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A viagem da lama

Depois de provocar dezenove mortes e devastar os dois subdistritos de Mariana — Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo —, o mar vermelho seguiu, impiedoso, com sua incalculável bagagem de material sólido, valendo-se do rio Gualaxo do Norte como condutor da desgraça. Junto com a lama, desciam pedaços da barragem, rochas, máquinas, paredes e telhados arrancados, objetos das casas destruídas, antenas parabólicas e muita vegetação. Era uma quantidade de detritos tão gigantesca que a avalanche extravasou da calha do rio, que em alguns trechos chegava a 50 metros, esparramando-se para muito além das margens.

A massa se alastrou com tal violência que mudou o curso de córregos e riachos, soterrou nascentes e brejos, alterou o relevo e a composição do solo, arrancou matas ciliares, cobriu pastos e plantações. No distrito de Camargos, ainda em Mariana, a usina de energia PCH Bicas (1,56 MW/h) foi totalmente destruída. Segundo relatório da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), “a lama atingiu intensamente a usina, assoreando a barragem, canal de adução, câmara de carga e tubulações, destruindo grande parte dos equipamentos e a casa de máquinas”. Aquele mar passaria por mais quatro usinas na sua viagem macabra de 660 quilômetros até o litoral do Espírito Santo: Risoleta Neves (Candonga), Baguari, Mascarenhas e Aimorés, provocando grandes danos à primeira.

O derramamento seguiu como hemorragia descontrolada, sem que se pudesse estancá-lo, rasgando feridas em áreas rurais e outros povoados, como Águas Claras, Monsenhor Horta e Ponte do Gama, até o Gualaxo se encontrar com o ribeirão do Carmo, pouco antes da cidade de Barra Longa, a 72 quilômetros de Mariana, na madrugada do dia 6 de novembro. O rio do Carmo passa por dentro de Barra Longa, o único município que teve o seu centro urbano danificado, com acúmulo de lama nas ruas e poeira no ar por muito tempo, o que provocou severos impactos na saúde da população. A lama seguiu por mais 25 quilômetros dentro do Carmo até a confluência deste com o rio Piranga, que passa a chamar-se rio Doce, na cidade de mesmo nome.

O Doce foi o portador de toda a carga de rejeitos, entulho e destroços até deparar-se com o barramento da Usina Hidrelétrica Risoleta Neves, mais conhecida como Candonga, a 114 quilômetros do local do rompimento, na divisa dos municípios de Rio Doce e Santa Cruz do Escalvado. Muito maior que a PCH Bicas, Candonga (potência instalada de 140 MW/h) resistiu ao impacto da avalanche e segurou a carga de detritos. Nesse primeiro trecho até a usina, os estragos do desastre foram mais poderosos por causa dos sólidos que vieram junto com a lama. Por onde passava, a enxurrada deixava uma camada de rejeitos depositados nas margens dos rios que, com o tempo, ficaria endurecida como se o solo tivesse sido cimentado. Era um cenário de hecatombe.

As perdas de fauna e flora foram colossais. Árvores de até 20 metros foram arrancadas das margens no trecho até Candonga. Laudo da Polícia Federal (no 528/2016 — SETEC/SR/DPF/MG) calculou que a massa de rejeitos atingiu 1.176,44 hectares de área total, sendo a maior parte de pastagens (546,16 hectares ou 46,42% do espaço afetado). A área de mata atlântica destruída foi de 240,88 hectares (20,47%), equivalente a pouco mais de um Parque do Ibirapuera, em São Paulo (221 hectares), uma perda significativa num estado que tem apenas 11,7% de suas florestas originais, segundo a ONG SOS Mata Atlântica. O restante era ocupado por outros tipos de cobertura, como eucaliptos, bosques, plantações e vegetação arbustiva.

Um relatório de impacto ambiental feito pela consultoria Golder Associates para a Samarco, com base em imagens de satélite e fotos aéreas, estimou uma área afetada um pouco maior. Segundo o documento,

houve deposição de rejeitos em uma extensão total de cerca de 2.185 hectares entre a barragem de Santarém e a barragem de Candonga, dos quais cerca de 1.644 hectares consistem de áreas terrestres ao longo de cursos d’água e cerca de 541 hectares compreendem calhas de cursos d’água.

