49

O investigador investigado

Ribeirão das Neves, na região metropolitana de Belo Horizonte, é conhecida como a cidade dos presídios. Lá estão seis penitenciárias, uma das quais para mulheres, e uma unidade prisional para menores, com cerca de 8 mil internos no total. Em duas pequenas salas de um prédio de dois andares no centro da cidade, funciona a promotoria de Direitos Humanos, Controle Externo da Atividade Policial e Defesa da Ordem Econômica e Tributária. Foi onde reencontrei o promotor Carlos Eduardo Ferreira Pinto, ex-coordenador da força-tarefa que investigara o rompimento da barragem de Fundão, para entrevistá-lo, dois anos depois do desastre.

O promotor assumiu o posto em Ribeirão das Neves depois que, em 5 de dezembro de 2016, tomara posse o novo procurador-geral de Justiça do Estado de Minas Gerais, Antônio Sérgio Tonet, em substituição a Carlos André Mariani. Tonet havia sido o segundo da lista tríplice votada pelos promotores estaduais e foi o escolhido pelo governador Fernando Pimentel, que não é obrigado a nomear o primeiro da lista. Uma das primeiras medidas do recém-empossado seria substituir os três promotores mais atuantes da força-tarefa que coordenara as investigações no primeiro ano após a tragédia. Todos foram designados para promotorias em municípios próximos a Belo Horizonte. Além de Carlos Eduardo, Mauro da Fonseca Ellovitch, para Igarapé, e Marcos Paulo de Souza Miranda, para Santa Luzia.

Os rumores da substituição começaram a circular nos bastidores do Ministério Público estadual desde que fora anunciada a escolha de Tonet, pertencente ao grupo adversário do primeiro nome da lista tríplice, Jarbas Soares Júnior, que tivera o apoio dos promotores da força-tarefa durante a campanha. Soares Júnior já havia exercido o cargo máximo do MP estadual no governo de Aécio Neves, em dois biênios (2005/2006 e 2007/2008), e fora ele quem estruturara a promotoria de Meio Ambiente em Minas Gerais. Por terem posições de confiança na força-tarefa, os promotores puseram os cargos à disposição do novo PGJ dias antes de sua posse. Tonet não os reconduziu.

Eu o entrevistei sobre a mudança da equipe. De início, perguntei sobre como avaliava o trabalho da primeira força-tarefa (a que não fora reconduzida). “A força-tarefa se colocou desde o início, desde que ocorreu a tragédia... O início foi muito bom.” Quis saber o que mudara. “Eu penso que passou... Quando começaram a ocorrer esses posicionamentos mais isolados, faltou diálogo, tolerância, muitas vezes, para compor, para conciliar, para que as instituições caminhassem juntas. Quando nós entramos, a relação entre o MPMG e o MPF estava muito desgastada. Hoje, de um ano para cá, nós conseguimos retomar o diálogo.” Como ele dissera que faltava diálogo também com as empresas, questionei sobre exemplos. “Isso é uma questão que eu escutava muito.” Indaguei se ouvia da parte das mineradoras. “Eu nunca tive contato com as empresas, nunca. Passei a ter contato aqui, depois [de assumir o cargo].” Perguntei, então, sobre onde escutara essas queixas. “Eram informações difusas. Nunca tive contatos anteriormente. Aí, depois, tive reuniões oficiais, participei de reuniões com todos os envolvidos, com os movimentos sociais e com os empresários da Vale, BHP e Samarco. Elas se queixaram da falta de diálogo. As empresas são responsáveis por essa tragédia, eles têm responsabilidades na área econômica, na área ambiental. E também tem a atividade econômica que eles têm interesse em retornar com ela. Então, tem diversos aspectos concomitantes.”

O sucessor de Carlos Eduardo foi Rômulo de Carvalho Ferraz, procurador-geral de Justiça adjunto, ou seja, o segundo na hierarquia da cúpula do MPMG. Ferraz já havia ocupado cargos no executivo: fora subsecretário da Casa Civil do governador Pimentel e secretário de Defesa Social no governo de Antônio Anastasia (PSDB), em 2012.

Ferraz assumiu o comando da força-tarefa por três meses, já tendo na equipe sua futura substituta, a promotora Andressa Lanchotti. Perguntei ao governador Fernando Pimentel se a escolha de Antônio Sérgio Tonet para a chefia do Ministério Público e a substituição da força-tarefa estavam associadas à atuação dos promotores coordenados por Carlos Eduardo Ferreira. “Não houve influência do caso Samarco nem na escolha nem na substituição [da força-tarefa]. Cada um monta a sua equipe”, respondeu.

* * *

Carlos Eduardo Ferreira Pinto foi aprovado no concurso para o MPMG aos 28 anos e teve seu primeiro posto em Rio Pardo, norte de Minas, onde atuaria contra a chamada “máfia do carvão”, que desmatava e abastecia siderúrgicas irregularmente com carvão vegetal e explorava trabalho análogo à escravidão. Chegou a ser ameaçado de morte. Quando foi nomeado para coordenar a investigação do rompimento da barragem, estava havia dois anos à frente do Núcleo de Resolução de Conflitos Ambientais (Nucam) e acumulava doze anos de experiência em causas ambientais. Marcos Paulo de Souza Miranda, 43, mineiro de Andrelândia, e Mauro da Fonseca Ellovitch, 37, paulista de Ribeirão Preto, também acumulavam experiência no setor. Os três definiram a estratégia de atuação para o caso.

O promotor Ellovitch explicou: “Nosso objetivo era fazer recortes de questões locais para obter medidas concretas, como fez a equipe da Operação Lava Jato. Foi uma estratégia de atuação discutida entre nós. Queríamos efetividade com a reparação dos impactos locais, como a retirada da lama dos rios estaduais e das áreas de preservação permanente. E onde o dano foi irreparável a nossa proposta era fazer uma compensação ecológica, por exemplo, com a gestão do lixo e do esgoto. Nosso foco era: ações efetivas e transparência com a sociedade. Não planejamos isso para minar as empresas. Queríamos manter a sociedade civil informada, prestando contas. Esse é o nosso papel.”

Os promotores estaduais trabalharam em parceria com a Polícia Federal e compartilharam provas. Receberam, por exemplo, os áudios das escutas telefônicas de diretores e gerentes da Samarco, e souberam que a lama continuava vazando para os cursos d’água. O tenente-coronel Valmir Fagundes, que trabalhava no Núcleo de Combate aos Crimes Ambientais (Nucrim), vinculado ao MPMG, recebeu a informação de que houvera uma movimentação de rejeito restante e foi até a mineradora para uma fiscalização. “A empresa não nos informou, como deveria. Fui até lá e requisitei as imagens. E eles se sentiram compelidos a dar a informação”, relembrou. A movimentação ocorrera em 27 de janeiro de 2016, quase três meses depois do rompimento da barragem. Nessa ocasião, vazaram 960 mil m³ de rejeito pelo vale, em decorrência de uma erosão no dique de Sela, estrutura que ligava a barragem de Germano à de Fundão.

A continuidade do vazamento motivou uma ação civil pública pedindo a suspensão de todas as licenças da Samarco. Algumas estruturas, como os diques da barragem de Germano, estavam em risco e precisavam de reforços. E havia ainda a preocupação de que a Usina de Candonga não suportasse a quantidade de lama e detritos contida pelo seu barramento. Cada um desses problemas mereceu um inquérito ou ação civil pública. Os promotores chegariam a fazer busca e apreensão durante uma oitiva na sede da promotoria, com autorização judicial. Recolheram celulares, tablets e laptops dos depoentes, entre eles o gerente-geral de Meio Ambiente e Licenciamento da Samarco, Márcio Perdigão. A relação com os advogados das empresas não tardaria a azedar.

