5
O promotor e o projetista
Na tarde da catástrofe, o promotor do Ministério Público de Minas Gerais Carlos Eduardo Ferreira Pinto estava no restaurante Pinguim, no Park Shopping de Brasília, com o colega Felipe Faria, fazendo hora para embarcar no voo das 21h, de volta a Belo Horizonte. Na véspera, tinham ido à capital receber um prêmio do Conselho Nacional do Ministério Público pelo projeto Desmatamento Zero, que havia tirado Minas Gerais do primeiro lugar da lista dos estados que mais desmatavam a mata atlântica.
Enquanto aguardava o lanche e tomava um chope, Carlos Eduardo recebeu uma mensagem de um colega, no grupo de WhatsApp dos promotores de meio ambiente, avisando sobre o rompimento da barragem. A primeira providência foi ligar para o tenente-coronel da Polícia Militar Valmir Fagundes, do Núcleo de Combate aos Crimes Ambientais, e pedir que fosse para o local do rompimento e o mantivesse informado. Em seguida, telefonou para o promotor da comarca de Mariana, Antônio Carlos de Oliveira. Ambos definiram, com base nas primeiras informações, que a investigação ficaria sob o comando de Carlos Eduardo, coordenador do Núcleo de Resolução de Conflitos Ambientais (Nucam).
Esse núcleo especializado fora criado em 2012, no MPMG, ante à necessidade de estudos técnicos aprofundados sobre impactos ambientais, entre os quais os provocados pelas barragens de rejeitos de mineração. Desde 1986, cinco acidentes haviam sido registrados em estruturas desse tipo. O mais recente ocorrera um ano antes, na barragem da Herculano Mineração, em Itabirito, deixando três operários mortos.
Logo as informações começaram a chegar com mais precisão, dando conta da magnitude do desastre. O promotor fez, então, mais duas chamadas. Ligou para a geóloga Marta Sawaya Miranda, analista do MPMG desde 2003, e pediu que fosse para Mariana bem cedo na manhã seguinte. E telefonou para o marido de Marta, o engenheiro civil Joaquim Pimenta de Ávila, mestre em geotecnia de barragens. Pimenta havia trabalhado com o Ministério Público na investigação do rompimento da estrutura da Herculano Mineração. Carlos Eduardo pediu que o engenheiro atuasse novamente como perito para o MP estadual. Pimenta pareceu evasivo, mas aceitou o pedido. Cinco minutos depois, telefonou de volta para o promotor e disse: “Fui eu que projetei a barragem.”
Desconcertado, Carlos Eduardo desligou e, enquanto buscava na memória outro nome para substituir o engenheiro, se viu às voltas com mais uma preocupação. Pelo WhatsApp, os promotores perguntavam qual deles fora o representante do Ministério Público no Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam), órgão colegiado subordinado à Secretaria Estadual de Meio Ambiente, que analisa o impacto ambiental dos empreendimentos e concede as licenças de funcionamento. Questionavam-se também sobre o posicionamento do MPMG no caso de Fundão. Carlos Eduardo integrava o Copam desde 2009, mas não se lembrava, naquele momento, de quais etapas do licenciamento de Fundão, iniciado em 2007, atuara. Pouco antes de embarcar, uma colega confirmaria, no grupo, que Carlos Eduardo havia participado do processo da renovação da licença de operação, em 2013. “Viajei preocupado. A gente sabia que tinha muita coisa errada no licenciamento da barragem. Mas eu não lembrava de tudo. Tinha que recuperar o processo. Aquilo me preocupou muito”, disse o promotor, em entrevista dois anos depois da tragédia.
Quando desembarcou no aeroporto de Confins, às 23h, havia dezenas de mensagens no aplicativo. Uma delas informava: “KZ (apelido de Carlos Eduardo no grupo) pediu vistas e na reunião se absteve de votar.” Seria preciso rever o licenciamento da barragem e a atuação do MP no Copam. Naquela noite, mal conseguiria cochilar. No dia seguinte, às 6h, tomou o helicóptero dos bombeiros e foi para Bento Rodrigues. Ficou estarrecido com o que viu do alto. A aeronave pousou no campo de futebol para que pudesse avaliar de perto os estragos. “A lama borbulhava, parecia um organismo vivo. Não dava para pisar. Ali já percebi que era o maior desastre ambiental de Minas Gerais.”
