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O engenheiro-médico

No começo de 2018, fui convidada pelo Comitê Brasileiro de Barragens (CBDB) e pelo presidente da Academia Nacional de Engenharia, professor Alberto Sayão, para participar de um debate sobre o desastre de Fundão na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Pude então observar como o rompimento desperta controvérsia entre alguns dos maiores especialistas em barragens de rejeito de mineração do Brasil. A partir dos relatórios de investigação já publicados, cada um considerou que um fator — ou um conjunto de fatores — foi mais preponderante do que outros para o colapso. Oito engenheiros geotécnicos fizeram suas exposições sobre o tema e um deles me chamou atenção por resumir sua opinião de maneira muito simples e com acentuado enfoque humanista e ético.

O engenheiro Jean Pierre Paul Rémy, francês radicado há quarenta anos no país, disse que a estrutura rompeu “porque faltou dizer não em vários momentos da história da barragem”. Ele se referia às responsabilidades dos profissionais envolvidos com Fundão em seus curtos seis anos de atividade. E sabia do que estava falando, pois atuara como consultor técnico da força-tarefa do Ministério Público Federal. “Como profissional de barragem, minha responsabilidade é maior com os trabalhadores e com os moradores a jusante do que com o empreendedor.”

Não só pelo conhecimento a respeito de Fundão, mas pela vasta experiência com barragens no Brasil, Rémy é adepto da teoria das “derivas” para explicar as catástrofes ocorridas no setor de mineração. São requisitos técnicos deixados de lado pelos profissionais, ou seja, à deriva, e que estão na origem de grandes desastres. Como evitar que isso aconteça? Além do rigor técnico-profissional, é preciso saber resistir a pressões e dizer não. “Mas as pessoas não são preparadas para dizer não.” Ele traça um paralelo entre o engenheiro geotécnico e o médico para dizer que o primeiro deve cuidar da barragem que projetou como se fosse um paciente.

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Jean Pierre Rémy formou-se em engenharia geotécnica na França, fez mestrado em Londres e veio para o Brasil para ser professor do programa de pós-graduação em engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe–UFRJ), onde ficaria por 12 anos. Para fugir do calor carioca, refugiou-se na serrana Nova Friburgo, onde mantém sua empresa. De lá atende clientes país afora. Foi onde me recebeu para uma entrevista em que aprofundaria os temas abordados na palestra da PUC. Ele explicou que, na sua avaliação, o chamado “recuo” no eixo da barragem “não foi um pecado capital”. E que problemas na “infância” da estrutura, nos drenos e galerias foram muito graves e não receberam a devida atenção dos investigadores.

Bati nessa tecla. Disse-lhe que todas as apurações apontaram o recuo do eixo como ação decisiva para o rompimento e perguntei sobre como avalia o peso daquela intervenção na tragédia. “A equipe do professor Morgenstern [que preparou o Relatório Cleary, por encomenda do escritório de advocacia contratado pelas mineradoras] fez um trabalho enorme, em pouco tempo, com base numa série de dados recuperados. Mas esse trabalho não deveria ter sido necessário. Esse trabalho já deveria estar pronto nos arquivos da Samarco. Como disse o engenheiro Andrew Robertson, na época consultor da Samarco, em um relatório do final de 2008, a Samarco costumava tender a negligenciar os documentos de construção, o As built . No relatório de 2009, após o piping [erosão interna] no dique 1, provocado pelos defeitos nos drenos de fundo, Robertson constatou a quase total ausência de documentação relativa à construção, ao controle de qualidade e à garantia de qualidade, tanto por parte da Samarco quanto por parte da empresa construtora. Esse problema nos drenos foi seguido de vários outros. Entre os mais importantes podemos citar os recalques e consequentes fissuramentos e aberturas de juntas das galerias, provocando as fugas do rejeito por dentro delas, com sumidouros aparecendo na superfície da praia de rejeitos. E podemos citar, também, as deposições de lama em várias ocasiões na área da praia com 200 metros de largura na qual somente deveria ter sido lançado material arenoso. Se nada disto tivesse acontecido, o recuo, por si só, não teria se constituído em nenhum problema e não teria trazido nenhum risco para a estabilidade da barragem. Tanto é que, no projeto original, havia um recuo. Mas todas as mudanças ocorridas na barragem ao longo de sua vida — que, no caso deste tipo de barragem, se caracteriza por uma construção contínua permanente —, mudanças que eu chamo de derivas, tornaram a barragem cada vez mais afastada das condições seguras previstas na sua concepção e seu projeto original, e, aí sim, tanto o recuo quanto todas as derivas anteriores tiveram pesos importantes que se somaram para provocar o desastre.”