O maior motivo de atrito era a construção do dique S4, a que os promotores se opuseram firmemente. Para conter a continuidade do vazamento de lama, a Samarco propunha um sistema composto de quatro diques a jusante da barragem destruída, sendo que o S4 seria construído dentro de Bento Rodrigues, com capacidade para acumular 1,05 milhão de m3 de água e sedimentos, o que alagaria terrenos dos antigos moradores. Para estes e para os promotores — baseados na existência do projeto da barragem de Mirandinha, que ficaria a 1,2 quilômetro do povoado —, o dique seria o primeiro passo para a ocupação definitiva da região pela empresa.

A discussão sobre a obra levaria sete meses e foi encerrada — favoravelmente à Samarco — por um decreto do governador Fernando Pimentel, em 21 de setembro de 2016. Alegando emergência devido à proximidade do período chuvoso, autorizou a “requisição administrativa” de 55 propriedades. A construção do dique motivaria mais uma ação civil pública do MPMG. “Querem expandir o empreendimento, é uma área estratégica. A grande cartada foi o dique S4. Tirar Bento Rodrigues dali dá sobrevida ao empreendimento”, disse o promotor Marcos Paulo Miranda.

Na visão dos três promotores, as ruínas de Bento Rodrigues deveriam ser preservadas e transformadas em um memorial. Marcos Paulo Miranda, especializado em patrimônio histórico, propôs a reconstrução da capela de São Bento por meio da técnica de anastilose, recomendada pela Unesco para recuperar bens culturais a partir de ruínas e fragmentos. Segundo o promotor, isso poderia ser feito na capela com tudo o que fora encontrado, como partes dos altares, portas e outras peças. “Existe um risco concreto daquilo virar barragem porque já está degradado. É como construir um shopping em cima de um campo de concentração. As ruínas têm que ficar como memória”, afirmou Mauro Ellovitch.

* * *

Enquanto entrava com as ações para cobrar medidas que contivessem o desdobramento dos danos, a força-tarefa do MPMG também propôs um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para as três empresas, em maio de 2016. A proposta estabelecia metas e prazos para as medidas a serem cumpridas e sugestões que, a longo prazo, levassem a uma mudança do perfil socioeconômico de Mariana, dependente ao extremo da atividade minerária extrativa. Eles propuseram, por exemplo, que as empresas destinassem recursos para o estabelecimento de uma universidade e de uma usina minerossiderúrgica na cidade, como forma de adicionar valor ao minério de ferro extraído da região; que criassem uma Reserva Particular de Patrimônio Natural (RPPN), com área mínima de 12.500 hectares, em algum lugar do espaço atingido pela lama; e que melhorassem a estrutura da Defesa Civil, da Polícia Ambiental e dos Bombeiros em Mariana e Barra Longa, dois dos municípios mais prejudicados.

A proposta da força-tarefa era, portanto, muito diferente do acordo (TTAC) aprovado entre as empresas e os governos, que remetia a maioria das medidas à Fundação Renova, cuja governança seria controlada pelas três mineradoras. As empresas não deram resposta à proposta dos promotores. Àquela altura, a Renova já estava sendo formada e em breve começaria suas atividades. A perda de interlocução era praticamente irreversível e, em setembro de 2016, acabaria de vez. “As empresas não tinham intenção real de fazer um acordo. Vinham para as reuniões, faziam promessas, mas não queriam reparar o dano de fato. Queriam fazer uma ‘maquiagem verde”, avaliou Mauro Ellovitch.

Simultaneamente ao fracasso das tentativas de negociação, começara uma campanha de origem camuflada que tentava desqualificar o trabalho dos promotores e criar embaraços até mesmo de ordem pessoal. O valor do salário de Carlos Eduardo Ferreira começaria a circular em redes sociais. No dia 4 de novembro de 2016, a coluna “Direto da Fonte”, da jornalista Sonia Racy, do jornal O Estado de S. Paulo , publicou a seguinte nota:

O corregedor nacional do Ministério Público Federal, Cláudio Portela, está investigando os promotores José Adércio de Oliveira e Carlos Eduardo Ferreira Pinto, do Ministério Público de Minas Gerais. Os dois são suspeitos de cometer excessos na condução do processo do acidente com a barragem de Fundão, em Mariana. Inclusive impedindo ações que garantiriam a segurança da população das regiões afetadas.

Ocorre que não existia apuração da Corregedoria Nacional contra os dois investigadores. E José Adércio não era promotor, e sim procurador da República, coordenador da força-tarefa do Ministério Público Federal, enquanto Carlos Eduardo coordenava a equipe do MP de Minas Gerais. O promotor estava numa palestra, em Vitória, quando recebeu a ligação de um amigo advogado avisando-o sobre a nota que acabara de ler no jornal. Pediu, então, um esclarecimento à Corregedoria e recebeu uma certidão três dias depois, afirmando que “nos sistemas de controle processual (...) nada consta em desfavor de Carlos Eduardo Ferreira Pinto”. A certidão é assinada por Christiane Oliveira e Sá, chefe do Núcleo de Apoio da Atividade Disciplinar da Corregedoria. Nada constava tampouco sobre o procurador José Adércio. A assessoria de imprensa do MPMG pediu direito de resposta ao jornal, mas nunca recebeu retorno.

Outro torpedo foi disparado pela Advocacia-Geral do Estado (AGE), cujo titular era Onofre Batista Jr., um dos artífices do acordo com as empresas, o controverso TTAC, ao qual o MPMG se opusera. Em entrevistas, Carlos Eduardo havia chamado o TTAC de “ação entre amigos”. Baseado num dossiê apócrifo recebido na AGE, Onofre mandou uma representação contra o promotor à Corregedoria do Ministério Público Estadual, em 24 de outubro de 2016. As acusações eram de “negligência”, “procedimento funcional incompatível com a dignidade da função” e “transgressões disciplinares”.

O promotor Luís Gustavo de Melo Beltrão, encarregado do caso, recomendaria o arquivamento da representação. Em seu relatório, afirmou:

No que diz respeito às providências adotadas pelo órgão de execução ministerial e por sua equipe para prevenir a ocorrência de novos eventos fatídicos como aquele que se deu em Mariana, em 5 de novembro de 2015, não se infere das medidas praticadas — ao contrário do que consta na representação ora examinada — qualquer abuso ou distanciamento do interesse público; ao revés, tais medidas revelam zelo e comprometimento com a defesa do meio ambiente, finalidade precípua do Ministério Público nessa seara.

O corregedor-geral do MPMG, Rodrigo Sousa de Albuquerque, determinaria o arquivamento da representação em 31 de março de 2017. O mesmo dossiê apócrifo fora mandado para a Polícia Federal em MG, que o enviou ao procurador-geral de Justiça em julho de 2017. O assessor especial do PGJ, Denilson Feitoza Pacheco, considerou o dossiê “um ataque genérico” ao promotor Carlos Eduardo e determinou o arquivamento “de plano” do caso, sem a instauração de qualquer procedimento “por não haver qualquer fato típico, seja cível, criminal ou administrativo que justifique tal instauração”.

* * *

Mesmo afastado da investigação sobre a barragem, Carlos Eduardo continuaria sendo uma referência no assunto. No fim de 2016, o jornal O Globo publicou a lista dos finalistas da 14a edição do Prêmio Faz Diferença, uma promoção com a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan). A indicação de Carlos Eduardo foi assim justificada:

A trajetória do promotor Carlos Eduardo Ferreira Pinto, que há 12 anos atua na área ambiental, teve seu momento mais importante quando ele assumiu a coordenação da força-tarefa que investiga o rompimento da barragem da Samarco, em Mariana. Ao longo de um ano, ele foi o rosto mais conhecido entre os promotores e procuradores do Ministério Público Federal, de Minas Gerais e do Espírito Santo. Considerado um interlocutor por órgãos de proteção ao meio ambiente, Ferreira Pinto se opôs ao acordo firmado entre as mineradoras e o governo federal e lutou contra a retomada das atividades da Samarco. Em dezembro, foi afastado do posto por determinação do comando do MP mineiro.

