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O povo do Bento

Duas ruas em cruz, São Bento e Dona Olinda, formavam o eixo principal do vilarejo de Bento Rodrigues, a 24 quilômetros da sede do município, Mariana. As ruas menores e transversais compunham as quadras do modesto traçado urbano, de 54 hectares, onde viviam pouco mais de seiscentos moradores, alguns descendentes de famílias ali estabelecidas desde a época da escravidão. Na Dona Olinda ficavam parte do pequeno comércio, como o mercadinho do Zé Barbosa e o açougue do Aguinaldo, o posto de saúde e a escola municipal pintada de verde, onde estudavam cerca de cem alunos, entre 6 e 16 anos. A rua São Bento foi a primeira do povoado e tem importância histórica: um trecho de 2,2 km da Estrada Real — circuito turístico que reconstitui o caminho do ouro entre Minas Gerais e o Rio de Janeiro — passava por ela. O povoado foi fundado em 1694 pelo cabo Bento Godói Rodrigues, que, como tantos bandeirantes e aventureiros em busca de ouro, havia descoberto um filão perto do rio Gualaxo do Norte e por lá se estabelecera.

A capela do santo padroeiro seria erguida pouco depois, em 1718, no começo da rua de mesmo nome, e reconstruída em 1853. Uma preciosidade da tradição religiosa mineira, o pequeno templo era pintado de branco, com porta e duas janelas azuis, tendo ao lado um cemitério e, atrás, a casa paroquial. A lama pouparia apenas o piso da capela, com lápides de figuras importantes do arraial, como um certo major Camilo de Lélis Ferreira, ali enterrado em 5 de fevereiro de 1897. As peças sacras desintegraram-se em incontáveis fragmentos, alguns deles encontrados a 120 quilômetros de distância rio abaixo, contidos pelo barramento da usina hidrelétrica de Candonga. O sino de bronze não foi achado, assim como a imagem de São Bento, de 60 centímetros, talhada em madeira e folheada a ouro, do século XVIII. Perderam-se também cálices, castiçais, pórticos, vestimentas e instrumentos litúrgicos, crucifixos, imagens barrocas de anjos e santos (alguns desses objetos seriam encontrados durante os trabalhos de recuperação), documentos e livros com os registros de nascimentos, batizados e casamentos.

Com mais de 80 anos, Filomeno da Silva é considerado o historiador informal de Bento Rodrigues, visto como um sábio no povoado. Seus bisavós e avós foram escravos e ali se estabeleceram numa casa de pau a pique doada por seus senhores. Foi ele quem fundou o clube de futebol local, São Bento União e Desporto, em 1951, e a Associação Comunitária, em 1997. Na figura e no porte elegante, com 1,82 m de altura, ele lembra o compositor Ataulfo Alves. Aposentado, passara a dedicar o tempo livre a duas grandes alegrias na vida: a música e a Igreja. Filomeno herdou da mãe, dona Dercília, o posto de zelador da capela de São Bento. “Eu fazia todo o serviço mais pesado de limpeza e a patroa [dona Tereza] cuidava das roupas. Eu visitava o Santíssimo todos os dias e rezava o terço. Aqui [em Mariana], levanto de manhã e não tem nada para fazer.”

Como vários moradores de Bento Rodrigues, a história de Filomeno se entrelaça com a da mineração. Ele conta que aprendeu a “batear” (garimpar) com a mãe no córrego Ouro Fino, um dos que banhavam o povoado. Dona Dercília ficou viúva quando estava grávida de Filomeno e teve de arcar sozinha com a criação dos três filhos, além de ajudar os sogros. “Mãe nos criou com o garimpo”, relembrou o ancião. Dos 7 aos 9 anos, ele “bateou” para ajudá-la. “Ela era magrinha de tanto sofrimento. Depois, quando tive um emprego melhor, proibi ela de garimpar.”