Quis esclarecer. Questionei: “Então, o projeto original previa um recuo, mesmo que não tivesse havido o problema na galeria que, segundo a Samarco, foi a razão do recuo em S?” Ele respondeu: “O projeto original da barragem de Fundão, elaborado em 2007, tinha um recuo. O talude original subiria até a praia de rejeito atingir a cota 855 metros e ali deixar-se-ia um patamar passando a executar um talude, com eixo linear, não em S, recuado de 25 metros na ombreira direita até 100 metros na ombreira esquerda em relação ao talude inicial. Este recuo tinha por objetivo atender a premissa de não permitir que o reservatório de rejeitos arenosos inundasse o pé da pilha de estéril permanente de propriedade da Vale, existente no vale situado na margem esquerda do reservatório, imediatamente a montante do dique 1. Entretanto, para investigar o problema de pipings [erosão interna] no dique 1 associado ao incidente nos drenos de fundo, foi implantado o dique 1A, de contingência, pouco a montante do dique 1 e permitido lançar lama e rejeito arenoso nesta área. Esta deposição de lama fez com que o projeto original não atendesse mais os quesitos de estabilidade, o que levou a modificá-lo, eliminando esse recuo, o que também propiciou um ganho de volume para disposição de rejeitos arenosos pela ocupação do vale onde se situa a pilha de estéril.”

Por isso, confirmou, o projeto fora executado com o eixo reto. Continuei: “E depois foi recuado, num período em que o Pimenta estava fora da Samarco?” Ele disse: “O eixo foi recuado em outubro de 2012. Então, é óbvio que, se o recuo tivesse sido feito como projetado inicialmente, em cima de uma areia lançada respeitando rigorosamente a praia de 200 metros, nunca lançando lama naquela região, com uma galeria embaixo que não provocasse problemas de fugas e vazios dentro do maciço de rejeito, com drenos de fundo originais que funcionassem, ou seja, se tivesse sido construído como projetado com todas as etapas seguidas rigorosamente, com certeza a barragem ainda estaria em pé. Mas, antes do recuo, houve os problemas dos drenos e das galerias. Não sabemos quantas cavernas podem eventualmente ter se formado e ficado lá dentro. Teve a lama que foi lançada; enfim, tudo isso veio a se somar. O recuo foi o último evento que aconteceu ali. Mas ele só derrubou a barragem porque os outros problemas já estavam lá instalados. O projeto inicial era um projeto saudável, um projeto em tudo parecido com o da barragem do Germano, construída com sucesso e que comprova este fato. Ele deixou de ser saudável por conta, basicamente, dos problemas nos drenos, dos problemas nas galerias, dos lançamentos de lama na praia e, por fim, do recuo.”

Perguntei se o projeto deixara de ser saudável por causa dos problemas na construção e na operação. Rémy foi mais uma vez direto e claro: “Sim. Obviamente, sabendo-se de todos esses problemas, o recuo não deveria ter sido feito. Mas ele foi feito porque tinha que sanar o problema na galeria.” E por que houvera esse problema na galeria? — indaguei. “Porque a galeria sofreu recalques, as juntas romperam e abriram entre os módulos. Com a pressão da água, o rejeito começou a fugir para dentro da galeria por essas aberturas entre módulos, e aí criou umas crateras que apareceram na superfície do rejeito e, quiçá, cavernas que não apareceram, e isso continuaria se não se corrigisse o problema da galeria. Primeiro isso aconteceu na galeria direita. Houve uma cratera que apareceu ali. E, mais tarde, aconteceu na galeria esquerda.”