O desastre ocorreu numa região que, apesar da atividade econômica e da ocupação humana, ainda abriga animais como veado, onça, tamanduá, paca, capivara, lontra, tatu, raposa, anta, macacos e um sem número de répteis, anfíbios, insetos e aves, todos parte de um delicado equilíbrio ecológico cada vez mais ameaçado. O Ibama alertou que

o nível de impacto foi tão profundo e perverso ao longo de diversos estratos ecológicos que é impossível se estimar um prazo de retorno da fauna ao local, visando o reequilíbrio das espécies na bacia do rio Doce.

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Com o entulho contido pelo barramento da usina, a partir de Candonga a lama seguiria delimitada pelas margens do rio Doce, mas também provocando impactos ambientais ainda hoje não completamente dimensionados. A massa atingiu 38 municípios (35 de Minas Gerais e três do Espírito Santo) até o rio desembocar no oceano Atlântico, no litoral capixaba, em 21 de novembro de 2015. A enxurrada se desdobraria em múltiplas consequências ao longo de dezesseis dias, deixando sequelas por onde passava, com danos sociais e ambientais em extensão jamais vista no Brasil e no mundo.

O Doce estava irreconhecível, mesmo sendo um rio maltratado secularmente pelo despejo de resíduos de mineração, desde o ciclo do ouro, pelo desmatamento e pela erosão de suas margens em decorrência da atividade agropecuária e, no século XX, pelo lançamento de efluentes industriais e esgoto doméstico. O atoleiro de lama vermelha e viscosa parecia, agora, uma sentença de morte. No Vale do Aço, entre os municípios de Timóteo, Marliéria e Dionísio, a massa invadiu 42 quilômetros do rio dentro do Parque Estadual do Rio Doce, a maior área contínua de mata atlântica em Minas Gerais.

Das 38 cidades atingidas, 13 tiveram o abastecimento de água comprometido. A chamada “turbidez” da água era de tal ordem que não havia processo de tratamento possível naquele momento. Turbidez é a turvação da água e significa a redução da transparência causada por partículas sólidas em suspensão, que impedem a propagação da luz e dificultam a oxigenação. Pluma de turbidez é o termo técnico eufemístico para mancha de rejeitos, que, na linguagem popular, virou simplesmente “a lama da Samarco”. A unidade de medida da turbidez é o NTU, do inglês Nephelometric Turbidity Unit . Por onde a massa passou, o limite legal de 100 NTU de turbidez foi amplamente excedido.

Segundo a perícia da Polícia Federal (Laudo no 318/2016 do IPL no 1843/2015), na localidade de Cachoeira dos Óculos, em Marliéria, onde a lama chegou na madrugada de 7 de novembro, foi registrado o índice inimaginável de 822.000 NTU, o mais alto em toda a área atingida. Em Belo Oriente, no dia 8, 446.800 NTU. O caudal de lama chegou a Governador Valadares, a 335 quilômetros do epicentro do desastre, na noite de 9 de novembro, quatro dias depois do estouro da barragem. Apesar da distância percorrida, a massa permanecia densa e a turbidez registrada foi de 119.360 NTU. A maior cidade do leste mineiro, com 280 mil habitantes, ficou uma semana com as torneiras secas e quase entrou em colapso, com reflexos, inclusive, na segurança pública.

Estudiosos faziam previsões inquietantes. Numa entrevista para o Fantástico , programa dominical da Rede Globo, o professor de Meio Ambiente e Recursos Hídricos Alexandre Sylvio Vieira da Costa, da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, afirmou: “A vida dentro do rio Doce praticamente não existe mais. O oxigênio não consegue mais se misturar e se associar à água e com isso os animais não conseguem retirar o oxigênio para respirar. Toda a vida aquática, que dependia do oxigênio da água, morreu. É um rio que está na UTI. É possível recuperar. Mas em quanto tempo? Não sabemos.” A tragédia ambiental tornava-se ainda mais severa porque a bacia hidrográfica enfrentava o terceiro ano seguido de chuva abaixo da média e a pior seca dos últimos 84 anos, segundo o Comitê Hidrográfico da Bacia do Rio Doce. Portanto, a lama encontrou um rio com menor capacidade de reação à tamanha quantidade de lixo nele despejada.

Seguindo a rota da destruição, a lama passou ainda por Tumiritinga e Galileia, deixando também as duas cidades sem água, até chegar, na tarde do dia 12 de novembro, a Resplendor, onde o rio Doce atravessa a reserva indígena dos Krenak. Cinco aldeias e 450 índios perderam sua principal fonte de alimentação, local de rituais e elemento de identidade cultural. Às margens do Watu, como os índios chamam o Doce, eles assistiram ao desespero dos peixes se debatendo na superfície em busca do oxigênio que já não encontravam na água.

