, proibia a crença na existência de cromossomos, que resultaria no risco de evocar uma natureza humana. Só a organização social comunista valia a pena ser pensada. Curioso materialismo.
A maior parte de meus amigos da faculdade de educação ficou perturbada. Então um deles explicou: “Quando se faz a revolução, não se faz omelete sem quebrar ovos.” Imaginei que os ovos fossem milhões de seres humanos.
Paravam-nos na rua para murmurar frases que eu entendia mal: “ocupação russa”, “polícia onipresente”, “imposto sobre a carne”, “escola proibida para os filhos dos burgueses...”
Foi contudo uma experiência humana magnífica. Os romenos adoravam a França, sua música era viva, a Berenitza fazia as pessoas dançarem na rua, a ópera chinesa nos emocionava com sua beleza, e todos os passantes expressavam sua amizade. Voltei para a França amadurecido pela aventura, mas extremamente abalado.
Quando fiz meu relatório na UJRF, no local da rue Navarin, os amigos de quem eu gostava e que tinham encantado minha adolescência se calaram. Mesmo Jeannette, cujo apoio eu esperava, desviou o olhar. Então quis fazer algumas perguntas aos dirigentes, falar sobre o meu espanto, sem agressividade. Paul Laurent, na época secretário nacional da UJRF, me respondeu que eu era jovem demais e que não soubera ver.
De volta ao ginásio, falei de meu desconforto a Jean Baby, o professor que eu admirava. Ele não acreditou em mim e disse que era preciso desconfiar da propaganda reacionária. Eu encontrava a mesma impossibilidade de falar da minha experiência durante os anos do pós-guerra, quando quis contar o que tinha me acontecido.
Porém, antes de partir para Bucareste, lera no Le Monde sobre o complô dos jalecos brancos denunciado por Beria, diretor da polícia política da URSS que acusava os médicos judeus de ter assassinado grande número de dirigentes comunistas.22
O processo dos jalecos brancos, em 1953, meu desconforto em Bucareste e a entrada dos tanques russos em Budapeste em 1956 alteravam minha utopia. O real afastava-se da representação idílica. Foi difícil renunciar a esse encantamento. Quando eu disse “Não é assim que se deve lutar”, perdi meus amigos, tive de renunciar às leituras e às saídas que garantiam uma rotina à minha vida diária e euforizavam meus sonhos. Se tivesse podido conservar a fé, meus primeiros anos de medicina teriam sido menos duros. Teriam me cercado, reconfortado e encorajado, como faziam com Bernard Kouchner, já elegante com seus sobretudos de gola de veludo e corajoso ao enfrentar os que se opunham ao Clarté,23 jornal das Jeunesses Communistes que ele vendia na rua em frente à faculdade de medicina. A dúvida lhe veio depois, mas havia nele um germe de ceticismo, pois me lembro de que criticava os artigos do jornal que vendia.
Pode-se viver sem mito? Quando uma experiência coletiva é dolorosa, quando a situação social é difícil, quando o mundo íntimo é desesperador, o mito nos reúne e dá sentido aos nossos sofrimentos.24
Não se trata propriamente de uma mentira, eu diria que são experiências reais arranjadas de modo a compartilhá-las e habitar um mundo comum. A quimera da minha infância dava forma a uma experiência que eu não podia compartilhar. Essa representação de mim punha ordem em fatos reais que meu contexto relacional não suportava ouvir. No mito, ao contrário, as experiências são arranjadas a fim de compartilhar uma mesma representação. Minha quimera galopava sozinha nas minhas ruminações mudas, ao passo que o compartilhamento de um mito teria organizado um relato coletivo no qual eu estaria em contato com meus próximos. Minha quimera dava coerência à representação que eu fazia de mim, iniciada na vitória sobre a morte, propiciando-me uma estranha estratégia de existência. Se tivesse podido compartilhar uma memória coletiva, teria sido apoiado e ajudado. Graças às Jeunesses Communistes, pude, contudo, fazer projetos sociais e ter sonhos de futuro, até o dia em que minhas dúvidas me privaram desse apoio.
A evolução perversa começa quando o mito vira dogma e nos pede que acreditemos que não existe outra verdade. A partir de então, basta que um de nós vislumbre outra evolução, descubra uma experiência diferente ou um arquivo que poderia alterar o mito, para ser tachado de blasfemador.
Quando o mito necessário se torna dogma, qualquer opinião diferente, mesmo vizinha, tem o efeito de uma transgressão. Quando o “eu” é frágil, o “nós” serve de prótese. Quando o grupo precisa de um mito para servir de suporte, a menor variação, sentida como uma agressão, legitima a agressão pretextando legítima defesa. Pode-se deportar, queimar, excomungar ou reeducar aquele que não está exatamente conforme o relato. Mudando de visão, ele destrói o mito e impede o grupo de viver junto: morte ao transgressor.