Aos 9 anos, Filomeno foi trabalhar num sítio, onde “plantava, capinava, cuidava do gado, fazia de tudo”. Aos 14, empregou-se na construção da estrada de Bento Rodrigues até Camargos, outro distrito de Mariana. Com 16 para 17, conseguiu uma vaga na então siderúrgica Belgo-Mineira. “Eu tinha um salário melhor porque já estava acostumado ao trabalho pesado. Trabalhava no subterrâneo, a muitos metros de profundidade. Eu gostava de trabalhar embaixo da terra, era tudo escuro, não via o tempo passar. Era melhor que trabalhar na estrada.” O único problema era driblar a disciplina imposta por um chefe estrangeiro, que não apreciava o gosto dos funcionários pelo carnaval em Ouro Preto. “Ele ameaçava nos mandar embora, mas eu ia assim mesmo. Era uma festa o carnaval nos blocos e clubes. Eu comprava uma caixa de lança-perfume, com quatro tubos”, recorda, o sorriso deixando evidente o prazer daquela memória. Em 1956, nova mudança, desta vez para a mineradora Samitri, que, décadas depois, seria uma das formadoras da Samarco. “Comecei como servente, fui subindo de posto, cheguei a chefe de serviço.” Enquanto estava na Samitri, Filomeno conseguiu estudar, aprendeu música, casou-se com Tereza e teve três filhos.

A casa dele vinha passando de geração em geração, no número 221 da rua São Bento, e recebia melhorias sempre que as sobras do salário permitiam. Tinha térreo, segundo andar, uma laje com um amplo terraço, sete quartos e quatro vagas na garagem. “Coloquei colunas, troquei todas as paredes e o forro de madeira, revesti de azulejo e cerâmica. Agora está tudo lá, debaixo da lama seca. Tinha um vestido da patroa que ela nunca tinha usado, era para um casamento. E todos os meus ternos. Tinha um de linho branco, que eu tinha feito numa alfaiataria do Largo da Carioca, no Rio de Janeiro, numa viagem, quando eu ainda era solteiro. Tudo que eu tinha feito para ter uns dias melhores pela frente eu perdi. O que eu fiz lá não tinha preço.”

Na hora em que a lama chegou, Filomeno não estava em casa. Saíra com a mulher 40 minutos antes, porque tinha ensaio, como toda quinta-feira, na Sociedade Musical Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em Ouro Preto, onde toca clarinete. Com tristeza, contou que, além da casa, a desgraça levou um saxofone e um clarinete, este herdado do avô materno, Modesto. A música alivia o passar dos dias, mas ele não tem mais como se ocupar da Igreja. O que restou dela estava cercado por um tapume, onde um grupo de arqueólogos, contratados pela Samarco, trabalhava na identificação de vestígios.

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Na lateral direita da Igreja, na esquina da rua Raimundo Muniz, número 11, ficava a casa de Sandra Quintão, dona do Bar da Sandra, este virado para a praça Cônego Caetano, número 18. O sobrado de dois andares, que juntava moradia e comércio, manteve características da estalagem que durante séculos abrigou tropeiros de passagem por aquelas bandas. “Quando meu pai comprou essa casa, na escritura estava escrito que era um rancho de tropas”, contou Sandra, 45 anos, a quituteira mais famosa de Bento Rodrigues. “Pai era tropeiro também, vendia queijo por todos esses povoados. Comprou a casa e arranchou”, disse sobre o patriarca de oito filhos, Olívio da Fonseca Quintão, que viveria até os 82 anos. À mercearia do pai, ela acrescentara bar e restaurante. “Primeiro botei um fogão à lenha e distribuí uns cartões. As pessoas foram vindo e gostando.” Abria de segunda a segunda e só fechava na sexta-feira da Paixão, por exigência da mãe, dona Amélia, muito religiosa. “Ela via a igreja abrir e era a primeira a entrar.”

Sandra atraiu a clientela de trabalhadores da Samarco e de suas terceirizadas. “Cheguei a fazer 150 marmitas por dia para eles. Quando tinha alguma festa na Samarco, eles vinham de van. Até gerentes deles eram meus clientes. Eu tinha o maior orgulho de ver aquele tanto de caminhonete da empresa na frente do meu restaurante”, relembrou. “Éramos como uma família. A gente confiava muito neles.” O negócio foi crescendo e a construção ampliada tornou-se uma pousada, com vinte cômodos, não mais para hospedar os tropeiros do passado, mas os viajantes da Estrada Real. “Vinha gente a pé, a cavalo, de bicicleta, moto, jipe.” A fama dos quitutes se espalhava: frango com quiabo, feijoada e coxinha de frango. Quando a tragédia ocorreu, o Bar da Sandra tinha completado 15 anos e se tornara uma referência de Bento Rodrigues e arredores. Nos meses de outubro e novembro, era a sede de um campeonato de truco regional. “No domingo, chegavam aqui às 8h e saíam às 22h. Era muita diversão. Vinha gente de todos os distritos: Santa Rita Durão, Camargos, Antônio Pereira...”