A essa altura, Carlos Eduardo já havia mergulhado nos problemas da promotoria de Ribeirão das Neves. Seria, porém, surpreendido com mais uma investigação, dessa vez sigilosa e conduzida pelo gabinete do procurador-geral de Justiça, Antônio Sérgio Tonet, o mesmo que substituíra a equipe original de apuração do desastre. Nessa apuração, a vida do promotor e sua atuação no caso de Fundão passariam por uma malha fina em busca de alguma irregularidade. O procedimento investigatório criminal (PIC) foi relatado pelo procurador Denilson Feitoza Pacheco (que determinara o arquivamento da denúncia anônima), assessor especial de Tonet. As apurações ficaram a cargo do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), órgão de inteligência do MPMG e vinculado diretamente ao gabinete do PGJ.

A origem do PIC (MPMG — 0024.17.005242-7) foi um arquivo de áudio enviado ao PGJ pela força-tarefa do Ministério Público Federal, coordenada pelo procurador José Adércio Leite Sampaio. O áudio era proveniente das escutas telefônicas feitas pela Polícia Federal, cerca de um ano antes, tendo como alvos vários investigados, entre eles o engenheiro Pimenta de Ávila. Uma das ligações interceptadas captara uma conversa entre ele e Carlos Eduardo, ocorrida em 20 de janeiro de 2016, às 21h32. No diálogo, o promotor sugeria que o engenheiro desse uma entrevista para esclarecer detalhes técnicos sobre o que acontecera na barragem, já que era o projetista e conhecia bem o assunto. Eis um trecho da conversa:

CA: Então, assim, eu acho que, assim, a sua linha é supercorreta. O senhor tá equilibrado, o senhor tá falando, o senhor não tá acusando a Samarco, mas o senhor tá com credibilidade.

PA: Eu tô...

CE: Não perca essa credibilidade da opinião pública.

PA: Tá certo.

CE: Todo mundo que eu ouço, fala. Então, assim, não... Depois cê sai. Eu tô te falando como advogado. E o advogado que quiser falar diferente... Cê pode confiar na palavra do advogado daqui.

PA: Não, isso aí pode ser qualquer outro advogado que falar, eu vou acreditar no que o senhor tá falando porque o senhor, além da experiência, o senhor tá dentro do problema mais do que ninguém.

CE: É, exatamente.

PA: Tá certo?

CE: Eu acho que é importante, assim, é claro que eu não tô falando “sair falando”... Eu acho que tem que dosar mesmo, nem pode... Cê tem que falar (...) o que é verdade.

PA: Tá certo.

CE: O que é verdade (...) responsabilidade técnica, entendeu? Então, assim, com limite, mas com cuidado.

PA: Certo.

Depois que as interceptações telefônicas foram feitas, Carlos Eduardo soube que essa conversa tinha sido gravada porque a Polícia Federal compartilhara os áudios com o MPMG. Mas não deu maior importância ao assunto. O áudio fora enviado à chefia do MPMG quase um ano depois de ter sido gravado e uma semana após a substituição de Carlos Eduardo na força-tarefa estadual. O PIC foi instaurado em abril de 2017. Na portaria de instauração, Tonet escreveu que o promotor

teria instruído o investigado Joaquim Pimenta a conceder entrevista sobre os fatos investigados, indicando o momento e o que seria importante ser dito, tecendo considerações, ainda, sobre o teor das manifestações do alvo, tanto em entrevistas quanto em depoimentos prestados em sede de procedimentos formalmente instaurados.

Registrou ainda que a conduta “pode materializar ilícitos penais”, mas sem tipificá-los.

Durante os seis meses de investigação, foram levantados os bens — como carros, imóveis, participações em empresas e contas bancárias — do promotor e do engenheiro, ambos investigados. Tonet pediu, em ofício de 30 de junho de 2017, ao promotor Renato Fróes Alves Ferreira, coordenador da Ordem Econômica e Tributária, que realizasse “um levantamento, junto ao COAF, sobre possíveis movimentações financeiras irregulares relacionadas aos fatos ali narrados [refere-se ao PIC], com as cautelas devidas, tendo em vista o sigilo do procedimento”. O COAF é o Conselho de Controle de Atividades Financeiras, vinculado ao Ministério da Fazenda e encarregado de identificar movimentações bancárias suspeitas de associação com atividades ilícitas, como lavagem de dinheiro. Foram examinadas as movimentações financeiras dos investigados no período de 21 de junho de 2012 a 20 de junho de 2017. Nada de irregular seria encontrado. Quanto ao patrimônio do promotor, o GSI encontrou um carro modelo Evoque, ano 2014.

O órgão de inteligência do MPMG também fizera um levantamento de dezenas de entrevistas concedidas pelo promotor, além de declarações em comissões do Senado e da Câmara. O PGJ pediu ao juiz do processo criminal, Jacques de Queiroz Ferreira, da Justiça Federal em Ponte Nova, depoimentos, laudos e pareceres assinados por Pimenta de Ávila. Solicitou também à segunda substituta de Carlos Eduardo Ferreira na coordenação da força-tarefa, Andressa Lanchotti, um levantamento de todos os procedimentos administrativos em que o promotor atuara no caso do rompimento da barragem — num total de dezesseis ações, entre inquéritos e procedimentos — e todos aqueles em que Pimenta fora ouvido.

Carlos Eduardo Ferreira havia acabado de voltar de férias, já em setembro de 2017, quando foi avisado para comparecer à sede do MPMG para receber uma notificação. Soube, então, do PIC. O promotor apresentaria sua defesa por escrito. Destacou que tinha relação profissional com Pimenta de Ávila porque este atuara como perito em dois casos anteriores envolvendo barragens de mineração, que o engenheiro não era investigado pela força-tarefa estadual e que prestara declarações ao MPMG no âmbito de um procedimento civil sobre o licenciamento da barragem. Esse depoimento ocorrera em 18 de janeiro de 2016, dois dias antes da interceptação telefônica. O promotor argumentou, portanto, que não poderia ter orientado o engenheiro.

Com relação ao pedido de entrevista, Carlos Eduardo o contextualizaria dentro do que chamou de “guerra na imprensa”. Diz o texto:

Naquele momento — mês de janeiro de 2016 — o que se discutia era se o rompimento da barragem teria sido “acidente ou não” e a Samarco estava claramente distorcendo as informações e fazendo incessantes veiculações em diversos espaços na mídia, no sentido de que teria sido acidente, uma fatalidade, ligada a um tremor de terra ocorrido no local. Por isso, e em razão de uma estratégia institucional definida pelos integrantes da força-tarefa, os promotores envolvidos passaram a fazer contraposição às informações prestadas pela Samarco e a ocupar espaços na imprensa de modo a esclarecer a sociedade acerca das graves repercussões do maior desastre ambiental da história do Brasil. E reside nesse ponto a importância de informações prestadas pelo senhor Joaquim Pimenta, pois ele detinha notório conhecimento técnico, além de ter sido o projetista da barragem de Fundão.

Carlos Eduardo Ferreira pediu o arquivamento do PIC por não haver “figura delitiva” a ser apurada sobre sua conduta. A guerra de versões na imprensa também fora o argumento de Pimenta de Ávila para dar a entrevista. Ele disse, em sua defesa escrita, que a Samarco “divulgava, em sua intranet a seus funcionários, imagem negativa e caluniosa” a seu respeito. Disse também que a entrevista “constituía-se em oportunidade de corrigir as informações erradas veiculadas na mídia e esclarecer a sociedade acerca de importantes fatos que vinham sendo deliberadamente omitidos pela Samarco”.