Espécies como traíra, cascudo, lambari, manjuba, robalo, carapeba e bagres agitavam a superfície em seus últimos minutos de vida. Camarões saltavam para fora da água apenas para morrer e se acumular nas margens em quantidades impossíveis de mensurar. Os bagres, que vivem no fundo do rio e, em condições normais, não têm o comportamento de vir à superfície, debatiam-se em agonia. “Esta é uma evidência de que tais animais sofriam de escassez de oxigênio para seu processo de respiração, seja por baixos teores do elemento dissolvido na água, seja por obstrução mecânica das brânquias por matéria sólida em suspensão” (Laudo no 565/2016 — SETEC/SR/DPF/MG). Ou seja, as brânquias estavam recobertas de lama e os peixes morreram por asfixia. Das cem espécies do rio Doce (71 nativas, sendo 13 endêmicas e 29 introduzidas), onze já estavam ameaçadas de extinção quando do desastre.

Os peixes se defrontaram com a lama em pleno período da piracema, época de reprodução em que os pescadores recolhem anzóis e redes e recebem o seguro-defeso. As fêmeas da espécie curimba e de camarões de água doce foram encontradas mortas e cheias de ovas não fecundadas. Um relatório da empresa Aliança Geração de Energia S.A., concessionária da Usina Hidrelétrica de Aimorés, descreve como os peixes foram encontrados no reservatório da usina:

Todos os espécimes identificados corresponderam a curimbas adultas, sendo que as que foram analisadas pela equipe estavam ovadas. Acredita-se que estes animais estavam em trânsito de piracema e, ao se depararem com condições não favoráveis rio acima, retornaram ao reservatório (que ainda apresentava condições melhores de qualidade das águas), porém, devido à fragilidade que se encontravam por estarem em migração reprodutiva, vieram a óbito por fadiga/stress.

Quando a lama já se aproximava do Espírito Santo, a Samarco, com ajuda do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), organizou uma operação de resgate de espécies endêmicas para formação de um banco genético e posterior repovoação do rio. A massa cruzou a divisa e chegou a Baixo Guandu onze dias depois do estouro da barragem, em 16 de novembro. Segundo a Samarco, foram coletados 1.778 exemplares de peixes e crustáceos em Baixo Guandu, Colatina e Linhares, que foram soltos no rio Manhuaçu, a aproximadamente 5 km da confluência com o rio Doce.

Uma iniciativa de pescadores, biólogos e voluntários em Colatina, a Arca de Noé, também transferiu peixes para lagoas da região. Mas as ações não evitaram um massacre. Segundo a PF, foram recolhidas, pelo menos, 11 toneladas de peixes mortos em Minas Gerais e mais 3 toneladas no Espírito Santo, sendo que a mortandade real deve ter sido muito maior, pois foram coletados apenas os peixes com mais de 30 centímetros. A maior parte das espécies do rio Doce é de porte pequeno (abaixo de 15 cm) e médio (de 15 a 30 cm). E a coleta de carcaças não abrangeu todo o curso dos rios por inviabilidade logística, concentrando-se nos pontos de maior acúmulo (Laudo no 565/2016 — SETEC/SR/DPF/MG). Além da contaminação da água, a lama deixou outros efeitos de difícil reversão: a destruição de habitats, de áreas consideradas “berçários”, o soterramento de lagoas e nascentes e o impacto sobre estuários, manguezais e restingas.

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A catástrofe se ampliava dia após dia e a chegada da lama compacta e densa ao oceano Atlântico era inevitável. A Samarco contratou empresas especializadas em conter derramamento de óleo no mar para que instalassem boias de contenção na superfície, numa extensão de 8.970 metros. Sobre o resultado dessa medida, disse o laudo da Polícia Federal (no 248/2016 — SETEC/SR/DPF/BA): “Foi possível verificar que as boias de contenção não surtiram o efeito desejado para barrar o avanço da pluma, restando constatado que a turbidez da água em ambos os lados das boias era elevada.” A massa, com a consistência de uma gelatina, não diluía e não decantava. Ficava em suspensão, misturada à agua, da superfície ao fundo.

