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O acordo na Justiça
Depois da assinatura do acordo, em 2 de março de 2016, as partes — governo federal, governos estaduais e as empresas — pediram à 12a Vara Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, a homologação do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) para dar validade jurídica ao entendimento. A homologação extinguiria a ação civil pública impetrada pelos governos federal, de Minas Gerais e do Espírito Santo no fim de 2015, e que resultara no bloqueio judicial de R$ 2 bilhões da Samarco e da Vale. Se a ação civil pública fosse extinta, o dinheiro seria desbloqueado. A 12a VF/MG era a instância apropriada porque nela tramitavam as primeiras ações relacionadas ao desastre e porque, em janeiro de 2016, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) havia confirmado a prevalência dessa instância para receber todas as ações conexas — decisão proferida numa ação por conflito de competência suscitada pela Samarco.
Contudo, o processo de homologação do TTAC seria retirado daquela vara, de forma atípica, por instância superior, em Brasília, e com celeridade fora do padrão usual da Justiça brasileira.
Pouco mais de um mês depois do envio do pedido de homologação e antes que houvesse uma decisão da juíza natural do caso, Rosilene de Souza Ferreira, da 12a VF/MG, as partes, representadas pela Advocacia-Geral da União (AGU), enviaram uma petição de homologação à coordenadora-geral do Sistema de Conciliação da Justiça Federal da 1a Região, a desembargadora Maria do Carmo Cardoso Prado. O SistCon, também conhecido como núcleo de conciliação, é um órgão do Tribunal Regional Federal da 1a Região (TRF1), com sede em Brasília. Já tramitavam no TRF1 recursos das empresas, chamados agravos de instrumento, na 5a Turma, formada, à época, pelos desembargadores Néviton Guedes (presidente), Antônio Souza Prudente e Carlos Moreira Alves.
A coordenadora do SistCon recebeu a petição em 14 de abril e marcou a data da audiência de conciliação para 5 de maio; portanto, 21 dias depois, e passando por cima das duas instâncias já encarregadas do caso: a 12a VF/MG e a 5a Turma do TRF1. Os magistrados desse colegiado nem sequer foram comunicados dos entendimentos em curso liderados pela desembargadora. Na audiência, as partes ajustaram algumas cláusulas do acordo e, sem mais delongas, considerando a “busca da pacificação social”, Maria do Carmo Cardoso Prado confirmou o TTAC, definindo sua abrangência, inclusive para eventuais futuras ações relacionadas ao desastre: “A homologação do presente acordo e o consequente cumprimento das obrigações nele estabelecidas resolverão e porão fim às disputas presentes e futuras entre as partes (...) Divergências de interpretação decorrentes desse acordo serão submetidas ao Sistema de Conciliação da Justiça Federal da 1a Região.”
A homologação foi assinada na presença do representante do Ministério Público Federal junto ao TRF1, o procurador regional da República Felício Pontes, que subscreveu a ata. Ocorre que o MPF havia sido avisado da audiência por e-mail, seis dias antes da reunião, e sem ter acesso aos autos. Por essa razão, o procurador informou que contestaria o acordo. No dia 16 de maio, Felício Pontes pediu a nulidade da homologação à 5a Turma do TRF1, questionando o pretendido alcance do pacto. Argumentou que o TTAC não protegia os direitos coletivos afetados pelo desastre “porque pretende ser exaustivo em um caso concreto cercado de complexidades e de incertezas”. Alegou ainda que outras necessidades poderiam ser identificadas, “além das que foram negociadas”. Apontava a falta de participação das populações atingidas nas discussões que resultaram no acordo; a falta de um diagnóstico consistente para identificar o que é passível de reparação e o que deve ser compensado (caso não seja possível reparar); a falta de clareza técnica e de critério para estipular limites de gastos nos programas.
Outra vulnerabilidade do acordo, segundo o MPF: o TTAC atribuíra responsabilidade subsidiária e não solidária às duas empresas acionistas, Vale e BHP. No caso da Vale, que também depositava lama na barragem de Fundão, o procurador considerou que deveria figurar como “poluidora direta”. “A responsabilidade solidária dos poluidores é garantia imprescindível para a tutela do meio ambiente, com previsão legal e amplo reconhecimento dos tribunais superiores”, afirmou no recurso. Ao não considerar a responsabilidade solidária, o acordo, segundo o MPF, fragilizava as garantias de reparação do dano e violava o princípio do “poluidor-pagador”. O MPF também criticou a criação de um terceiro ente, uma fundação, para coordenar a reparação dos danos porque isso “arrefece a responsabilidade direta e imediata dos poluidores”, “burocratiza o processo decisório” e “dificulta a formulação de reivindicações dos direitos dos atingidos”.