O relator do PIC, procurador Denilson Pacheco, apresentaria seu parecer em 31 de outubro de 2017. Nele, explicou que, “por hipótese”, dois crimes poderiam ter sido cometidos por Carlos Eduardo Ferreira e Pimenta de Ávila: advocacia administrativa e corrupção passiva, pelo promotor; e corrupção ativa, pelo engenheiro. Segundo o artigo 321 do Código Penal brasileiro, advocacia administrativa é o crime de “patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário”. Pacheco descartou essa possibilidade, alegando que Carlos Eduardo empregara a palavra “advogado” na conversa com Pimenta “no sentido de expert no assunto”, não significando “o exercício ilegal da profissão de advogado”.

Sobre o diálogo com o pedido de entrevista, o relator concordou com a defesa dos dois investigados de que havia uma “guerra de informação”:

As forças sociais, políticas e econômicas sobre o caso do rompimento da barragem de Fundão eram colossais e a guerra de informação e contrainformação encontrava-se alastrada pela imprensa. Nesse contexto, tornou-se fundamental que a sociedade, os políticos e as autoridades governamentais tivessem acesso ao conteúdo do depoimento de Joaquim Pimenta de Ávila, como um elemento chave para ser contraposto à mera negação ou mitigação de responsabilidade por parte das empresas, diretores e outros envolvidos referidos. Por isso, nesse contexto, já ciente do teor do que Joaquim Pimenta de Ávila poderia falar é que o promotor de Justiça Carlos Eduardo Ferreira Pinto, sem discutir um conteúdo específico, insistiu para que Joaquim desse a entrevista.

O relator considerou ainda que o promotor agira de acordo com a Constituição, ao garantir “o direito fundamental de acesso à informação”. “No maior dano ambiental do Brasil, a cidadania também tem direito de saber a verdade sobre os fatos”, acrescentou. Com base nesses argumentos, Denilson Pacheco descartaria a hipótese de corrupção. Avaliou a conduta de Carlos Eduardo como “atípica”, no sentido de não se enquadrar em qualquer tipificação penal, e a de Pimenta de Ávila inexistente, e recomendou o arquivamento do PIC. Antonio Sérgio Tonet seguiu a recomendação de seu assessor especial e o caso foi encerrado.

* * *

Quase que paralelamente à investigação sobre Carlos Eduardo Ferreira, o processo criminal da Samarco na Justiça Federal, em Ponte Nova, permaneceria suspenso, entre julho e novembro de 2017. A defesa de dois acusados, Ricardo Vescovi e Kléber Terra, contestou a legalidade das escutas telefônicas feitas pela Polícia Federal, e o juiz Jacques Ferreira suspendeu o caso enquanto aguardava esclarecimentos das operadoras de telefonia sobre as interceptações. Produziu-se assim a insólita situação em que por quase quatro meses a única pessoa investigada no Brasil por causa do maior desastre ambiental do país fora o promotor que primeiro apontou o que mais tarde viria a ser confirmado por todas as investigações sobre o assunto: que o rompimento da barragem não havia sido uma fatalidade e que havia responsabilidades a serem apuradas.

Pouco antes do desastre, o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel, enviara à Assembleia Legislativa mineira um projeto de lei tornando as regras do licenciamento ambiental mais flexíveis. O projeto foi recebido com muitas críticas por ambientalistas porque, entre outras mudanças, aumentava o poder de decisão da Secretaria Estadual de Meio Ambiente no licenciamento e reduzia a participação do Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam), órgão colegiado com a participação do Ministério Público. Também estabelecia um prazo de seis meses para o licenciamento, podendo ser prorrogado, no máximo, por mais seis meses.

O projeto teve o apoio da Federação das Indústrias de Minas Gerais e sua negociação na Assembleia foi conduzida pelo secretário estadual de Meio Ambiente, Sávio Souza Cruz. Engenheiro metalurgista de formação, Souza Cruz havia sido sócio da empresa Ambio e prestado consultoria para a Samarco na década de 1990. Fora eleito deputado estadual com doações de campanha do setor de mineração, mas deixaria o mandato para assumir a Secretaria Estadual de Meio Ambiente em fevereiro de 2015. Em entrevista, disse não enxergar conflito ético entre sua atuação no poder público, as doações e suas antigas atividades no setor privado. “Dei consultoria há muito tempo, era outra geração no comando da Samarco. Quanto às doações, a lei permitia. Minas Gerais é um estado minerador. Dificilmente teríamos financiamento de empresas de pesca submarina.”

O projeto tramitou em regime de urgência e foi aprovado vinte dias depois do desastre, por 57 votos a 9, quando ainda nem tinham sido encontrados todos os corpos das vítimas da tragédia. A justificativa de seus defensores era o excesso de burocracia do licenciamento ambiental. Segundo o secretário Souza Cruz, havia mais de 3 mil processos de licenciamento inconclusos. “Um posto de gasolina não pode ter o mesmo processo de licenciamento de uma barragem de mineração. Agora, os empreendimentos mais complexos vão passar por câmaras técnicas especializadas, com possibilidade de recurso ao Copam”, explicou Souza Cruz, que deixaria a secretaria em abril de 2016 para retomar o mandato estadual.

O governador Fernando Pimentel também defendeu a mudança na lei: “Agilizamos, botamos prazo. O grande problema era não ter prazo. Vamos tirar da fila os projetos de interesse do estado. E tiramos o Ministério Público do licenciamento. Se algo der errado, ele é que vai processar. Quem tem que acompanhar e eventualmente processar as incorreções não pode participar da aprovação.” Esse novo papel do Ministério Público no licenciamento contara com o apoio do atual chefe do MPMG, Antônio Tonet. “O Ministério Público não perde o poder de acompanhar, de fiscalizar e adotar medidas cabíveis contra deliberações que não sejam consentâneas com a defesa do meio ambiente.”

A mudança na lei estadual de licenciamento não teve o apoio dos promotores da força-tarefa original. Eles fizeram a campanha Mar de Lama Nunca Mais e recolheram cerca de 60 mil assinaturas de apoio a um projeto de lei de iniciativa popular que estabelecesse normas mais rígidas para a autorização de funcionamento para barragens de mineração. Segundo levantamento do MPMG, Minas Gerais tinha 449 barragens de mineração, sendo 37 sem a estabilidade atestada. O projeto foi apresentado em julho de 2016 pela Associação Mineira do Ministério Público à Assembleia Legislativa de Minas.

Entre outros pontos, o PL 3.676/16 estabelecia a impossibilidade de avanço do licenciamento sem que tivessem sido cumpridas as exigências condicionantes da fase anterior; proibia as licenças ad referendum e a implantação de novas barragens em áreas de risco a vidas humanas. No começo de 2018, o projeto seguia sem apreciação dos deputados mineiros. Uma explicação para o engavetamento pode ser encontrada nas doações de campanha para políticos. A ONG Observatório Ambiental fez um levantamento — “A relação entre os políticos e as mineradoras” — sobre as doações de mineradoras e siderúrgicas às campanhas de políticos mineiros. A pesquisa junto aos números registrados no Tribunal Superior Eleitoral mostra que, dos 77 deputados estaduais mineiros, 59 (80%) receberam contribuições dessas empresas na campanha de 2014, quando o financiamento empresarial ainda era permitido, num total de R$ 5.095.750,83. Os dez maiores valores foram recebidos por: Paulo Guedes (PT), R$ 653.941,33 (27% dos gastos da sua campanha); Paulo Lamac (Rede), R$ 573.186,53 (40%); Thiago Cota (PMDB), R$ 413.276,22 (36%); Gustavo Corrêa (DEM), R$ 330.290,50 (15%); Thiago Ulisses (PV), R$ 248.247,00 (13%); Durval Angelo (PT), R$ 238.424,00 (23%); Gil Pereira (PP), R$ 220.766,00 (13%); João Bosco (PT do B), R$ 210.000,00 (25%); Wander Borges (PSB), R$ 164.663,00 (17%); Elismar Prado (sem partido), R$ 125.705,80 (37%).