Tudo isso se desfez na tarde em que a barragem rompeu. Sandra se dirigia à cozinha, para “ralar coco”, quando a amiga Paula Alves passou de moto avisando que Fundão estourara. “Tirei meu carro e pedi a um amigo que levasse minha filha e uma vizinha que tem dificuldade de andar. Eu fiquei porque minha irmã, Terezinha, não acreditou e disse que não ia sair. Ela disse: ‘Isso é mais uma chuva de poeira.’ Eu falei para ela: ‘Foi Paula que avisou, eu confio nela, ela não ia brincar com uma coisa dessas.’” Terezinha se convenceu da iminência do perigo quando ouviu o barulho de árvores quebrando. Olhou na direção da barragem e avistou uma nuvem de poeira gigantesca, seguida de perto pela lama em movimento acelerado. As duas irmãs então correram em direção à igreja de Nossa Senhora das Mercês, na parte alta, em meio ao desespero dos vizinhos. Lá, Sandra encontrou a filha, Ana Amélia, de 4 anos, e, agarrada à menina, viu tudo o que a família construiu em décadas desintegrar-se em poucos minutos. “A lama chegou e encheu a casa toda. Aí arrancou o segundo andar. O telhado ficou boiando até sumir. Foi a última coisa que eu vi.”

Na rua da casa, duas mangueiras frondosas faziam sombra sobre dois bancos de pedra, lugar de descanso e de prosa entre clientes e amigos. Sandra lembra que, no dia do desastre, trabalhadores da barragem almoçaram ali, entre eles Samuel Vieira Albino, um dos dezenove mortos, que, sob uma das árvores, telefonou para a mulher, Aline, em Belo Horizonte. Foi a última vez que se falaram. Das mangueiras, restaram apenas os troncos e galhos secos. Com as raízes sufocadas pela lama, as árvores não dão mais frutos. Os bancos foram arrastados para a frente do bar. Sandra pretende levá-los para o novo Bento Rodrigues, reassentamento prometido pela Fundação Renova. Seu maior tesouro, contudo, era o piso original da casa, de grandes pedras retangulares talhadas pelos escravos, no século XVIII, soterrado por meio metro de lama solidificada. “Eu queria levar o piso para a casa nova, é a memória da nossa família, é a nossa história. Se não der, que a Samarco escave aqui e deixe à mostra para outras pessoas verem. É para marcar território. Esse lugar é nosso. A gente não queria vender nem trocar, então não tem dinheiro que pague. Não quero que seja alagado. A gente pensa que vai deixar pros filhos e de repente é tirado da gente de forma tão agressiva.”

Sandra teme que a empresa se aproprie de Bento Rodrigues para expandir o complexo minerador. A desconfiança se baseia em conversas que, segundo ela, a Samarco teve com os moradores, antes do desastre, sobre outra estrutura a ser construída, o Projeto Mirandinha, que ficaria a menos de 2 quilômetros do povoado. “Eu reclamei com eles que era perto demais, perguntei se não tinha outro lugar para pôr essa barragem e eles falavam para a gente que não tinha. Eu lembro do Germano [Germano Lopes, gerente-geral de Projetos da mineradora, réu no processo criminal por homicídio com dolo eventual] dizer que o Bento era tão seguro que ele mesmo podia morar aqui.” Lopes vive em Itabirito, a 80 quilômetros de Bento Rodrigues. “A gente perdeu a confiança. Eu sinto muita mágoa”, afirmou Sandra. O receio dos moradores aumentou com a construção do dique S4, no córrego Santarém, autorizado por decreto do governador Fernando Pimentel, de 20 de setembro de 2016, e que alagou propriedades de 55 moradores do povoado. A Samarco alegou tratar-se de uma obra emergencial, para impedir que mais rejeitos remanescentes no reservatório continuassem sendo carreados para os rios na época de chuva. Os habitantes não autorizaram as obras, mas o governador decretou o uso das propriedades por “requisição administrativa”, por um período de três anos, e que a mineradora arcasse com as indenizações — não definidas até a conclusão deste livro.

