35
Paracatu de Baixo e Gesteira
O segundo vilarejo no caminho da lama foi Paracatu de Baixo, a 35 quilômetros de Mariana, onde moravam 108 famílias e onde todos se salvaram correndo para o cemitério, avisados a tempo pelos bombeiros. As casas da parte alta também escaparam da destruição e alguns poucos habitantes decidiram continuar vivendo ali ou vão lá nos fins de semana. Há uma linha de ônibus regular para o distrito. Tal como em Bento Rodrigues, as gramíneas plantadas pela Fundação Renova no lodo seco haviam crescido o suficiente para esconder muitas ruínas que eu vira nas outras quatro vezes em que estive no lugar. Em agosto de 2017, o campo de futebol, as paredes das casas, os currais, os chiqueiros, os galinheiros, os canis, as cercas e os portões, tudo desaparecia entre as ramagens de feijão guandu, uma das espécies plantadas sobre a lama.
Entrar no que sobrou das casas é como botar uma lupa sobre detalhes de uma fotografia feita do alto. A imagem captada de longe põe em evidência a tragédia coletiva. O foco nos pormenores pode revelar o passado, o presente e a expectativa de futuro daquelas pessoas. Num quintal, uma pilha de tijolos e restos de material de construção indicavam que o dono estava ampliando a casa, projeto que jamais será concluído. A pasta de rejeitos se alojou nos lugares mais improváveis: gavetas, pias, tanques, armários, geladeiras, fornos. E, ao secar, tornou-se matéria-prima da fossilização de histórias e memórias. Num banheiro, a lama aderiu a uma toalha pendurada e se amoldou às ondulações do tecido. Parecia uma escultura. No varal, roupas íntimas de uma mulher não balançavam mais ao vento. Estavam petrificadas.
O lodo também invadira o principal ponto de referência da comunidade, a igreja de Santo Antônio, local de festejos como a Folia de Reis, que, todo ano, no período natalino, percorria as casas dos moradores e outros distritos. A lama só deixara de fora as duas torres e o telhado. Quando o desastre completou dois anos, as paredes ainda exibiam as marcas da massa, que chegara a mais de quatro metros. A pedido do Ministério Público, a Fundação Renova retirou os detritos acumulados por dentro e assim foi possível realizar uma missa na igreja, exatamente como queriam os habitantes. Não havia mais o altar nem as imagens de santos, mas as paredes revestidas de lama eram o testemunho mais eloquente da resistência dos atingidos. Segundo o promotor de Justiça de Mariana Guilherme de Sá Meneghin, a ideia que crescia entre os moradores e a Arquidiocese de Mariana era deixar a lama ali para sempre e fazer na Igreja as celebrações em memória das vítimas.
Contudo, nada é mais estarrecedor do que a Escola Municipal Caetano Barbosa, na rua Monsenhor Horta, a principal da vila. Entrar no colégio, dois anos depois, foi como abrir uma cápsula do tempo. O momento exato em que a lama chegou parece ter sido aprisionado no rejeito petrificado dentro dos compartimentos. O lodo viscoso tomou a recepção, salas e banheiros do térreo. Havia tanta lama na escada que ela parecia uma rampa, mal dava para distinguir os degraus. Nas salas de aula do andar de cima, sinais evidentes de que alunos e professores tiveram de interromper suas atividades de forma intempestiva. Guardadas as devidas proporções, ao me deparar com aquele cenário congelado, tive a mesma sensação de quando fui a Pompeia, na Itália, atingida pela lava do vulcão Vesúvio, em 79 D.C. A chuva de cinzas sepultou a cidade e a protegeu das intempéries. Quando foi descoberta, no século XVIII, a remoção do material revelou o modo exato como as pessoas e as construções foram atingidas. Na nossa modesta Pompeia, a lama fez o papel das cinzas. Prendeu as carteiras dos alunos, mesas e cadeiras dos professores, como se uma solda tivesse sido usada. A lama chegou a 40 centímetros de altura, deixando escapar painéis pregados nas paredes com trabalhos escolares e as prateleiras dos armários, cheias de livros e material didático. Na Pompeia sem afrescos, os vestígios da escola de outrora eram mais singelos: doze mãos de crianças pintadas em cores alegres na parede de uma sala.
* * *
O terceiro povoado mais atingido foi Gesteira, distrito de Barra Longa, onde a enxurrada engoliu oito casas, onze lotes, uma escola e invadiu a igreja de Nossa Senhora da Conceição. De acordo com a Fundação Renova, seriam construídos reassentamentos para as famílias de Paracatu de Baixo e de Gesteira, mas, nesses dois casos, o processo estava bem mais lento que o de Bento Rodrigues. O Ministério Público de Minas Gerais fez um extenso levantamento dos danos ao patrimônio histórico e cultural das áreas atingidas e, além das igrejas, incluiu fazendas, pontes, muros e currais de pedra, cemitérios, galerias de mineração, cavernas e grutas. Arqueólogos que estudaram a destruição provocada pelo rompimento da barragem nessas três localidades propuseram a criação de museus em cada comunidade como instrumento de preservação da memória. No caso de Bento Rodrigues, onde a devastação foi avassaladora, a proposta — encampada pelo MP — consistia em restaurar a paisagem “com preservação de porções impactadas que sejam representativas das consequências do rompimento para fins patrimoniais e educacionais”.
Essa orientação se baseou na experiência internacional de reconstrução de localidades afetadas por desastres de proporção semelhante à tragédia de Mariana. Para os especialistas, a recriação do ambiente, da paisagem e do patrimônio cultural ajuda na recuperação emocional e no fortalecimento da identidade de comunidades afetadas por traumas tão violentos. A proposta do Ministério Público, entretanto, não prosperaria. O promotor Marcos Paulo Miranda considera que a restauração do patrimônio é caso perdido. “Se quisessem de fato recuperar, a recuperação deveria ter começado no dia seguinte, por princípio recuperando os pertences das vítimas, os álbuns de família, as fotografias, os quadros pendurados na parede. Nada disso foi feito. Nem o básico, atrelado à dignidade da pessoa humana, foi feito até hoje, embora o Ministério Público tenha insistido duramente para que isso acontecesse, a ponto de ter que entrar com ação civil pública. Me parece que não existe um compromisso efetivo no que diz respeito à recuperação.”