O mito do francês esperto, resistindo e ridicularizando o “alemão batata”, mudou nos anos 1980. Nessa época, minha quimera começou a se sentir menos sozinha quando os relatos culturais fizeram meu círculo ficar mais atento ao que me acontecera (ao que aconteceu com 20 mil pessoas que tiveram uma infância análoga à minha).25
Os fatos eram reais, mas as palavras eram geladas.
Rabelais fez um conto com a ideia.26 Seu barco navega nos mares gelados do Norte e se aproxima dos mares do Sul: “Em pleno mar nos banqueteamos, bebemos, contamos histórias e fazemos belos discursos. Pantagruel levanta-se e nos diz: ‘Nada ouvem, companheiros?’... Panurge grita: ‘Ai de nós, estamos perdidos. Fujamos. Deus do céu, são tiros de canhão...’ Pantagruel, ouvindo a barulho... diz... ‘onde habitam as Palavras, as Ideias, os Exemplares... no tempo do inverno rigoroso, quando são proferidas, elas gelam, congelam com o frio do ar...’ O piloto responde: ‘Senhor, não tenha medo. Estamos nos confins do mar glacial, onde, no começo do último inverno, ocorreu grande e sangrenta batalha entre os arimaspianos e os nefelibatas. Na ocasião, gelaram no ar as palavras e os gritos de homens e mulheres, o tumulto de maças, o choque de armaduras, o relincho de cavalos, todo estrondo dos combates. Passado o rigor do inverno, com o advento da serenidade e a tempérie do bom tempo, elas se fundem e são ouvidas...’ [Pantagruel], no convés, atirou-nos mãos cheias de palavras geladas... Elas nos parecem palavras licenciosas, algumas com o verde dos escudos, algumas azulinas, algumas de areia, algumas douradas...”
Rabelais, no começo do século XVI, apresenta uma questão ainda hoje debatida. Por que um ferido na alma não pode contar senão o que seu contexto consegue ouvir? Quando o ambiente cultural é gelado, o ferido fica sozinho com seu trauma encriptado na memória. Quando o clima reaquece, quando ocorre o “advento da serenidade”, o ferido pode se expressar, é rodeado, pode retomar o lugar entre os seus.
Assim se pode compreender que o que é o outro modifica a maneira como falamos de nossa ferida. Segundo a pessoa a quem dirijo meu relato, remanejo a representação de meu passado. A pessoa a quem me dirijo participa da minha história! Será que, rearrumando os relatos em torno de mim, conseguirei expressar com serenidade o que me aconteceu?
Quando, durante a guerra, uma menina grande, Anne Frank, escreveu seu diário,27 não fez senão relatar acontecimentos terríveis mas suportáveis. Sabe-se, não se vê. A tensão emotiva é provocada pela espera da morte e não pelo amontoamento de cadáveres.
Na mesma época, Primo Levi, capaz porém de poesia e reflexão, prefere escrever É isto um homem?, porque acha que seu depoimento lhe permitirá vingar-se dos criminosos: “[...] um livro, como um revólver na têmpora dos agressores.”28
O diário de Anne Frank conta uma história suportável e comovedora. Primo Levi, depois de ter sido recusado por várias editoras, que lhe respondem que ninguém vai se interessar por tamanhos horrores, vende apenas setecentos exemplares no ano da publicação de seu livro, em 1947.
A menina grande, com seu relato deliciosamente triste, degelou muito mais as palavras do que o sábio que, com seu depoimento insuportável, gelava os leitores e reforçava a negação.
Parece-me que foi a popularização dos Justos o que reaqueceu a atmosfera. Em 1953, o parlamento israelense votou uma lei para homenagear os “Justos entre as nações que arriscaram a vida para ajudar os judeus”. Nenhum eco respondeu até 1961, data do processo Eichmann. Os organizadores, temendo que o governo alemão se sentisse agredido, rapidamente destacaram alguns alemães “Justos entre as nações”, a fim de deixar claro que não estavam acusando um povo. No ano seguinte, muitas instituições judaicas pediram a inclusão na homenagem de um número tão grande de Justos que a Knesset precisou inaugurar uma ala de Justos em Jerusalém.29
No começo dos anos 1980, o degelo das palavras foi manifesto. Eu escutava estranhas frases em torno de mim. “Parece que prendiam até as crianças... Alguns iam à delegacia com sua roupa de domingo e as medalhas de guerra... nunca mais foram vistos.” Nos meios de esquerda, a religião não participava da identidade. Dizia-se que nos campos havia romenos, húngaros, poloneses ou franceses, mas não se dizia que eram judeus ou cristãos, uma vez que a religião nada significava.