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Um dos moradores forçados a ceder propriedades para o dique S4 foi Manuel Marcos Muniz, conhecido como Marquinhos, genro de Filomeno. Além de dois terrenos particulares, a água do dique alagou outros três deixados de herança pelo pai dele para os oito filhos e que ainda não tinham sido inventariados. Conheci Marquinhos em agosto de 2017, enquanto tentava resgatar o portão de ferro de sua casa, a 300 metros do lugar original. Foi ele quem me ajudou a identificar os escombros da casa do sogro, pelos poucos azulejos com motivo floral que ainda podem ser vistos em meio à crosta de lama grudada em quase tudo.

O portão que tanto queria estava preso na massa petrificada e ele não conseguiu arrancá-lo. “O que for meu eu vou guardar. Eu quero ver se consigo fazer minha casa no novo Bento idêntica, pintada da cor de areia e com piso de ardósia.” Enquanto estendia o olhar para o povoado em ruínas, Marquinhos, 53 anos, lamentou: “Eu ajudei a construir essa lama.” Ele fora operador-mantenedor de bombas na mineradora de 1985 a 2014. “Na minha carteira de trabalho, na mesma página que está a entrada está a saída. Eu tinha orgulho de trabalhar na Samarco, eu vestia a camisa. Meus colegas me diziam: ‘Você é um funcionário exemplar.’”

Um ano antes do desastre, decidiu se aposentar. Achou que já tinha o suficiente para viver e queria se dedicar ao trabalho no campo, enquanto a mulher, Marinalda, continuaria dando aulas na escola estadual, em Mariana. O casal era dono de uma chácara de 600 m2 e de um terreno de 8.800 m2 , onde tinha criações, horta e pomar. A lista é grande: 29 cabeças de gado, porcos, galinhas, patos, codornas. Também cultivava quinze frutas, além de legumes e verduras. Produzia leite, queijo, requeijão, ovos e abatia frangos para vender, com entrega em domicílio, em Mariana. “Eu queria viver aqui para o resto da vida. Mas tudo que a Samarco me deu com o suor da zero hora, ela me tomou”, disse Marquinhos, explicando que “zero hora” é o turno da madrugada, que começa à meia-noite, horário em que sempre trabalhou. Ele mostra com orgulho fotos do que produzia. Numa delas, uma mandioca tão grande que alcançava a altura da filha, Mara Regina, aos 2 anos de idade.

A família estava em Bento Rodrigues desde os avós. O ginásio poliesportivo, que serviu de abrigo a muitos moradores na primeira noite depois da tragédia, leva o nome do pai dele, Manuel Muniz. E a rua onde vivia tem o nome do avô, Raimundo Custódio Muniz. Marquinhos segue pelas ruas comparando as ruínas com fotos do povoado que tem no celular, mostrando casas pintadas de branco, azul, verde e amarelo, jardins com buganvílias e ipês. As ruas, antes pavimentadas e limpas, hoje estão cobertas pelo pó seco e fino do rejeito de mineração, que deixa um brilho de purpurina nos sapatos. Cada vez que volta a Bento Rodrigues, ele tenta resgatar suas memórias. “Tive um bezerro que não conseguia mamar na teta da vaca. Eu dava leite para ele na mamadeira. Depois que ele cresceu, eu guardei. Uma vez eu vim aqui, achei a mamadeira no meio da lama e peguei para mim. Qualquer coisinha serve de história para nós.”

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Seguindo pela rua São Bento em direção à parte alta, no número 288, em frente à escola, Sandro José Sobreira, 42 anos, mostra o que um dia fora o comércio que ele e os nove irmãos herdaram do pai, o Bar do Sobreira. Nos fundos, ficava a casa da mãe. A família tinha ainda uma loja de brinquedos e uma mercearia. Sandro gostava sobretudo do bar, onde ajudava o pai desde os 13 anos. “Tinha sinuca. Domingo era o dia inteiro...” Ele estava lá na tarde da catástrofe. Quando percebeu que a lama se aproximava, botou a mãe no carro e tentou fugir. Outras pessoas tiveram a mesma ideia e a rua principal da vila engarrafou pela primeira (e única) vez, em meio à correria dos moradores. “Eu era o último da fila. Vi a lama chegando pelo retrovisor. Larguei o carro e corri com mãe para o alto. Todo mundo fez a mesma coisa. Parecia um filme de terror. Vi um homem largar as muletas e subir a encosta se agarrando nos matos.”

