10.

Bruxaria neopagã: o movimento

Quer Gerald Gardner tenha descoberto a religião da bruxaria, quer ele a tenha inventado, não pode haver dúvida de que foi ele que a tornou pública e a promoveu – e que o fez com grande entusiasmo. Por volta de 1949 (o ano em que ele publicou seu “romance”, High magic’s aid), Gardner já havia acumulado um conjunto de textos para rituais e comentários que se tornaria o núcleo da emergente religião das bruxas. Já em 1950, Gardner estava difundindo informações a respeito disso entre – e por meio de – seus conhecidos que se dedicavam ao ocultismo em Londres. Em 1952 (o ano em que as leis contra a bruxaria foram abolidas), Gardner apresentava a bruxaria – e a si mesmo – aos olhos do público ao escrever uma série de destacados artigos sobre essa temática para uma revista semanal de caráter popular. Segundo as palavras de Hutton: “Wicca foi uma tradição que começou com a corda toda”.1

Gardner estava convencido desde o início de que a publicidade era a chave para a sobrevivência da Wicca. Também tinha plena consciência de que a publicidade era uma faca de dois gumes (considerada a reputação infame da bruxaria), com um potencial bastante concreto para provocar um sensacionalismo que lhe poderia sair pela culatra. Entretanto, como Gardner era rico e independente, acreditava que poderia ser um porta-voz altamente persuasivo e suportar as reações, permitindo aos demais, deste modo, permanecer no anonimato.

Ele subestimava seriamente a agitação que provocaria. O interesse jornalístico na bruxaria de Gardner, inicialmente respeitoso e cheio de curiosidade, rapidamente se tornou escandaloso e histérico, com manchetes estampando, entre outras coisas, “Adoração ao diabo pelas bruxas em Lon­­dres!”. Alguns membros de seu coven ficaram tão assustados pelo furor provocado, que suspenderam toda e qualquer participação futura; muitos dos que permaneceram adquiriram uma aversão permanente pelas atenções da mídia. Mas como Gardner continuava a pressionar por mais publicidade, acabou polarizando a oposição dentro de seu próprio grupo, espalhando assim as sementes do primeiro grande cisma, que ocorreria um pouco mais tarde, dentro do movimento que ele mesmo estava construindo.


Doreen Valiente, “a avó da bruxaria moderna”, retratada aqui em 1962, cinco anos antes de seu rompimento com Gerald Gardner. Valiente seguiu em frente para se tornar uma das mais destacadas expoentes da bruxaria independente na Grã-Bretanha, até sua morte, em 1999.


Mas Gardner perseguia a luz dos holofotes por uma boa razão: propagar as notícias sobre sua nova religião e, desse modo, atrair novos adeptos; e sua campanha obteve sucesso por esses motivos. Entre aqueles que foram atraídos por essa publicidade estava uma jovem que viria a exercer um papel preponderante no desenvolvimento da bruxaria moderna, Doreen Valiente. A sra. Valiente era dotada de uma mente arguta, de uma curiosidade intelectual profunda, de uma forte personalidade e de uma capacidade criativa que quase chegava a ser um dom poético. Ela leu os artigos sobre bruxaria publicados nas revistas e escreveu em busca de maiores informações; sua carta foi finalmente entregue a Gardner, que primeiro entrevistou-se com ela e mais tarde a iniciou na Wicca, no Solstício de Verão de 1953.

A releitura da Wicca: de Doreen Valiente a Alex Sanders

O relacionamento entre Gardner e Valiente demonstrou ser crucial não somente para eles dois, mas também para a futura direção do movimento da bruxaria. Valiente ingressou no próprio coven de Gardner e logo se tornou sua suma sacerdotisa. Quando Gardner a conheceu, estava no processo de escrever A bruxaria hoje, e começou a utilizar os dons poéticos de Valiente imediatamente, fazendo com que ela compusesse uma invocação para uma celebração de Solstício de Inverno. Sua composição, o poema Queen of the Moon, Queen of the Stars, foi incluída no livro de Gardner (e nas atividades correntes da Wicca) como um ritual “tradicional” das bruxas.

Dessa e de outras maneiras Valiente apoiou os esforços de Gardner para afirmar a antiguidade de sua religião (embora ela mesma pareça ter tido dúvidas a respeito de tais alegações); prosseguiu nesse propósito até mesmo quando Gardner, um pouco mais tarde, a apresentou a jornalistas como membro de uma das tradicionais famílias de bruxas sobre as quais ele havia escrito em seu livro.2 Mas ela era menos tolerante com os embustes de Gardner quando estes interferiam em seu conhecimento pessoal. Estava suficientemente familiarizada com outros ensinamentos ocultos para reconhecer que parte do material supostamente “tradicional” atribuído à Wicca no livro Book of shadows, de Gardner, tinha sido tomado de empréstimo de fontes que ela era capaz de identificar – em particular, de livros escritos por Aleister Crowley. Valiente temia que a reputação sórdida e sinistra de Crowley transbordasse e contaminasse qualquer coisa que pudesse ser associada a ele; em um ousado ato de confrontação, Valiente, a discípula, desafiou Gardner, o mestre, condenando seu uso do material de Crowley. Gardner racionalizou que as “tradições” que havia descoberto eram apenas fragmentárias, e que se vira forçado a preencher as partes que lhe faltavam da melhor maneira possível, acrescentando: ... se você acha que pode fazer alguma coisa melhor, vá em frente”.3

Valiente aceitou o desafio com entusiasmo. Tomou o Book of shadows de Gardner (que ainda se achava em processo de compilação), extraiu sistematicamente todas as influências de Crowley e reescreveu os materiais restantes de forma a se enquadrarem em um sistema de crenças e práticas poeticamente eloquente, que se tornou a base para aquilo que conhecemos modernamente como “Wicca Gardneriana”. Somente por essa contribuição, ela foi chamada de “a avó da bruxaria”. Atualmente, os seguidores da bruxaria moderna por todo o mundo recitam sua prosa e sua poesia como parte de seus cerimoniais, especialmente o texto conhecido como Charge of the goddess, que contém a famosa linha evocativa: “Que minha adoração se encontre no coração de quem se regozija, pois vede, todos os atos de amor e de prazer são meus rituais”.

Foi também Valiente quem abriu as portas para as ideias de Robert Graves e estabeleceu um liame com a literatura e a história celtas – ajudando, deste modo, a modelar a “personalidade” espiritual que caracterizaria a Wicca Gardneriana (e, efetivamente, a bruxaria moderna em geral). Hoje, a Wicca é normalmente apresentada como céltica em origem e conteúdo, e abraça fortemente os elementos da mitologia e do simbolismo celtas – mesmo que exista pouca evidência de qualquer influência celta sobre a obra do próprio Gardner. Mas Gardner tinha associado sua “descoberta” da Wicca à teoria de Murray sobre uma sobrevivência do paganismo britânico, e quando Valiente começou a reescrever o Book of shadows não apenas eliminou os traços que evidenciavam a influência de Crowley, mas também os substituiu por materiais que remodelavam a Wicca à imagem e semelhança daquela antiga (e também imaginária) religião britânica. Para obter esse resultado, ela se abeberou em fontes célticas, incluindo a Carmina gadelica – uma coletânea de folclore baseado em fontes celtas –, a fim de nutrir sua inspiração ao reescrever The charge of the goddess e alguns outros roteiros para rituais.

Sabina Magliocco sugere que a temática celta capturou a imaginação dos primeiros gardnerianos em parte por razões políticas: Gardner tinha incorporado motivos greco-romanos em seu material da Wicca, mas uma vez que a Grã-Bretanha tinha estado tão recentemente sob ameaça de uma invasão fascista, pode ter parecido mais apropriado enfatizar tradições que eram nativas e baseadas em fontes britânicas.4 Seja qual for a razão, tornou-se um pressuposto comum (e assim permanece até hoje) que o paganismo do qual derivou a bruxaria fosse de origem céltica.

