Introdução
Assisti às primeiras notícias sobre a ruptura da barragem de Fundão pela televisão. Dias depois, fui escalada para integrar as equipes de reportagem da TV Globo que já estavam em campo, em Mariana. Por mais que tivesse lido sobre o assunto e assistido às imagens na TV, nada do que havia visto me deu a dimensão real da catástrofe. Só compreendi, de fato, o que acontecera quando vi com meus próprios olhos o que a lama grossa e escura de rejeitos havia feito com casas, escolas, lojas e igrejas nos distritos mais devastados de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo. Cada vez que retornava às ruínas, o assombro se fazia maior. Nas primeiras vezes, pela voracidade da lama e sua capacidade de destruição. Nas últimas, já para este livro, pela tenacidade dos antigos moradores em encontrar formas de manter a ocupação de um território que lhes pertence há gerações e que remonta, no caso de algumas famílias, ao tempo da escravidão.
Quando pensei em escrever um livro sobre o desastre da barragem de Fundão, um número não me saía da cabeça: os dezenove mortos na tragédia. Esse número se repetia no noticiário junto a muitos outros que procuravam traduzir a extensão de uma calamidade socioambiental jamais vista no Brasil: 34 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro despejados na natureza; cerca de 660 quilômetros percorridos pela lama no curso do rio Doce; 38 municípios atingidos; 14 toneladas de peixes mortos recolhidas no rio; centenas de milhares de moradores da bacia sem água potável. O jornalismo adora números. E, sem dúvida, eles são importantes. Mas não são capazes de traduzir a dimensão humana de uma catástrofe como essa. Não dão rosto a essa história. Era preciso mostrar esses rostos, revelar suas identidades, dar-lhes voz.
Já no começo da apuração, senti a necessidade de ampliar o escopo do livro e incorporar outras perspectivas, que abrangessem o processo de licenciamento que autorizara o empreendimento e a história da barragem desde sua “infância” até o momento em que a estrutura entrou em colapso, na tarde de 5 de novembro de 2015. Também a reação das empresas e dos poderes constituídos — que culminaria num controverso acordo de reparação de danos e assistência às vítimas — é abordada e ajuda a compor o quadro institucional, que leva a uma reflexão: por que as forças econômicas e políticas não conseguem conciliar desenvolvimento e um meio ambiente saudável e equilibrado, bem comum de toda a coletividade, da presente e das futuras gerações, como consagrado na Constituição de 1988?
Perdoe-me o leitor por trazer tantos aspectos técnicos de engenharia, legislação e fiscalização, além de meandros jurídicos, econômicos e políticos. Sem eles, contudo, não conseguiria oferecer a devida compreensão da tragédia de Mariana, que ainda perdura no momento da publicação deste livro: na lama que permanece no fundo dos rios, na indefinição sobre o valor das indenizações às vítimas, no rompimento de laços afetivos, nos danos físicos e psicológicos aos afetados e na falta de julgamento dos responsáveis pelo desastre. O leitor verá, porém, que o fio condutor deste livro são as histórias de pessoas de carne e osso: as que morreram e as que sobreviveram à lama despejada do reservatório.
Procurei as famílias dos dezenove mortos, entre eles duas crianças e três idosos. Queria conhecer suas histórias, seus projetos de vida, os sonhos que não tiveram tempo de realizar. Por variados motivos, as viúvas de sete deles não quiseram dar entrevista e me curvei respeitosamente ao seu silêncio. As viúvas, filhos, pais, avô e irmã das outras doze vítimas concordaram em falar. Com os corações despedaçados pela dor, perplexidade e revolta, os entrevistados falaram sobre seus mortos para que eles não sejam apenas mais um número nas estatísticas de desastres que, cedo ou tarde, caem no esquecimento. Suas histórias estão contadas nas próximas páginas, alternadamente com as de sobreviventes.
Em ordem alfabética, os mortos são:
Aílton Martins dos Santos, 55, motorista da Integral Engenharia;
Antônio Prisco de Souza, 74, morador de Bento Rodrigues;
Claudemir Elias dos Santos, 41, motorista da Integral Engenharia;
Cláudio Fiúza da Silva, 41, servente da Integral Engenharia;
Daniel Altamiro de Carvalho, 53, operador de máquinas da Integral Engenharia;
Edinaldo Oliveira de Assis, 40, operador de escavadeira da Integral Engenharia;
Edmirson José Pessoa, 48, técnico de serviço administrativo da Samarco;
Emanuelle Vitória Fernandes Izabel, 5, moradora de Bento Rodrigues;
Marcos Aurélio Pereira Moura, 34, químico, gerente de vendas da Produquímica;
Marcos Roberto Xavier, 32, motorista de caminhão da Vix Logística;
Maria das Graças Celestino, 64, moradora de Bento Rodrigues;
Maria Eliza Lucas, 60, moradora de Contagem;
Mateus Márcio Fernandes, 29, mecânico de manutenção da Manserv;
Pedro Paulino Lopes, 56, mecânico de manutenção da Manserv;
Samuel Vieira Albino, 34, sondador da Geocontrole;
Sileno Narkievicius de Lima, 46, motorista da Integral Engenharia;
Thiago Damasceno Santos, 7, morador de Bento Rodrigues;
Vando Maurílio dos Santos, 37, motorista da Integral Engenharia;
Waldemir Aparecido Leandro, 48, auxiliar de sondagem da Geocontrole.