Com linha semelhante de argumentação, a representante do MPF junto ao STJ, a subprocuradora-geral da República Sandra Cureau, também recorreu contra a homologação, em dois de junho de 2016. Alegou que o ato consumado pela desembargadora fora “uma afronta” à tramitação normal do processo. No STJ, o caso ficou com a ministra Diva Malerbi (desembargadora do TRF da 3a Região convocada provisoriamente para o STJ), que, em sua decisão, um mês depois, destacou que o pacto não deveria impor limites a quem se sentisse prejudicado e quisesse pleitear reparação. Disse a ministra: “(...) o fato é que ainda devem ser respaldadas outras demandas de natureza igualmente coletivas, as quais repercutem sobre a esfera de direitos de entes federativos e entidades civis que sequer tiveram a oportunidade de participar das tratativas para a autocomposição do litígio, a exemplo dos municípios atingidos e associações representantes dos interesses envolvidos na causa.” E acrescentou: “Ademais, diante da extensão dos danos decorrentes do desastre ocorrido em Mariana/MG, seria rigorosamente recomendável o mais amplo debate para a solução negociada da controvérsia, por meio da realização de audiências públicas, com a participação dos cidadãos, da sociedade civil organizada, da comunidade científica e dos representantes dos interesses locais envolvidos, a exemplo das autoridades municipais.”
A ministra atendeu o pedido de liminar do MPF: suspendeu a homologação feita pelo núcleo de conciliação e devolveu o caso para a 5a Turma do TRF1. Em agosto de 2016, os três desembargadores — Néviton Guedes, Antônio Souza Prudente e Carlos Moreira Alves — reuniram-se para julgar o caso. Num voto muito contundente e permeado de ironia, Souza Prudente questionou o ato da colega do núcleo de conciliação: “A douta e culta desembargadora que presidiu esse acordo, concessa venia, vestiu a toga do juízo natural e exerceu a jurisdição que a Constituição não lhe autoriza. Nem mesmo as resoluções do CNJ [Conselho Nacional de Justiça] lhe dão tal competência. (...) Também por isso esse acordo já viciado se torna mais ainda inválido por ser resultante de uma atividade jurisdicional não autorizada pelo Regimento da Corte e pela Constituição da República, que traçou o perfil do juízo natural.”
O desembargador se refere ao fato de que nenhuma lei, norma ou mesmo resolução interna do tribunal estabelecem que o núcleo pode promover acordos quando a causa envolve os chamados direitos indisponíveis e interesses coletivos difusos e intergeracionais, como é o direito ao meio ambiente equilibrado. Quando é assim, segundo Souza Prudente, a causa — e um eventual termo de ajuste de conduta — tem de ser analisada por instância judicial e não administrativa, como é o SistCon. A resolução que criou o núcleo circunscreve a busca de conciliação em questões cíveis de direito patrimonial, geralmente envolvendo causas previdenciárias e fiscais.
Souza Prudente acolheu na íntegra o parecer do procurador regional da República Felício Pontes, concordando com a tese de que a responsabilidade das empresas deveria ser solidária e não subsidiária. Disse: “(...) obrigação solidária pode e deve ser cobrada, em tese, de qualquer das empresas solidárias no total e não em termos percentuais de 50%, como está no acordo, que mais favorece as multinacionais do que realmente pretende atender aqueles que estão abandonados no cenário do crime ambiental.” O magistrado apontou também a omissão do poder público no quadro que levou à tragédia: “(...) a minha reflexão deságua na necessidade de o Ministério Público estadual e federal colocar no contexto da Lava Jato a responsabilidade criminal desses agentes públicos que se omitiram gravemente na liberação dessas licenças precárias e inúteis para que um desastre ecológico dessa dimensão ocorresse no Brasil, com consequências ainda sem possibilidades de qualquer avaliação de ordem financeira ou socioambiental.” Ele criticou a Advocacia-Geral da União, destacando “o esforço que a advocacia da AGU faz para prestigiar os interesses privados das multinacionais”. Registrou ainda: “O que nós temos aqui é uma transação desautorizada por lei para favorecer os interesses das multinacionais e da empresa Samarco, sua testa de ferro.”
