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“Veio aquele mingau grosso”

Aos 75 anos, dona Marcelina Xavier Felipe, viúva, tinha saúde de ferro. Nascida e criada na roça, tivera os sete filhos — seis homens e uma mulher — de parto normal, em casa. Apesar da idade, gostava de fazer todo o trabalho doméstico no imóvel de três quartos, sala, cozinha e varanda. Naquela tarde, já tinha cuidado de todos os afazeres e da horta. Na chácara em Bento Rodrigues, onde morava com três filhos ainda solteiros, cultivava couve, cebola e mandioca. Sem falar nos pés de fruta: banana, mexerica, laranja, limão, figo, acerola, coco e abacate.

Ela estava em casa com uma das noras, Rosa, que acabara de lhe dar uma nota de R$ 100, relativa à devolução de um produto, quando ouviram “uma zoeira”. Logo a filha, Sônia, chegou com uma vizinha e avisou que a barragem rompera. “Ouvi aquele zoeirão. Mas achei que não ia derrubar a casa. Falei para a minha filha: ‘Daqui um bocadinho eu saio.’” Enquanto as três correram e se juntaram a outros moradores em pânico, dona Marcelina teimara em ficar. “Eu conheço a minha mãe. Eu sabia que ela não ia sair de casa”, comentou, meses depois, Júlio César, o filho caçula, que não estava no povoado no dia da tragédia. “Ela não tinha ideia do que é uma barragem. Achou que fosse uma lagoinha.”

Sem noção do perigo que se acercava, dona Marcelina foi para a porta da cozinha, que dava para o terreiro onde as galinhas ciscavam. “O sol estava quente aquele dia. Pensei: ‘Vou ficar por aqui mesmo.’ Fiquei parada, em pé, quietinha. Aí, vi uma poeira cor de fogo. E veio aquele mingau grosso. Pensei: ‘Ah, a casa vai arrancar mesmo.’ Não dava mais tempo de correr. A lama veio, empurrou e eu saí agarrada no pé de abacate, que a lama arrancou. Eu saí rodando, rodando e pedia a Deus, Nossa Senhora Aparecida e São Bento que eu não queria morrer. Eu não gritava, só pedia pros santos. Era boi berrando, cavalo relinchando, passava caçamba de caminhão, pau... Os postes quebravam que nem taquara seca. Era uma catinga danada aquela lama. E eu agarrada no pé de abacate. Eu fiquei entalada de tanto comer minério. Aí, a lama parou. E a minha perna não mexia mais. Quando vi que parou tudo, eu gritei por socorro.”

Um grupo de moradores ouviu os gritos. Pediram que ela tentasse se mover, mas a perna direita não respondia. Fizeram, então, uma corrente humana e entraram na lama até alcançá-la. “Me agarraram pelas costas e me puxaram. Meu cabelo estava fedendo de lama. Saiu blusa, saiu saia, fiquei só de tanga, não vi a roupa sair... Fiquei com vergonha, mas não viam nada porque eu estava coberta de lama. Eu não conseguia andar. Fizeram uma padiola com uns paus, forraram com uma camisa e me levaram por uma picada no mato até o avião. [Era o helicóptero da Polícia Civil, com o piloto Luiz Cláudio de Alvarenga Filho, o delegado Ramon Sandoli e o bombeiro João Felipe Magalhães, que conseguiram pousar perto do local.] Um morador tirou a camisa e me vestiu. No caminho, eles me perguntavam: ‘A senhora está bem?’ ‘Estou bem, graças a Deus.’ Eu não conseguia falar direito nem ouvir. O ouvido tampou tudo. Eu estava bem, minha pressão não subiu. Quando me tiraram do barro, deu um alívio, fiquei rindo com eles. Eu nasci de novo. Faço aniversário no dia 16 de janeiro e no dia 5 de novembro”, disse dona Marcelina.

“Eu vomitei muito. Era um vômito preto. Fiquei mais de dois meses sem comer direito. Só vomitava aquela coisa pretinha. Estava entalada de tanto comer lama. As pernas estavam inchadas, muito arranhadas.” Ela teve uma fratura na perna direita e passou por uma cirurgia. “Me deram três agulhadas. Ô trem que dói”, relembrou, referindo-se à anestesia. A recuperação, porém, não seria completa. Durante três meses, ficou em cadeira de rodas. Depois, passou ao andador. Mas as dores na perna continuavam. Quando a encontrei, andava com dificuldade, mancando. Fazia fisioterapia duas vezes por semana, mas já estava se resignando às limitações. “Não aguento andar. Só fico em casa. Eu capinava, buscava lenha, plantava a horta. Não gosto de ficar parada, não. Agora, não aguento nem caminhar. Plantar, não aguento mais, não. Eu gostava de capinar minha chácara.”

Vez ou outra tem pesadelos com o desastre: “Sonho que eu estou pelejando para correr. Nunca vi uma coisa dessa. Quando eu estava lá no barro, vi que foi tudo embora, não sobrou nada. ‘Tampou tudo, sobrou ninguém’, eu pensei.” Disse não sentir raiva da empresa ou de seus dirigentes. “Raiva eu não tenho, não. Só precisava ter avisado. Nos enganaram.” O filho, Júlio César, concordou. “Uma vez o presidente [da Samarco, Ricardo Vescovi] foi lá [em Bento Rodrigues]. Eles diziam que nunca ia arrebentar. Enganaram o pessoal. Já tinha dado problema. Era para ter colocado um alarme. Nessa parte aí, a empresa está errada.”

Segundo dona Marcelina, a lama chegou a Bento Rodrigues por volta das 16h. Em cerca de dez minutos, aniquilou o povoado, espalhou-se e foi se acomodando em braços, como se fosse um rio numa grande cheia, enquanto a enxurrada principal seguia seu caminho de devastação. Ela supõe que foi resgatada por volta das 17h. Quando a alcançaram e trouxeram à terra firme, constatou que a nota de R$ 100 que recebera da nora ainda estava na sua mão, suja da lama que havia passado entre os dedos, mas intacta.