No fim da rua, ergue-se a igreja de Nossa Senhora das Mercês, do século XVIII, que, por ficar no alto de uma ladeira, escaparia intacta. Foi para lá que muitos correram no dia do desastre e conseguiram se salvar. Tal como era a igreja de São Bento, a das Mercês, com o cemitério ao lado, é pintada de branco, com porta e duas janelas azuis, e tem um cruzeiro. A partir dela, segue-se pela rua de mesmo nome, onde restaram de pé uma igreja evangélica, poucas casas e a sede da Associação dos Hortigranjeiros de Bento Rodrigues.

Criada em 2002 para vender verduras produzidas pela comunidade para a Samarco, a associação decidiu, a partir de 2006, concentrar-se na pimenta biquinho e fazer a geleia agridoce que se tornaria um dos orgulhos da localidade. A geleia ganhou certificação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e era vendida até na capital, Belo Horizonte. A receita, à base de laranja e limão, era a fonte de renda de doze associados, sendo nove mulheres. Keila Fialho dos Santos, 34 anos, era uma delas e chegava a tirar até mil reais por mês. Na tarde do desastre, estava na casa de um tio. “Eu tinha que atravessar o Bento para chegar em casa porque eu estava do outro lado, a uma distância de um quilômetro. Saí correndo a pé. Na metade do caminho passei na mercearia do meu sogro e peguei a caminhonete dele. Só via gente correndo.”

A essa altura, a lama já estava muito próxima. Era difícil calcular em quanto tempo engoliria tudo. O certo era que faltava pouco, muito pouco. “Eu só pensava em pegar meus meninos na escola e minha mãe em casa. No meu pensamento, ia correr para morrer junto com eles. Não adiantava sobreviver sem eles. A vida não teria sentido para mim.” Keila parou na escola e recolheu os filhos, Pablo, 17, e Jennifer, 12. Muitas outras crianças e jovens subiram na carroceria. Mas não pôde continuar. O ônibus de linha que iria para Santa Rita Durão estava parado, fechando a rua. Ela largou o carro e seguiu a pé. Quase chegando em casa, viu a sogra, Maria Félix, de 68 anos, mal enrolada numa toalha, puxando a mãe de Keila, Diomara, de 88 anos. “Minha sogra estava tomando banho quando ouviu alguém gritar que a barragem estourou, ela saiu do jeito que estava, trazendo mãe.” Pablo carregou a avó nas costas e todos subiram a ladeira até a Igreja das Mercês. “Mãe estava muito nervosa, não entendia o que estava acontecendo. Quando chegamos no alto e olhei para trás, o Bento já estava todo coberto. Da minha casa, não sobrou nada.”

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O sogro de Keila, José Barbosa, 70 anos, percebeu que havia algo errado naquela tarde quando viu, de dentro de sua mercearia, na rua Dona Olinda, muita gente correndo na rua. “Achei que tinha começado uma briga e saí para ver.” Foi quando Keila passou avisando que a represa estourara e que iria até em casa tentar salvar a mãe. O sogro lhe deu a chave da caminhonete e se quedou paralisado assistindo à correria e ao pânico. “Eu bobeei, eu paralisei porque eu olhei para a direção da minha casa e vi que a lama já estava passando por lá. Aí eu pensei: ‘Meu povo foi todo embora com a lama.’”

Todos os descendentes de Zé Barbosa e sua mulher, Maria Félix, moravam próximos: cinco filhos, oito netos e seis bisnetos. A mercearia era resultado de uma vida de muito trabalho, numa plantação de eucaliptos, e de um pouco de sorte, no garimpo do córrego Ouro Fino. Na venda, tinha de tudo um pouco, “de mantimentos até batom pras mulheres”. No andar superior, havia um salão para festas. A casa era grande e antiga. “Tinha doze cômodos. Quando comprei ainda tinha parede de pau a pique. Não parecia porque por fora botei tijolo e era muito bem rebocadinha.” Tinha mais duas casas, cujos aluguéis aumentavam a renda da família, e uma poupança à moda antiga. O comerciante guardava R$ 60 mil em dois pacotes de R$ 30 mil, um em cada canto do guarda-roupas. O sonho era comprar um carro seminovo ou zero. “Eu só tinha carro velho. Queria um melhor.” Perguntei-lhe sobre por que manter dinheiro em casa e não no banco. “Há muito tempo, eu era mais novo, eu tinha três cadernetas de poupança. Toda sobra minha eu punha no banco. Eu tinha um dinheiro que dava para viver bem. Aí veio um presidente, o Collor. Conhece? Já ouviu falar?” Disse que sim. “Pois então. De um dia para o outro eu perdi tudo. Pensei: nunca mais boto dinheiro no banco. Não acredito mais em nenhum presidente. Toda sobra que eu tinha eu passei a construir. Depois parei e comecei a juntar. Aí veio a lama e levou tudo.”