Antes de concluir seu voto, Souza Prudente tornou público um episódio inusitado dos bastidores da corte. Relatou que a desembargadora Maria do Carmo mandara buscar os autos dos agravos que estavam sob a relatoria do presidente da 5a Turma, Néviton Guedes, sem que este fosse avisado ou autorizasse a remessa, na época em que ela tomava as providências para a homologação do pacto no núcleo de conciliação. O episódio ocorrera cerca de quatro meses antes e fora descoberto depois de já homologado o TTAC.
Eis o relato do desembargador, conforme as notas taquigráficas da sessão de 17 de agosto de 2016:
Estou perplexo por esse desvio de procedimento e ainda mais pela forma como Vossa Excelência [dirigindo-se ao presidente da turma e relator do caso em questão, Néviton Guedes] teve os autos do agravo subtraídos de sua relatoria, de forma abrupta, em que um funcionário chega ao seu gabinete, solicita os autos a outro funcionário e são submetidos estes autos do agravo a uma decisão administrativa que, travestida de jurisdição, extingue os agravos e tranca o exercício da jurisdição desta Turma, agora resgatado pelo STJ.
O presidente da turma, Néviton Guedes, posicionou-se pela nulidade do acordo e sua devolução à 12a Vara Federal, em Belo Horizonte, no que foi acompanhado pela unanimidade de seus pares. Seu voto: “ Assim, cabe ao Juízo da 12a Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais centralizar a execução do plano de recuperação dos danos e organizar a destinação dos recursos que serão despendidos nas ações de recuperação do meio ambiente e da situação socioeconômica das populações atingidas, tanto mais diante da suspensão, pelo STJ, do acordo entabulado entre as partes. (...) Pelo exposto, consoante a fundamentação acima expendida, reconheço e declaro a nulidade da homologação do acordo concretizado na audiência do dia 5 de maio de 2016.”
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A desembargadora Maria do Carmo Cardoso Prado é de Londrina, Paraná, e exerceu a advocacia por 25 anos. No começo dos anos 1990, foi advogada de Rosinete Melanias, secretária de Paulo César Farias, o PC Farias, pivô do escândalo de corrupção que levaria ao afastamento do então presidente Fernando Collor, em 1992. Melanias assinava em nome de correntistas fantasmas do chamado Esquema PC. Foi condenada a dois anos e oito meses de prisão, em 1994.
Maria do Carmo Cardoso entrou no TRF1 em dezembro de 2001 pelo “quinto constitucional”, um mecanismo, previsto na Constituição, que determina a reserva de um quinto das vagas em tribunais para advogados e membros do Ministério Público. Eu a entrevistei sobre sua interferência na homologação do TTAC. Ela explicou que as partes “não conseguiam” uma decisão na primeira instância, a 12a VF/MG, que concentrava todas as ações sobre o caso Samarco. “A 12a ficou impossibilitada de dar vazão, começou a juntar processo. As empresas também entraram com recursos e recebi uma petição da Advocacia-Geral da União. Entendi que aqui, na conciliação, conseguiria reunir todos numa mesma mesa”, disse.
A desembargadora se declarou uma entusiasta da conciliação. “É muito melhor conciliar do que brigar a perder de vista. Por que protelar se é preciso resolver?” Ela não considerou que as mineradoras tivessem sido beneficiadas no acordo. “As empresas poderiam passar cem anos discutindo laudos. O acordo estabelece valores estratosféricos, e elas se comprometeram a cumprir o acordo que eu fiz. Vários juízes começaram a bloquear valores. O dinheiro ficaria bloqueado em vez de ser usado para ajudar quem precisa. Levamos em conta a necessidade da população.”
O TTAC foi homologado no SistCon em 5 de maio de 2016. Uma semana depois, a presidente Dilma Rousseff foi afastada provisoriamente do governo, até a votação final do impeachment, que aconteceria em agosto. Assumiu o vice, Michel Temer, com um novo ministério. “Zequinha Sarney ficou encantado com o que fizemos”, contou a magistrada sobre a reação do recém-empossado ministro do Meio Ambiente ante o acordo.