Ficara evidente para mim que ele não considerava o recuo como fator principal do rompimento, mas elemento que se somaria a um histórico de problemas que remetiam à infância da barragem. Era isso mesmo, corroboraria: “De fato, depois do acidente, o recuo foi muitas vezes apontado como o fator principal. Como eu disse antes, ele veio se somar aos eventos anteriores. Mas o importante não é só o último evento. É todo o histórico dos eventos anteriores, todas essas derivas que ocorreram e que levaram a barragem ao colapso. O que me interessa, como engenheiro especialista em engenharia geotécnica e em engenharia de barragem, profundamente aflito e indignado por este drama, são as lições que devemos tirar disso para que este desastre nunca se repita. As lições têm que ser tiradas avaliando-se tudo o que aconteceu desde o início. E tudo começou com os drenos de fundo que não estavam de acordo e não eram capazes de desenvolver seu papel corretamente.”

Mencionei que o representante da empresa que erguera a barragem falou à Polícia Federal que havia sido usado material de menor qualidade na obra, uma decisão da Samarco aceita pela construtora e também pelo projetista (segundo consta no depoimento). Então, perguntei sobre se o problema nos drenos se devia ao material de menor qualidade, o tal “minério do futuro”. Ele disse: “Eu não tenho informações sobre a granulometria, o tamanho das pedras que foram usadas nas diversas camadas dos drenos. Aliás, como já mencionei, como disse Andrew Robertson, parece que estes dados não existem. Os drenos são constituídos por várias camadas que vão desde a mais grossa, na qual vai escoar a água, diminuindo camada por camada o tamanho das pedras até chegar numa areia suficientemente fina para que o próprio rejeito não penetre nos poros e não vá até o centro do dreno. Então, esses materiais que vieram da mina [e que foram usados, segundo a construtora] podem não ter sido enquadrados dentro das faixas de tamanho das pedras que o projeto previa e então ter provocado os problemas nos drenos. Mas é possível também que eles estivessem em acordo com as exigências do projeto e que o problema tenha sido na má execução das camadas. Mesmo que tudo tivesse sido executado de acordo com o projeto, eu, pessoalmente, ainda teria uma grande preocupação: como o material que tem um teor de ferro muito alto se comportaria ao longo do tempo com a água escorrendo continuamente por ele? Obviamente seria muito diferente de uma brita de granito que pode ficar lá centenas de anos sem acontecer nada nela. Este material vai continuar da mesma forma, sem sofrer nenhuma transformação química, oxidação, nada disso que poderia levar a seu entupimento?”

Quis saber como explicar que tantos fatores fora do padrão tivessem se reunido na construção de Fundão. “A teoria das derivas explica isso. As derivas costumam ser decorrentes do fato de que, em praticamente todos os desastres, deu-se prioridade a cumprir o objetivo de manter o ritmo de produção planejado mesmo que isso passasse por alguma mudança em relação à concepção e ao projeto original. Quem estava envolvido avaliou que, se fugisse um pouquinho do projeto original, não ia acontecer nada. Entretanto, acabou se afastando tanto da concepção e do projeto inicial que aconteceu o desastre. Um amigo meu, também muito experiente, comentou comigo: ‘Todo mundo sabe o que derrubou a barragem de Fundão. Foi o excesso de confiança.’ Eu estou dizendo a mesma coisa de outra forma. A gente tem que saber como funcionou o passo a passo para que cada passo possa ser identificado e que seu peso seja avaliado para que o erro não seja repetido.”

Questionei se ele estava falando do fator humano e não dos fatores técnicos que contribuíram para o rompimento. “Sim. Totalmente. São as derivas que eu menciono em mais detalhes no artigo que apresentei no II Seminário Gestão de Riscos e Segurança de Barragens de Rejeito, organizado pelo Comitê Brasileiro de Barragens, em Belo Horizonte [o artigo se chama ‘Algumas considerações sobre as lições aprendidas com a ruptura da barragem de Fundão um ano depois do acidente’].” Indaguei sobre o que seriam essas derivas? “A primeira deriva disse respeito aos drenos de fundo. Quando se verificou que deveriam ser reconstruídos ou, então, não iam servir, tomou-se a decisão de abandoná-los porque não tinha tempo de reconstruí-los por causa da necessidade de lançar rejeito. Não havia mais lugar onde jogar o rejeito. É claro que se trata de uma deriva significativa.” A produção precisava continuar, eu disse. “A produção precisava continuar. Então, a opção foi pela continuação da produção. Essa foi, como disse antes, a prioridade: ‘Nós não vamos parar. Temos que continuar produzindo.’ Então, sacrificaram os drenos. Eles foram tamponados e adotou-se outra solução. Aí você teve muito menos drenagem e isso propiciou a saturação, que acabou sendo um dos fatores que contribuiu para que, por fim, ocorresse a liquefação do rejeito. Quando você não tem água, você não tem a liquefação.”

