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“Enterrei meu marido duas vezes”
Daniel Altamiro de Carvalho, 53 anos, estava havia três meses no novo emprego — operador de máquinas da empresa Integral Engenharia, terceirizada da Samarco — quando a barragem estourou. O trabalho novo era uma volta por cima depois de ter sido demitido, em 2014, da Vale, onde estivera por 25 anos. “Ele ficou muito chateado, nunca explicaram para ele o motivo. Foi uma demissão injusta, ele ficou revoltado”, contou a viúva, Tania, 49 anos, professora do ensino fundamental.
O emprego de carteira assinada completaria o tempo que faltava para Daniel se aposentar, em março de 2016. E seria um reforço importante na renda que, naquele momento, vinha apenas do táxi, um Fiat que ele nunca deixara de rodar, mesmo nos tempos da Vale, em folgas e fins de semana. Quando se aposentasse, o plano era manter o táxi com horário flexível, para poder se dedicar mais a Tania e às duas filhas, Sandra e Sabrina.
Tania e Sabrina estavam na rua, em Mariana, quando ouviram um guarda comentar sobre o desastre. Preocuparam-se e voltaram para casa. Tania tentou achar o marido por telefone. Nada. Ligou o rádio em busca de informações. Nada. “Às 21h, eu estava desesperada. Um vizinho veio cá me ajudar e ligou para a Integral, mas ninguém sabia dele.” Quando soube que o marido estava entre os desaparecidos, manteve a esperança. “Daniel era muito precavido, muito esperto. No começo, eu achava que tivesse dado tempo dele fugir.” Foram dias de muita angústia. “A Integral ligava para saber se eu tinha notícia quando eles é que deviam me dar informação.”
Partes do corpo foram encontradas em dois momentos e locais distintos. “Enterrei meu marido duas vezes.” Tania conseguiu saber com colegas de Daniel que, no momento do rompimento, ele dirigia um trator. “Mas não sei direito o que aconteceu. Uns falam que avisaram e ele não ouviu porque estava com o fone de ouvido. Outros dizem que ele tentou sair do trator. E outros dizem que ele ficou em choque quando viu e paralisou.”
* * *
Tania é de Ouro Preto, Daniel era de Barra Longa. Conheceram-se por intermédio de uma tia dela. “Como é que eu faço para conquistar sua sobrinha?”, indagou o rapaz, então com 24 anos. A senhora abriu o caminho que facilitaria a aproximação do casal. Era o começo de uma vida inteira juntos: sete anos de namoro, 22 de casamento. Tiveram Sandra e Sabrina, ambas estudantes da Universidade Federal de Ouro Preto. A primeira cursa engenharia de produção; a segunda, engenharia civil. “Nossa Senhora! Elas eram o orgulho do pai. Tudo que ele fazia era para elas, para a casa, para a gente. Ele prezava muito o estudo para que elas tivessem um futuro melhor. Os amigos dizem que ele falava delas com muito orgulho. Hoje, toda conquista delas é para ele.”
Na casa de dois andares e quatro quartos, construída por Daniel seis anos antes de morrer, ele cuidava de tudo. “Era muito caprichoso, fez a casa do jeito dele, tinha bom gosto. Tem muita mão dele aqui. Não fazia gambiarra de jeito nenhum. Ele era pedreiro, eletricista, pôs até o telhado e eu escolhi as cores das paredes”, contou Tania. Da varanda no andar de cima, a vista se perde nas montanhas ao longe. Chama atenção um capricho extra na entrada: uma rampa de acesso lateral. “Ele fez para quando a gente ficasse velhinho, pra não ter que subir a escada.” Nos fundos do terreno, Daniel construiu piscina, churrasqueira e canteiros para a horta, que tinha alface, couve, cebolinha, mostarda, milho-verde e almeirão. Dois canários nas gaiolas também são herança do marido. “Ele era da roça. Tento conservar tudo do jeito que ele gostava, como uma homenagem.” Na garagem, estão o táxi e os equipamentos de pesca, passatempo preferido nas folgas de Daniel. A casa consumira todas as economias do casal. “Por isso ele ficou tão preocupado quando foi demitido da Vale. Queria muito garantir o estudo das meninas.” Tania contou que, depois da morte do marido, recebeu três propostas de compra da casa. Ficou abalada. “Como vou vender a casa que ele construiu com tanto sacrifício?”
O desastre, quatro meses antes da pretendida aposentadoria, impediu a realização de pequenos sonhos. Planejavam passar o Natal de 2015 em Aparecida do Norte, em São Paulo, e queriam viajar em 2016. Nos planos, Fortaleza, Salvador e Fernando de Noronha. Tania contou que o marido quase não comentava sobre o trabalho. “Ele nos preservava muito, não queria me preocupar. Mas uma vez ele comentou com o irmão, Nilton, que, se um dia acontecesse alguma coisa, seria uma tragédia muito grande.”
Tania tenta preencher o vazio deixado por Daniel com as boas lembranças e dando aula particular para crianças. “Eu tenho as roupas dele guardadas do mesmo jeito, eu aperto, abraço elas. Não consegui me desfazer de nada, não estou preparada para isso. Me dá uma segurança, é como se ele fosse voltar. O tempo passa, mas...” Entre algumas reticências, prossegue. “A casa vazia, a conversa, o cheiro... Ele chegava, eu perguntava como tinha sido o serviço... Ele fumava muito. Eu sinto falta até do cheiro do cigarro dele. Eu guardo uma camisa azul polo, que ele gostava tanto... É como se eu visse ele, porque ele usava muito. Eu vou doar as coisas dele. Mas não agora. Vai ser no meu tempo.” Só se desfez do uniforme da Integral. “Joguei fora. Não trouxe felicidade.”
Os últimos dois anos antes do desastre tinham sido difíceis para a família. Daniel perdera a mãe, dona Geralda, de 85 anos, para um câncer. Cuidou dela como pôde. “Ele dava comida para ela na boca.” Tania também enfrentou uma dura batalha contra um câncer de mama. “Ele sempre do meu lado. Tenho tanta vontade de contar para ele que agora está tudo bem e ele não tá aqui.” Meses depois de perder o marido, assistindo à TV, viu as gravações com conversas entre diretores da mineradora sobre riscos na barragem. “Aquilo doeu muito, não se preocuparam com os empregados, gente que se dedicou tanto à empresa. A ganância falou mais alto. Parece que a gente não existe. Isso dói muito.”
No Natal de 2015, cumprindo o plano que tinha com Daniel, foi até o santuário de Aparecida do Norte. “Deixei uma foto dele lá. Me deu paz. Ele foi muito especial para mim e tiraram ele de mim.”