Com a massa de rejeitos assentada e toda a família sã e salva, Zé Barbosa voltou ao povoado na esperança de achar algum vestígio do dinheiro. Nada encontrou. A antiga mercearia resistira de pé, mas estava inundada. “A lama foi subindo pela escada até o segundo andar.” Dias depois do desastre, encontrou um rapaz, conhecido como Zezinho Café, e só então lembrou de como havia sido salvo. “O Zezinho me contou que me viu parado na rua. Ele parou o carro dele e me botou para dentro. Se não fosse ele, eu tinha morrido. Eu bobeei tanto na hora que não lembrava como tinha saído dali. Para mim, o mundo estava acabando.”

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Assim que o rejeito baixou o suficiente para permitir o acesso, ainda que precário, de carros e caminhões, ladrões completaram a destruição, aproveitando-se da falta de vigilância. Roubaram tudo que podia ser aproveitado das casas do alto: telhados, portas, janelas, caixas d’água, grades, portões, tanques, madeiras de forro, pias, vasos sanitários, bancadas de granito, pisos de cerâmica. Armários foram revirados sem a menor cerimônia e o que não levaram ficou jogado pelo chão.

A dona de casa Marly de Fátima Felipe, 33 anos, contemplava o que havia sobrado de sua casa, recém-erguida e ainda por pintar. Todas as telhas, janelas e portas arrancadas. A tragédia foi ainda maior para ela, que perdeu a mãe, dona Maria das Graças, 64 anos, levada pela lama. As duas tinham almoçado juntas naquele dia e, como de costume, a mãe voltara para casa, onde vivia sozinha, perto do rio, depois de fazer compras no caminho. Um rapaz ainda tentou avisar a senhora, mas a filha supõe que ela não entendeu, porque tinha dificuldade de audição. “Ser roubada num momento daquele, de tanta dor, foi o mesmo que enfiarem uma faca no meu peito”, disse Marly, diante da casa que construíra com o marido, Francisco. O casal e as duas filhas, Ana Flávia, de 11 anos, e Emília, de 5, passaram a morar em Mariana, com aluguel pago pela Samarco. Mas era difícil se acostumar a um modo de vida tão diferente e à maneira como as vítimas são vistas, segundo ela, por muita gente da cidade. “Na casa de Mariana não tem terreno que dá para plantar e para as meninas brincarem. A gente tinha horta, laranja, banana, mamão, manga, mandioca. Falam que a gente morava em barracos. Mas nós tínhamos casas. Não eram ricas, mas eram casas.”

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Numa tarde de agosto de 2017, em que o silêncio do povoado era quebrado apenas pelas revoadas de maritacas, as irmãs Elaine Cristina Serra, 35, e Sônia Ferreira, 39, junto com o pai, Sô Dico, aproveitaram para visitar o túmulo da mãe, Cléria, no cemitério das Mercês. Depois, passaram mais uma vez pelas casas saqueadas. “Preferia que a minha casa tivesse sido levada pela lama do que saber que alguém, de caso pensado, veio aqui saquear”, disse Elaine. Por causa do trabalho no comércio, ela morava em Mariana e havia transformado a propriedade de Bento Rodrigues num refúgio campestre, com piscina e muitas árvores, para onde escapava nos feriados e fins de semana. Os ladrões conseguiram arrancar do solo a piscina de fibra de vidro, além do pé de jabuticaba e cinco coqueiros. Elaine contou que, logo depois do desastre, emprestou a casa para a Samarco cuidar de animais resgatados. “Os patos foram lavados na piscina, tenho foto deles aqui. Como é que alguém entra e consegue arrancar uma piscina? Deveriam ter posto seguranças aqui.” Segundo ela, os saqueadores vinham em caminhões para carregar tudo que fosse possível. “Eu vi um caminhão descarregando telha em Santa Rita Durão. Tenho certeza de que era telha roubada daqui. Registrei queixa na Polícia Militar, mas deu em nada. Ninguém impediu que viessem nos roubar.”