Durante quatro anos Gardner e Valiente formaram uma aliança intensamente criativa que alterou tanto a forma como o conteúdo da Wicca e ajudou a estabelecer o curso do movimento da bruxaria moderna. Mas essa parceria não deveria durar por muito tempo. A publicação de A bruxaria hoje, em 1954, produziu uma afluência constante de novos iniciados à Wicca em meados da década de 1950, mas a política de Gardner de buscar publicidade na mídia continuou a gerar tensão e controvérsia dentro do grupo. Valiente e alguns dos membros mais antigos, em razão de seus próprios embates com o frenesi dos meios de comunicação, acreditavam que seu movimento deveria manter uma posição discreta em relação à imprensa, enfatizando formas de autoapresentação (tais como livros) sobre as quais teriam maior controle. Os membros mais recentes, tendo sido atraídos para a Wicca justamente pela publicidade que vinha sendo questionada, tendiam a apoiar mais o ativismo midiático de Gardner.


Alex Sanders em um sabá, dirigindo uma dança ritual que é frequentemente executada skyclad (com os participantes nus, ou “vestidos de céu”) para diminuir inibições que possam impedir o fluxo do poder mágico.


A cisão final ocorreu em 1957. Depois de Gardner ter elaborado uma série de artigos, tidos um após outro como absurdos e caluniosos, Valiente e alguns dos outros redigiram treze “Regras Propostas para a Arte”, a fim de proteger seu sigilo e promover consultas mútuas; em resumo, as “Regras” propostas tinham o efeito prático de impor coletivamente limites às atividades de Gardner na busca por publicidade. Gardner retorquiu que essas propostas eram desnecessárias, uma vez que um conjunto de “Leis Tradicionais da Arte” – que ele apresentou imediatamente – já existia. Mas Valiente questionou o motivo pelo qual tais leis supostamente “tradicionais” estavam sendo expostas agora pela primeira vez, também observando que as “Leis de Gardner” limitavam severamente seus poderes como suma sacerdotisa e, desse modo, rejeitou-as como uma invenção moderna. Ela, acompanhada por outros que compartilhavam seus sentimentos, simplesmente abandonou o coven e seguiu um caminho em separado. Em suas próprias palavras:


Nós já havíamos estudado suficientemente o ‘Evangelho segundo São Gerald’, mas ainda acreditávamos que a verdadeira bruxaria tradicional havia sobrevivido... A Antiga Religião significava muito para nós, e não havíamos parado de acreditar em sua beleza, em sua magia e em seu poder. Nossa separação de Gerald significou simplesmente que a busca prosseguia.5


Gardner havia transformado Valiente em uma adepta fervorosa da bruxaria, e ela não perdeu a fé nessa crença simplesmente porque havia perdido a fé nele. Valiente seguiu em frente até tornar-se uma das principais líderes da bruxaria independente na Grã-Bretanha, até sua morte, em 1999.

A partida de Valiente encerrou a fase de desenvolvimento criativo que sua parceria com Gardner havia tornado possível. Ao mesmo tempo, isso abriu uma nova fase de atividade literária para Gardner, que publicou O significado da bruxaria em 1959. Também originou uma nova fase de crescimento para o movimento inteiro, apoiada, em parte, na cooptação do tipo de atenção que Valiente tinha justamente buscado evitar. Agora, sem qualquer resistência contra sua estratégia de divulgação na mídia e impelido pela publicidade gerada por seu novo livro, Gardner passou a aparecer regularmente na imprensa, e o gradativo aumento de sua notoriedade levou um número crescente de pessoas a contatá-lo em busca de iniciação na Wicca. Durante os anos finais de sua vida (de 1959 a 1964), Gardner iniciou e treinou pessoas para agirem como propagadoras e como propagandistas de sua doutrina, levando a Wicca Gardneriana a todas as partes da Grã-Bretanha e apresentando-a ao público, de forma bem-sucedida, como a versão autêntica da bruxaria.

Mas o sucesso dos gardnerianos não foi obtido sem antes ter de enfrentar um desafio. A alegação de Gardner de que havia descoberto os vestígios de uma religião preexistente na área de New Forest significava que poderiam existir outras remanescências em outros locais. Durante a década de 1960, e especialmente após a morte de Gardner em 1964, muitas pessoas vieram a público alegando representar exatamente essas “tradições independentes”. Nenhuma dessas afirmações pôde ser confirmada (e diversas se demonstraram fraudulentas), mas algumas das pessoas que assim se declararam acabaram exercendo um papel importante na configuração do desenvolvimento inicial do movimento da bruxaria. Um deles, em particular, alcançou grande sucesso ao estabelecer um novo ramo do movimento, fundamentado em sua forma pessoal e idiossincrática da bruxaria: Alex Sanders, segundo todos os relatos, foi um homem carismático, extravagante e dotado de dons psíquicos, que alegava descender de uma família tradicional de bruxos. Ele havia pedido para ser iniciado por uma das principais sacerdotisas gardnerianas, mas foi recusado – uma rejeição que ele nunca aceitou, tampouco esqueceu. Foi finalmente iniciado em um outro coven, por uma outra suma sacerdotisa, e de algum modo conseguiu uma versão do Book of shadows, de Gardner, que ele editou, floreou e reorganizou, afirmando que o resultado final era de fato o “Livro das sombras” de sua própria família, que lhe fora entregue como herança por sua avó. Esse material, por sua vez, se tornou a base sobre a qual ele finalmente fundou uma série de seus próprios covens e uma “tradição” de bruxaria (chamada “Bruxaria Alexandrina”), que se tornaria uma alternativa vigorosa à Wicca Gardneriana, particularmente no continente europeu.


Dirk Dykstra, Casal de bruxos, ilustra o moderno conceito bruxo de união sexual. A mulher segura no alto uma taça simbolizando a receptividade feminina, mas segura na mão esquerda o athame, ou punhal, sinal de que traços masculinos também existem em sua natureza. O homem ostenta o simbolismo oposto. A união entre os sexos gera paz e poder.


Sanders era um showman nato com um dom para a publicidade, mas sua primeira incursão no mundo das relações com a mídia terminou de forma desastrosa, quando se tornou o foco de um artigo de jornal tão negativo e sensacionalista que fez com que perdesse seu emprego e adquirisse a inimizade permanente de proeminentes bruxos gardnerianos. Apesar de seu começo infeliz, Sanders perseverou em sua estratégia para obter o apoio da imprensa e retornou aos olhos do público em 1967, quando se casou com Maxine Morris, uma jovem de grande beleza, vinte anos mais moça do que ele, em um “casamento wiccano” de grande repercussão. Sanders também fez de Maxine sua suma sacerdotisa, e ambos se mudaram para Londres, onde assumiram os títulos de “rei e rainha dos bruxos”. Sanders logo se envolveu em uma guerra publicitária com os gardnerianos, os quais menosprezava como sendo seguidores de um culto moderno e inventado (em que pese o fato de ele ter tomado de empréstimo de Gardner boa parte de seu próprio material); também apresentou sua versão da bruxaria como artigo genuíno, declarando haver sido iniciado nessa arte por sua avó. Com a impetuosidade extravagante de Alex, a beleza de Maxine e a dramaticidade de seus novos títulos (mais sua disposição em permitir que eles mesmos e seus seguidores fossem fotografados skyclad, isto é, completamente nus), o casal logo suplantou os gardnerianos como autoridades favoritas da mídia no tocante ao tema da bruxaria durante os anos da contracultura na Grã-Bretanha, entre o final da década de 1960 e início da de 1970.


Dirk Dykstra, Wiccaning. A cerimônia Wiccaning é o equivalente bruxo à crisma cristã. Observe os símbolos: a lua e os chifres de poder, a vela e os cordões ou cíngulos.