Órgãos públicos estaduais e federais, ONGs, universidades e pesquisadores independentes avaliaram a qualidade da água do rio. Os testes comprovaram a presença de metais pesados dezenas de vezes acima dos limites legais. O Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM) constatou a presença de metais (Relatório Técnico no 17/11/2015) logo nos primeiros dias após o rompimento da barragem. Arsênio, cádmio, chumbo, cromo, níquel, mercúrio, cobre, ferro, manganês e alumínio “apresentaram valores acima do limite legal no momento de passagem de pluma” em vários pontos de monitoramento. O chumbo chegou a estar cem vezes acima do normal. De acordo com a Samarco, o rejeito, composto de óxido de ferro e sílica, não era tóxico. Em seu laudo, o IGAM explicou a presença de metais pesados:

pode ser devido ao revolvimento de grande volume de material de fundo ocasionado pelo deslocamento da pluma de rejeitos, o que pode ser a causa da ressuspensão dos materiais que haviam sido depositados por longos períodos no leito do rio.

O documento também alertava:

No entanto, não é possível prever quando as condições do rio Doce retornarão à normalidade, devido às proporções do impacto causado pelo evento e a possibilidade de novos revolvimentos ocasionados por fatores externos, tais como a ocorrência de chuvas na bacia.

Em seu perfil no Facebook, três dias após o rompimento da barragem, o biólogo capixaba André Ruschi, filho do lendário ecologista Augusto Ruschi, fez um alerta preocupante:

Esta sopa de lama tóxica que desce o rio Doce e descerá por alguns anos toda vez que houver chuvas fortes, irá para a região litorânea do Espírito Santo, espalhando-se por uns 3 mil km2 no litoral norte e uns 7 mil km2 , no litoral ao sul, atingindo três unidades de conservação marinhas — Comboios, Área de Proteção Ambiental Costa das Algas e o Refúgio de Vida Silvestre de Santa Cruz, que juntos somam uns 200 mil hectares no mar. Os minerais mais tóxicos e que estão em pequenas quantidades na massa total de lama aparecerão concentrados na cadeia alimentar por muitos anos, talvez uns cem anos.

Ruschi também estimou que a lama chegaria ao Parque Nacional Marinho de Abrolhos, no litoral baiano.

À medida que a lama avançava em direção ao Atlântico, a preocupação aumentava por causa do estreitamento progressivo da foz do rio Doce nos últimos anos. Com um aporte tão grande de sedimentos, o delicado ecossistema do estuário — com espécies ameaçadas de extinção, como o caranguejo guaiamum, e um complexo sistema de mananciais, lagoas e brejos — poderia ser simplesmente sufocado pelo acúmulo. A Samarco providenciou tratores para abrir uma passagem e escavar canais na barra do rio, aumentando sua vazão e evitando que a massa ficasse retida. Às 15h de 21 de novembro, quase no mesmo horário em que a barragem rompeu, a lama completou sua tétrica jornada de dezesseis dias ao longo do rio Doce e alcançou a foz, em Regência, diante dos moradores atônitos e indignados, muitos carregando faixas de protesto contra a mineradora. Regência passou a ter um mar de lama em suas praias, e isso não era uma força de expressão. A partir da foz, a massa seguiria maculando o oceano com um imenso borrão cor de ferrugem, que se espraiava dia após dia.

Além de Regência, as praias de Povoação e Comboios foram interditadas. A princípio, a mancha de rejeitos se dirigiu para o sul. Com a mudança dos ventos, seguiria também para o norte do Espírito Santo, alcançando o sul da Bahia. Três dias depois da chegada da lama, a perícia da PF constatou, por meio de GPS, que o tamanho da mancha no mar chegara a 373 km2 (Laudo no 248/2016 — SETEC/SR/DPF/BA). Com o passar dos meses, o monitoramento do ICMBio mostraria que a lama se desdobrara em três manchas, ou plumas, de concentrações distintas. A mais densa permaneceu na foz, em Regência. Outra, mais leve, se manteve na superfície e alcançou maiores distâncias, chegando, em meados de 2016, até Abrolhos, a cerca de 200 quilômetros da foz. Uma outra, de média concentração, foi detectada em duas unidades marinhas de conservação no Espírito Santo: a APA Costa das Algas e o Refúgio de Vida Silvestre de Santa Cruz, no litoral dos municípios de Aracruz, Serra e Fundão, confirmando o alerta feito por André Ruschi. A lama ameaçava peixes, golfinhos, crustáceos, corais, algas, aves, enfim, toda a cadeia alimentar do ambiente marinho e, em especial, as tartarugas, monitoradas pelo Projeto Tamar e que estavam em plena temporada de reprodução, depositando seus ovos nas praias capixabas próximas à foz.