Um dia, uma enfermeira do centro médico-social de La Seyne-sur-Mer, onde eu era médico, me trouxe um número de Historia, no qual Michel Slitinsky escrevera um curto artigo sobre as prisões em massa durante a guerra. Podia-se ler que “o bravo soldado Cyrulnik, ferido em Soissons, na Legião Estrangeira, foi preso no seu leito de hospital pela Gestapo bordelesa”. “É alguém da sua família?”, perguntou a enfermeira, senhora Richard.
Quer dizer que estava escrito na revista Historia! Meu pai tinha sido corajoso, ferido em Soissons e preso na companhia de um soldado húngaro do mesmo regimento. Esses homens tinham sido presos e deportados pela polícia do país pelo qual eles combatiam!
Em 1981, em Hyères, Paul Guimard organiza um encontro com Jean-Pierre Énard, diretor literário a quem eu acabara de remeter meu primeiro manuscrito. Eles dizem que Maurice Papon, que participou do governo Barre, se opõe fortemente a François Mitterrand. Vai haver muitos problemas, afirmam eles, porque Serge Klarsfeld30 acaba de achar documentos autenticando as ordens de requisição assinadas durante a guerra por Maurice Papon.
Algumas semanas antes, Michel Slitinsky me enviara fotocópias de decretos prefeitorais nos quais pude ver listas de crianças que a polícia devia prender. Embaixo de muitos documentos, podia-se ler “Pelo prefeito, o secretário-geral”, assinado Maurice Papon.
Tempos depois, quando Slitinsky me enviou seu documento,31 descobri que, no dia 16 de março de 1943, Maurice Papon assinara a transferência de prisioneiros do campo de Mérignac para o campo de Drancy. Meu pai talvez estivesse nesse comboio em direção a Auschwitz.
Minha prisão estava programada para o dia 16 de julho de 1942, mas escapei porque minha mãe me deixara na Assistência Pública. Em 18 de julho de 1942, era ela que partia para Auschwitz.
O pai de Philippe Brenot, médico em Mérignac, me disse que tivera oportunidade de ver um documento do campo no qual estava escrito: “Boris Cyrulnik, 5 anos. Evadido.” É impossível. O arquivo se engana, eu não tinha 5 anos, não fui ao campo de Mérignac a não ser uma vez, para ver meu pai.
Margot, pouco antes de morrer, relatou o episódio em que ela cuidou de mim. Descubro que, antes de me recolher em sua casa, ela me confiou a uma família de Villenave-d’Ornon: nenhuma lembrança. No dia da minha prisão, ela era professora em Coutras: eu não sabia. Depois da minha evasão, foi o casal André e Renée Monzie que cuidou de mim: eu o soube em 1985, durante um congresso sobre linguagem, quando o senhor Monzie pegou o microfone para me contar em público.
Esses momentos cruciais nada deixaram na minha memória. Em compensação, querem que eu conte como Margot me dava torrões de açúcar quando veio me buscar na Assistência? Eu me lembro de que estava de pé encostado nela, para ficar mais perto da caixa que ela tinha no colo. Eu me lembro do gesto que ela fez quando me disse que tinha acabado. Querem outros detalhes? Estão aqui, claros e precisos, inscritos na minha memória. “É próprio do acontecimento traumático resistir à historização.”32 A memória traumática é uma marca imobilizada. Ela não evolui, surge de dia de maneira inopinada, às vezes evocada por um simples sinal percebido no ambiente. De noite, a marca volta sob forma de pesadelos, como a revisão de uma terrível lição que reforça a memória do horror.
O processo de historização é diferente. Ele é intencional, uma vez que deve buscar lembranças, explorar documentos e provocar encontros que nos permitam remanejar a representação do passado, mudar de opinião e de maneira de ver as coisas.
A evidência histórica não é a evidência narrativa. Eu precisava da coerência de meu relato mudo para me ajudar a me dirigir dentro de um mundo hostil. Mas, ao me contarem minha infância, descobri um novo continente. A modificação de relatos culturais modificou meu relato íntimo, eu já não me contava a minha história! Quando o clima se suavizou, as palavras degelaram, pude ouvir de outra maneira meu passado e compartilhá-lo com milhares de confidentes, falar normalmente, de alguma maneira.