Alex e Maxine continuaram a “governar” como “rei e rainha dos bruxos” até 1973, quando se separaram e cada um seguiu seu próprio caminho (embora ambos continuassem a promover e a praticar a Arte). Alex retirou-se da vida pública, mas seguiu trabalhando com o intuito de desenvolver ainda mais a “Bruxaria Alexandrina”; também se dedicou à iniciação e treinamento de novos bruxos, particularmente na Europa Continental. Na ocasião de sua morte, em 1988, a forma de bruxaria que ele havia criado tinha se estabelecido em toda Grã-Bretanha e Irlanda, constituído uma base forte no continente e, inquestionavelmente, havia assegurado sua existência continuada como um ramo reconhecido do movimento mais amplo da bruxaria.

Sanders mudou a face da bruxaria moderna em aspectos importantes. Embora apresentasse seu sistema como uma alternativa independente e autônoma, destinada a competir com a Wicca Gardneriana, muitas de suas inovações foram adotadas por outros bruxos – inclusive gardnerianos – e integradas em suas práticas. A principal influência de Sanders sobre a bruxaria foi difundir tanto sua definição como sua demografia. Consoante à natureza de suas afirmações, ele expandiu a percepção do público sobre a bruxaria muito além das fronteiras estabelecidas por Gardner e seus seguidores. E ainda ampliou o conteúdo e a adesão ao movimento. “Alex trouxe para a Wicca uma boa parte da magia tradicionalmente consagrada pela Cabala, pelo tarô e pela Ordem Hermética da Aurora Dourada, que outros ramos dela haviam deliberadamente mantido afastados”.6 A Wicca Gardneriana também “excluía deliberadamente” os homossexuais; o próprio Gardner havia enfatizado a importância da polaridade masculino/feminina dentro da Wicca, o que significou a adoção de uma postura ativamente contra-homossexual no interior do seu sistema. Mas Sanders, ele próprio bissexual, trabalhou durante seus últimos anos para desenvolver formas de ritual que tornassem a bruxaria mais acessível e atraente para os homossexuais masculinos – uma conexão que rendeu bons dividendos para o movimento, especialmente nos Estados Unidos.

O florescimento da diversidade: a bruxaria nos Estados Unidos

À medida que a Wicca Gardneriana e suas variantes (como a “Bruxaria Alexandrina”) começaram a se difundir além de suas origens britânicas, viajaram muito rapidamente para outras partes do antigo Império Britânico – especialmente para os Estados Unidos e a Austrália. Na Austrália, a bruxaria encontrou um ambiente social receptivo em razão da familiaridade e da presença ancestral da cultura aborígine, com suas crenças e rituais “pagãos” (isto é, não cristãos). Os elementos aborígines também forneceram matéria-prima acessível para os bruxos de mentalidade eclética; a bruxaria importada da Grã-Bretanha prontamente se misturou à ampla variedade do neopaganismo nativo.

Foi nos Estados Unidos, porém, que o movimento da bruxaria conheceu seu maior crescimento, alcançou sua maior influência e sofreu suas maiores diversificações. O movimento convergiu de maneira singular com uma série de poderosas tendências culturais em uma maré que o conduziu às raias da aceitação geral. E à medida que a bruxaria “vai se estabelecendo”, os bruxos americanos passam a utilizar essa condição para interligar sua religião com o movimento ecumênico internacional – uma conexão que ajudou a bruxaria a obter aprovação mundial como expressão religiosa plenamente legítima.

A sociedade norte-americana sempre demonstrou uma notável abertura a cismas e inovações religiosas desde que os peregrinos dissidentes desembarcaram na área de Plymouth Rock em 1620, como refugiados do establishment eclesiástico inglês. As novas terras rapidamente adquiriram fama de oferecer oportunidade e liberdade religiosa, fato que se transformou em uma faceta permanente do caráter nacional dos Estados Unidos. Nos séculos que se seguiram, um verdadeiro exército de novas religiões (ou novas seitas de velhas religiões) chegou ou surgiu para encontrar acolhimento entre os norte-americanos, desde os quakers, os shakers e os mórmons até os muçulmanos negros da Nação do Islã e cientologistas modernos. Alguns desses ramos obtiveram sucesso, outros fracassaram. Mas timing é tudo, e a bruxaria moderna chegou à América do Norte justo a tempo de coincidir com a agitação da contracultura dos anos 1960 – e com algumas das outras tendências e movimentos que brotaram daquela década tumultuada. O sucesso crescente da bruxaria foi ainda mais destacado pelos avanços na tecnologia das comunicações e pelas tendências demonstradas nas ­áreas da cultura popular e do entretenimento. O resultado foi dar à bruxaria norte-americana uma presença social, cultural e espiritual que se torna progressivamente mais robusta e cada vez mais global em seu âmbito.


Raymond Buckland chegou a Long Island, Nova York, em 1962, com uma “autorização” dos gardnerianos britânicos para transmitir a Arte nos Estados Unidos. Posteriormente, se afastou dos preceitos de Gardner para criar sua própria tradição independente, denominada por ele Seax ou Saxon Wicca.


A bruxaria organizada nos Estados Unidos começou em 1962, quando Raymond e Rosemary Buckland introduziram a Wicca a partir da Inglaterra, em Long Island, Nova York, com uma “autorização” explícita dos gardnerianos britânicos para transmitir a Arte nesse país. No decorrer da década seguinte, seu trabalho foi favorecido pela difusão das informações a respeito da Wicca por meio dos livros de Gardner e, finalmente, também por meio da publicação dos escritos de outros bruxos britânicos (como o livro de Stewart Farrar, What witches do, publicado em 1971). Ao mesmo tempo, a bruxaria vinha atraindo a atenção favorável da contracultura norte-americana, cujos participantes consideraram a “identidade opositiva” da Wicca afinada com sua própria rejeição à corrente dominante na sociedade, expressa em seu lema: turn on, tune in, and drop out [“se ligue, sintonize e caia fora”]. Mas a contracultura também era ecleticamente criativa, anarquicamente individualista e totalmente anti-hierárquica – um conjunto de qualidades que se encaixava muito mal no tradicionalismo, na estrutura e no elitismo iniciático dos gardnerianos. Antes que decorresse muito tempo, os norte-americanos começaram a misturar o material wiccano com ideias retiradas de outras fontes, incluindo inspiração pessoal, outras tradições do ocultismo e até mesmo literatura de ficção científica. O resultado foi um espectro de novas “tradições” de bruxaria que se expandiu rapidamente.


À medida que a Arte Gardneriana se espalhou pela América do Norte, também inspirou um certo número de indivíduos a desenvolver suas próprias variantes dela. O próprio Buckland, apesar de inicialmente combater com violência os “impostores” que estabeleceram suas próprias formas de bruxaria, afastou-se de sua tradição em 1973 para criar a Seax ou a Saxon Wicca. Uma vez que a sociedade norte-americana é multiétnica, muitos inovadores introduziram partes de suas próprias tradições mágicas populares nas formas de bruxaria que eles fabricaram, adicionando ao cenário da Wicca norte-americana um sabor decididamente multiétnico.7


Uma variante etnicamente orientada que emergiu dessa diversidade florescente estabeleceu ainda outra conexão – desta vez de caráter político – que alterou tanto a composição como o direcionamento do movimento da bruxaria moderna. “Z” (diminutivo de Zusanna) Budapest era uma imigrante húngara cuja mãe tinha sido artista, médium, bruxa praticante e entusiasta da adoração à deusa. Budapest chegou aos Estados Unidos em 1959, três anos antes da introdução da bruxaria britânica e quatro anos antes da publicação de The feminine mystique [editada no Brasil com o título Mística feminina], o livro de Betty Friedan (amplamente considerado a base ideológica do movimento feminista). Doze anos mais tarde, a bruxaria, o feminismo e a própria Z. Budapest convergiriam para o sul da Califórnia. Após ter-se deixado radicalizar pelo estilo americano de política sexual, Budapest estabeleceu o “Susan B. Anthony Coven Number One”, em Los Angeles, na noite do Solstício de Inverno de 1971, fundindo nele seu paganismo e seus posicionamentos políticos a fim de criar o movimento que veio a ser chamado “Espiritualidade Feminina”.

