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À beira do córrego
Como de costume, a viúva Maria das Graças Celestino, de 64 anos, tinha almoçado na casa da filha, Marly de Fátima, 33, na rua das Mercês, em Bento Rodrigues. Não passava um dia sem que se visitassem. A avó também gostava de estar por perto das netas, Ana Flávia, 10 anos, e Emília Fernanda, 5 anos. Era uma mulher ativa. “Capinava, adubava a horta, buscava lenha para o fogão, lavava roupa”, me contou o genro, Francisco de Paula Felipe, 47 anos. Pouco depois das 15h30 daquela quinta-feira, dona Maria das Graças disse que precisava ir embora. Iria fazer a sobrancelha no pequeno salão de Alessandra e passar no armazém do Zé Barbosa. Pediu que a filha a acompanhasse, mas Marly não se sentia muito bem e prometeu vê-la no dia seguinte. Foi a última vez que se viram.
No caminho, dona Maria das Graças, jamais se saberá por que, desistiu do retoque nas sobrancelhas e foi direto ao armazém. Comprou cinco quilos de milho para as galinhas, um quilo de linguiça e seguiu para casa. “Ela nunca desistia de nada que marcava. Nesse dia, fez tudo diferente. Não foi para o salão e não esperou o ônibus do pão”, comentou Marly. No fundo do quintal de dona Maria das Graças passava o córrego Santarém, onde tantas vezes a filha brincou ou ajudou a mãe quando criança. “Eu nadava muito, lavava roupa, louça, pegava peixinho vivo. Eu engolia o peixinho e achava que ia aprender a nadar”, recordou-se Marly, rindo da ingenuidade infantil. Caminhei com ela pelo povoado em ruínas enquanto falava da mãe. Passamos pela capela de São Bento, da qual sobraram o piso e alguns fragmentos. Lembrou que teve “sapinho”, uma infecção na boca provocada por fungo, muito comum em crianças. “Mãe me levou para passar a chave da igreja na boca. Achou que ia me curar.”
Na tarde do desastre, o córrego serviu de escoadouro para a lama de rejeitos que vazara da barragem e que atingiria com fúria a parte mais baixa do povoado, onde estava a propriedade de dona Maria das Graças. A senhora não percebeu o perigo que se acercava. Quando estava chegando ao portão, um rapaz a alertou para que corresse. “Mas ela entrou em casa. Não sei se não deu importância, se não acreditou ou se não escutou. Eu acho que ela estava perdendo a audição. A gente só estava esperando o 13o salário em dezembro para levar ela no médico”, contou a filha.
Segundo relatos de vizinhos, com a massa já muito próxima, dona Maria das Graças saiu e correu no sentido do quintal da casa ao lado, de dona Marcelina, sogra de Marly. “A lama vinha de várias direções, não era um caminho só. Era como uma maré”, disse Francisco. Dona Marcelina ainda gritaria: “Corre, dona Maria, vamos sair daqui.” Não houve tempo. Maria das Graças caiu de bruços e desapareceu, submersa pela maré de rejeitos. Dona Marcelina, por sua vez, se agarrou a um pé de abacate, onde resistiria por alguns minutos, até ser arrancada pela força da avalanche e lançada à lama, onde, flutuando, conseguiria se salvar.
Enquanto dona Maria das Graças desaparecia, a filha e o genro — que moravam na parte mais alta — já haviam percebido o que estava em curso e tiveram os piores pressentimentos. “Ouvimos um barulho esquisito. Parecia um avião desgovernado. Quando saí para olhar, já vi uma nuvem de poeira vermelha e a lama vindo. Só podia ser a barragem que estourou. Nessa hora, falei para a Marly: ‘A sua mãe e a minha já estão nas mãos de Deus’”, relembrou Francisco. Mais tarde, ele saberia que a mãe, dona Marcelina, sobrevivera.
Marly hesitava em correr para um local abrigado. Chorava. Queria dar um jeito de ir atrás da mãe. As filhas estavam assustadas. Os minutos passavam. “A gente tem que sair, não dá mais para esperar”, insistiu o marido. Ainda haveria tempo para pegar documentos e um pouco de dinheiro. Os quatro saíram e se juntaram à multidão que corria em desespero para a mata. À medida que a lama assentava e a noite caía, o grupo voltou para o que sobrou da vila, na parte alta. Um pequeno templo evangélico ficara a salvo e o pastor, José Borges, começava a organizar a assistência aos desabrigados. Alguém então acendeu uma fogueira na rua, e foi assim que muitos quiseram ficar, em volta do fogo, fitando as chamas e se perguntando: como tudo aquilo acontecera? “Naquele momento, achávamos que muita gente tinha morrido. Eu sabia dos riscos, eu sei o que é uma barragem. Mas a gente fica indignado porque eles [diretores da Samarco] sabiam que podia romper e não nos prepararam para uma emergência. Não fizeram um treinamento, não botaram sirene. Bastava ter colocado a sirene e as vidas perdidas estariam salvas”, raciocinou Francisco.
* * *
Enquanto muitos refletiam, Francisco voltou à sua casa, uma das poucas preservadas da lama — mas que dias depois seria saqueada. “A caixa d’água estava limpa, tinha sobra de arroz, feijão e peguei macarrão. O pastor serviu suco, biscoito e água.” A comida e a solidariedade ajudariam a enfrentar a noite que parecia não ter fim, prolongada pelas incertezas sobre o futuro e o destino de parentes e amigos.
Dona Maria das Graças ficou 18 dias na lista de desaparecidos. Quando soube que o corpo havia sido encontrado, Marly foi ao IML, em Belo Horizonte. Achou que seria importante descrever detalhes da fisionomia da mãe que ajudassem no reconhecimento. “Mãe usava esmalte vermelho, tinha o cabelo curto, pintado de preto, era magra, não tinha nenhum dente. Falei tudo isso para o legista. Mas não tinha o que reconhecer. Eram pedaços, não era um corpo. Um funcionário disse: ‘Mantém ela viva na sua cabeça.’” A identificação seria feita por exame de DNA.
Marly se submeteu a tratamento psicológico por mais de um ano. A tragédia lhe tirara o sono e a paz. “Logo depois que aconteceu, ela estava muito ruim mesmo, não comia, não dormia, ficava só chorando. Ainda hoje, tem noite que ela não consegue dormir”, afirmou Francisco. “Agradeço por estar viva e ter força para lutar pelos nossos direitos. A fé em Deus ajuda a manter a gente de pé. Mas eu sinto muita saudade da minha mãe. Esquecer, ninguém vai esquecer”, disse Marly.