Perguntei qual fora o problema das galerias. “Por alguma razão, as galerias sofreram recalques. São módulos de um certo comprimento, e quando dois módulos vizinhos sofrem recalques, muito diferentes um do outro, os anéis de material elástico que fazem a vedação entre os dois acabam por romper. E aí, abre um buraco. E o rejeito em volta, que é uma areia fina e que é saturado, vai escoando junto com a água para dentro da galeria.” Questionei, então, sobre se os problemas nos drenos e nas galerias estavam na origem do rompimento, somados à obra do recuo. “Juntos, também, com a deposição de lama na área da praia. Considero que seja basicamente isso, sim. Porque, quando houve momentos nos quais a lama invadiu a praia — o que era apontado pelos documentos de projeto, e de forma absolutamente pertinente, como uma falha muito grave —, isto não foi sanado e as camadas de lama ficaram incorporadas ao maciço de rejeito. E isso foi outra das derivas que contribuiu muito para a catástrofe.”

Lembrei-lhe de que, em 2014, haviam aparecido trincas na barragem. A Samarco as identificara e chamara Pimenta de Ávila, que faria um relatório sugerindo medidas. Seriam essas trincas já um alerta de ruptura? “As trincas são um alerta de primeira ordem. Não acompanhei, mas, evidentemente, é um alerta grave, sem dúvida. Eu entendo que foi tratado dessa forma no relatório do Pimenta.” Quis saber se, como engenheiro, diante dos sinais de problema na estrutura, avaliava que a operação da barragem deveria ter sido suspensa em algum momento. “Eu escrevi um artigo, que apresentei em maio de 2017, também num seminário do Comitê Brasileiro de Barragens, segundo o qual o engenheiro tem que ter a postura do cardiologista e dizer ‘É hora de internar o paciente’ [o texto se chama ‘Lições aprendidas por um especialista em engenharia geotécnica na prática do monitoramento do desempenho e da avaliação da segurança de barragens’]. Dizer o momento no qual a barragem tem que ter a sua operação interditada é uma decisão grave e extremamente difícil de tomar. Para tomar uma decisão dessa é preciso ter absoluta certeza. Eu não tenho dados para me posicionar com essa certeza. Eu só faria isso com conhecimento absoluto de todos os detalhes. E eu costumo dizer o seguinte: quando se avalia algum problema, qualquer detalhe, por mais ínfimo que seja e por mais discordante que seja de todos os demais dados, tem que ser minuciosamente analisado porque, normalmente, são esses pequenos detalhes que dão o alerta que alguma coisa diferente está acontecendo.”

Indaguei por que fazia aquele paralelo entre a profissão de engenheiro geotécnico e a do médico. “Os engenheiros de várias especialidades trabalham com peças de aço ou de concreto ou de outros materiais fabricados pelo homem. Portanto, são peças controladas. Conhece-se com detalhes e com razoável precisão como elas vão se comportar, a resistência que têm. O engenheiro geotécnico trabalha com maciços de rocha, de solo, que Deus fez. Aí, fazemos uma sondagem a cada 20 ou 50 metros, vamos descobrindo as amostras e analisamos. Pode ter qualquer coisa entre duas sondagens. Nós trabalhamos com material que não conhecemos com absoluta certeza e sempre sujeito a surpresas. Daí vem o fato de que muitos dos pioneiros de nossa atividade a consideravam mais para uma arte do que para uma simples ciência, e destacavam a necessidade crucial da experiência e da intuição que vai se refinando junto com os ganhos de experiência para exercê-la.”