Quando visitei Bento Rodrigues pela última vez, o povoado fantasma era ainda mais impressionante. Um imenso borrão marrom apagara as cores do antigo arraial. Dentro do que foram lares, estava tudo fora da ordem. Uma imagem de santo sem a cabeça, o retrato de um casal, um computador em pedaços, um sofá revirado, tudo abandonado, como se fosse lixo. O mato engolia os escombros, como uma camuflagem do cenário da tragédia. E, suprema ironia, havia as reluzentes placas de alerta orientando sobre o que fazer se sob perigo, com frases como: “Em caso de acionamento das sirenes, dirija-se ao ponto de encontro.” Antes do desastre, não havia placas e muito menos sirene. Sandro, o dono do bar, acha que a displicência com o patrimônio dos moradores foi proposital. “Deixaram saquear para a gente não voltar.” Se houve a intenção de afastar os moradores, não deu certo. Eles continuam a visitar o vilarejo. Mesmo entre os que não querem regressar, com medo de uma nova catástrofe, muitos gostariam de transformar o antigo povoado num memorial para as próximas gerações entenderem o que aconteceu ali. Querem também manter as duas festas tradicionais do lugar: a de São Bento, em julho, e a de Nossa Senhora das Mercês, em setembro. “É uma forma de manter a posse do nosso Bento e de não deixar a empresa tomar conta”, disse Sandro.

Junto com Keila (a da pimenta biquinho) e Marquinhos Muniz, ele faz parte de um grupo com cerca de trinta moradores, os “Loucos por Bento Rodrigues”, como eles mesmos se chamam no WhatsApp, que com frequência se reúne na casa de número 95 da rua das Mercês, a “casa dos loucos”, para celebrar datas especiais e lembrar dos velhos tempos. Mas, sobretudo, para marcar presença. Temem que o dique S4 seja um pretexto para que a Samarco ocupe definitivamente a área.

Os promotores da primeira força-tarefa que atuou no caso têm a mesma preocupação. Marcos Paulo de Souza Miranda, coordenador da Promotoria de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural do MP de Minas Gerais na época do desastre, considera que o Projeto Mirandinha já expressava a intenção de tomar a região. “Quando da concepção da barragem de Mirandinha, uma das opções era construir a estrutura praticamente sobre Bento Rodrigues. Talvez, agora, o serviço fique um pouco mais fácil. Não há fundamentação técnica para a construção do dique naquele local exato. O que há é a vontade de criar o fato consumado, criar situações de instabilidade, de perigo, para se justificar a inviabilidade do retorno da comunidade para o local, a reconstrução dos bens e que aquilo tenha um uso comunitário. E é lamentável que o governo de Minas Gerais tenha se prestado a servir de instrumento para a efetivação desse projeto. Inclusive patrimônio tombado da igreja de São Bento [metade do muro de pedras, de 200 metros] foi atingido pelo dique S4. Propriedades privadas também foram incluídas na área do dique sem o devido processo de desapropriação. O decreto que declarou a área de interesse público nada mais foi do que uma desapropriação travestida de decreto de utilidade pública. O decreto é uma demonstração de que o poder executivo está, ou esteve, a serviço dos interesses das empresas.”

Duas leis municipais protegiam os bens de valor histórico e cultural de Bento Rodrigues. A 2.240/2008 instituiu o programa de valorização do patrimônio cultural do distrito de Santa Rita Durão, do qual Bento Rodrigues é um subdistrito. E a 2.855/2014, aprovada um ano antes do rompimento, que criou o Circuito Turístico Estrada Parque: Caminhos da Mineração. Além disso, o povoado estava inserido numa área de proteção especial incluída no decreto estadual 21.224/81, que visa a proteger o patrimônio cultural de Ouro Preto e Mariana. Portanto, trata-se de patrimônio expressamente protegido pelas leis locais. O promotor, no entanto, considera que a empresa sempre manifestou descaso com o patrimônio histórico e cultural e com a memória dos moradores. “Bento Rodrigues tinha edificações de grande valor arquitetônico e arte sacra colonial, a exemplo da capela de São Bento, com características do barroco primitivo de Minas Gerais. A porta frontal dessa capela chegou a ser citada num livro do professor Ivo Porto de Menezes, que é um grande especialista em arte barroca mineira, como uma das portas mais bonitas das capelas dos arraiais mineiros”, disse. Na reserva técnica criada pela Samarco para restaurar o que foi encontrado, estão cerca de 2 mil fragmentos, como a tampa da pia batismal, pedaços do altar de madeira e uma imagem de São Benedito, sem a cabeça e um dos braços. Segundo Marcos Paulo Miranda, isso não representa nem 5% do que foi perdido.