Já existia uma tradição dentro da política radical (que se originara com Michelet) de retratar a bruxa como uma figura heroica na luta pela libertação do ser humano. No fim da década de 1960, as feministas radicais alteraram o foco desse simbolismo, passando a representar a bruxa especificamente como uma heroína da libertação do gênero feminino. As feministas alegavam que a bruxaria original tinha sido um instrumento de poder e independência femininos, e que era acessível a todas as mulheres simplesmente em virtude de sua condição de fêmeas; e mais ainda, que precisava ser recuperada pelas mulheres de hoje a fim de (re)obter seu poder e suas liberdades. Mas as feministas admiradoras das bruxas eram motivadas estritamente por seu posicionamento político, e aparentemente nem sequer sabiam que, em sua própria época, em plena década de 1960, havia pessoas que afirmavam ser bruxas.

Budapest e suas companheiras de coven, por outro lado, sabiam muito bem, já em 1971, que estavam realizando uma fertilização cruzada entre a bruxaria moderna e a política feminista. Budapest misturou elementos da Wicca Gardneriana (especialmente os símbolos, os rituais e a ênfase dada à magia) com as causas e os interesses do feminismo radical e da política radical em geral. A Espiritualidade Feminina emergiu dessa fusão como uma forma de separatismo religioso (não era permitida a participação de homens), com uma divindade feminina autônoma (A Deusa), “cujas devotas se haviam oposto ao patriarcado, ao militarismo e à destruição ecológica”.8 Budapest denominou sua nova “tradição” de Bruxaia Diânica (ou apenas Diânicas),9 em referência à deusa da tradição greco-romana que repudiava o contato com os homens. Não é surpreendente, portanto, considerada suas origens feministas radicais, que “a prática Diânica tenha uma alta porcentagem de participantes lésbicas”.10 Com efeito, Budapest fez para as mulheres homossexuais o que Sanders havia feito para os homens – ou seja, abriu as portas da bruxaria para que dela participassem plenamente.


Z Budapest, uma imigrante húngara, fundiu política feminista, suas próprias tradições populares pagãs e elementos da bruxaria gardneriana para criar a Espiritualidade Feminina, conhecida também como Bruxaria Diânica.


Esses avanços engrossaram as fileiras da bruxaria moderna e divulgaram o seu perfil perante o público, mas não foram bem recebidos por todos os bruxos. Particularmente os gardneri­anos rejeitaram o exclusivismo sexual de Budapest e deploraram a tendência diânica para o estabelecimento de um “monoteísmo da Deusa” (“Poupai-nos de um Jeová travestido!”, rogou um de seus membros). E a ideia de que o poder da bruxaria era inerente a todas as mulheres, “simplesmente em virtude de serem fêmeas”, opunha-se diretamente ao ponto de vista gardneriano de que a bruxaria era um sistema de iniciação fechado e estruturado que revelava progressivamente seus mistérios com base no dinamismo da polaridade sexual. O movimento da bruxaria deu um grande passo à frente quando este crescente conflito interno foi


brilhantemente resolvido em 1979 com a publicação do livro The spiral dance, por Starhawk, uma escritora feminista californiana que havia sido treinada pelos gardnerianos [publicado no Brasil com o título A dança cósmica das feiticeiras]. Nessa obra ela demonstrou como o coven poderia ser transformado em um grupo de treinamento dentro do qual as mulheres poderiam ser libertadas, os homens reeducados e relacionamentos humanos alternativos poderiam ser explorados. Ela reinterpretou a mágica em termos de psicologia, como um conjunto de técnicas destinadas à autossatisfação e à realização do potencial humano.11


Starhawk (nascida Miriam Simos) fundou a Reclaiming Tradition da bruxaria fundamentada em sua mescla de elementos tirados da Wicca Gardneriana (e da Faery Tradition de Victor Anderson12) com a bruxaria feminista e política ativista mais grosseira de Z Budapest e das Diânicas. Seu propósito era conferir maior relevância e apelo mais amplo à bruxaria moderna – e funcionou. As vendas de A dança cósmica das feiticeiras logo ultrapassaram as dos demais livros escritos sobre o assunto, e em um curto espaço de tempo “já havia substituído A bruxaria hoje como texto básico”.13


O Primeiro Grau da Iniciação de Janet Farrar em um ritual conduzido por Alex e Maxine Sanders. A amarração e os olhos vendados são parte do simbolismo da morte e do renascimento, incorporado na cerimônia de iniciação.


Além de sua aliança com o feminismo, a ênfase dada pela bruxaria à natureza também repercutia com a preocupação crescente da cultura em geral em relação ao meio ambiente. Tim “Otter” Zell foi um dentre muitos bruxos e pagãos do período que acolheu a noção de que a Terra era uma entidade viva (a “Hipótese de Gaia”, de James Lovelock) e a fez convergir com a presumível Deusa ou deusas das religiões pagãs. Zell, Starhawk e outros bruxos norte-americanos continuaram a extrair energia das questões ambientais durante os anos 1980, aumentando ainda mais o impulso social do movimento da bruxaria moderna e trazendo-a a um paralelismo ainda mais íntimo com os interesses da sociedade em geral.


Na Califórnia, pagãos e não pagãos se reúnem para assistir dançarinos de morris [dança popular rural de origem inglesa] “dançando o amanhecer” como parte da celebração do Beltane Wiccano (1º de maio).


Z Budapest e a Espiritualidade Feminina conduziram a bruxaria desde seus guetos ocultistas até o coração da política ativista americana; Starhawk expandiu-a novamente para o âmbito do público em geral, estabelecendo ligações entre o movimento e formas compatíveis de crítica social e filosofia do autodesenvolvimento­ – difundindo assim a bruxaria para muito além de suas fontes esotéricas.

Cibercultura, cultura pop e a ascensão dos paganoides

A internet é outro fator que expandiu a bruxaria muito além de suas fontes esotéricas. Uma das reais surpresas da década de 1980 foi a emergência de uma forte conexão entre bruxos, alta tecnologia e cultura computacional. Esse relacionamento veio à luz em 1986, na edição revisada do livro de Margot Adler, Drawing down the moon. Ao realizar suas pesquisas entre bruxos e neopagãos a fim de atualizar seus resultados, Adler descobriu que “seus perfis profissionais são bastante incomuns, com uma porcentagem espantosamente elevada nos campos científicos, técnicos e computacionais”.14

Esse elo anteriormente desconhecido tem diversas implicações, uma das quais é que houve praticantes, entusiastas e simpatizantes da bruxaria circulando pelo mundo da alta tecnologia desde o começo – consequentemente, essas mesmas pessoas assistiram ao nascimento da internet. Os bruxos americanos, portanto, encontravam-se entre os primeiros a desvendar o poder da rede para interligar indivíduos isolados dentro de uma entidade que é maior que a soma de suas partes. A internet foi um elemento central para o desenvolvimento do movimento da bruxaria por duas razões: reforça a atitude de tipos culturalmente marginais em geral, permitindo a conexão entre pessoas que, de outro modo, permaneceriam isoladas umas das outras e, ao mesmo tempo, garantindo a privacidade e o anonimato de cada um desses indivíduos.


Starhawk (nascida Miriam Simos), fotografada na colina acima da baía de São Francisco, é autora do livro mais lido sobre bruxaria (A dança cósmica das feiticeiras) e fundadora da bruxaria.