É claro, o processo Papon tinha uma intenção pedagógica. As mídias transformaram-se em professores de história, os mudos foram convidados a falar. Eles contaram, testemunharam, esclareceram, modificaram suas memórias feridas. Competia à justiça o papel pedagógico? “Não estariam confundindo o recinto do tribunal com um colóquio ou uma sala de aula de ginásio?”33
Esse processo me pôs pouco à vontade, embora tenha me beneficiado dele. Não senti orgulho por agredirem um homem velho. Seria a lembrança do miliciano lentamente linchado no Grand Hôtel de Bordeaux durante a Libertação, em setembro de 1944? Teria preferido mais nobreza por parte de meus libertadores, um pouco de dignidade por parte daqueles de quem eu me sentia próximo e que tinham condenado Papon antes de julgá-lo.34 Em 1981, não se falava de crimes do governo de Vichy. Em tal contexto, Papon não teve dificuldade em constituir um júri de honra para evocar uma vaga filiação nas Forces Françaises Combattantes (FFC). Nessa época, todos os movimentos sociais se fortaleciam com o conformismo, que sabia provocar indignações coletivas. Em 1933, a maioria dos alemães votou contra o nazismo. Depois, a rotina dos slogans levou esse grande povo, essa bela cultura germânica a se submeter a uma ideologia estúpida: “O prosseguimento mecânico da vida cotidiana serve de obstáculo contra qualquer reação vital à monstruosidade.”35 Primo Levi manifesta a mesma ideia: “Os perigosos são os homens comuns.”36 “A cultura do funcionário público da época é obedecer sem se perguntar.”37 De tempos em tempos, convém programar uma pequena revolta. Todos os funcionários de regimes totalitários aceitam participar do regime, mas regularmente se permitem uma pequena discordância. “Quase todos os altos funcionários do regime de Vichy começam a prestar serviços à Resistência.”38 Contestavam um pouco a ordem de prender as crianças, pediam aos superiores hierárquicos que pusessem palha nos vagões de animais que carregariam os prisioneiros até Drancy e depois para Auschwitz, solicitavam aos chefes que distribuíssem alguns cobertores e algumas caixas de leite condensado às 1.700 pessoas que viajavam para morrer. Tal comportamento é habitual quando as relações hierárquicas exigem da pessoa a submissão a ordens criminosas. Ela obedece porque é funcionária, mas acrescenta uma pitada de revolta para preservar a autoestima. A adaptação permite manter o posto e executar as ordens criminosas sem culpa.
É difícil não adotar tal estratégia. Quando um funcionário se envolve sem criticar, e por vezes até se antecipa às ordens dos carrascos, terá de reconhecer que participou do crime. Quando, ao contrário, se rebela e se arrisca a ser demitido, pode ter de pedir demissão ou refugiar-se na Resistência. Todos os que participaram de um regime criminoso e se adaptaram, submetendo-se para manter o emprego, acrescentavam vez por outra uma ponta de rebelião a fim de não se sentirem culpados e poder dizer: “Eu apenas obedeci.” Maurice Papon fez como muita gente.
Em abril de 1998, data do veredicto, alguns instigadores haviam mudado a cultura. Claude Lanzmann foi um deles quando, no seu filme Shoah, em 1985, denunciou o crime de obediência. Dando a palavra aos criminosos e às testemunhas do genocídio, ele foi mais longe do que o enunciado dos fatos e a leitura dos arquivos. Ele desvelou o mundo íntimo dos criminosos de massa que se sentiam inocentes. No fim do filme, eu achei que se calar era fazer-se cúmplice desses criminosos e seus herdeiros, os negadores.
A era da negação chegava ao fim. A França estava reconstruída, os jovens sabiam que seus pais tinham conhecido uma guerra no passado. De Gaulle já não podia dizer: “Acima de todas essas desgraças, o silêncio e o esquecimento assentam-se melhor do que os choros”, os judeus já não queriam calar-se para não perturbar os outros. Era preciso falar! O contexto cultural, suavizando-se, degelava as palavras. Bousquet já não podia ser inculpado, uma vez que tinha sido abatido de forma idiota.* Restava Papon. Culpado secundário, condenado a dez anos de prisão, sabendo que não os cumpriria, foi repreendido por “quase crime contra a humanidade”.
Muitos amigos meus tinham trabalhado com ele. Falavam muito bem dele. Era trabalhador, confiável, culto e um companheiro agradável. É claro, tinha exagerado um pouco durante a guerra. Excessivamente zeloso, tomara algumas decisões que poderia ter evitado, mas, explicavam, não tinha sido o único, e muitos permaneceram no poder.
A memória de si é fortemente ligada aos contextos sociais. As histórias que contamos dependem da nossa posição social e dos relatos da cultura que nos cerca.39
Para não morrer durante a guerra, tive de me calar, fazer segredo. Depois, para me adaptar à negação cultural dos anos do pós-guerra, tive de falar de forma torta, por alusões, por silêncios que provocavam no meu círculo uma sensação de estranheza. A partir dos anos 1980, cedi com alívio aos convites para falar. O mesmo acontecimento, o mesmo fato social foi inicialmente impossível de contar, depois deformado, e depois revelado segundo os relatos do contexto.