A mesma pesquisa levantou as doações feitas, especificamente, por empresas do grupo Vale a candidatos nas eleições a cargos majoritários. A chapa Dilma Rousseff (PT)/Michel Temer (PMDB), vitoriosa na eleição presidencial de 2014, engordou o caixa de campanha com R$ 12 milhões. O candidato da oposição, Aécio Neves (PSDB), recebeu R$ 3 milhões via Comitê Financeiro Nacional para a Presidência da República. Antônio Anastasia (PSDB), R$ 1 milhão em sua campanha ao Senado. Ele presidiria a Comissão Temporária da Política Nacional de Segurança de Barragens, criada depois do desastre. Para o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), também eleito em 2014, a doação foi de R$ 3,1 milhões, via fundo partidário. E, para o governador do Espírito Santo, Paulo Hartung (PMDB), o montante foi de R$ 300 mil. As doações das empresas ligadas ao maior grupo minerador brasileiro tiveram caráter apartidário. A pesquisa encontrou doações para 21 partidos em todo o país. Os maiores beneficiados foram: PMDB, R$ 23 milhões; PT, R$ 19,3 milhões; PSDB, R$ 9,5 milhões; PSB, R$ 3,5 milhões; PP, R$ 3,4 milhões.

* * *

Quando entrevistei os promotores afastados, eles se mostraram bastante céticos a respeito da recuperação dos danos provocados pela lama. Achavam que havia o risco de prescrição dos crimes. “A recuperação vai virar um eterno gerúndio: ‘estamos fazendo’”, disse o promotor Mauro Ellovitch. “Uma coisa que me chateia é pensar que as empresas vão sair impunes e que o meio ambiente não será recuperado. A empresa vai voltar a operar, maquiar o dano e daqui a dez ou vinte anos as áreas atingidas a jusante vão virar barragens”, completou.

O delegado da Polícia Federal que investigou o caso e atuou em parceria com a força-tarefa, Roger Lima de Moura, tinha esperanças de que a magnitude do desastre mudasse a percepção da sociedade sobre os crimes ambientais. “A sociedade não percebe a violência do crime ambiental porque é uma violência difusa. Talvez o caso Samarco mude a visão sobre esse tipo de crime porque houve morte. O crime ambiental não é um crime menor”, falou.

Por ser um dos principais personagens do caso, fiz uma longa entrevista com o ex-coordenador da força-tarefa original, Carlos Eduardo Ferreira Pinto, em que refletiu sobre sua atuação e os desdobramentos do caso, e da qual destacarei os principais trechos.

Baseado em tudo que o senhor apurou em um ano de investigação, à frente da força-tarefa, o que provocou o rompimento da barragem de Fundão, do seu ponto de vista?

— Por tudo o que o MP de Minas apurou, e que depois foi confirmado pela Polícia Federal, Polícia Civil de Minas e também pela denúncia do MPF, a tragédia ocorreu devido a três pontos essenciais. O primeiro deles, o licenciamento ambiental, que é um instrumento de prevenção, para cuidar do meio ambiente e evitar tragédias, foi decisivo. O licenciamento foi feito a toque de caixa e com a condução voltada a atender os interesses empresariais. O licenciamento foi decisivo porque, naquele momento de implantação da barragem de Fundão, a Samarco tinha um compromisso externo econômico muito grande, precisava produzir de maneira muito agressiva e não tinha tempo hábil para isso porque não tinha um sistema de rejeito compatível com a necessidade de produção. Por conta dessa necessidade, a barragem de Fundão foi preestabelecida como única solução para a empresa continuar a produzir. Naquele momento, a chantagem que a empresa fez junto ao governo do estado era no sentido da necessidade de honrar seus compromissos e continuar produzindo. Há uma submissão do poder estatal, ou seja, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente fica refém de dois argumentos, que a gente mais à frente verifica que a Samarco utiliza para chantagear o poder público para retomar suas atividades, a mesma lógica.

A mesma lógica para retomar as operações depois de terem sido suspensas por causa do desastre?

— Sim. Para correr com o licenciamento da barragem de Fundão, ela utiliza duas chantagens com o poder público e, por consequência, com a sociedade. “Eu preciso daquela barragem, naquele tempo, daquela forma. Se eu não fizer isso, eu vou gerar desemprego e vou deixar de recolher impostos.” E o poder público se vê refém e busca autorizar essa atividade a todo custo. Mais à frente, a Samarco busca da mesma forma retomar as suas atividades. Por conhecer o licenciamento, a gente não tinha dúvida de que foram dadas licenças precipitadas, provisórias, sem atender aos requisitos legais de apresentação de estudos que eram fundamentais para que o Estado pudesse aferir se aquela atividade geraria ou não risco para a sociedade. Quando se coloca que aquela barragem vai ficar a 5, 6 quilômetros de Bento Rodrigues, isso não foi uma lógica do Estado em defesa da sociedade. Foi uma imposição da empresa como sendo a única solução viável e econômica para aquele local de barragem. Na verdade, não é. É que aquele local de Fundão era conveniente. Depois, a gente descobriu que existia um projeto de uma barragem gigantesca que aglutinaria todas as outras estruturas.

O projeto da barragem de Mirandinha?

— O projeto Mirandinha, que a Samarco tratava internamente como o futuro da sua atividade nos próximos trinta anos. Ela passava primeiro pela construção da barragem de Fundão. Por que que não se buscou o licenciamento de Mirandinha? Porque não dava tempo. Quando você fala em realocar uma comunidade, não é uma situação simples e convencional. O estudo para realocar já era desenvolvido porque Bento Rodrigues sempre foi um empecilho para o avanço da mineração. Não propriamente da extração mineral, mas das barragens, porque aquele vale era tido como perfeito como viabilidade locacional para aquele empreendimento. Ou você construiria Mirandinha e tiraria Bento Rodrigues ou você não construiria Mirandinha. Por isso que, depois, a lógica se fecha no sentido de que houve uma tragédia conveniente para a empresa. Em absoluto eu posso afirmar que a Samarco desejava que acontecesse aquilo ou que se utilizou daquilo para tirar Bento Rodrigues. Mas, já que Bento Rodrigues foi devastada, “por que vamos manter aquele local intacto se ele passa pelo futuro da nossa atividade?”. No futuro, aquele local vai ser uma grande barragem de rejeitos. O que nós defendíamos é que o local fosse preservado, como um memorial para as futuras gerações.

Quais são os outros motivos para o desastre?

— Ainda sobre o licenciamento, o mais grave é a falta do projeto executivo. Não se permite qualquer tipo de atividade sem projeto executivo. No órgão ambiental, até hoje, inexiste qualquer projeto executivo. Não apareceu, não existe. O que houve foi a apresentação de um projeto conceitual, que foi aprovado, licenciado, autorizado e que se passou um cheque em branco para a Samarco construir e operar uma barragem sem que o órgão tivesse ciência do projeto que originou aquela barragem. Isso é grave e ilegal.

Por que, na sua opinião, a empresa teve tanta facilidade no licenciamento? Qual o cenário institucional que permite essa facilidade?

— O cenário não se diferencia do da maioria dos empreendimentos instalados e operados no nosso estado de Minas Gerais, que é a lógica da prevalência da produção econômica em sobreposição ao meio ambiente. Ou seja, se permite e se busca um crescimento econômico sem controle e predatório. O futuro de Minas está comprometido porque os bens minerais são finitos, mas os impactos são imensuráveis. Essa tragédia deixa um recado muito claro para a sociedade. Quando uma atividade é exercida sem controle, de maneira ilegal e criminosa, os resultados, no caso de uma tragédia como essa, são muito maiores que os benefícios em tese prometidos por essa atividade. Não estou falando de mineração zero. Se trata de cumprir a Constituição, ou seja, compatibilizar crescimento com preservação. Isso é uma utopia que se colocou na Constituição, que cosmeticamente se vende, na medida em que você produz um licenciamento que a gente chama de simbólico. Ele dá a sensação para a sociedade de que a empresa está ali licenciada, mas, na verdade, essa empresa é uma voraz descumpridora das normas ambientais e está apenas em busca de crescimento econômico.