Quis confirmar se ele estava falando do solo e de seu comportamento imprevisível. “Isso. Então, no que diz respeito aos recalques da galeria, isso se deve ao que estava lá na fundação. Tinha zonas mais moles, mais compressíveis, que provavelmente não foram levadas em conta, por serem desconhecidas na fase do projeto. Então, o nosso material do dia a dia, nós não o conhecemos plenamente. Ele é sempre cheio de surpresas possíveis. E o médico também trabalha com um material que Deus fez. Tem essa similaridade, embora hoje, com a tecnologia de tomografias, scanners etc., o médico talvez consiga visualizar seu material de forma muito mais completa e detalhada do que nós. Mas eu não sou o primeiro a dizer isso. Um dos pais da engenharia geotécnica, o norte-americano Ralph Peck, também fez essa comparação. Normalmente, os médicos e especificamente os cirurgiões tomam decisões porque sabem o peso da sua responsabilidade e do risco de serem processados. Então, eles sabem tomar a decisão de sentenciar ‘Agora você não vai para casa porque amanhã eu vou intervir no seu coração’. Na engenharia, não é comum, ou, pelo menos, até agora não era, um engenheiro ser processado. Não sei realmente se é por esta razão, mas, de regra geral, o engenheiro geotécnico não costuma tomar essas decisões. E isto, na minha opinião e na minha experiência, faz muita falta na nossa profissão: no momento certo, bater o martelo como faz o médico com o seu paciente e tomar a decisão de mandar rebaixar o reservatório de uma barragem convencional, ou parar o lançamento de rejeitos em uma barragem de rejeitos, ou evacuar e interditar um prédio ou outro tipo de estrutura.”

Perguntei se os problemas nos drenos e nas galerias caracterizariam um erro de projeto da barragem de Fundão. “Pelo que eu entendi, os drenos estavam muito bem projetados. Mas parece muito claro que não foram executados tal como no projeto. A galeria, se ela recalcou, é porque tinha alguma coisa na fundação que não foi levada em conta no projeto, provavelmente porque não apareceu nas sondagens. Agora, durante a execução, se você tem uma zona de fraqueza do solo, ela normalmente é visível.” Questionei-lhe acerca das principais lições aprendidas no caso? “As mesmas já aprendidas em outros desastres. Você tem que ter equipes de fiscalização de campo, de controle de qualidade e de garantia da qualidade muito presentes, responsáveis e competentes. São essas equipes que garantem o rigor e o cumprimento das especificações do projeto e do estado da arte da engenharia na construção. Também tem que ter um compromisso absoluto com a instrumentação. Se tem um piezômetro ali, ele tem que estar funcionando. Pessoalmente, não sou a favor dos instrumentos automáticos. No caso do instrumento manual, simples, o técnico vai lá e vê a barragem, faz uma inspeção visual, tem alguém que tem uma relação com a medição e que responde pessoalmente por esta medição. Não é só o aparelho. Eu prefiro e recomendo o instrumento manual.”

Comentei que a barragem fora levantada a 6 quilômetros de um povoado com mais de três séculos de existência, com seiscentos habitantes, conjunto que estaria em risco mesmo que a estrutura tivesse sido construída com todo o rigor técnico. Por que erguê-la tão perto de um núcleo populacional? “Isso não é uma questão de engenharia. Tem a ver com legislação, com relacionamento, com postura humana. É evidente que não é uma situação agradável para a população. Ocorre que as pessoas da região têm uma relação de dependência com a mineração, tanto é que houve manifestação para a Samarco voltar a operar e há uma situação dramática de desemprego. Eu entendo que, se há uma população a 6 quilômetros, é mais uma razão para redobrar os cuidados. Se houver qualquer dúvida a respeito da estabilidade da barragem, na minha opinião, dever-se-ia providenciar a remoção das pessoas para algum lugar próximo para que fossem protegidas. Mesmo que tivesse um plano de emergência, o que a pessoa quer é dormir em paz. Ninguém quer ser acordado a uma da manhã e saber que tem 30 segundos para largar suas coisas e juntar toda a família, incluindo crianças e idosos, e correr morro acima para salvar a pele. Não teria sido tão caro remover Bento Rodrigues e colocar as pessoas em segurança. Podiam continuar a usar o vale para cultivar etc., como muitos faziam, mas poderiam morar numa cota mais alta, e dormir tranquilos. Não acho que seja impeditivo construir a barragem perto de um povoado. A barragem de Germano estava, e ainda está, na mesma situação na qual estava a de Fundão. Mas, depois que se tomou a decisão de construir a barragem, aí sim passa a ser uma questão de engenharia. Ela tem que ser mantida garantidamente segura. Isto é nosso trabalho e nossa responsabilidade.”

