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Para registrar um desaparecido

A dona de casa Maria Eliza Lucas, 60 anos, moradora de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, chegara ao povoado em 4 de novembro para passar cinco dias no sítio dos tios, o Recanto da Girolanda. “Ela achava Bento Rodrigues um lugar gostoso para descansar e gostava de pescar nas lagoas que havia no sítio. Ela sempre foi apaixonada por pescaria e sempre que podia ia para lá”, contou o filho Wanderley, 38 anos. Maria Eliza também vivia, segundo o filho, “seu melhor estado de saúde”. Ainda jovem, tivera uma trombose, o que a obrigava ao uso constante de meias elásticas. Era diabética e a luta contra a obesidade parecia perdida até que decidira fazer a cirurgia de redução de estômago. “Ela estava muito feliz e aguardando para fazer a primeira cirurgia plástica para retirar o excesso de pele.”

Os problemas de saúde nunca a impediram de ter uma vida ativa e dedicada à família. Além do filho, criou um sobrinho, Waldiney, que tivera o pai assassinado e cuja mãe sofria com sequelas graves de uma meningite. Adorava cozinhar, cuidar da horta e não media esforços para fazer as vontades das netas, Laryssa, 17 anos, e Ingrid, 14, filhas de Wanderley. Em fevereiro de 2016, faria quarenta anos de casada com José Maria. “Ela ia voltar no dia 9. Pena que não foi como planejou. No dia seguinte que chegou, o mar de lama veio e levou ela.”

Wanderley conseguiria reconstituir os derradeiros momentos de vida da mãe conversando com as duas pessoas com quem estivera antes da chegada da lama, a tia Esdra e o caseiro do sítio. Naquela tarde, Maria Eliza tinha ido pescar depois do almoço. Estava calor e o caseiro foi lhe levar água. Quando voltava, ouviu o barulho e já viu os vagalhões se aproximando. O caseiro então correu para avisá-la. “Ele disse que vinha onda de 7 metros e gritou para avisar a minha mãe. Mas acho que ela não entendeu ou não ouviu porque ficou pegando os objetos de pesca.” A tia, que estava na varanda, e o caseiro correram morro acima, e viram Maria Eliza ficar paralisada ao se virar e deparar com o monstro que se aproximava. “Acho que ela não teve reação, não teve força nem tempo para nada. Ela foi atingida pela lama e jogada dentro da lagoa.”

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Wanderley, professor da rede estadual de ensino de Minas Gerais, dera aulas naquele dia das 13h até às 22h30, e só quando chegou em casa o pai pôde avisá-lo do desastre. “Meu pai tinha me ligado várias vezes, mas não conseguiu falar comigo. Passei na casa dele e fomos para Mariana.” Depois de ouvir o relato da tia e do caseiro, restaram poucas esperanças de encontrar Maria Eliza com vida. “A tia Esdra só gemia e sussurrava que ‘não teve como, não teve como’. Saímos do quarto, abracei meu pai e disse para ele: ‘Perdi minha mãe, mas o senhor é o melhor pai do mundo.’”

Começava ali a peregrinação para registrar a mãe entre os desaparecidos e esperar alguma informação sobre o paradeiro do corpo, ao mesmo tempo que consolava o pai. Ambos quiseram ir a Bento Rodrigues para ver o cenário da tragédia e tentar entender o que acontecera. “Foi o pior momento para mim e acredito que para o meu pai também. Era o mar de lama e mais nada. Estava chovendo e os bombeiros disseram que daquele jeito não dava para fazer buscas. Tinha que esperar. A sensação é inexplicável. Foi o pior momento da minha vida. Achar o corpo da minha mãe ali seria um milagre. Mesmo assim, nos primeiros dias ainda dava uma esperança de encontrar com vida. Mas depois o tempo vai passando, aí a gente queria encontrar o corpo.”

Por não ser moradora de Bento Rodrigues nem funcionária da Samarco ou de terceirizadas, seria mais difícil incluir Maria Eliza na lista de desaparecidos. Wanderley disse que não conseguira falar com algum representante da mineradora e que precisou recorrer a repórteres que cobriam o caso para que o desaparecimento da mãe fosse reconhecido. “A Samarco demorou três dias para incluir o nome dela entre os desaparecidos. Fomos tratados com muito descaso.”

Pai e filho ficaram 29 dias em Mariana e foram todos os dias a Bento Rodrigues, hospitais e portaria da empresa. Somente após doze dias, segundo Wanderley, foi feita coleta de amostras para DNA. “Nós fizemos DNA porque nós cobramos das autoridades. Isso ajudaria na identificação dos corpos.” Dias depois, as famílias dos mortos e desaparecidos fizeram um protesto em frente à sede da mineradora, e só então, de acordo com Wanderley, houve uma reunião com alguém da Samarco.

Passado quase um mês do desastre, veio a primeira notícia sobre Maria Eliza. “Fomos informados de que ‘segmentos corpóreos’ tinham sido achados e levados para o IML de Belo Horizonte. Ela foi encontrada a 60 quilômetros do local onde estava pescando.” A confirmação foi feita pelo exame de DNA.

Wanderley espera ver punidos os responsáveis pelo rompimento da barragem. “Os responsáveis têm nome, endereço e identidade. Punição não é só multa. Dinheiro as empresas têm. Mas não tiveram para fazer um plano de segurança que respeitasse a vida das pessoas.” Em homenagem à mãe, fez uma tatuagem com o rosto dela e a frase: “Nem um mar de lama será capaz de apagá-la da minha vida. Amor eterno Maria Eliza Lucas.”