Num estado como Minas Gerais, onde a mineração tem um peso econômico tão grande, o que se faz com a utopia que está na Constituição?

— Essa pergunta me leva à grande decepção desse caso, que é a perda da grande oportunidade de se alterar esse marco legislativo de modo a exigir o controle. Para que se dê efetividade a esse comando constitucional, o licenciamento ambiental deve ser feito sob normas mais rígidas e o Estado tem que ter condições de exercer seu poder de polícia ambiental. A participação social também tem que ser efetiva. Hoje é quase inexistente. Dizer que, na audiência pública, se discute com a sociedade é uma falácia. A audiência pública é construída pelo órgão ambiental para passar informações limitadas, ouvir alguns pré-selecionados tidos como “cidadãos”, que vão ali legitimar a necessidade de se autorizar o empreendimento. Em mais de dez anos de atuação, eu nunca tive a ciência de um estudo de impacto ambiental apresentado pelos empreendedores que levasse ao indeferimento da licença. Todos os estudos de impacto ambiental, o famoso EIA/RIMA, são sempre favoráveis ao empreendimento. O sistema está falido e se criou um nicho empresarial de consultorias vinculadas às empresas, de modo a sistematizar as informações de maneira direcionada e voltada à aprovação do empreendimento. São estudos produzidos por empresas contratadas por valores estratosféricos, de maneira a construir soluções para a implantação do empreendimento.

O licenciamento é um faz de conta?

— É um faz de conta que só interessa à exploração predatória dos nossos recursos naturais. Isso revela que o mecanismo de aprovação de empreendimentos no Brasil é ineficaz e trará um grande passivo para as futuras gerações. Na maioria das vezes, os estudos são comprometidos e todos os questionamentos que surgem durante os debates são transformados em condicionantes ambientais, que transformam em condições para a operação aquelas informações que deveriam ser apresentadas antes da aprovação do empreendimento. As licenças, na verdade, são cheques em branco com condições, que o empreendedor reiteradamente descumpre porque o Estado não tem condições de fiscalizar. Voltando ao licenciamento original de Fundão, tem um trecho que diz que a probabilidade de dano ambiental era muito baixa e a potencialidade era catastrófica. É uma informação valiosíssima que foi desprezada pelos órgãos ambientais porque esses órgãos sequer exigiram que a empresa tivesse um plano de contingenciamento adequado.

Como é que o estudo de uma barragem situada a 6 quilômetros de um povoado que tem três séculos de existência diz que a probabilidade de dano é baixa?

— Porque considerava que a probabilidade de rompimento da barragem era tida como muito baixa no seu modelo conceitual, desde que ela fosse operada nos padrões de excelência. Mas a potencialidade, caso rompesse, seria catastrófica. Que foi o que aconteceu. No caso de Fundão, o licenciamento foi um instrumento de legitimidade de uma operação ilegal por parte da sua proprietária. Ele inverteu toda a sua lógica de um instrumento de defesa da sociedade, que é a essência do licenciamento e seu objetivo inato.

Que mais contribuiu para o desastre?

— O segundo ponto é a fiscalização omissa por parte dos órgãos ambientais. Esse é um ponto nevrálgico de tudo isso: o aparato do Estado que deveria funcionar como poder de polícia ambiental. Que poder é esse? É a capacidade dos órgãos ambientais de fiscalização, autuação, suspensão e paralisação da atividade. No caso de Fundão, não existia fiscalização. O poder de polícia ambiental do Estado era repassado gentilmente a um autocontrole da própria empresa, realizado pela empresa por meio de consultorias contratadas por ela, que tinham interesse em manter aquele vínculo. A fiscalização dos órgãos de comando e controle era zero, era cosmética.

O senhor está falando da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e do DNPM?

— Da Feam (Fundação Estadual do Meio Ambiente), que é da Semad, da Semad e do DNPM. Os três falharam. Todos os três têm responsabilidades concorrentes. Quando ocorreu, a Feam dizia: “Eu não tenho obrigação de fiscalizar.” E por parte do DNPM, também: “Não, não era minha obrigação.” Parece que a lei não impõe aos dois a fiscalização. O fato apurado é: a barragem era fiscalizada somente pela própria empresa.

O senhor está se referindo ao laudo de estabilidade, que a empresa tem que apresentar dizendo que está estável?

— Exatamente. A Samarco tinha que apresentar o laudo por meio de uma empresa contratada. Aquele laudo era alimentado na página da Feam por meio de um resumo e ficava por aquilo mesmo. Não existe por parte do estado de Minas ou da União uma fiscalização sistemática dos grandes empreendimentos. É como se o Estado falasse: “Como eu não tenho a estrutura compatível para fazer a fiscalização, repasso ao empreendedor, que é o responsável por garantir a sua operação.” Isso ocorreu em Fundão. É óbvio que a responsabilidade da operação dentro das normas legais é da empresa. Mas isso não desobriga o poder público de fiscalizar se a empresa está operando dentro das normas de segurança. Aí eu entro no terceiro eixo: a operação ilegal do empreendimento. Nós entendemos que o ponto central do rompimento foi o recuo feito na ombreira esquerda da barragem. O recuo é o reflexo da omissão no licenciamento e da inexistência de fiscalização. Como não tinha o projeto executivo, a empresa não tinha que seguir o projeto e ela operava da forma como queria. E não tinha fiscalização, então ela fez o recuo e continuou subindo a barragem, porque não podia parar a produção. O recuo foi feito para atender a uma complicação que teve na ombreira por conta de uma pilha de estéril que tinha ao lado. Fez-se um puxadinho na barragem e ela continuou a crescer e a ser operada de maneira negligente, imprudente e imperita, o que levou ao colapso daquela estrutura. Um recuo tecnicamente equivocado e que não teve o eficaz monitoramento. Barragem não combina com água. Para operar uma barragem de rejeito é preciso um controle absoluto da água que entra e da água que sai. Um monitoramento bom e eficaz é capaz de apontar anomalias para que você possa interceder e consertar a anomalia. No caso da Samarco, o sistema de piezômetros, que controlam a segurança da estrutura, estava comprometido porque a Carta de Risco e o Manual de Operação estavam desatualizados por causa da realização do recuo. Então, a operação trazia embutida uma grande bomba atômica. Por isso que eu digo que era uma tragédia anunciada, porque foram descumpridos vários dos fatores que garantem para a sociedade que empreendimentos podem ser operados dentro da legalidade.

A motivação desse desastre é econômica?

— Não é o caso de demonizar a atividade econômica. O que a gente sempre defendeu é a razoabilidade na utilização dos recursos ambientais. O rompimento é resultado da ineficácia e omissão nas políticas públicas ambientais. Enquanto isso não for tratado com a mesma importância que se dá à área econômica, outras tragédias poderão ocorrer. No final, se trata a vida humana como uma externalidade da atividade econômica. Na tragédia de Fundão, as vidas perdidas foram tratadas como externalidades da atividade minerária. Ou seja: “Para se fazer omelete, tem que quebrar ovos.” O que reina na área de mineração é que aquilo foi uma fatalidade e vamos voltar a operar porque as mortes são um risco inerente à atividade. O rompimento é fruto de todos esses fatores. Mas, na essência, prepondera que no Estado brasileiro se busca a operação de empreendimentos em busca de lucro incessante e desarrazoado em detrimento de controle e uso racional dos recursos ambientais. Essa é a regra.