Essas duas características da internet também têm ajudado a criar o movimento homossexual – uma “minoria cultural” distinta, mas que se sobrepõe de forma significativa com a bruxaria em sua composição. Em Queer witches and the world wide web: breaking the spell of invisibility, o autor, autointitulado Faggot Witch Sparky Rabbit escreve:


Um dos maiores obstáculos enfrentados por homens e mulheres gays é o manto de invisibilidade colocado sobre nós pelo heterossexualismo da cultura dominante... Uma das piores experiências que muitos gays compartilham é o sentimento que experimentam desde a infância de que “eu sou a única pessoa da minha espécie em todo o mundo...” Assim, quando a web se tornou disponível – bam!!! – os gays tomaram conta dela para arrancar tudo o que fosse possível. Quando eu estava começando a estudar computadores e a Internet, na metade da década de 1990, um de meus amigos falou: “A internet é formada por pagãos e gays”. Eu não acredito que essa declaração fosse estatisticamente correta naquela época, mas era definitivamente uma descrição acurada do que muitos pagãos gays que eu conheço estavam experimentando por meio da web: havia lá muitos como nós, bem mais do que podíamos imaginar.15



Margot Adler, escritora e jornalista, é uma bruxa praticante. A primeira edição de seu livro Drawing down the moon, publicada no Halloween de 1979, chamou a atenção do público em geral para a bruxaria neopagã pela primeira vez.


A contribuição mais importante da internet para as dissensões políticas, sociais e culturais de todos os tipos – incluindo a bruxaria moderna – foi o fato de ela ter quebrado o encanto da invisibilidade, um fenômeno também conhecido como minority empowerment [“empoderamento das minorias”] ou ainda “a interligação de indivíduos que, de outro modo, teriam permanecido isolados”. Foi um avanço que tornou tudo mais possível, com o surgimento de diversas “culturas alternativas”, muitas delas se convertendo completamente em movimentos de resistência cultural. M. Macha Nightmare descreve a diferença que a existência da internet representou para bruxos e neopagãos:


Antes do advento da internet, bruxos e pagãos permaneciam isolados uns dos outros... diversos covens e diversas tradições podiam coexistir na mesma cidade ou até mesmo no mesmo bairro, sem nunca chegarem a saber da existência uns dos outros... figuradamente, a maior parte dos bruxos permanecia a vida toda dentro do armário. A discrição era a abordagem segura e prudente em tudo o que se referia à nossa religião. Mantínhamos nossos grupos fechados.

A rede modificou tudo isso. Na web, indivíduos e grupos isolados se encontravam... A web permitiu que comunidades fossem criadas onde nenhuma existira até então. O anonimato das comunicações on-line libertou os grupos ligados à bruxaria para expressar seus pensamentos, sentimentos e experiências com relativa segurança. Assim, em certo sentido, a web se tornou nossa igreja.16


O rápido crescimento e o surpreendente sucesso do website witchvox.com talvez seja o fato que melhor ilustra a presença crescente da bruxaria na web. Wren Walker e Fitz Jung inauguraram esse website em 1997, compreendendo um conteúdo de 56 páginas e uma breve lista de links e contatos neopagãos.


A internet foi fundamental para o desenvolvimento e para a crescente aceitação da bruxaria desde os anos 1990. O website The Witches’s Voice (www.witchvox.com), inaugurado em 1997, se autodenomina “o mais visitado website religioso no mundo”; no final de 2006, ele tinha registrado mais de 200 milhões de acessos.



No final de seu primeiro ano, o Witchvox disponibilizava 385 páginas, que eram acessadas por computadores pessoais em todas as partes do mundo. Durante esse período, o site recebera 1.235.237 acessos. Listava milhares de bruxos, wiccanos e pagãos em suas páginas, por estado ou por país, 385 círculos e eventos, 250 lojas de artigos metafísicos ou de bruxaria (a maioria apresentada por seus clientes), 976 sites pagãos na web (com informações completas para estabelecer contatos) e um mapa do site... Realmente, a Voz dos Bruxos é algo do qual nós, bruxos, podemos nos gabar.17


Mas mesmo esse começo auspicioso foi apenas um fiozinho de água em comparação com a torrente que estava para surgir. Desde sua inauguração, o witchvox.com cresceu de maneira tão expansiva quanto a comunidade à qual serve. Em 2006, o site já ultrapassara a marca de 200 milhões de acessos, registrados desde 1997. Sua lista de contatos (agora intitulada Witches of the World) contém 4.095 páginas de texto, com mais de 99 mil nomes, incluindo 7.263 grupos ou organizações e 1.300 lojas, bem como indivíduos, editores e livreiros ao redor do globo. Há extensas listas para todos os cinquenta Estados dos Estados Unidos, todas as províncias do Canadá, todas as regiões da Grã-Bretanha e todos os estados da Austrália, assim como para quarenta outros países ao redor do mundo. Há também um catálogo separado para contatos eletrônicos (Witchvox Links) que inclui 11.628 websites sobre bruxaria e neopaganismo.


Quatro aprendizes de bruxa adolescentes tentam lançar um feitiço, em cena do filme Jovens bruxas, lançado em 1996. Como entretenimento, o filme foi rigorosamente mais uma produção comum de Hollywood; mas foi considerado um evento bem-sucedido para a percepção pública da bruxaria moderna.


Hoje a bruxaria está mais visível e acessível na internet do que jamais foi. De fato, sem ter acesso à rede, é quase impossível saber a real dimensão de quão vigoroso e expansivo se tornou o moderno movimento da bruxaria. A íntima conexão estabelecida desde o início entre bruxos e internet ajudou a criar o movimento, reunindo seus participantes e lhes proporcionando um meio de interação, uma vez que os bruxos utilizavam a rede principalmente para se comunicarem. Mais tarde, bruxos experts em internet dominaram a tecnologia, convertendo-a de um instrumento restrito de construção do movimento em uma ferramenta ativa de alcance cultural, e hoje eles também a utilizam para se comunicar com o público em geral. No século XXI, navegar a rede é um dos principais veículos de informação para as pessoas estabelecerem um primeiro contato com a bruxaria moderna.


A conexão bruxaria-adolescência estabelecida por Hollywood em Jovens bruxas, de tão bem-sucedida, foi rapidamente explorada por várias novas séries de televisão. Charmed (imagem acima) conta a história de três irmãs que se descobrem bruxas por herança, determinadas a combater o mal, a proteger os inocentes e a lutar contra demônios e feiticeiros malignos.


Outra importante difusão do conhecimento sobre a bruxaria moderna teve lugar em meados da década de 1990, quando uma súbita proliferação de temáticas relacionadas à bruxaria nos meios de comunicação acabou implantando uma imagem e um conceito da bruxaria moderna diretamente na cultura popular (especialmente na cultura adolescente). Os resultados dessa explosão da cultura pop na metade dos anos 1990 ainda se fazem sentir entre nós. Em 1996, a Sony Pictures lançou Jovens bruxas, filme sensacionalista a respeito de bruxas adolescentes que foi um grande sucesso de bilheteria. Os obser­vadores de tendências ligados às indústrias instantaneamente perceberam a oportunidade, e Jovens bruxas viria a ser apenas o primeiro de uma série de filmes e vídeos sobre bruxos e bruxaria lançados rápida e sucessivamente por Hollywood no espaço de pouco tempo. O ano de 1996 também assistiu ao lançamento de Sabrina, aprendiz de feiticeira, uma série televisiva que transformou a conexão adolescente com a bruxaria em um sitcom de meia hora. O ano seguinte trouxe às telas Buffy, a caça-vampiros, uma série semanal voltada para o público adolescente, com episódios de uma hora de duração, que mescla horror, ficção científica, comédia e aventura, e que se tornou tremendamente popular entre seu público-alvo, chegando mesmo a atrair a atenção do meio acadêmico.18 Esse interesse da mídia durou três anos, alcançando seu clímax em 1998, com uma nova série na televisão (Charmed) e mais um filme (Da magia à sedução), ambos estrelados por jovens atrizes no auge de suas carreiras e no ápice de sua popularidade junto à audiência jovem.