Naqueles primeiros momentos de estupefação, em 2015, a única certeza entre os que acompanhavam a funesta jornada da lama era de que seus efeitos seriam duradouros. A mancha no mar alcançava uma superfície tão vasta que podia ser vista do espaço. Até os satélites da Nasa, a agência espacial americana, captaram o monstro marrom que se espraiava no oceano.

O rompimento da barragem provocou impactos em cadeia como os círculos concêntricos que se formam quando uma pedra cai na superfície de um lago. A morte das andorinhas-do-mar é um triste exemplo desse fenômeno. Os peritos observaram que as aves sobrevoavam o mar em busca de comida, mas não conseguiam mergulhar na água excessivamente turva e arremetiam, sem capturar nenhum peixe. As andorinhas, monitoradas com anilhas por cientistas americanos que estudam seu ciclo migratório, começaram a manifestar sintomatologia nervosa. “Elas jogavam a cabeça para trás, é um sinal de fome. O barulho dos helicópteros também perturbava e elas não conseguiam repousar. Recolhemos trinta andorinhas mortas e examinamos. Elas estavam com estômago vazio. Morreram de fome”, relatou o perito Rodrigo Mayrink, médico veterinário, com mestrado em perícia criminal ambiental. Por todos esses impactos, classificou a lama da barragem como “biocida”: “Ao longo dos primeiros 100 km de rio, todas as formas de vida, macro e microscópica, foram extirpadas das margens. Não se via um inseto.”

A Polícia Federal considera a extensão de 660 quilômetros de danos provocados pela massa o maior cenário de crime do mundo. É mais que a distância entre Belo Horizonte e São Paulo, sem contar o tamanho da mancha no oceano. Uma análise do ICMBio, em novembro de 2015, alertava:

Sabe-se que a lama, ao sedimentar, comprometerá sobremaneira o fundo marinho e ainda ficará disponível no ambiente por várias décadas. A cada novo fenômeno natural de ressurgência e ventos fortes todo o sedimento e seus poluentes serão ressuspensos e disponibilizados novamente.

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No dia em que a lama chegou ao mar, o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), criou uma força-tarefa para avaliar as perdas econômicas, sociais e ambientais. O grupo teve a participação de 35 instituições públicas e privadas e fez um amplo diagnóstico, chegando ao valor preliminar de R$ 1,2 bilhão de prejuízos para o estado, os municípios, empresas e propriedades urbanas e rurais. O valor não incluiu o custo da recuperação ambiental e das indenizações a serem pagas. Das 195 fazendas atingidas, 25 foram totalmente destruídas. A lama arrastou tratores, ordenhadeiras, motores, bombas, tanques de leite e balanças, num total de 293 máquinas e equipamentos. Mais de 160 mil metros de cerca e 1.596 animais, a maioria gado, foram levados na enxurrada.

Oito pontes foram destruídas e quilômetros de estradas ficaram entupidos de lama, a ponto de comprometer o escoamento de produtos por algum tempo. A força-tarefa estimou que, nos quatro municípios mais afetados (Mariana, Barra Longa, Rio Doce e Santa Cruz do Escalvado), 21 mil litros de leite deixaram de ser entregues por dia, logo após o desastre. Também neles, 389 casas foram destruídas e 94 danificadas, deixando 812 pessoas desabrigadas (logo após a tragédia, a Samarco instalou as vítimas em hotéis de Mariana e, um mês depois, alugou casas para as famílias na cidade). Seis escolas e dois postos de saúde foram devastados.

Em quinze cidades, houve paralisação temporária de empresas e atividades por falta de água e energia nos setores de mineração, comércio, turismo, agropecuária, pesca e extração de areia. Trabalhadores foram demitidos. Em Governador Valadares, o Clube de Diretores Lojistas estimou uma queda de 70% nas vendas. A prioridade da população era buscar água nos 48 pontos de distribuição. Além disso, aulas foram suspensas e muita gente deixou a cidade e foi para a casa de parentes em outros lugares. Comunidades que dependiam do transporte de balsa no rio Doce passaram a usar canoas para não ficar isoladas. O governo estadual e as prefeituras tiveram gastos emergenciais na assistência médica aos atingidos, abastecimento de água e esgoto, limpeza urbana, distribuição de combustível e segurança pública.