Os representantes das empresas se queixaram da falta de diálogo com a força-tarefa. Como o senhor responderia a essa crítica, que foi feita por todos eles?

— Primeiro, é importante dizer o seguinte: desde as primeiras horas após o desastre, o presidente da empresa, Ricardo Vescovi, levantou a tese de que um tremor teria provocado o desastre, e isso já foi passado para a imprensa e foi fomentado. Nós fizemos um estudo técnico que descartou completamente qualquer influência dos tremores no rompimento. Foram identificados pequenos tremores que não derrubariam nem uma parede. Em nenhum momento o MPMG deixou de pautar sua conduta pelo diálogo e pela busca de soluções consensuais. A premissa de buscar o acordo para evitar brigas judiciais é correta, mas é limitada à observância da legalidade. O MPMG jamais faria qualquer acordo ilegal, de modo a fomentar somente a retomada da atividade da empresa. O diálogo é via de mão dupla, quando duas instituições ou pessoas buscam soluções que atendam ao bem comum. Nós não éramos titulares daquele direito. Era um direito difuso, que não era possível ser negociado, e nem que fosse feita qualquer concessão com ele. Esse caso tinha dificuldades operacionais embutidas. Uma grande dificuldade de diálogo foi o envolvimento de três empresas. Desde o começo se verificou que a Samarco estava respirando com a ajuda de aparelhos, ou seja, não tinha capacidade de tomada de decisão. Nas primeiras semanas, nós abrimos um diálogo e assinamos um termo preliminar de ajustamento de conduta no valor de R$ 1 bilhão. Com esse termo, garantimos dinheiro para as medidas emergenciais. Mas ele só foi possível porque a Vale e a BHP nem sequer tinham tomado pé da situação. O TAC foi assinado somente pela Samarco.

O que o senhor está dizendo é que, quando Vale e BHP entraram, mudou a relação? Em que sentido?

— Mudou completamente. Depois desse primeiro momento, foi possível verificar a gravidade e a extensão dos danos. Quando a gente assinou o TAC, a lama ainda não tinha chegado no Espírito Santo. Depois, a lama chegou até o oceano. Com isso, houve a definição de uma estratégia por parte da União e dos estados que levou à assinatura do TTAC. Então, toda a tragédia processual começa nesse sentido. A União e os dois estados, sem a presença do Ministério Público, entram com uma ação pedindo R$ 20 bilhões. Essa ação foi prematura porque ainda não havia a dimensão total dos danos. E foi, na verdade, para garantir juridicamente o espaço para se fazer o acordo futuro, o TTAC.

Como assim? Que estratégia foi essa?

— A União e os estados fizeram isso para garantir que eles não fossem tidos como polo passivo, para ter uma medida política. O governo Dilma estava se enfraquecendo, num processo de desgaste muito grande. Então, era necessário que o Estado desse uma resposta a tudo aquilo antes que virasse réu por parte do Ministério Público. Eles entram com essa ação de R$ 20 bilhões, mas, desde o primeiro momento, o objetivo final não eram os R$ 20 bilhões, paralisação da empresa ou qualquer medida jurídica efetiva. Entraram com a ação para fazer acordo, atendendo aos interesses das próprias empresas. Por que os interesses das empresas? Porque se partiu da premissa de buscar consenso para se construir um termo de compromisso que foi o epicentro de toda a tragédia processual.

Foi por isso que o MPMG não quis participar?

— Não somente por isso, mas pela forma como o acordo foi conduzido. Quando um acordo envolve o poder público, você pode negociar a forma, o conteúdo, mas não pode negociar o direito. Não se pode abrir mão de um direito que não é seu. Você é um representante da sociedade. E a forma de se discutir isso tem uma ordem que o MPMG sempre utilizou nos acordos firmados, que é: quem apresenta o acordo, as condições e a forma como ele vai ser feito é o Ministério Público. E a empresa vai, eventualmente, discutir o conteúdo. Mas a imposição é do Estado. Não se discute acordo, ainda mais com essa dimensão, com base em premissas de um contrato entre particulares. Nas reuniões que nós fomos, havia um ambiente de discussão negocial, como se você discutisse entre amigos para definir o valor de compra de uma casa ou de um empreendimento. Não havia a autoridade estatal impondo às empresas o que deveria ser feito para remediar e coibir aquela tragédia. Aquilo deveria ser imposto com prazos exíguos e multas factíveis de modo a cumprir as obrigações. E não foi isso o que houve. Houve um acordo com base em premissas de duvidosa legalidade. Quando um acordo exime as empresas da responsabilidade de executar as medidas que a lei impõe, na opinião do Ministério Público, esse acordo é eivado de sérias ilegalidades, na medida em que você terceiriza e até quarteiriza responsabilidades de recuperação e compensação dos danos. A lógica do acordo é: a responsabilidade das empresas é custear a implantação e operação da Renova. A Fundação Renova é que se obriga a construir o novo Bento Rodrigues, a indenizar os atingidos, a retirar a lama dos rios. E não se tem notícia de que isso esteja sendo feito. E a Renova assume os compromissos sem assumir porque ela nem sequer existia quando o TTAC foi assinado. Então, foram criados embaraços jurídicos para a execução do que foi acordado. Em caso de descumprimento, se tiver que executar, tem que executar primeiro a Renova, depois a Samarco, depois a Vale e a BHP. É um caminho jurídico extremamente longo e demorado, que traz uma grande violação constitucional, que é o afastamento do controle judicial.

Os defensores do acordo argumentaram que a lógica do TTAC era mesmo oposta à visão do MPMG, que, na ótica deles, queria fazer uma Operação Lava Jato na área ambiental a partir do desastre de Fundão. Vocês queriam fazer uma Lava Jato ambiental?

— A Operação Lava Jato sempre foi inspiradora para todos nós do MPMG. Se isso é uma crítica vindo de qualquer ente da União, dos estados ou das empresas, a gente recebe como um grande elogio. Mas é preciso limitar um pouco esse conceito. A Operação Lava Jato tem um aspecto muito mais amplo e diferente da nossa atuação. No nosso caso, houve um fato específico e você tem que criar uma estratégia que deve, necessariamente, retroagir. Sabendo das limitações jurídicas que nos foram impostas por conta do TTAC e de outros aspectos do caso, nós buscamos entender o que houve, trabalhar na identificação das causas para garantir à sociedade que aquilo não aconteceria de novo e fazer com que a operação da Samarco — se ela voltasse a operar — se desse com um novo marco regulatório da atividade minerária no nosso estado. Nossa estratégia era atuar de forma muito rigorosa para que a gente garantisse a recuperação e a compensação devidas no tempo preciso. E que o cenário posterior ao rompimento tivesse sustentabilidade ambiental e econômica, com uma atividade minerária que tenha como premissa a segurança da sociedade e a proteção ambiental em primeiro lugar. E, em segundo plano, a busca do lucro da atividade econômica. O TTAC, assinado pelas empresas, tem compromissos vagos e genéricos. É um protocolo de intenções. Não é um termo de compromisso que garanta a recuperação, não tem efetividade de cumprimento. Acordo não tem que ter um elemento negocial, como se se tratasse da venda de um carro. Por isso que o termo é de “ajustamento de conduta”. Ou seja, as empresas ajustam a sua conduta após um ato que originou danos ao meio ambiente de maneira a recuperar e compensar da forma como o estado, que é a autoridade competente, impõe. Eu pergunto: os moradores de Bento Rodrigues foram realocados? Foram indenizados? A lama foi retirada dos rios? Não. O TTAC foi um instrumento de conveniência econômica que serviu para apaziguar os mercados mundo afora de maneira a transformar uma tragédia humana, ambiental e econômica em um “acidente”, como se as empresas também fossem vítimas.

Vocês também foram muito criticados por um certo “vedetismo”, que seria, conforme dito pelos críticos, uma exposição muito grande na imprensa. Como o senhor responderia a isso?