Mas o filme referencial foi inquestionavelmente Jovens bruxas, com sua narrativa dramática de quatro garotas adolescentes que passaram a se interessar por bruxaria e descobriram que havia um poder real em seu dom de enfeitiçar, somente para perder o controle sobre ele – e até sobre elas mesmas. Finalmente, elas lançam seus poderes umas contra as outras, e o filme termina com um sensacional duelo de poderes mágicos entre as bruxas boas e as más. Em certo nível, Jovens bruxas é simplesmente mais um filme arrepiante para adolescentes, do tipo que Hollywood produz rotineiramente; mas, em um nível mais profundo, revelou-se um evento pioneiro para a consciência do público em relação à bruxaria moderna. E, em um nível ainda mais profundo, chegou mesmo a provocar mudanças no interior do próprio movimento.

Jovens bruxas é diferente de todos os filmes hollywoodianos anteriores sobre bruxaria em um aspecto importante: apresenta um quadro da bruxaria moderna que realmente se assemelha à coisa real, em vez de se basear em estereótipos medievais padronizados. Isso não ocorreu por acidente, é claro, nem foi o resultado de uma mera pesquisa casual. Os produtores do filme procuraram uma bruxa proeminente dentre a comunidade ocultista de Los Angeles para prestar uma consultoria enquanto o roteiro estava sendo redigido. Pat Devin, que na ocasião era diretora conacional de informações públicas para o Covenant of the Goddess (cog), trabalhou com a Sony durante dois anos, até tornar a versão cinematográfica substancialmente alinhada com a versão da vida real. O resultado foi que, embora a bruxaria moderna tenha sido sensacionalizada para acomodar-se ao propósito do filme, ela continua identificável enquanto tal. A despeito da reação horrorizada de Adler (que classificou a obra como “o pior filme que jamais foi feito!...”)19, Jovens bruxas revelou-se um ímã para a bruxaria moderna, por duas razões. A primeira, por uma simples questão de psicologia: a moral do filme (isto é, que a ambição por controlar acaba levando à perda de controle) passa em grande parte despercebida do público adolescente, mas seu apelo tendente ao poder oculto definitivamente não passou. Um senso de atração pelo sonho de controle (especialmente o sonho de poder controlar os outros) é a impressão permanente que, em última análise, é deixada pelo filme. A segunda razão é mais concreta: porquanto a bruxaria mostrada no filme se aproxima bastante do fenômeno real, seu atrativo representado pelos poderes ocultos é interligado a uma coleção de ideias, rituais e objetos do mundo real que os adolescentes, de fato, encontrarão quando investigarem a matéria com um pouco mais de profundidade. Desse modo, os adolescentes interessados dispõem de um arcabouço preexistente de informações e de envolvimento pronto para atender à sua curiosidade. E houve muitos adolescentes curiosos saindo dos cinemas em 1996. É Pat Devin quem calcula os números:


Jovens bruxas foi assistido por aproximadamente um milhão de pessoas em seu primeiro fim de semana em cartaz. Se apenas uma em cada dez pessoas sentiu-se intrigada o bastante para examinar um pouco mais o assunto, talvez ler um livro (e agora há prateleiras cheias de livros sobre o tema!), então foram cem mil pessoas que ficaram pelo menos um pouco mais informadas sobre nossa realidade. E se uma em dez destas pessoas se decidiu a estudar o assunto com maior profundidade, então foram dez mil pessoas somente nesse primeiro fim de semana.

Comecei a chamar a mim mesma de bruxa aos 16 anos de idade, porque Donovan escreveu uma canção chamada Season of the witch. Eu não subestimo o impacto da mídia sobre os adolescentes, e esse filme foi justamente calculado para atingir a audiência adolescente.20


O efeito foi explosivo e virtualmente instantâneo. Poucos dias depois da estreia do filme, as perguntas sobre os diversos grupos de bruxaria começaram a se multiplicar. Todos foram apanhados de surpresa; mesmo aqueles que haviam tido uma informação anterior a respeito do filme ficaram atônitos perante a escala e a repentinidade da resposta.

Essa inesperada onda de interesse adolescente sobre a bruxaria criou um problema para o movimento em mais de uma forma. Em primeiro lugar, os grupos estavam totalmente despreparados para lidar com essa onda de fascinação. A bruxaria moderna não era um movimento de jovens; pouquíssimos bruxos tinham alguma experiência em como tratar os questionamentos adolescentes, e nem um grupo tinha qualquer tipo de estratégia organizada para atingir esse público. Em segundo lugar, a perspectiva de adolescentes se “converterem” à bruxaria enquanto ainda vivessem sob o teto de seus pais correspondia a uma batata quente, para dizer pouco – não só emocionalmente, mas legalmente também. Qualquer organização de bruxaria que deliberadamente desviasse uma criança da religião de seus pais tinha uma boa possibilidade de ser processada até cair no esquecimento. Com esse perigo em mente, os grupos de bruxaria em geral assumiam uma política de não intervenção em se tratando de menores. O resultado combinado de seu despreparo e de sua cautela foi o movimento da bruxaria organizada ter perdido o controle do fenômeno da bruxaria na cultura popular. Os adolescentes que se sentiram então atraídos para a bruxaria foram forçados a confiar principalmente uns nos outros, conforme observa Adler:


O fato é que a maioria dos grupos pagãos não admite adolescentes – teme as repercussões provindas de pais sem simpatia pelo movimento. Assim, de fato, a maioria dos adolescentes apenas conseguiu encontrar amigos com os mesmos interesses e opiniões, pois há pouquíssimos grupos em que os adolescentes podem ingressar antes de completar 18 anos.21


Como consequência, os jovens que pretendiam ser aprendizes de feiticeiros não tiveram outra escolha senão construir seu conceito de bruxaria com base no que assistiam em filmes, em séries televisivas, nas páginas da internet ou simplesmente em suas conversas com os amigos. Era uma lacuna informativa que só estava esperando para ser preenchida, e o mercado respondeu com uma chuva de livros simplistas sobre bruxaria para adolescentes, do tipo “faça você mesmo”, explicitamente voltados à exploração do interesse que Jovens bruxas havia despertado. O primeiro desses livros foi escrito em 1998 por Silver Ravenwolf e deliberadamente intitulado Teen witch: wicca for a new generation – que se revelou pioneiro de um gênero totalmente novo de literatura adolescente. Esse novo nicho literário, segmentado, começou a moldar tanto a imagem como o conteúdo da bruxaria na cultura adolescente. Assim, à medida que os adolescentes abraçavam a bruxaria, a própria bruxaria se tornou parte do mundo exclusivo e baseado em autorreferências da cultura adolescente, incoerentemente até mesmo com suas raízes firmadas no neopaganismo adulto. Tornou-se uma subcultura independente.


Teen witch: wicca for a new generation, livro de Silver Ravenwolf publicado em 1998, foi o primeiro de um gênero totalmente novo da literatura juvenil, que ajudou a definir a “cultura pop da bruxaria”.


Tornou-se, de fato, um ramo totalmente novo da bruxaria moderna que, brotando entre os jovens, assumiu rapidamente vida própria. Antes de 1996, o movimento era formado basicamente por bruxos religiosos que se sentiam interligados por sua opção comum de isolamento em relação à sociedade “mundana” e a todos os seus valores, instituições e atividades (fundamentados no cristianismo); mas Jovens bruxas promoveu uma colheita instantânea de novos “bruxos”, que adotaram tal identidade de forma inconsequente e que não faziam parte do universo psicológico compartilhado pelos bruxos tradicionais. Os bruxos da cultura pop, falando de maneira geral, não recebiam iniciação nem qualquer tipo de treinamento ocultista; não tinham ligação com qualquer ensinamento ou tradição; não podiam ou não queriam se unir às organizações já existentes; conceberam suas ideias de bruxaria a partir de fontes que os bruxos tradicionais desprezam, como as formas de entretenimento popular; e eram totalmente integrados à sociedade mundana, com pouquíssimo senso de separação dela (salvo pela atitude rebelde dos adolescentes com relação à sociedade adulta em geral).