* * *
De Bento Rodrigues, foi para a sede da Samarco, em Mariana, onde já estava o governador, Fernando Pimentel. O ambiente era caótico. Os diretores da empresa pareciam abalados e não sabiam o que dizer. Eles se reuniram com o governador e o promotor. Ricardo Vescovi, diretor-presidente, com a voz embargada, apresentou aquela que seria uma das primeiras teses de defesa da companhia: no dia do rompimento haviam sido registrados tremores de terra na área da barragem, o que poderia ter provocado o “acidente”.
De volta à sede do Nucam, em Belo Horizonte, Carlos Eduardo, com doze anos de atuação na área ambiental, requisitou ao arquivo da Secretaria Estadual de Meio Ambiente de Minas Gerais (Semad) todo o processo de licenciamento de Fundão, que não estava digitalizado. Eram dezenas de pastas empoeiradas, com milhares de relatórios e documentos, que ocuparam toda a mesa de reuniões do gabinete dele. Naquela mesma sexta-feira, a secretaria e o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) interditaram e suspenderam as atividades no complexo minerário de Germano, como é conhecida a área industrial da Samarco. No auto de fiscalização da Semad, a empresa informou que 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos deviam ter vazado. Posteriormente, disse que o volume foi, na verdade, de 34 milhões de metros cúbicos.
No sábado, já nomeado coordenador da força-tarefa pelo procurador-geral de Justiça de Minas Gerais, Carlos André Mariani, Carlos Eduardo reuniu a equipe na promotoria para distribuir funções. E avisou aos colegas que, daquela vez, não poderiam contar com a colaboração do engenheiro Pimenta de Ávila por um conflito ético incontornável: além de ser o projetista de Fundão, era casado com uma funcionária do MPMG. O engenheiro e a geóloga estavam juntos desde março de 2015. No dia seguinte ao desastre, Marta Miranda havia sobrevoado a barragem de helicóptero para examinar as condições de risco e propor ações emergenciais. Dias depois, seria afastada do núcleo da investigação sobre as possíveis causas do rompimento. Continuou participando, porém, dos procedimentos relacionados à segurança das estruturas remanescentes: a barragem de Germano e seus três diques auxiliares (Sela, Tulipa e Selinha), e a barragem de Santarém.
O coordenador da força-tarefa formou uma equipe com doze promotores de Justiça, todos especializados em defesa do meio ambiente, patrimônio histórico e cultural, habitação e urbanismo, que trabalhariam em conjunto com os colegas das dezessete comarcas com jurisdição nos 38 municípios atingidos. Eles se concentrariam na compensação e na recuperação de impactos locais, porque o crime ambiental como um todo ficaria a cargo do Ministério Público Federal, já que o Doce, por atravessar mais de um estado, é um rio da União. A atuação dedicada aos impactos locais funcionou como uma estratégia de guerrilha.
Ao longo dos meses seguintes, o MPMG abriria diversos procedimentos para investigar o licenciamento da barragem, a regularidade de sua operação, a eventual omissão dos órgãos de fiscalização, os danos ao patrimônio cultural e as consequências do desastre nos municípios, como o colapso do abastecimento de água em Governador Valadares. Também entraria com ações civis públicas cobrando da Samarco a implantação de diques provisórios de segurança no complexo industrial; um plano de emergência para o caso de rompimento de alguma estrutura; um projeto para retirar a lama da UHE Candonga; e a suspensão das licenças da mineradora enquanto não fosse comprovada a estabilidade das barragens remanescentes.
Com essas ações, o Ministério Público estadual queria que a empresa se submetesse a um novo processo de licenciamento antes de voltar a operar. A ação dos promotores era lastreada no trabalho de quatro núcleos técnicos, que produziram sessenta laudos, perícias, vistorias e relatórios de fiscalização, além de 77 mapas. Já nos primeiros dias após a tragédia, a Samarco assinou um Termo de Compromisso Preliminar com o MPMG destinando R$ 1 bilhão como garantia mínima para medidas emergenciais. Algumas das ações ajuizadas pela força-tarefa até viraram acordos judiciais mais adiante. O MPMG apresentou às empresas, em meados de 2016, uma proposta de termo de ajustamento de conduta para resolver as demandas judiciais que se avolumavam. As companhias, porém, não se interessaram, especialmente porque preferiam fazer um acordo com o governo federal e os governos de Minas Gerais e Espírito Santo.