Em setembro de 2017, uma reportagem de Veja voltaria a pôr a desembargadora em evidência. Os repórteres Rodrigo Rangel e Daniel Pereira revelaram um suposto esquema de compra de decisões de ministros de tribunais superiores em Brasília pela empresa JBS, dos irmãos Joesley e Wesley Batista. A revista teve acesso a conversas mantidas por WhatsApp entre o diretor jurídico da JBS, Francisco de Assis e Silva, e a advogada Renata Gerusa Prado de Araújo, que também trabalhava para a companhia. Renata Gerusa é filha da desembargadora Maria do Carmo Cardoso Prado. Nas mensagens, segundo Veja , ela e Assis conversam sobre estratégias para conseguir decisões favoráveis a empresas do grupo em processos sob relatoria de Maria do Carmo e de mais três ministros do STJ. O material divulgado pela revista foi entregue ao Ministério Público Federal pelo ex-marido de Renata, Pedro Bettim Jacobi. O casal estava em processo de separação litigiosa.
Em entrevista à Veja , Pedro Jacobi falou sobre as atividades da ex-mulher: “Em muitas ocasiões, Renata atuava sem contrato. Ela fazia lobby. E, às vezes, alguns lobbies com processos que estavam com a mãe dela ou com conhecidos, inclusive em tribunais superiores. Ela tinha relação com os filhos de ministros também. Era esse o meio em que ela vivia. Ela negocia decisões. Pelos indícios que entreguei ao Ministério Público fica claro que ela vendia decisões ou tinha o caminho para obtê-las, contatando o próprio ministro ou pessoas próximas. As mensagens com o diretor da JBS mostram que os dois estão acertando a compra de decisões judiciais, mencionando nomes de ministros do STJ, valores e estratégias para que os ministros escolhidos e seus prepostos recebessem as propinas e votassem favoravelmente os processos de interesse da JBS”.
Antes de se separar, Jacobi guardara as mensagens, cópias de contratos e comprovantes bancários em arquivos que entregaria aos investigadores, e que Renata disse terem sido roubados pelo ex-marido. A advogada negou as acusações e afirmou que Jacobi era investigado pela polícia do Distrito Federal. “Estou sendo acusada de um monte de coisas que eu não fiz. Sou vítima de um estelionatário”, declarou quando a procurei.
Em fevereiro de 2018, a desembargadora Maria do Carmo Cardoso Prado foi escolhida para a Corregedoria do TRF1, pelo critério de antiguidade, para o biênio 2018–2020. Tentei entrevistá-la novamente, por telefone, para esclarecer o episódio da retirada dos autos dos agravos do gabinete do desembargador Néviton Guedes — que eu desconhecia quando da primeira conversa. A assessoria da magistrada, porém, informou que ela não tinha espaço na agenda e me pediu que mandasse as perguntas por escrito. Depois de alguns dias, uma de suas assessoras respondeu aos meus questionamentos de maneira “informal”, pediu que seu nome não fosse publicado e que as respostas fossem atribuídas genericamente à assessoria do núcleo. A auxiliar disse que o núcleo de conciliação faz as requisições dos autos dos processos de maneira “informal” e que não tinha a “obrigação” de comunicar a requisição a Néviton Guedes. Perguntei se não era o caso de comunicá-lo nem que fosse por educação e consideração ao colega. Não houve resposta.
A assessora comunicou que os autos do processo estavam sob a guarda do núcleo de conciliação porque o STJ ainda não tinha julgado o mérito da liminar da ministra Diva Malerbi. “O acordo [o TTAC] não está cancelado. O processo continuará com a desembargadora. Os outros desembargadores não têm ascendência sobre o núcleo e o processo continuará aqui até o julgamento pelo STJ”, disse. Sobre o argumento de Souza Prudente de que o núcleo não poderia fazer acordos sobre interesses difusos e intergeracionais, respondeu: “O núcleo concilia em qualquer processo.”
Pouco tempo depois do julgamento na 5a Turma, ainda em agosto de 2016, o STJ julgou um recurso da União e da Samarco pedindo a reconsideração da suspensão do acordo, determinada na liminar da ministra Diva Malerbi. O recurso não seria julgado porque houve um pedido de vista. Mesmo sem proferir seu voto, porém, o ministro Herman Benjamin, presidente da 1a Seção da corte, antes de encerrar a sessão, alertou para o risco de caos processual desencadeado pela interferência da desembargadora. Ele a criticou por ter puxado a competência de homologar o acordo, passando por cima da juíza da instância original, a 12a VF, em Belo Horizonte. “Isso precisa ser apurado para que não se repita. É uma violência”, afirmou, conforme registrou a repórter Bárbara Pombo, em matéria publicada no site de notícias jurídicas Jota.