E justamente por causa dessa atitude, os bruxinhos da cultura pop sentiam-se inclinados a ver os bruxos tradicionais como tediosos e intratáveis, quadrados e inacessíveis. É uma das ironias do movimento que, enquanto os bruxos modernos estão lutando para estabelecer suas linhas tradicionais de menos de um século como uma verdadeira tradição, já estejam sendo enfrentados por um exército de autoproclamados jovens “bruxos”, completamente sem contato com tais tradições e, em sua maior parte, indiferentes a elas. Websites como witchvox.com se esforçam para servir a ambas as culturas e, desse modo, funcionar como uma ponte entre elas. Não obstante, a incompatibilidade permanece, e não foi resolvida desde o lançamento de Jovens bruxas, já há vários anos.

Bruxaria e a interface inter-religiosa

Uma das incompatibilidades entre a bruxaria tradicional e a bruxaria da cultura pop consiste em sua abordagem em relação à cultura dominante. A bruxaria da cultura pop é vaga o suficiente em estrutura e conteúdo para qualificar-se mais como um “estilo de vida” do que como uma “religião”. Move-se continuamente na direção da aceitação social por meio de sua reiterada exposição pública alimentada pelas versões midiáticas do próprio movimento (frequentemente superficiais e sensacionalistas). Os bruxos tradicionais, por outro lado, assumiram o compromisso de se fazer legitimar junto à sociedade como “uma religião entre outras religiões”, com identidade formal, status e proteção legal. Nesse sentido, a emergência da “bruxaria como estilo de vida” da cultura pop distorce a imagem que os bruxos tradicionais desejam criar de si mesmos.

Dentro desse contexto, alguns membros tradicionais da bruxaria têm buscado junto às outras religiões seu reconhecimento como religião, por meio de seu envolvimento no Interfaith Movement. O pioneiro nesse tipo de ativismo foi o Covenant of the Goddess – cog, criado em Berkeley, Califórnia, em 1975. Uma das primeiras coisas que o cog fez como organização foi ingressar no Concílio Inter-religioso local, mas o trabalho de interligação do cog com outras religiões começou efetivamente em 1985, quando o alto sacerdote wiccano Don Frew foi nomeado representante do cog no Norte da Califórnia para o Berkeley Area Interfaith Council baic. Frew adentrou em sua primeira reunião para encontrar um salão apreensivamente dividido entre crentes tradicionais de um lado (cristãos, judeus, budistas) e os crentes “alternativos” do outro (cientologistas, hare krishnas, grupos da Nova Era). Alguns dos membros mais antigos do concílio haviam reconhecido o cog muitos anos antes, e uma vez que Frew representava uma fé alternativa, mas tinha amigos entre os tradicionalistas, foi capaz de exercer um papel de ponte entre os dois lados; bruxos e neopagãos se tornaram parte integrante do baic e de seu trabalho a partir de então.

Talvez somente em Berkeley um bruxo poderia agir espontaneamente como ponte entre religiões tradicionais e “marginais” em um encontro inter-religioso, mas os efeitos definitivos dessa conexão não permaneceram absolutamente localizados; na verdade, espalharam-se literalmente pelo mundo inteiro. Aquilo que se havia iniciado em pequena escala e em nível local converteu-se finalmente em política organizada – primeiro para o cog e depois para outros grupos neopagãos e de bruxaria nos Estados Unidos.22

Contudo, mesmo vários anos depois de Frew ter se tornado um ativista do movimento ecumênico, sua obra prosseguiu apoiada em uma base local e mormente pessoal. Uma coisa era receber respeito e reconhecimento religioso no contexto do zoológico espiritual de Berkeley, onde os bruxos tradicionais algumas vezes pareciam ser a parte “confiável e sensata” das religiões marginais. Outra coisa muito diferente era obter o reconhecimento da comunidade religiosa mais ampla, para a qual os bruxos, na melhor das hipóteses, eram encarados com ceticismo; na pior, com suspeitas; e com desrespeito em qualquer caso. Mas tudo isso se modificou em 1993 – em parte devido a uma comemoração e em parte devido a uma convergência.


O alto sacerdote wiccano Don Frew oficia serviço no Interfaith Earth Day, celebração promovida pelo Spiritual Alliance for Earth – safe. Também participam os representantes indígenas Charles Koshiway e Sacheen Littlefeather e os reverendos Craig Scott e Julie Kain, da Igreja Unitária Universalista.


A comemoração de 1993 marcava o centésimo aniversário do Parlamento Mundial das Religiões. O Parlamento original, fundado em 1893, tinha sido parte da Exposição Mundial, em Chicago, e é amplamente reconhecido como o evento que fundou o movimento ecumênico moderno. Cem anos depois, uma elaborada celebração foi sendo planejada, incluindo a abertura de um segundo Parlamento em honra do primeiro. À medida que 1993 se aproximava, as informações sobre o segundo Parlamento eram difundidas pela North American Interfaith Network. Os representantes do cog souberam do evento por meio de suas conexões inter-religiosas e passaram a traçar os planos para sua participação. O cog pretendia originalmente enviar somente três representantes ao Parlamento, mas seus membros responderam de forma tão calorosa ao projeto que acabaram por reunir um grupo de voluntários de mais de quarenta pessoas, todas as quais viajaram para o evento à própria custa. No momento em que partiu para Chicago, o grupo sentia-se incerto sobre o que encontraria lá, ou que tipo de recepção teria; este seria seu primeiro encontro importante com o universo do diálogo inter-religioso fora do ambiente espiritual bastante exótico de Berkeley.


Este altar para um Sabá de Beltane (1º de maio) apresenta os utensílios comumente usados em cerimônias de bruxaria. A vela central está ladeada por imagens do deus e da deusa próprias para o ritual. Três recipientes contendo água, sal e incenso que, reunidos à brasa do incensório, representam os quatro elementos: água, terra, ar e fogo. O pentáculo (à direita) e a taça (à esquerda) contêm guloseimas e o vinho para a bênção. O bastão e a espada (centro) conduzem as ações do ritual mágico. A faca ou boline (centro) é para fazer cortes. O chicote simboliza a purificação e a disposição em “sofrer para aprender”, isto é, suportar as adversidades a fim de progredir.


O que o grupo encontrou em Chicago foi uma espantosa convergência de preocupações e esperanças que colocou os bruxos diretamente sob os holofotes internacionais e situou a bruxaria exatamente no interior da corrente dominante do moderno pensamento religioso – literalmente da noite para o dia. Representante oficial do cog, Don Frew relata como a confluência de temáticas religiosas e ambientais empurrou a bruxaria moderna para o centro do palco da arena internacional:


Na primeira sessão plenária do Parlamento de 1993, o dr. Gerald Barney – cientista que havia preparado o Relatório Global 2000 sobre meio ambiente para o presidente Jimmy Carter – anunciou à multidão ali reunida o iminente colapso ambiental do planeta... O dr. Barney, que é cristão, prosseguiu imputando boa parte da culpa por tal situação às principais religiões “mundiais”, especialmente o cristianismo. “O que nós precisamos”, afirmou ele, “são novas espiritualidades e novas maneiras de ressacralizar a natureza, se a Terra sobreviver”.

E lá estávamos nós.