Lembrei que o laudo de estabilidade da barragem fora feito em julho, que a ruptura se daria em novembro, e que o engenheiro responsável pelo documento [Samuel Santana Paes Loures] afirmara que havia atestado a estabilidade relativa somente ao momento em que examinou a estrutura. Ou seja: o laudo, segundo o técnico, informaria que a estrutura se encontrava estável quando da análise, mas não que fosse estável. O que Rémy pensava a respeito? “Você viu, na PUC, que há uma discussão sobre isso. Para mim, dizer que a barragem está estável é o mesmo que o médico dizer que o paciente está vivo. Não precisa de engenheiro para dizer que a barragem está estável. Qualquer um vai lá, vê a barragem de pé e diz que está estável. Eu entendo que o laudo de estabilidade é para dizer que a barragem é estável. E, para dizer isso, o engenheiro, primeiro, tem que ter uma larga experiência como barrageiro e, segundo, tem que ter toda a documentação, tem que ter o tempo necessário, tem que ter a verba necessária e tem que ter total independência para fazer esse trabalho como escrevi detalhadamente no artigo que já citei, sobre as lições aprendidas em avaliação de barragens. Infelizmente é um tanto raro ter tudo isto.”

Perguntei se se referia ao Brasil. “No Brasil, sim. Mas não só no Brasil. Lá fora também. É uma atividade que requer nível técnico altíssimo. Se não pode dizer que é estável porque estão faltando dados, você avisa seu cliente que não pode concluir e o informa sobre quais providências tem que tomar para tornar possível a conclusão do laudo. Essas providências podem, inclusive, exigir serviços, como investigações geotécnicas, entre outros, que podem demandar tempo e custos. Mas, de regra geral, na visão dele, o cliente não te contratou para você dizer isso, não.” Questionei, então, sobre se um engenheiro atestar a estabilidade de uma barragem sem ter segurança a respeito não seria infração à ética profissional. Eis a resposta: “Até que ponto ele confia que os problemas que está vendo não são tão graves? Acredito que seja essa confiança que o leve a atestar a estabilidade, mais do que qualquer disposição em infringir a ética da profissão. Fazer um laudo de estabilidade de barragem é para engenheiro para lá de sênior.”

Haveria uma indústria do laudo no Brasil? “Eu não diria isso. O que quero dizer é que existe uma pressão muito grande sobre quem é contratado para emitir o laudo. E, se o profissional não for capaz de resistir a essa pressão, por considerar que pode emitir esse laudo porque os riscos não são tão consideráveis, ele vai emitir o laudo. É mais uma deriva. É uma deriva em relação ao que ele acha que é o ideal que deveria ser feito, mas que considera uma deriva pequena por achar que a barragem não vai romper.” Usando o termo aplicado por Rémy, indaguei sobre como evitar a soma de tantas derivas numa barragem de mineração, considerando que, quando os desastres ocorrem, costumam ser catastróficos. “Como se diz na China, ‘cada viagem começa com um passo’. Então, tem que dizer ‘não’ no primeiro passo em falso. Evitar o primeiro, o segundo... Tem que ter uma postura firme.”

Quis saber se, no caso de Fundão, faltara dizer ‘não’. Ele respondeu da seguinte maneira: “Alguém disse: ‘Não, não vamos abandonar os drenos’? Não. Que eu saiba, ninguém disse isso. Ou, se alguém disse, acabou sendo voto vencido. A primeira vez que eu ouvi falar de acidente de barragem eu tinha 13 anos. Foi um desastre com uma barragem na França, a barragem de Malpasset, que matou mais de quatrocentas pessoas na cidade de Fréjus, logo a jusante. Escutei no rádio com os meus pais. A França inteira escutou e ficou em estado de choque. Essa barragem foi projetada por um dos maiores, senão o maior, projetista de barragens do mundo daquela época, André Coyne. Até hoje a empresa dele, Coyne et Bellier, é uma das maiores projetistas do mundo. Ele faleceu pouco depois. Na época, houve várias ações judiciais e no fim ninguém foi pronunciado culpado.”