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Procurei outros personagens envolvidos na discussão sobre a homologação do TTAC. O procurador regional da República Felício Pontes relembrou o caso: “Estava tudo fora da lei. A homologação do acordo pelo núcleo de conciliação era um ponto fora da curva do sistema processual brasileiro. Não podia ser validado. Forma e conteúdo estavam errados. Muitos dos atingidos, especialmente as populações tradicionais e indígenas, não foram ouvidos. E o núcleo era incompetente para validar o acordo. Foi uma violência total.”
Sergipano de Cedro de São João, o desembargador Antônio Souza Prudente exerceu boa parte de seus 35 anos de magistratura na Amazônia, em regiões como o Acre, Rondônia e Santarém, no oeste do Pará. Chegou ao TRF da 1a Região em 2001. Numa entrevista, em Brasília, comentou as idas e vindas da tentativa de homologação do acordo e o desastre socioambiental provocado pelo rompimento da barragem.
Perguntei-lhe por que o núcleo de conciliação não poderia tomar a iniciativa de homologar o acordo se fora criado justamente para promover a conciliação e evitar que as causas demorassem muito tempo na Justiça. Ele respondeu: “O sistema de conciliação, chamado de Judiciário multiportas, se destina sobretudo à solução rápida de questões que envolvem pessoas hipossuficientes, não só financeiramente como também tecnicamente hipossuficientes, como no caso dos mutuários do Sistema Financeiro da Habitação. Portanto, em se tratando de direitos individuais disponíveis, o núcleo de conciliação tem um campo imenso para realizar o seu trabalho. Mas, em se tratando de direitos indisponíveis, como no caso dos interesses ambientais, que resultam de tragédias ambientais como a do Fundão, em Mariana, isso não pode ser objeto de um acordo perante o núcleo administrativo. Os interesses ambientais transcendem as barreiras do tempo na perspectiva de preservar os interesses das gerações atingidas pela tragédia e também as gerações futuras. Aliás, o novo Código de Processo Civil é expresso no sentido de que o relator do processo no tribunal tem competência para realizar qualquer acordo. Por isso também o esforço do CNJ [Conselho Nacional de Justiça] de promover uma solução amigável. Mas, evidentemente que a proposta bem-intencionada do CNJ [de estimular a conciliação] é no sentido de incentivar a chamada autocomposição entre as partes, para diminuir essa pletora de processos que tramitam nos tribunais e que não têm fim. Mas há de se compreender que acordos assim incentivados só podem acontecer no âmbito dos interesses disponíveis.”
Questionei-lhe, então, sobre como fora o caso da retirada dos autos do gabinete do desembargador Néviton Guedes. “Foi um procedimento abusivo mandar buscar no gabinete do relator, informalmente, os autos dos agravos de instrumento. O núcleo, através da desembargadora-coordenadora, enviou um funcionário para trazer os autos desses agravos, informalmente, à apreciação do núcleo.” Indaguei se o gabinete do desembargador fornecera os autos. “Sem a ciência do desembargador. O funcionário recebeu o pedido do núcleo e eu acredito que de forma ingênua, sem malícia, liberou os autos. Quando o desembargador Néviton Guedes tomou conhecimento, ele reagiu. E eu próprio, como membro da 5a Turma, formalizei um ofício ao presidente do TRF1, desembargador Hilton Queiroz, que proferiu despacho e determinou à senhora desembargadora, responsável pelo núcleo, que nenhum processo pudesse ser buscado dessa forma e que qualquer processo distribuído a qualquer das relatorias dos órgãos do tribunal só poderia sair do gabinete do relator com autorização do desembargador-relator.” Àquela altura, lembrei, a magistrada já havia homologado o acordo. “Sim, já havia homologado e de forma irregular. O procedimento de avocação do processo principal, lá do juízo natural, foi irregular e irregular também o procedimento de buscar os agravos no gabinete do relator, que é o desembargador Néviton Guedes, sem um ofício formalizando essa requisição. Então, o procedimento de requisição dos autos judiciais foi totalmente nulo. Assim como a homologação do acordo por um órgão incompetente, como era o núcleo administrativo. Nulo também porque, na sua textura essencial, o acordo só favorece as empresas. Estabelece, por exemplo, a responsabilidade subsidiária das multinacionais Vale e BHP.”
