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“Agora que vocês vêm?”
Ana Cláudia Profeta, 23 anos, fazia as unhas quando um tio chegou nervoso e avisou: “A barragem estourou.” Ela saiu do pequeno salão do jeito que estava e foi para o ponto de ônibus onde o marido, Mateus Márcio Fernandes, 29 anos, mecânico da Manserv, terceirizada da Samarco, costumava descer todo fim de tarde. “Fiquei lá de 16h30 até 20h. Aí, vi que ele não chegava e fui procurar no hospital.” A busca seria inútil. Ligou para a Manserv. “Ninguém me falava nada. Só me passavam de um para o outro, mas não diziam nada. Aí, desisti e fui para a Arena [o ginásio de esportes de Mariana]. Mas lá também ninguém dava notícia.” Ana Cláudia resolveu, então, ir para a casa da sogra, em Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto. Lá, pelo menos, teria a companhia de parentes e poderia dar mais apoio ao filho, Kaio Gabriel, na época com 5 anos.
Cinco dias depois, segundo contou, um funcionário da Samarco a procurou, para saber se precisava de algo. “Eu disse para ele: ‘Agora que vocês vêm?’” Cerca de duas semanas após o desastre, ela e outras esposas e parentes das vítimas foram em passeata até a mineradora. Exigiram ser recebidos por alguém da direção. “Eu tinha um pressentimento ruim, mas a gente também tem aquela esperança...” Numa sala da empresa, bombeiros que trabalhavam no resgate dos corpos mostraram num mapa os locais onde cada vítima estava no momento fatal. A rotina de Mateus, há cinco anos na Manserv, era fazer reparos, manutenção e reposicionamento de tubulações de rejeito. No instante exato do rompimento, encontrava-se na crista do dique da barragem. “Ali, eu tive aquela certeza que a gente não quer ter nunca. Só se Deus tivesse pegado com a mão...”, contou Ana Cláudia, o olhar cabisbaixo, no dia em que a tragédia completou um ano.
Desde que saíra atordoada da manicure, Ana Cláudia nunca mais voltou à casa onde morava com Mateus. “Eu não dei conta. Meu tio tirou todas as coisas dele e me entregou. Guardei o perfume dele e de vez em quando eu uso, bem pouquinho, que é para não acabar. Hoje mesmo eu espirrei um pouco [cheira o pulso esquerdo enquanto relata]. E guardei a última camisa que ele usou, antes de ir para o trabalho. Eu não lavei. Tá com o cheiro dele até hoje.” Guardou a camisa verde, de manga curta, e também a que o marido usava quando jogava bola, azul e branca. Fez questão de ficar também com a tornozeleira de tecido, verde e amarela, pela qual seria identificado, assim que o corpo foi encontrado, em Ponte do Gama, a 70 quilômetros da barragem, 21 dias depois da catástrofe. Ela conta que Mateus gostava de usar pulseiras e tinha várias tatuagens, o que facilitou o reconhecimento, feito pelos irmãos dele. “Eu não dava conta de ver.”
O casal se conhecera ainda na adolescência, numa cavalgada. Aos 17 anos, ela engravidou de Kaio e os dois decidiram morar juntos. “Ele ganhou um susto quando eu engravidei, mas me surpreendeu como pai. Era muito dedicado. Foi um pai e tanto.” Ana Cláudia largou os estudos no ensino médio e o curso de informática. Quando o filho completou 2 anos, conseguiu emprego como frentista. Foi aí que Mateus se revelou como pai. Na ausência da mãe, era ele quem dava banho, comida, ensinava o dever da escola. “Eu não tinha muita paciência, não”, admitiu Ana, com espontaneidade.
Ambos levavam com leveza as diferenças de gostos e hábitos. Mateus era atleticano; ela é cruzeirense. “A gente sempre assistia jogo junto. Quando o Atlético perdia, ele dizia que era porque eu tinha secado.” O marido era muito caseiro. “No fim de semana, só saía para tomar cerveja num barzinho e jogava futebol toda segunda. Só isso. Nas férias, nunca viajava porque não gostava de dormir fora de casa de jeito nenhum. Mas eu viajava para Guarapari e fui uma vez para o Rio.” Ana contou que Mateus se aborrecera uma única vez, quando ela tirou fotos de biquíni na praia. “Ficou brigado comigo uma semana. Ele dizia: ‘Eu trabalhando e a minha mulher de biquíni na praia’”, contou Ana Cláudia, deixando escapar um sorriso ao lembrar a zanga do marido. “Depois passou e ele não reclamou mais.” Lembrou que Mateus costumava tirar as férias no mês de novembro. Foi assim em 2013 e 2014. Em 2015, porém, ele marcou em setembro. “Não sei por quê. Acho que foi o que deu para marcar na empresa. Ele tirou férias e ficou em casa. Eu fui para Guarapari em outubro. Em novembro, nós dois estávamos trabalhando e aconteceu...”
Dois meses depois da morte de Mateus, Ana Cláudia pediu demissão do posto. Queria mais tempo para ficar com o filho. Precisou, no entanto, trabalhar de novo e conseguiu emprego numa lanchonete, onde só ficaria três meses. “Saí para me dedicar mais como mãe. Kaio sempre foi muito calado. Ficou mais ainda. Um dia, passou uma reportagem na televisão e ele perguntou: ‘Mãe, meu pai está lá, né? Você não me levou para ver onde meu pai está enterrado.’” No feriado de Finados de 2016, ela o levou ao cemitério de Antônio Pereira, onde Mateus fora sepultado. “Não sei muito o que dizer para ele. A gente se entende sem palavras”, disse sobre o filho.
Quando eu a conheci, numa manifestação em Bento Rodrigues, Ana Cláudia me falou que estava tentando botar a vida nos trilhos de novo. Ela havia recebido R$ 100 mil da mineradora como adiantamento da indenização, voltara a estudar (estava no primeiro ano do ensino médio) e queria tirar carteira de motorista. “Vou tentar levar a vida para a frente. O luto pode tranquilizar, tem etapas. Mas a minha opinião sobre a Samarco nunca vai mudar. O Mateus era muito importante para mim, mas para eles é como se fosse qualquer coisa. Eu penso que eles poderiam ter evitado. É isso que dói.”