— Houve uma decisão institucional de atuar perante a opinião pública. As informações passadas à sociedade eram tendenciosas e direcionadas a proteger as empresas. Era uma obrigação do MP externar a verdade dos fatos. Isso traz consequências. A nossa presença na imprensa e a legitimidade com que a gente falava traziam um incômodo muito grande. Eu desafio qualquer empresa a apontar qualquer equívoco técnico nas nossas declarações. Não tenho dúvida de que, se tivéssemos cometido algum equívoco, nós teríamos sido acionados pelas empresas. Nesses casos de repercussão, é obrigação dos promotores prestar contas à sociedade. É ela que paga o servidor do MP para defendê-la e não para defender interesses econômicos da empresa x ou y. É claro que abusos e excessos devem ser controlados. Mas nós ocupamos a imprensa de maneira estratégica, porque vimos as distorções que eram passadas.

Falando na relação dos promotores com a imprensa, o senhor foi investigado internamente por ter sugerido que o engenheiro Pimenta de Ávila desse uma entrevista. Como avaliaria a sua conduta nesse caso e o fato de ter levado a uma investigação sobre a sua atuação?

— É claro que a atuação é passível de críticas. Mas nunca houve por parte da nossa equipe a busca de promoção pessoal. A exposição exacerbada e midiática só traz malefícios para o promotor de Justiça. A vida privada é invadida e você passa a ser cobrado publicamente em todo lugar. Nós não buscamos voto. Somos promotores de Justiça por convicção. Tirando as empresas, que tinham por conta disso um grande constrangimento, há sempre uma medição da nossa atuação por conta de valores individuais, como se fôssemos pautados pelos valores das pessoas que nos criticaram. Depois de deixar a força-tarefa, eu pude perceber a retorção institucional e, por conta dos interesses que nós enfrentamos, uma retorção muito grande e desleal. Qualquer promotor está sujeito à correição e apuração de conduta. Mas, quando isso parte de denúncias anônimas e informações distorcidas, isso é muito sério. É um ponto que me deixou muito frustrado.

Frustrado com a instituição, o MPMG?

— Com a própria instituição. Se não bastasse a gente ter deixado o caso e a angústia de não ter conseguido alterar essa situação, ainda ter que responder por seus atos mais de um ano depois. Atos tomados dentro de uma força-tarefa com base em premissas de defesa da sociedade. Mas hoje eu entendo que são consequências da atuação. Com a tranquilidade de quem passou por isso, eu posso afirmar que essas investigações a meu respeito, sem fundamento e desleais, só serviram para engrandecer o trabalho que nós fizemos no MPMG. Todos os arquivamentos, pelos argumentos expostos pelos próprios investigadores, ressaltam que a nossa atuação foi digna da sociedade mineira e brasileira. É isso que a sociedade espera do Ministério Público: uma atuação rigorosa, imparcial e que não se curve a grandes interesses econômicos. Esse é o MP republicano, projetado na Constituição de 1988. As investigações acabaram trazendo legitimidade à nossa atuação.

Vocês foram substituídos na força-tarefa num momento de transição na cúpula do MPMG. De que forma isso influenciou a substituição, se é que influenciou?

— As mudanças na chefia da instituição são naturais e legítimas. São até necessárias para que a instituição mantenha a sua atuação democrática. Mas o equívoco, nesse ponto, é que as alterações serviram muito mais para atender interesses do governo e não interesses institucionais. Por conta da assinatura do TTAC e da nossa reação contrária, existia uma grande retorção por parte do estado de Minas Gerais. E aquilo foi internalizado para o MP. Então, o que me causou desconforto não foi a saída. Ninguém tem a exclusividade de qualquer função. Mas nós temos responsabilidades com a sociedade. O Ministério Público tem que ser preservado como instituição capaz de continuar autônoma e imparcial com relação aos demais poderes.

Um ponto muito controverso, após o rompimento da barragem, foi a construção do dique S-4, que alagou parte dos terrenos de moradores de Bento Rodrigues. Vocês se opuseram frontalmente ao dique. Por quê?

— Desde o começo, nós exigimos medidas de segurança por parte da empresa e eles apresentaram os diques: S1, S2 e S3, a jusante da barragem rompida, de forma a conter os rejeitos que ainda eram mantidos no rio, para que não fossem carreados e não chegassem à usina de Candonga, que era motivo de grande preocupação. Para o S4, a Samarco não tinha projeto, os dados eram imprecisos e não tinha efeito prático nenhum. No caso de uma chuva torrencial, o S4 poderia, inclusive, agravar a situação. A empresa começou a dizer que, se estávamos sendo contrários, nós estávamos colocando a sociedade em risco. Primeiro, quem colocou a sociedade em risco foi a Samarco. Foi ela a causadora do rompimento, e foi ela que não retirou a lama do rio [Gualaxo do Norte]. E não pretendia retirar desde o início. A Samarco sempre teve como estratégia a criação do fato consumado, como forma de dar legalidade a uma situação ilegal. Ela alegava que a lama estava consolidada e que, se fosse retirada, poderia causar mais dano ambiental. Só que aí reside um ponto decisivo. Qual é a experiência técnica que se tem no mundo de recuperação de uma bacia criminosamente afetada por um derramamento de lama em que a recuperação é feita em cima da própria lama? O S4 é consequência da lama mantida ali. Então, quem vai dizer se a obra é emergencial e se é necessária para garantir a segurança é o Estado. Essa discussão durou meses, até que o governo autorizou a construção do dique por decreto. Mais uma vez, o Estado estava mais preocupado em atender o interesse da empresa do que propriamente garantir a recuperação e a segurança da sociedade. O S4 vai ser utilizado para a implantação de uma grande barragem no futuro. Ele compromete a viabilidade de qualquer cidadão voltar a ter sua moradia ali e de se fazer um memorial em Bento Rodrigues. O S4 enterra Bento Rodrigues.

O processo criminal correria o risco de prescrição?

— É difícil falar, porque não acompanho o processo, mas a minha sensação é de impunidade. Não sei se pela prescrição, pela absolvição ou pela desclassificação de homicídio doloso para homicídio culposo. Na minha opinião, os diretores e presidentes deveriam estar presos, porque as condutas foram criminosas. Fato é que o desenrolar e a complexidade do caso levam a uma sensação de impunidade.

Vocês propuseram uma nova legislação de licenciamento ambiental, o projeto Mar de Lama Nunca Mais, que estava engavetado na Assembleia Legislativa mineira. Por que, na sua percepção, o projeto foi engavetado?

— O projeto Mar de Lama Nunca Mais foi inspirado pelo projeto das dez medidas contra a corrupção, do MPF, dentro da Operação Lava Jato. Nós entendemos que a tragédia poderia deixar um legado para as futuras gerações mineiras, que seria uma legislação que traga efetividade na fiscalização e controle desses empreendimentos. E fizemos esse projeto de lei de iniciativa popular, que teve maciça adesão. Eram necessárias 10 mil assinaturas, e nós tivemos mais de 60 mil. Isso mostra que a sociedade quer um controle maior dessas atividades. Não estamos usurpando o papel do Legislativo, mas provocando uma discussão. A mudança, porém, esbarra no sistema político brasileiro. A maior parte dos deputados foi financiada pelas empresas de mineração, e eles passam a ser agentes defensores dessa atividade. E, na verdade, o licenciamento foi flexibilizado. Até dá para entender que o licenciamento, muitas vezes, é burocrático, mas isso é por ausência de investimento e de política pública para os órgãos de licenciamento. Então, os órgãos perdem agilidade e se torna muito mais fácil mudar a legislação. Fato é que, do rompimento para cá, a legislação se tornou mais flexível e cada vez mais se exige menos dos empreendedores. Por consequência, se aumentou o risco para a sociedade. Nossos legisladores não entenderam a gravidade da situação.