Quis saber, segundo o ponto de vista de Souza Prudente, por que o acordo aceitara a responsabilidade subsidiária. “A responsabilidade, no âmbito do direito ambiental, é objetiva e solidária. E foi exatamente nesta compreensão que se editou a lei dos crimes ambientais, responsabilizando não só o diretor-presidente e os sócios de uma empresa que cometa atividade agressora ao meio ambiente, mas a própria empresa responde até criminalmente. Essa responsabilidade objetiva e solidária resulta da Constituição Federal, que estabelece a responsabilidade civil, administrativa e criminal solidária de todo aquele que concorre para um dano ambiental. No acordo nulo, viciado, essa responsabilidade solidária não foi considerada. O acordo direciona uma responsabilidade imediata da empresa nacional, Samarco. E das multinacionais só no caso de a Samarco não cumprir com as suas obrigações.” Para esclarecer, perguntei se Vale e BHP só poderiam ser chamadas naquela circunstância. “Exatamente. Isso é a responsabilidade subsidiária, quando, na verdade, a responsabilidade é conjunta de todos aqueles que concorreram para o dano. Então, nesse ponto também o acordo é viciado.” Questionei sobre se era mesmo favorável às empresas. “Favorável às empresas, exatamente. Outro vício intrínseco é não chamar para o acordo os maiores interessados, que foram as vítimas do dano. Nem sequer o seu representante legal, que é o defensor público. A Defensoria Pública não participou do acordo. Então é um acordo que não poderia jamais produzir efeitos porque os destinatários desse acordo são os que sofreram os danos e que teriam que ser ouvidos.”
Observei que a coordenadora do núcleo administrativo do TRF1 levara vinte dias entre receber a petição das empresas e da AGU sobre a homologação e fazer a reunião com os interessados para homologar, e indaguei sobre se era um prazo normal num caso com aquela complexidade. “Evidentemente que deveria haver um prazo bem maior e sobretudo deveriam ser intimados todos os interessados. Então, isso não deveria nem ter iniciado. Na minha ótica, houve um atropelo, uma celeridade injustificável. Eu só vislumbro aí uma tentativa de se dar uma solução apressada que não resolve o problema maior, que é reparar os danos. As consequências desse desastre da mineração irresponsável chegam a atingir a plataforma marinha. Danos dessa dimensão não poderiam ser objeto de um acordo para uma solução tão rápida, em vinte dias. A pressa coroa a anormalidade com que esse acordo se concretizou. Esse prazo exíguo é totalmente injustificável. E só tem uma explicação: favorecer as empresas e deixar uma cortina de fumaça sobre a irresponsabilidade dos agentes públicos, que viraram as costas para o monitoramento que deveria existir após a edição das licenças da mineradora. Agiram como Pilatos, lavaram as mãos, viraram as costas e deixaram que acontecesse. Ninguém tem direito adquirido a licenciamento ambiental. A omissão dos agentes públicos resulta na apuração de responsabilidade civil, administrativa e criminal. Portanto, essa pressa só se justifica porque é um acordo tão espúrio, tão inválido que estava sendo realizado perante o órgão administrativo, que não tem competência para isso.”
Lembrei que a desembargadora Maria do Carmo dissera que a pressa havia se devido à urgência em dar assistência às vítimas. Quis saber se não considerava este um argumento relevante. “A pergunta é: qual assistência, se até hoje as vítimas não tiveram a assistência que deveriam ter e não foram ouvidas? Então, com a devida vênia, esse argumento não tem respaldo nenhum. Se dali resultasse, bem ou mal, um acordo — perante o órgão competente — que revelasse uma preocupação efetiva de proteger os atingidos pelo desastre, poderíamos considerar essa justificativa. Mas a verdade é que o resultado do acordo não contempla as pessoas.” Retorqui que o acordo tinha várias cláusulas de assistência às vítimas. “Mas não contempla no sentido de que os maiores interessados, que são as vítimas, não foram convocados para discutir o acordo. Essa convocação se faz por meio dos seus representantes legais, que são os defensores públicos, que não foram convocados.”