Depois do desastre, a empresa Arcadis, contratada pela mineradora, recuperou alguns pertences dos habitantes. Ler a lista de material recolhido é como espiar o cotidiano das famílias por uma fresta. Misturados a pedaços de móveis, eletrodomésticos e brinquedos, foram encontrados: carrinho com lenha, vara de pescar, lâmina de arado, máquina de solda, cadeira de rodas, carrinho de mão, churrasqueiras, balança digital, panelas, uma forma de bolo, estojo de maquiagem, uma lupa, um troféu, enfeites de Natal, carrinho de bebê, cabeceira de cama, monitor de computador, impressora, uma placa de carro de Manaus com o número JXA 5745, um exemplar do livro Três autos , do autor clássico português Gil Vicente, e cartelas de remédio intactas. São 156 itens, recolhidos entre 24 e 30 de setembro de 2016 — portanto, onze meses depois do desastre. A coleta foi resultado de uma ação do Ministério Público.

A empresa manteve a coleta das peças sacras, mas a de bens pessoais foi interrompida inexplicavelmente. Tanto que, quase dois anos depois da inundação, ainda era possível encontrar milhares de objetos incorporados à lama endurecida por onde quer que se andasse em Bento Rodrigues. Num trabalho de formiguinha, muitos moradores, como Marquinhos Muniz, encarregavam-se, por conta própria, de resgatar álbuns de fotografias, quadros, diplomas, certificados, escrituras e objetos de valor afetivo que contavam a história da comunidade. Uma característica marcante da localidade é que, na faixa de moradores entre 40 e 50 anos, é comum encontrar famílias com seis, oito e até nove irmãos. Os laços de parentesco foram se estreitando com os casamentos entre habitantes do próprio povoado. Por isso, não é exagero afirmar que praticamente todos se conheciam e cultivavam fortes laços comunitários. Dois anos depois, a tragédia se prolongava dia após dia na vida daquelas pessoas com a demora e as incertezas na construção do novo Bento Rodrigues.

O processo fora iniciado pela Samarco em 2016, com a oferta de três áreas. Por meio de votação, as famílias escolheram — com 92% de aprovação — o terreno conhecido como Lavoura (de 375 hectares, a 8 quilômetros do centro de Mariana), comprado pela mineradora da empresa ArcelorMittal. Naquele mesmo ano, a Fundação Renova passara a conduzir o processo de reassentamento. Em 2017, os moradores aprovaram um projeto urbanístico que respeitaria, segundo a Renova, as características originais das ruas, com os mesmos vizinhos e com espaço suficiente em cada terreno para plantar e criar animais.

A fundação teria de entregar o novo Bento com ruas e calçamento, rede de água e esgoto, drenagem, iluminação, demarcação dos lotes e construção de todas as residências. O receio com o novo endereço era grande. Marquinhos Muniz, por exemplo, lamentava o fato de o terreno ter apenas um córrego por perto e não um rio como o Gualaxo do Norte, “onde o gado bebia água e o povo pescava”. Outro motivo de desconfiança é a proximidade com o aterro sanitário de Mariana, a 2 quilômetros de distância. Mesmo com tantas dúvidas, Sô Dico, apelido de Marcílio Ferreira Serra, 74 anos, pai de Elaine, Sônia e mais sete filhos, não via a hora de sair da cidade e ter de volta um pedacinho de chão para cultivar horta e pomar. Aposentado depois de fazer “de um tudo” na vida, pretendia plantar tudo de novo. Mas sabia que não seria como no velho Bento. “Eu posso até plantar, mas não vou viver o tempo que é preciso para ver tudo crescer.”