O processo Papon me fez um favor! Na ocasião de sua primeira inculpação, em 1981, quando meu nome apareceu em alguns relatórios e algumas revistas, amigos surpresos me fizeram perguntas. Respondia-lhes com prazer, mas não era fácil, uma vez que eles imaginavam mal o desenrolar dos fatos. Como não tinham nenhum conhecimento da Shoah, suas perguntas eram absurdas: “Uma criança não pode entender o que é a guerra”, afirmava-me amavelmente uma jovem professora de direito. Outra me perguntava ansiosamente o que tinham feito comigo os pedófilos, visto que se falava muito disso na mídia dos anos 1990. Um empresário me explicava com admiração que o fato de eu ter conseguido escapar era prova da minha qualidade biológica superior. Ao final de um júri de tese, uma mulher da plateia me interpelou em voz alta: “Li sua história no livro de Slitinsky:40 como o senhor fez para escapar?” Eu acabara de dizer “adeus” à jovem doutora, apressava-me para pegar meu carro, dispunha de trinta segundos para responder!
Eu não podia criticar esses questionadores atrapalhados, uma vez que, por ter me calado, tinha contribuído para sua ignorância.
Minha infância tornou-se pública quando indiquei Margot para receber a medalha dos Justos em 1997. De temperamento reservado, ela me pediu que organizasse uma cerimônia discreta. Mas seu marido, Georges Lajujie, era pessoa conhecida em Bordeaux, adjunto de Chaban-Delmas, forte personalidade, então a cerimônia não podia passar despercebida. Ao chegar à prefeitura, vi uns vinte ex-combatentes com medalhas e bandeiras, o comitê de Yad-Vashem,41 uma dezena de jornalistas e boa parte do conselho municipal.
A pedido de Margot, respondi vagamente às perguntas, a ponto de alguns erros cometidos ofenderem a pessoas que eu não queria ofender de forma alguma. Então eu intervim para reparar os mal-entendidos, dando assim a impressão de que expunha em praça pública uma infância que eu escondera.
Mas eu a escondera em um contexto que exigia que me calasse. A partir dos anos 1980, quando o contexto cultural mudou graças aos filmes, aos ensaios e aos documentos que relatavam bem, ou não tão bem, a Shoah, fiquei feliz por me deixar levar pelo degelo das palavras. Por isso fiquei surpreso ao não ser convidado a testemunhar no processo de Papon. A citação do meu nome foi, ao que parece, seguida de um longo silêncio. Depois se passou a outra questão.
Eu acreditava ter sido o único que sobrevivera à prisão em massa de 10 de janeiro de 1944. Achava que a mulher moribunda em cima de mim não conseguira sobreviver, não tivera acesso aos arquivos (minha negação não me estimulara a pesquisar).
Há alguns meses, Michel Achouker me telefonou: “Tenho a sua idade, estava preso com você na sinagoga de Bordeaux. Quer se encontrar comigo?”
Por que pedi a Yoram Mouchenik42 que assistisse ao encontro? Esse jovem universitário refletia sobre a psicologia das crianças escondidas, eu o lera com interesse. Eu ia poder conhecer meu único colega sobrevivente. Escrevendo estas linhas, descubro que, inconscientemente, pedi a Yoram que fosse comigo porque temia que não me acreditassem, mais uma vez! Toda vez que deixara escapar um fragmento de testemunho, tinha provocado a dúvida, a incredulidade.
Yoram foi, e nós conversamos alegremente com Michel. Vocês leram direito “alegremente”, é o único meio de falar disso. Nos anos anteriores à guerra, o pai de Michel era médico no bairro de Faubourg-Poissonière. Comprara um velho imóvel que reformara empregando operários turcos. Quando a guerra explodiu, achou que Paris se tornara perigosa e mandou o filho para a casa de um amigo padre, em Bordeaux. Foi na casa dele que a criança foi presa. Nós tínhamos exatamente as mesmas lembranças da sinagoga: a seleção na chegada, os arames farpados no meio do templo, os prisioneiros deitados no chão, a brutalidade dos soldados. Tinha ficado em cima do cobertor, tranquilizado pela mulher e pelas caixas de leite condensado. Fora transferido para Drancy nos vagões de animais. Seu destino estava traçado.
Foi então que um operário de seu pai, requisitado para fazer reparos no espaço que servia de prisão entre os edifícios, reconheceu o filho de seu patrão. Ele pegou o menino pela mão, aproximou-se de um guarda e disse: “Este menino não é judeu. É meu filho. Ele é muçulmano.” “Então”, disse o guarda, “se é seu filho, leve-o.”
Michel, que se tornou médico, explicou-me as dificuldades que também ele tivera para contar tudo isso. Por isso, quando o processo foi aberto em Bordeaux em 1997, ele pedira para testemunhar. Responderam que não precisavam dele.