Duas cidades, fortemente dependentes de uma única atividade econômica, tiveram queda drástica de arrecadação. Com a paralisação da Samarco, a prefeitura de Mariana deixou de recolher R$ 9 milhões em impostos por mês, mais de 80% de seu recebimento. E Rio Doce ficou sem a receita proveniente da compensação financeira pelo uso de recursos hídricos, paga pela Usina de Candonga, também paralisada. A força-tarefa calculou que 311 mil pessoas, em Minas Gerais, sofreram impactos diretos do rompimento da barragem. A investigação do Ministério Público Federal estimou os atingidos em 424 mil pessoas, considerando Minas Gerais e Espírito Santo.

Ainda que pormenorizado, o levantamento da força-tarefa não tinha como abarcar muitas das perdas, algumas de valor intangível. Como compensar, por exemplo, a destruição de uma capela do século XVIII, como a de São Bento, em Bento Rodrigues, da qual sobraram apenas o piso e fragmentos de peças sacras? Ao aterrar povoados, a lama desatou também laços de convívio social e tradições culturais seculares, como as festas de São Bento e das Mercês, em Bento Rodrigues, e a Folia de Reis, em Paracatu de Baixo. Em Barra Longa, só um amplo estudo epidemiológico poderá avaliar o impacto na saúde física e mental dos moradores, muitos deles necessitados de tratamento para depressão. Como dimensionar, por exemplo, a dissolução do modo de vida ancestral dos Krenak, que dependiam do rio Doce para tudo? Privados da água e dos peixes, os índios passaram a receber cestas básicas e água de caminhão-pipa. Quem saberá mensurar o prejuízo étnico-cultural dessa distorção nas futuras gerações de indígenas?

Profissionais perderam empregos; proprietários rurais, as condições de produzir. Trabalhadores informais seguiam lutando, em 2018, para comprovar que também haviam sido vitimados pela lama tóxica. Estima-se ainda que mais de 6.500 pescadores, nos dois estados, perderam sua fonte de renda.

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Doze dias depois do desastre, com a lama ainda avançando pelo rio Doce, o biólogo André Ruschi fez novo post no Facebook:

Anfíbios do rio Doce e as pragas de insetos. Se todos os anfíbios de 3 mil km2 foram dizimados (500 bilhões de indivíduos), significa que uma grande parte dos insetos da região (que sobreviverem) não terão predadores e vão virar pragas. Preciso dizer mais alguma coisa?

Talvez tenha sido essa a origem de uma especulação, que circulou em redes sociais, atribuindo ao biólogo uma declaração segundo a qual haveria relação entre a ocorrência de Fundão e o aumento de casos de febre amarela. O vírus da doença é transmitido por mosquitos infectados e, no fim de 2016, houve um novo surto, já considerado o mais severo no país desde 1980. Segundo os dados mais atuais do Ministério da Saúde (para o período entre julho de 2017 e abril de 2018), Minas Gerais teve o maior número de mortes por estado, 156, quase a metade de todo o país, que foi de 342.

Ruschi morreu em abril de 2016, aos 60 anos, em Vitória, depois de 20 dias internado para tratar de uma infecção generalizada provocada por uma bactéria. Procurei seus parentes para checar se a especulação tivera origem nele. Li dezenas de declarações suas à imprensa e seus posts em redes sociais. Nada encontrei que se referisse à associação entre o desastre e o surto. Seu filho, Gabriel Ruschi, agora no comando da Estação Biologia Marinha Augusto Ruschi (EBMAR), em Aracruz, litoral do Espírito Santo, disse, por telefone, em 2018, desconhecer qualquer declaração do pai nesse sentido. “Essa suposta relação circulou muito, mas ele nunca falou sobre isso.”

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A princípio, a Samarco tratou o rompimento como um acidente, que poderia estar relacionado a tremores de terra ocorridos no começo da tarde em que Fundão estourou. Mas a hipótese de um desastre, fruto de negligência, imperícia ou coisa pior, começava a se impor e a provocar muitas indagações. Por que a barragem rompeu? Como ninguém percebeu que estava prestes a ruir? Por que os órgãos fiscalizadores não detectaram algo errado? A barragem era monitorada adequadamente? Estava com as licenças em dia? Por que as pessoas não foram avisadas por sirenes?

Essas questões norteariam o trabalho dos investigadores que, tão logo souberam da tragédia, começaram a levantar o histórico da barragem de Fundão, em busca de pistas e respostas.