Ante o fato de que a homologação fora considerada nula pela 5a Turma do TRF1, perguntei como ficava a situação jurídica do acordo, e qual seria o status jurídico da Fundação Renova, criada pelo acordo. “Veja, o acordo é nulo, plenamente nulo; portanto, não pode produzir efeito nenhum e nem deve ser prestigiado ou cumprido. Isso significa que tanto esta Fundação Renova como os demais órgãos, como o Comitê Interfederativo [formado por órgãos públicos do governo federal e dos governos de Minas Gerais e do Espírito Santo para acompanhar e fiscalizar as ações da Fundação Renova], também criado no acordo, uma figura que não foi criada por lei, que não tem base legal nenhuma, são órgãos inválidos. E no Brasil, de acordo com a Constituição, ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, se não em virtude de lei.” Quis confirmar se era aquilo mesmo, nas palavras do magistrado: se tanto o acordo quanto a Renova e o Comitê eram ficções jurídicas. “São ficções, ficções em busca de uma aparente solução e não de uma efetiva solução. Então, na minha ótica, nada disso tem valia. Nós temos uma garantia constitucional do devido processo legal, que não está sendo cumprida. O devido processo legal se rege pelas leis processuais do Brasil perante uma autoridade competente. No caso, foi declarado pelo judiciário que o núcleo de conciliação é incompetente para promover o acordo. Então, não há que se cogitar de dar cumprimento a um acordo inválido, produzido por um órgão incompetente. Também a atuação dessa fundação, para mim, não tem valia nenhuma.”
Objetei que a Renova era já um fato consumado e trabalhava na recuperação dos danos. “A questão é saber: está dando solução? Penso que não porque as vozes que são colhidas dessas pessoas atingidas dizem o contrário. Elas não sabem quando haverá uma solução verdadeira. E digo e repito: para mim, isso tudo é uma embromação. Uma solução efetiva deve ser encontrada dentro da legislação ambiental, que fornece todas as ferramentas para que o juízo da 12a Vara Federal, de Belo Horizonte, determine uma perícia ambiental multidisciplinar em regime de urgência para quantificar os danos. A fundação, a meu ver, não tem legitimidade para isso. Feito esse levantamento, perante o juízo, com a participação do MP, dos órgãos ambientais, pode-se realizar um TAC [termo de ajustamento de conduta], como prevê o direito ambiental, que é uma forma de se resolverem, dentro do bom senso, questões ambientais como essa. Mas para uma solução efetiva e não para promessas que não se cumprem.” Segundo eu compreendia, de acordo com o desembargador, além de uma tragédia ambiental e humana, o caso de Mariana era também uma tragédia processual. “Também. Está havendo uma paralisação inexplicável de todos os órgãos envolvidos na solução das consequências dessa tragédia.”
Lembrei-lhe de que, em seu voto no julgamento da 5a Turma que anulou o acordo, afirmara que a tragédia de Mariana deveria ser investigada na perspectiva de uma “Operação Lava Jato ambiental”. Por quê? “Não tenho dúvidas. O meu sentimento de juiz e de cidadão, mas sobretudo como professor de Direito Ambiental e Sustentabilidade, é de plena consciência de que as licenças ambientais emitidas pelos agentes públicos responsáveis pela atividade minerária, no caso da barragem de Fundão, foram licenças que a meu ver não podem ter resultado de um rigoroso estudo prévio de impacto ambiental. O estudo prévio visa a dar eficácia plena ao princípio da precaução. Se isso fosse observado com rigor não teria havido a tragédia. Não tenho dúvidas que a tragédia de Mariana só aconteceu porque essas licenças não podem ter sido obtidas de forma legítima. A Operação Lava Jato já mostrou que o tecido da administração pública no país é podre. O maior inimigo do meio ambiente sadio é a corrupção. Certa vez ouvi de um político uma distorção do verso clássico de Fernando Pessoa que diz ‘tudo vale a pena quando a alma não é pequena’. Pela lógica da corrupção, o verso foi modificado para ‘tudo vale a pena quando a grana não é pequena’.”
Questionei se a tragédia de Mariana corria o risco de ficar impune. “Não tenha dúvida. Creio que deveria se instaurar uma operação da Polícia Federal e do Ministério Público específica para apurar-se a responsabilidade criminal dos agentes públicos na esfera municipal, estadual e federal que permitiram, pela sua omissão, acontecer a tragédia de Mariana, o maior desastre ambiental do planeta. Da forma como está sendo conduzida a solução em banho-maria, a panos quentes, isto vai virar uma grande pizza em termos de responsabilidade civil, administrativa e criminal. É preciso urgentemente uma força-tarefa para apurar essas responsabilidades. Somente assim nós teríamos uma apuração exemplar para inibir casos futuros.”