Eu não sabia, nessa data, que a mulher moribunda em cima de mim não havia morrido. Soube depois que ela também não fora chamada a testemunhar. Contudo, abalara-se com os relatos que ouvia, que despertavam o trauma reprimido.43
Cinquenta anos depois da guerra ainda nos faziam calar! Mas o clima se suavizava, as palavras degelavam e os jovens começavam a se interessar pela Shoah, como quem se interessa por uma tragédia antiga. Continuava difícil falar, porque é complicado integrar um acontecimento anormal em uma representação lógica. Mal uma tragédia é enunciada, já é envolvida pelos estereótipos do contexto.
Em 1985, fui convidado para o NIMH de San Diego, nos Estados Unidos,44 na companhia de Jean-Didier Vincent, o reputado neurobiologista. Ao final da guerra, estávamos na mesma escola, a do senhor Lafaye. O pai dele, figura importante da Resistência bordelesa, desempenhara papel fundamental na libertação de Castillon. Uma noite, em torno de uma mesa onde relatávamos nossas infâncias camponesas, ele disse sem se dirigir especificamente a ninguém: “Você, Boris, foi jogado pela janela de um trem. Foi assim que conseguiu escapar dos campos.” Respondi que, com efeito, eu evitara a morte por pouco, mas que não tinha sido jogado pela janela de um trem. Ninguém fez perguntas. Rimos de outras coisas.
Jean-Didier sabia provavelmente que eu tinha sido escondido pelo senhor Lafaye, pois ele também era aluno. Seu pai, a família ou as pessoas de Castillon devem ter falado a respeito. Depois, em cima dessa verdade parcial, ele calcou um estereótipo cultural, uma imagem de filme provavelmente, na qual se vê uma mãe atirar um bebê pela janela de um “trem da morte”. Como frequentemente fazemos, ele condensou duas fontes diferentes de sua memória: uma fala familiar e uma imagem convencional.
Depois do processo Papon, encontrei muita gente que me contou a infância. Georges Gheldman descobriu o arquivo, o documento oficial do comboio nº- 7 que enviou para a morte sua mãe e a minha no mesmo vagão.
A senhora Yvette Moch me escreveu uma carta dizendo que me vira fugir. Ela entrara na sinagoga graças a um avental de enfermeira da Cruz Vermelha para tentar salvar o pai, como testemunhou no processo Papon. Porém, esclarece, “assisti à sua ‘evasão’ sob a capa protetora da enfermeira”.45 Por que ela põe entre aspas “evasão”? Poderia tratar-se de outra coisa? Mas depois, quando falei sobre isso com a senhora Descoubès, nós dois concordamos claramente: nunca estive sob a capa da enfermeira. A senhora Moch, durante sua corajosa incursão dentro da sinagoga, deve ter me visto sozinho ou tentando me evadir, pois eu fiz diversas tentativas antes da que foi bem-sucedida.
Muita gente, falando da minha evasão, evocou a imagem ajustada da capa da enfermeira. Algumas pessoas, com fantasias mais ousadas, chegaram a afirmar que eu me escondera sob a saia da enfermeira. Elas fizeram a condensação das lembranças que leva a uma lógica abusiva: nós vimos três pés de uma mesa, mas na lembrança vemos os quatro pés da mesma mesa. É uma representação lógica, ainda que, na realidade, a mesa se sustentasse sobre três pés.
A memória traumática é uma lembrança fixa que se repete continuamente. É uma parada da história, uma memória morta. Mas, quando podemos compartilhar a lembrança de uma provação passada, a memória torna-se outra vez viva. Então nos surpreendemos com os rearranjos que deram coerência à representação de uma realidade louca, fazemos evoluir a lembrança. Vemos as coisas de outra forma quando o ambiente cria locais específicos para falar.
Meu contexto não degelara em 1967, quando conheci Pierre Marty. Eu era um médico recém-formado em neurocirurgia no hospital Pitié, quando, uma manhã, por volta das 8 horas, os padioleiros assoberbados depositaram no chão uma mulher multifraturada. É um momento de grande atividade em um serviço hospitalar: os médicos assumem seus postos, as enfermeiras passam as instruções, lava-se o chão, prepara-se a visita, há gente apressada constantemente passando por cima da mulher ferida.
A encarregada me diz que não podemos deixar a mulher deitada na maca, vamos abrir uma sala de consulta e colocar a ferida em um leito de exame – o que foi rapidamente feito. Assim que o médico chega, explicam-lhe a situação e ele senta-se na poltrona para esperar que o exame termine. Enquanto nós nos atarefamos em volta da ferida, fazendo-lhe perguntas, passando instruções uns aos outros, a enfermeira me chama pelo nome: “Senhor Cyrulnik, quer que solicitemos tal exame?” Ao ouvir meu nome, o médico sobressalta-se, e enquanto examino a ferida ele vem me olhar no rosto: é de fato a expressão correta: “no rosto”. Ao final do exame, quando a calma voltou, ele aponta o dedo para mim e diz: “Seu pai se chamava Aaron.” Como ele podia saber que era esse o nome do meu pai? Espantado e feliz, confirmei e perguntei como podia saber o nome dele: “Antes da guerra, nós militamos juntos em um movimento antifascista.” Eu acabara de encontrar alguém que podia falar de meu pai e me dizer como ele era na vida real, e não somente num papel, numa cruz de guerra e numa certidão de desaparecimento em Auschwitz.