Desde sua primeira sessão, o Parlamento de 1993 enfocou a ressacralização da Natureza... Subitamente, nós bruxos nos descobrimos os “queridinhos” da mídia na conferência! Nossos workshops “O que é a Wicca?” tiveram de ser transferidos para salões maiores a fim de acomodar o grande número de pessoas que desejava assisti-los. Nossa cerimônia da Lua Cheia em um parque próximo, planejada para um círculo de 50 pessoas, atraiu 500!... Ao final do evento de nove dias, os acadêmicos presentes ao Parlamento estavam declarando: “Em 1893, os Estados Unidos foram apresentados aos budistas e aos bindus; em 1993, ficamos conhecendo os neopagãos”. Um jornalista descreveu o Parlamento como “o baile de debutantes dos neopagãos”.

A partir daí, os neopagãos passaram a ser incluídos em quase todos os eventos ecumênicos de caráter nacional ou global. No Parlamento de 1993, deixamos de ser um bando de excêntricos e nos tornamos uma minoria religiosa. Como [o representante do cog] Michael Thorn declarou após seu retorno de Chicago, “Esse foi o evento mais importante na história da Arte desde a publicação de A bruxaria hoje, em 1954!”.23

Olhando o futuro: crescimento, validação e mudança

Depois do assinalado sucesso de relações públicas no Parlamento de 1993, os membros do cog adotaram o trabalho ecumênico como uma das prioridades de sua organização. Dois anos depois do Parlamento de Chicago, o cog se dedicou a outro projeto inter-religioso de alcance mundial: a uriUnited Religions Initiative, do bispo William Swing, da Igreja Episcopal [Anglicana]. A uri foi concebida em 1995 como a contraparte religiosa das Nações Unidas, depois que Swing recebera a incumbência de escrever uma liturgia ecumênica para o quinquagésimo aniversário da onu. Desgostoso com o fracasso do mundo religioso se equiparado ao bem-sucedido meio século das Nações Unidas, o bispo decidiu que já era tempo de reunir as religiões mundiais de forma permanente, dentro de algum tipo de organização. O resultado foi a uri. Os membros do cog se envolveram com a criação da uri desde o início, e até mesmo ajudaram a redigir os estatutos da entidade, que refletem a influência do neopaganismo desde suas palavras iniciais:


Nós, pessoas de diversas religiões, expressões espirituais e tradições indígenas de todo mundo, pelo presente estabelecemos a Iniciativa das Religiões Unidas com o propósito de promover uma cooperação inter-religiosa permanente e diária, a fim de combater a violência movida por razões religiosas e para criar uma cultura de paz, justiça e cura para a Terra e para todos os seres vivos.



Em Sussex, bruxos ecléticos ingleses realizam um ritual concebido por eles mesmos, diante do Long Man of Wilmington [Homem Longilíneo de Wilmington]. Os bruxos modernos combinam livremente uma variedade de elementos para criar suas próprias formas religiosas.


Há inúmeras oportunidades para o trabalho ecumênico, e o cog ingressou em tantas áreas quantas permitem os seus recursos. O Parlamento de 1993 gerou diversas conferências subsequentes; um outro Parlamento se reuniu na Cidade do Cabo, em 1999, e outro ainda em Barcelona, em 2004. O cog esteve envolvido em todas essas iniciativas, bem como em todas as atividades permanentes da uri. Os bruxos do cog veem sua participação inter-religiosa tanto como ativismo quanto como religião.


Como uma pessoa de fé, chamada por meus deuses para cuidar e proteger a Terra, como poderia não me envolver? O trabalho inter-religioso é, em minha opinião, a melhor esperança para o futuro da Terra. Os neopagãos encontram-se ativos no coração do movimento ecumênico global. Esta é nossa oportunidade para tomar parte nas mudanças que desejamos assistir.24



O Deus Cornudo e a Deusa Lua são as principais deidades da Wicca. O Deus Cornudo representa o caráter masculino da divindade: o Senhor da Morte, o Inverno, a caça; a Deusa Lua representa o caráter feminino: a Deusa Mãe, o Verão, a fertilidade e o nascimento. No seio da tradição da Wicca acredita-se que eles podem ser incorporados e possuir a suma sacerdotisa e o sumo sacerdote.


Seja lá o que possa resultar dessas mudanças que eles desejam assistir, está claro que sua estratégia ecumênica vem obtendo sucesso em, pelo menos, um de seus objetivos. O engajamento inter-religioso do cog conduziu a bruxaria moderna por um longo caminho até sua validação religiosa e sua aceitação pela sociedade em geral – não somente nos Estados Unidos, mas em todo o mundo. Frew descreve a efetividade do trabalho ecumênico do cog:


Os neopagãos são agora aceitos e bem-vindos em eventos ecumênicos ao redor do mundo. E isto vem pagando dividendos em termos de crescente compreensão. Tanto na Cidade do Cabo [o Parlamento de 1999] como na metade do caminho para o outro lado do mundo, no Rio de Janeiro [a Conferência de Cúpula da uri, em 2002], não encontrei uma única pessoa que não soubesse o que é a Wicca! “Ah, sim, a Deusa. A religião da Terra. Já ouvi falar nisso!”, foi a resposta que usualmente recebemos. Não fomos nós que lhes ensinamos isso, foram os grupos ecumênicos.25



Na Califórnia, o público participa do sabá comunitário de Beltane (1º de maio), que inclui o levantamento do maypole (mastro decorado com flores e fitas, próprio dessa celebração).


A bruxaria moderna é uma religião em transição. Considerando o fato de que já teve mais eventos significativos em sua curta história do que muitas religiões registram ao longo de séculos, seria prematuro especular a respeito de seu futuro a partir desse ponto. Mas o movimento presente abriga uma tensão interna que claramente terá de ser resolvida. A aproximação de uma crise está embutida no processo mutável da rejeição para a aceitação social, de ser um culto fechado, sigiloso e iniciático para se tornar uma religião aberta, reconhecida e pública. A questão pode ser colocada da seguinte forma: se a identidade religiosa de alguém, e boa parte de sua motivação religiosa, derivou-se de uma oposição ao sistema dominante, o que vai acontecer quando esse alguém for agregado a esse sistema? De inúmeras formas, esse processo já se encontra em andamento, e certamente implicará importantes modificações.


Membros de um grupo neopagão local marcham na anual Parada do Orgulho Pagão, em Berkeley, Califórnia.


É Don Frew, um dos arquitetos da política inter-religiosa do cog, que oferece um vislumbre do que algumas dessas modificações podem vir a ser:


No momento em que entramos no século XXI, não há mais o questionamento sobre se a Arte é parte da cultura dominante da sociedade; nosso maior desafio será determinar qual o significado disso. Como integraremos nossas tradições de sigilo e anonimato com o fato concreto de sermos uma religião pública e moderna? Como poderemos integrar o modelo de religião tribal e xamanística que dominou o paganismo durante os últimos cinquenta anos com a realidade de uma sociedade moderna e tecnológica? Como integraremos nossas raízes espirituais e nossa identificação com as religiões pré-cristãs da Europa com a realidade da sociedade norte-americana, tão diversificada e multiétnica? E como poderemos fazer tudo isso e, ao mesmo tempo, permanecermos fiéis à nossa herança pagã?

Alguns de nós se voltam para os modelos clássicos antigos do paganismo no mundo romano em busca de exemplos de como uma religião politeísta da natureza pode se compatibilizar com um mundo urbano e cosmopolita e com um estilo de vida público. A Arte no século XXI terá de encontrar um novo caminho que possa percorrer com sucesso ou, inconscientemente, replicará as estruturas religiosas contra as quais seus fundadores se haviam rebelado, aspecto que mais atraiu pessoas para a Arte desde seus primórdios.26



No topo de uma colina na Califórnia, wiccanos, pagãos e público em geral se reúnem para saudar a alvorada e iniciar as celebrações de Beltane (1º de maio).