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Fiscalização

A legislação brasileira de barragens (Lei no 12.334 de 20 de setembro de 2010) estabelece que é responsabilidade do empreendedor garantir a segurança de suas estruturas e que a fiscalização das atividades de mineração é compartilhada entre o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), autarquia subordinada ao Ministério de Minas e Energia, e os órgãos licenciadores estaduais. No caso de Fundão, a fiscalização mostrou-se omissa e ineficiente. O DNPM, por exemplo, classificava a barragem da Samarco na categoria de risco “baixo”, mas com dano potencial associado “alto”.

O que isso quer dizer?

Considera-se o risco baixo quando a documentação da barragem está em dia, o que, supostamente, demonstraria que é bem administrada, com pequena probabilidade de acidente. O dano potencial, porém, é alto porque, por estar próxima a concentrações populacionais, as consequências seriam graves no caso de um rompimento. Era assim que os órgãos de fiscalização viam Fundão.

Por que se equivocaram?

O Tribunal de Contas da União divulgou, em setembro de 2016, a conclusão de uma auditoria no DNPM que expôs com clareza o mecanismo de faz de conta em que consistia a classificação de barragens à época. O cadastramento era feito com o fornecimento unilateral de informações pelas empresas, sem que o órgão público verificasse a veracidade dos dados. A validação, porém, só se dava quando da fiscalização in loco. Ocorre que essas mesmas informações eram usadas para a classificação de risco, a base para se determinar quais estruturas teriam prioridade na fiscalização. Era como se o dono da barragem determinasse se seria ou não fiscalizado. “Sem contar a possibilidade de os empreendedores distorcerem os dados para evitar a fiscalização”, disse o relator do processo, ministro José Múcio Monteiro.

O relatório do TCU disse ainda que a atuação do DNPM era “frágil, deficiente e carente de coordenação adequada, não atendendo, em consequência, aos objetivos da Política Nacional de Segurança de Barragens”. No caso específico da seção mineira da autarquia, o TCU apontou a insuficiência de recursos humanos: tinha 79 servidores quando deveria ter cinco vezes mais.

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Treze dias depois do desastre, o então diretor-geral do DNPM, Celso Luís Garcia, no cargo havia cinco meses, apresentou uma licença médica e pediu demissão sem dar qualquer declaração sobre o caso. Antes de assumir o posto, por indicação do PMDB mineiro, fora, por quatro anos, superintendente regional do órgão em Minas Gerais.

Uma auditoria anterior do TCU, de 2012, feita a pedido do Ministério Público de Minas Gerais, já havia constatado o sucateamento da autarquia nos níveis federal e local. Segundo a auditagem, os funcionários da seção mineira não tinham carros, aparelhos de GPS, mapas atualizados e imagens de alta resolução com as coordenadas geográficas dos locais a serem vistoriados, e faltavam até coletes.

A situação não melhoraria depois disso, conforme o substituto de Garcia, o geólogo Telton Elber Correa, funcionário de carreira do DNPM e ex-assessor da então presidente Dilma Rousseff, demonstrou em apresentação na Câmara dos Deputados, em março de 2016. Segundo Correa, o DNPM tinha então 985 servidores para fiscalizar todos os empreendimentos de mineração no Brasil, inclusive as barragens de rejeitos, a saber: 7.195 concessões de lavra ativas; 29 mil alvarás de pesquisa; 13.717 registros de licença para materiais usados na construção civil; 1.879 permissões de garimpo; 1.191 registros de extração para materiais usados em obras públicas; mil operações anuais de combate a lavras clandestinas; e 830 complexos de água mineral.

Do total de servidores, apenas cinco eram especializados em geotecnia para fiscalizar barragens de rejeitos, sendo que estão cadastradas no DNPM 663 barragens de mineração. Dessas, 28 são consideradas de alto risco, 19 de médio risco e 355 de baixo risco — como era o caso de Fundão.

Em entrevista para este livro, Telton Correa apontou também o envelhecimento do quadro técnico, com muitos funcionários aposentados sem substituição, já que a autarquia estava sem concurso havia 10 anos: “A estrutura está muito aquém das responsabilidades que o órgão precisa enfrentar. O DNPM é um órgão cartorial, burocrático, serve para carimbar papel. Essa parte é muito incentivada. É o que as empresas querem que ele faça.” Fez também observações sobre a legislação, que, embora recente, de 2010, precisaria ser aperfeiçoada: “Tem que melhorar a definição das responsabilidades e a capacidade dos órgãos públicos de fazer com que as empresas adotem suas determinações. As sanções legais também deveriam ser mais pesadas, inclusive com a possibilidade de suspensão dos títulos de lavra.”

Não surpreende, portanto, que o DNPM — tal como a Secretaria Estadual de Meio Ambiente — ignorasse que a Vale depositava lama na barragem de Fundão. Segundo o Ministério Público Federal, a autarquia informou que só tomara conhecimento dessa prática em 27 de novembro de 2015, em decorrência de uma fiscalização de campo após o desastre. Os dois órgãos também falharam em detectar o risco representado pelo recuo do eixo da barragem, feito em 2012. Ambos, ante o rompimento, informariam desconhecer aquela intervenção. Contudo, uma reportagem de Estevão Bertoni e José Marques, publicada na Folha de S.Paulo em 26 de julho de 2016, mostrou que a Semad fizera inspeções ao menos uma vez por ano, em 2013, 2014 e 2015, no local. A vistoria de 2014 concluiu que a barragem estava em “condições satisfatórias”. A de 2015, em julho, que as condições de segurança eram “adequadas”.