Os pacientes chegavam. Ele me deu seu cartão e me pediu que fosse visitá-lo. Li: “Pierre Marty, psicanalista, boulevard Saint-Germain.”46
Jamais fui vê-lo.
Tinha a impressão de que, se falasse com ele sobre a morte de meu pai, acabaria expondo a perda da minha família... O que eu faria com todos os desaparecimentos, as perdas sem luto? Teria enchido a cripta da minha alma com lembranças de que ninguém naquela época queria ouvir falar? De que adianta fazer reviver um sofrimento com o qual não se pode fazer nada? A negação me protegia a um preço humano muito elevado.
Se fosse hoje, eu iria procurá-lo e sentiria alegria em conhecer minha família desaparecida, como fiz com Dora quando ela finalmente pôde falar de sua infância e da guerra, poucos anos antes de morrer. Ela também sentiu prazer em abrir sua cripta quando a cultura lhe deu a possibilidade de expressar-se tranquilamente.
Nathalie Zajde, de volta à França (1988), trouxe sua experiência americana com o objetivo de compreender o que um trauma transmite através das gerações. Ao fazer parte de sua banca de tese, ela me fez descobrir que o não dito protetor podia alterar as relações.47
Jacques Chirac, ao reconhecer em 1995 o crime do governo de Vichy, alterou profundamente a maneira de pensar o genocídio. Vocês vão ficar surpresos, mas eu acho que, quando Maurice Papon em 1998 foi repreendido por “quase crime contra a humanidade”, ele colaborou com essa evolução! Não era o que ele pretendia, mas não era o homem que se estava julgando, era o mistério de um sistema social que permitira aos dirigentes apor ao final de uma folha de papel uma assinatura que mandava para a morte 1.600 pessoas inocentes e depois voltar para casa com a consciência de trabalho bem-feito e a promessa de uma bela carreira.
A França dessa época era povoada de várias centenas de pequenos Papons. Era preciso condená-los: um a dez dias de prisão por ter dirigido o ônibus que levava ao trem da morte, outro a uma multa por ter datilografado a lista dos que deveriam ser detidos?
Não estou falando dos que se engajaram nas Waffen SS ou na milícia;48 esses combatiam e aceitavam o risco de morrer. Não estou falando dos milhares de cartas de denúncia nas quais o autor mandava para a morte o próprio patrão a fim de ficar com sua loja no programa de arianização dos bens dos judeus, ou de quem denunciava a condição judaica do professor de medicina a fim de liberar um posto na universidade.49 Estes foram soldados ou delinquentes, e a lei se aplica a eles. O que me espanta é a inacreditável submissão de certos homens, capazes de matar simplesmente para obedecer.50
Os judeus que chegaram à França nos anos 1930 acreditavam chegar ao país da cultura e dos direitos do homem, onde a condição humana era tão bela que Deus mesmo tinha orgulho de suas obras. Eles não suspeitavam a que ponto o antissemitismo dominava os relatos. Gobineau e Drumont, ao final do século XIX, já preparavam a opinião pública ao expor a necessidade do racismo.51 Os romances, filmes, peças de teatro, exposições, os jornais e sobretudo as expressões antissemitas da linguagem de todos os dias estruturavam esse movimento cultural.52 A França apaixonada por Pétain não ficou chocada com a lei sobre o status dos judeus que, em 1940, os privava do direito ao trabalho e à proteção. Ela recitava Maurras nessa época, extasiava-se, como ele, com a “obediência serena”, cantando alegremente: “Eis-nos, Marechal, diante de ti, o Salvador da França”, e o perigo da judeidade era denunciado: “Se a escola acolhe um judeu, ele saberá a língua d’oc melhor do que nós. Se aceitarmos esse judeu excelente... estaremos pondo-nos antecipadamente em má situação.”53 Na verdade, o pretexto da legítima defesa servia para legitimar a agressão aos judeus.
A transformação da opinião pública se deu, sem transição, depois da lei sobre o porte da estrela, em 1942. De repente, a representação dos judeus metamorfoseou-se. Já não era possível submeter-se à imagem do judeu de nariz e dedos recurvados para melhor se apropriar do ouro dos bem-pensantes. Os judeus se tornavam pessoas comuns: senhor Blumen, o louro professor de matemática, senhor Cohen, o alfaiate de nariz reto, ou Lévi, o músico de mãos longas. Essas pessoas reais já não eram suporte de fantasias persecutórias. A França cristã, mudando de representação graças ao porte da estrela amarela, voou em socorro dos judeus. O mesmo fenômeno aconteceu nos Países Baixos: assim que o porte da estrela amarela, com a inscrição Jood, foi tornada obrigatória em abril de 1943, a população protegeu os judeus. Este fenômeno não aconteceu na Alemanha ou em outros países da Europa central, porque a marcação foi decidida quando a exterminação já estava concluída.