A imprensa também foi um campo de batalha entre a Samarco e a força-tarefa do MPMG. A empresa insistia na tese de que tremores de terra teriam provocado o acidente. Em uma de suas primeiras entrevistas, contudo, Carlos Eduardo Ferreira afirmou: “Não foi acidente. Barragem não cai por acaso.” As duas frases virariam hashtag nas redes sociais. O promotor passou a dar entrevistas quase que diariamente, para a mídia do Brasil e do exterior, sempre mencionando que as acionistas Vale e BHP deveriam ser chamadas às suas responsabilidades.
* * *
Por ser o projetista da barragem, Pimenta de Ávila, então com 70 anos, tornou-se um dos primeiros alvos das investigações. O engenheiro mineiro tem uma longa folha de serviços prestados às maiores mineradoras do país, entre as quais a Vale, dona de 50% da Samarco. Projetou mais de cem barragens no Brasil e no exterior, de água — para geração de energia — e de mineração. Começara a trabalhar para a Samarco em 1993. Em 2003, iniciou os estudos de viabilidade de Fundão e apresentou seu projeto em 2007.
Em seu livro Barragens de rejeitos no Brasil , de 2012, ele aborda os riscos de acidentes nessas estruturas. Ironicamente, a capa traz uma fotografia de Germano e Fundão, ambas da Samarco. O texto faz um histórico dos acidentes com barragens de rejeitos no Brasil e no mundo no século XX, mostrando que ocorrem em lugares tão distintos como o Zimbábue e os Estados Unidos. O levantamento foi feito pela Comissão Internacional de Grandes Barragens (ICOLD, na sigla em inglês), organização não governamental fundada em 1928, por engenheiros, geólogos e cientistas, para troca de conhecimento e da qual Pimenta é um dos integrantes brasileiros. Entre os desastres desse tipo com maior número de mortos estão, segundo essa pesquisa, os de Stava, na Itália, em 1985, com 269 mortos, e Buffalo Creek, nos Estados Unidos, em 1972, com 125 mortos.
O Brasil tem cinco episódios na lista, todos em Minas Gerais. Dois deles com mortes: o da barragem de Fernandinho, em Itabirito, com sete (1986), e o da mineração Rio Verde, em Nova Lima, com cinco (2001). Outros três rompimentos haviam deixado populações desabrigadas e causado danos ambientais: Cataguases, em 2003; Miraí, em 2006 e 2007. O levantamento é anterior às tragédias da Herculano Mineração, em Itabirito, e da Samarco, em Fundão, que passaria a ser considerada a maior do mundo em barragens de mineração, nos últimos cem anos, de acordo com um estudo da consultoria Bowker Associates, dos Estados Unidos, especializada em gestão de riscos em construção pesada. A consultoria articulou três critérios: o volume de rejeito despejado no meio ambiente, a extensão percorrida pela lama e o custo de recuperação das perdas.
O reservatório de Fundão armazenava 55 milhões de metros cúbicos de resíduos. Segundo a Samarco, desse total, 34 milhões de metros cúbicos vazaram. Até então, os dois maiores acidentes com barragens em termos de volume haviam ocorrido nas Filipinas, ambos nas ilhas Luzon. Em 1982, vazaram 28 milhões de metros cúbicos de rejeitos e, em 1992, 32,2 milhões de metros cúbicos. Fundão também bateria o triste recorde de maior distância percorrida pela massa, 660 quilômetros, marca que superava os 300 quilômetros viajados pela lama decorrente de acidente ocorrido na Bolívia. Por fim, o custo de reposição das perdas, estimado inicialmente em US$ 5,2 bilhões, seria o maior do mundo, mesmo sem que se soubesse, anos depois do rompimento, quanto exatamente seria necessário, uma vez que a dimensão da desgraça impedia um diagnóstico completo de seus impactos.
* * *
Barragens de água existem desde a Antiguidade. A mais antiga delas ainda em funcionamento foi construída pelos romanos, em 1304 a.C., onde hoje fica a cidade de Homs, na Síria. Antes da guerra civil, a barragem de Quattinah Lake abastecia a então terceira maior cidade síria. Não se sabe o que aconteceu depois dos bombardeios. Já as barragens de rejeitos de mineração são uma tecnologia muito mais recente, desenvolvida a partir do momento em que a mineração começa a ganhar escala, no século XIX. Os primeiros estudos de engenharia para esse tipo de construção foram feitos na Universidade de Glasgow, Escócia.