Nunca? — reagi. “Nunca. Na época, pouco depois do julgamento, um dos peritos, um dos mais competentes e famosos geólogos franceses da época, escreveu um artigo no Le Monde discordando disso. Alguns anos atrás, esse acidente foi avaliado do ponto de vista das derivas. Primeiro lugar, a barragem estava projetada num lugar, foram feitas todas as sondagens, projeto de uma barragem de concreto, gravidade etc. Em algum momento, por alguma razão, alguém resolveu que essa barragem ia ser deslocada para jusante, da ordem de 200 metros, se me lembro bem, e passaria a ser uma barragem de arco duplo esbelto. Ninguém disse ‘não’. Ninguém fez novas investigações e sondagens.” Questionei, para confirmar: a referida estrutura mudara de lugar, 200 metros adiante? “Isso. Que seja 200 metros ou mais, ou pouco menos, não é o importante. Ela mudou de lugar e as condições geotécnicas no novo lugar não foram investigadas. Ela deu problemas antes de romper, mas a primeira questão foi essa deriva. Mudaram o lugar, e também a concepção, da barragem e ninguém disse ‘não’.”

Mencionei que o projeto executivo de Fundão não fora apresentado durante o processo de licenciamento, tampouco o relatório As built completo, e perguntei como avaliava aquilo. “Não posso avaliar do ponto de vista legal. Mas, se eu estivesse envolvido no acompanhamento do comportamento e da segurança da barragem, o projeto executivo e os documentos As built seriam, para mim, dados fundamentais. Como poderia eu analisar uma barragem sem saber como foi construída? E os documentos para saber isso são os documentos As built . A história da barragem é o As built . Todas as etapas têm que aparecer no As built . As duas estruturas que captam a água, os extravasores, vão subindo junto com a barragem, tudo tem que estar no As built . Se eu não tiver o As built , eu não sei o que estou analisando. Não posso fazer nenhum laudo. Além dos documentos As built , há mais um ponto que julgo muito importante. Eu considero que, por conta da necessidade do conhecimento de todos os dados, é importantíssimo que seja mantido o mesmo profissional ou os mesmos profissionais ao longo de toda a vida da barragem. Existe uma norma francesa que se chama “Missões geotécnicas”, que só existe na França, na qual se defende — justamente pela especificidade do material com o qual a gente trabalha — que se mantenham os profissionais desde a concepção até o final da construção. Para mim, isso é fundamental.”

Comentei que a Samarco não procedera assim. Rémy disse: “Pelas informações que eu tenho, me parece que não. A partir do momento que um profissional sai, mesmo que ele volte posteriormente, a responsabilidade dele deixou de ser 100%. E o engenheiro tem que ser responsável pelo seu paciente. A barragem tem que ter o seu médico.”

Quis saber se ele falara “não” ao longo de sua carreira no Brasil. “Suponho que estamos nos referindo aos ‘nãos’ pesados, emergenciais, do tipo daqueles aos quais me referi anteriormente, como mandar rebaixar o reservatório de uma barragem convencional, ou parar o lançamento de rejeitos em uma barragem de rejeitos, ou evacuar e interditar um prédio ou outro tipo de estrutura. Sim, tive que dizer ‘nãos’ deste tipo várias vezes.” E qual fora o impacto daquelas negativas? — indaguei. “Nas ocasiões nas quais isto ocorreu com clientes que compartilhavam de minha postura a respeito de segurança e com os quais tinha uma forte relação de confiança, as minhas decisões foram acatadas de imediato e os problemas foram sanados da melhor forma e no menor tempo possível para depois voltar a operar normalmente.” Perguntei sobre se perdera algum cliente ao dizer “não”. “Sim. Isto aconteceu várias vezes também. No caso que eu apresento no meu artigo já citado, perdi o cliente. Já fui expulso de reuniões, já tive contrato cancelado, já tomei a iniciativa de rescindir contrato.”