O processo Papon não julgou um homem. Os que colaboraram já tinham respondido em 1945, na ocasião dos 300 mil dossiês abertos: 125 mil foram condenados, dos quais 25 mil funcionários públicos (de um total de 700 mil). Houve até 12 mil fuzilados. Quanto aos responsáveis administrativos, colaboradores econômicos e científicos, foram tratados com bastante indulgência. Os subalternos pagaram, como de hábito.54
O processo não teve o efeito pedagógico esperado: 82% dos sondados aprenderam pouca coisa sobre o período da ocupação. E 62%, ao final do processo, tinham ideias menos claras sobre o papel de Papon durante a guerra.55
Os historiadores, convocados ao tribunal para dizer “a verdade, somente a verdade...”, não se sentiram à altura daquela missão. Alguns recusaram, como Pierre Vidal-Naquet, Michel Rajsfus e Henry Rousso. Outros aceitaram, com a condição de serem considerados simplesmente experts, auxiliares da justiça, e não garantidores da verdade.56
Contudo, apesar dessas reservas, o processo mudou nossa cultura. Hoje já não se julga a colaboração da mesma maneira que em 1945. Depois da guerra, pensava-se que aqueles aproveitadores tinham armas na mão. Sessenta anos depois, nós nos indignamos com a frieza e a tecnicidade de seus crimes racistas. O efeito pedagógico foi retardado. Foi preciso que os historiadores, filósofos, testemunhas e artistas elaborassem os fatos levantados pelo processo para que nossa cultura aprendesse a falar deles.
Eu me beneficiei bastante com esse processo que me perturbou. Quase todo o mundo falava dele com curiosidade e às vezes indignação. Eu ouvia: “Não vale a pena julgar Papon, é preciso abatê-lo imediatamente.” Ao que outros respondiam: “Ele não é culpado de nada, deve ser libertado.”
Enfim, falava-se!
Pessoas me fizeram perguntas, interessaram-se, admiraram-se, maravilharam-se, compadeceram-se: minha cripta já não tinha razão de existir, uma vez que me davam a palavra. Pude contar, nessa ocasião, quando me vinha à cabeça, duas ou três coisas sobre a ruptura da minha infância e sobre minhas tentativas de existência. Expressando-me, eu me tornava como todo mundo. É estranho escrever isso, pois calar provocava em mim um sentimento de mal-estar tanto quanto falar. Mesmo expressando-me, eu não era como todo mundo. Como responder a “As pessoas que o protegeram abusaram de você? Os Justos que não foram deportados colaboraram? Você perdoou?”.
Nem ódio, nem perdão.
Ninguém pediu meu perdão, salvo talvez os jovens alemães que se sentem ainda culpados dos crimes de seus avós. Por que me pedem perdão? Quando um homem viola uma mulher, o filho dele não é posto na cadeia.
Todas as religiões pedem perdão por um mal intencional ou involuntário feito ao próximo. Os judeus têm o Yom Kipur (Dia do Perdão). Os ortodoxos pedem perdão uns aos outros, telefonam-se e convidam-se para jantar. O Corão ensina que “uma palavra agradável e um perdão valem mais do que uma esmola” (surata 2, 163).
Não sentimos necessidade de conceder perdão à catástrofe natural que queimou nossas florestas ou inundou nossas colheitas. Não temos ódio de um fenômeno da natureza, desconfiamos dele, só isso. E, para nos preservarmos no futuro, procuramos compreendê-lo para melhor controlá-lo. É diferente da identificação com o agressor de algumas vítimas que invejam o lugar do carrasco. Identifica-se o agressor, como o camponês arruinado por um jorro de lava que se torna especialista em vulcões.
É um pouco o que sinto quando penso no nazismo e no racismo. Esses homens se submeteram a uma representação cortada da realidade. Não suportavam a ideia que faziam a respeito dos outros: morte aos parasitas, aos judeus, aos árabes, aos auvérnios e aos zazous. Passaram ao ato para obedecer a uma representação absurda. A submissão que os unia lhes dava uma estranha sensação de força: “Nosso chefe venerado é poderoso graças à nossa obediência.”
A escolha não é, portanto, entre punir ou perdoar, mas entre compreender para ganhar um pouco de liberdade ou submeter-se para vivenciar a felicidade na servidão.57 Odiar é permanecer prisioneiro do passado. Para livrar-se, é melhor compreender do que perdoar.