Antes das barragens de mineração, “os rejeitos eram abandonados no relevo, seguiam para os rios, que os levavam para o mar”, explicou o geólogo Flávio Miguez de Mello. “Com o aumento da produção mineral, isso se tornou inviável e os rejeitos passaram a ser acumulados em barragens. Na primeira metade do século XX, eles eram acumulados sem muita tecnologia. Mas começaram a ocorrer acidentes impactantes e aumentou a preocupação em melhorar as barragens de rejeitos.”
No livro, Pimenta de Ávila faz várias considerações sobre a frequência e as causas dos desastres na indústria da mineração. Em um trecho, afirma:
Com o passar do tempo, a produção de rejeitos aumentou e as áreas para disposição se tornaram cada vez mais escassas, culminando no desenvolvimento dos projetos de engenharia permitindo a construção de barragens com alturas cada vez maiores. Esses projetos se tornaram possíveis com a ampliação contínua do conhecimento e controle dos aspectos de segurança, tais como melhor compreensão do comportamento dos materiais, novos desenvolvimentos na ciência de mecânica do solo, introdução de equipamentos cada vez mais robustos para movimentação de terra. Entretanto, as falhas ocorrem, muitas vezes devido à falta de aplicação dos métodos conhecidos, de projetos mal elaborados, de supervisão deficiente durante a construção ou negligência das características vitais incorporadas na fase de construção.
A análise do engenheiro foi, involuntariamente, premonitória sobre algumas das explicações para o que ocorreu em Mariana, conforme a investigação viria a mostrar. Pimenta trabalhou como projetista de Fundão, para a Samarco, até 2012, quando houve uma suspensão de um ano e meio no seu contrato, posteriormente retomado — e que estava em vigor em 2015. Ele, no entanto, voltara em nova função, não como projetista das futuras expansões da barragem (alteamentos), mas como revisor de projetos de outras empresas para a Samarco.
Conhecedor da companhia e com muitas conexões no mundo da mineração em Minas Gerais, o engenheiro soube ler os sinais emitidos pela mineradora assim que o desastre aconteceu, e percebeu que, além da tese dos tremores de terra, a Samarco alegaria falhas no projeto da estrutura, o que poderia tragá-lo para o centro das investigações tanto da Polícia Federal quanto da Polícia Civil, e das apurações do MPMG e do Ministério Público Federal. Ele foi aconselhado por pessoas próximas a se antecipar e fornecer informações técnicas aos investigadores. A princípio, Pimenta hesitou — tinha contratos com a Samarco e a Vale. Mas acabou colaborando.
Informou que a Samarco havia modificado o eixo de Fundão, contrariando o projeto de sua autoria. A mudança provocara o que viria a ser conhecido como “recuo” da barragem, o ponto onde a ruptura deve ter começado, segundo suspeitava. Disse que havia alertado a empresa para a possibilidade de liquefação dos rejeitos, que pedira estudos que não foram feitos, e que documentos fundamentais para a operação da barragem, como o Manual de Operação e a Carta de Risco, estavam defasados. A falta de atualização deste último teria graves implicações na elaboração do laudo de estabilidade, feito pelo engenheiro Samuel Loures, da empresa VOGBR.
Graças às informações e documentos fornecidos por Pimenta de Ávila, o delegado da PF Roger Lima de Moura identificou fragilidades e contradições nos depoimentos de diretores e gerentes da Samarco, soube que perguntas fazer e a quem, e mapeou os documentos que devia solicitar. Com toda essa base técnica, pediu autorização judicial para a interceptação telefônica dos investigados — inclusive do próprio Pimenta de Ávila — e reforçou as suspeitas que tinha sobre as responsabilidades de cada um. A Justiça só não autorizaria a quebra de sigilo telefônico do diretor-presidente da companhia, Ricardo Vescovi. O delegado também foi autorizado a fazer buscas na central do servidor da Samarco, e teve acesso a chats e troca de e-mails dos investigados, inclusive Vescovi.
Por ter colaborado com a investigação, Pimenta atraiu a artilharia da Samarco. A empresa passou a questionar aspectos de seu projeto e a divulgar que ele fora à barragem no dia do rompimento sem, no entanto, perceber algo de errado. O engenheiro esclareceria que sim, estivera em Mariana naquele dia, mas para visitar o vale do córrego Natividade com vistas a outro empreendimento da mineradora, e que não pusera os pés em Fundão.
Ao final das apurações, Pimenta de Ávila não foi implicado na ação e se tornou testemunha de acusação no processo judicial.