* * *
Com a decisão da 5a Turma do TRF1 de anular a homologação do TTAC, o caso voltou para a 12a Vara Federal, em Belo Horizonte, para as mãos da juíza Rosilene de Souza Ferreira. Entretanto, a magistrada teve de abrir um “auto suplementar”, já que a desembargadora Maria do Carmo manteve o processo no núcleo de conciliação do TRF1, gerando uma situação de anomalia jurídica, em que várias instâncias tratam do mesmo processo.
A juíza também criticou a desembargadora por “puxar” o acordo para o núcleo de conciliação, em Brasília. “Houve uma quebra, digamos assim. Foi muito estranho. Complicou-se uma coisa que não podia ser complicada.” Ela atuou no processo no segundo semestre de 2016, período em que analisou o acordo entre as mineradoras, a União e os governos de Minas e do Espírito Santo. “O TTAC parecia uma carta de intenções, um acordo de cavalheiros entre as empresas e os governos. Eu falava para os advogados das empresas: ‘Eu quero dados técnicos, não quero marketing.’ Mas a Vale não tinha boa vontade para negociar.”
A magistrada contou que procurara ouvir o máximo de pessoas atingidas e que havia se impressionado com o receio que os moradores de Bento Rodrigues tinham da construção de um dique de contenção, o S4. “As pessoas demonstravam pavor do S4. Pedi para as empresas explicarem porque era imprescindível. Tive a impressão de que o S4 era um remendinho. Não estava convencida de que era a melhor solução. Perdi noites de sono. Uma das coisas que mais me causou ansiedade foi o S4. Mandei fazer uma perícia.” A construção desse dique, contudo, acabou sendo autorizada por um decreto do governador Fernando Pimentel. Parte do antigo povoado seria inundada pela água represada nele, que alagaria terrenos dos antigos habitantes. A perícia encomendada pela juíza não havia ficado pronta até o momento em que pediu transferência para a 16a Vara Cível. “Era uma imensidão de trabalho, uma mega-ação, fora os meus outros processos, e eu só tinha dois assessores e dois estagiários. Pedi socorro ao tribunal, mas não recebi ajuda. Cheguei a ficar doente. E pedi a remoção porque, se deixasse passar, não sabia quando teria outra chance de transferência.” A análise do acordo passou, então, para o juiz que substituiu Rosilene Ferreira.
Por discordar do TTAC, o Ministério Público Federal ajuizou, em maio de 2016, outra ação contra as empresas, estabelecendo o custo total da recuperação em R$ 155 bilhões. A ação, porém, seria suspensa — também à espera de um acordo entre o MPF e as empresas.
No STJ tampouco fora julgado, até a conclusão deste livro, o mérito da liminar proferida pela ministra Diva Malerbi. Ela havia terminado seu período de convocação na corte e o caso passara ao ministro Og Fernandes, cujo último despacho que conferi datava de 6 de março de 2018. Ele havia suspendido o processo à espera de um entendimento na 12a VF/MG.
No fim de junho de 2018, quando este livro já estava entregue à editora para publicação, foi anunciada a revisão do controverso TTAC e sua substituição por um novo acordo, chamado Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), firmado entre o Ministério Público Federal, os ministérios públicos dos estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, as defensorias públicas dos estados e da União, as três empresas e órgãos da União e dos governos de Minas e do Espírito Santo. O novo TAC extinguiu a antiga ação civil pública que previa R$ 20 bilhões para reparação de danos e suspendeu por dois anos a ação mais recente que calculava em R$ 155 bilhões a quantia necessária para o mesmo fim. Pelo acordo, a Fundação Renova seguiria sendo a responsável pelas ações de recuperação ambiental e assistência às vítimas, recebendo os aportes necessários das empresas. Também foram aprovadas mudanças na sua governança com a promessa de que os atingidos passariam a ter voz nas decisões. O acordo foi encaminhado à 12a Vara Federal de Minas Gerais, com pedido de homologação.
A Fundação Renova começou a operar em agosto de 2016, com sede em Belo Horizonte e escritórios regionais em Mariana, Governador Valadares e Colatina. A organização previa entregar as novas casas para os moradores de Bento Rodrigues em março de 2019, três anos e quatro meses depois do dia em que a lama invadiu o povoado. Até a conclusão deste livro, não havia data definida para a entrega das casas aos moradores de Paracatu de Baixo e de Gesteira.