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Laurie ficou surpreendida ao ver uma lata de cerveja na mão de Andrew Raleigh enquanto a maquilhadora lhe aplicava pó no rosto. Ela sabia que o homem gostava de beber, mas ainda eram só dez e meia da manhã e ele estava prestes a ser entrevistado para a televisão acerca do assassínio do seu irmão mais velho.

Talvez por ter detetado a expressão preocupada de Laurie, ele ergueu a lata na direção dela.

— É só esta, prometo. Desculpe, mas estar nesta casa causa-me arrepios. Quero dizer, o sofá já não é o mesmo, mas este continua a ser o sítio onde o meu irmão foi morto. Deito-me no sofá a ver um jogo e de repente vejo-o a correr pelo corredor, na direção do quarto onde tudo se passou. Parece que oiço os tiros.

— Lamento.

Era a única coisa que ela conseguia dizer.

— Uau, eu sei mesmo aligeirar o ambiente, hein? — Através do espelho, ele estabeleceu contacto visual com a maquilhadora e perguntou: — Que tal estou, querida? Uma verdadeira beleza?

Ela olhou uma última vez para o seu trabalho e retirou-lhe o toalhete do colarinho.

— Um autêntico Adónis — declarou.

Andrew piscou o olho.

— Acho que isso é o que costuma chamar-se sarcasmo.

— O general Raleigh está cá? — perguntou Laurie.

Estavam na casa há mais de uma hora e ela ainda não o tinha visto. Por outro lado, aquela casa devia ter pelo menos uns setecentos metros quadrados.

— Não. Um motorista trá-lo a ele e à Mary Jane da cidade. HEC, meio-dia e meia.

— HEC?

— Hora Exata de Chegada. Nada no horário do meu pai é estimado. — Andrew abanou a lata vazia. — Estou a ouvir a segunda a chamar por mim, a não ser que comecemos em breve. O seu homem está pronto para começar?

Ela virou-se e viu Ryan a prender o microfone, do lado de fora da cozinha.

— Tudo a postos.

Enquanto Ryan enveredava por uma conversa amena acerca das memórias que Andrew tinha do seu irmão Hunter, Laurie pensou no progresso notável que o seu novo apresentador tinha feito em apenas dois dias à frente das câmaras. Ele parecia completamente confortável, como um amigo a ter uma conversa comum numa sala de estar normal. Virou-se para Jerry, que estava ao seu lado.

— Que achas?

— Ele está a tornar-se bom — sussurrou ele. — Isso significa que já não o odiamos?

Ela sorriu.

— Um passo de cada vez.

Jerry encostou um dedo aos lábios. Ryan estava a chegar à parte importante. Lembrou aos espectadores que a teoria da acusação relativamente ao motivo era que o general Raleigh estava a pressionar Hunter a romper o noivado com Casey.

— Até que ponto é que o seu pai reprovava a Casey?

— Muito fortemente. Mas ele não estava a pressionar o Hunter a fazer nada que fosse contra a sua vontade. O meu pai tem uma certa postura, decorrente da sua formação militar, mas, no fundo, é um pai que ama os seus filhos e ele estava com medo que o Hunter estivesse a cometer um grande erro. Ele manifestou-se, na esperança de que o Hunter visse a luz.

— Que ele visse a luz em relação à Casey?

— Sim. E ele tinha razão para andar preocupado. Ela era muito temperamental. Impetuosa, se preferir.

«Impetuosa» não parecia ser o tipo de palavra que Andrew escolhesse. Toda a sua narrativa parecia ensaiada e denotava uma mudança de tom significativa em relação à entrevista que Laurie lhe tinha feito na casa do pai na cidade. Não mostrava qualquer ressentimento em relação à mão pesada do pai sobre as vidas dos filhos. Assim como já não parecia minimamente divertido com a determinação de Casey em abanar as convenções da família.

— Ela conseguia ser muito corrosiva, tinha sempre uma opinião acerca de tudo. E se o Hunter sugerisse que o comportamento dela era incorreto, ela dizia coisas do género: «Às vezes és tão rígido como o teu pai.»

Laurie escondeu um sorriso. Conseguia imaginar-se a dizer uma coisa assim, se a circunstância o exigisse.

— E era extremamente ciumenta. Sabia bem que havia outras mulheres interessadas no Hunter, já para não falar de, antes dela, ele ter tido um relacionamento sério com uma socialite muito diferente dela.

Andrew prosseguiu no seu monólogo dedicado a apontar todas as falhas de Casey. Estava na quarta história a propósito de Casey falar de forma inapropriada em «companhia adequada» — desta feita para se referir à gala que se realizara na noite em que Hunter tinha sido morto.

— Estávamos todos preocupados que ela pudesse ter bebido demasiado vinho.

Ryan interrompeu.

— Sejamos justos, Andrew. Não é invulgar que as pessoas se excedam um pouco neste tipo de situações, pois não? Na verdade, não foi você que também atacou o bar em força na noite da gala?

Andrew riu-se, como se ouvisse uma piada que poucos conheciam.

— Infelizmente, é capaz de ser verdade.

— Lembra-se de ter encontrado a Gabrielle Lawson? Ela disse que você estava com um humor sombrio naquela noite e que se referiu à interferência do seu pai no relacionamento do Hunter. Na verdade, ela mencionou que você lhe disse que o seu pai nada teria contra a Casey se fosse consigo que ela se iria casar. Ela só não era suficientemente boa para o Hunter. Ela diz que você terá dito que, se o seu pai não tivesse cuidado, você, e passo a citar, seria o único filho que lhe ia restar.

O rosto de Andrew transtornou-se.

— Eu estava de ressaca quando soube que o meu irmão tinha morrido e essa foi a primeira memória que me assaltou. Fico envergonhado de cada vez que penso naquela noite. Foi uma terrível escolha de palavras. É óbvio que eu não fazia ideia que íamos perder o Hunter dali a algumas horas.

— Então o que estava a querer dizer?

— Não estava a querer dizer nada. Como a Gabrielle aparentemente lhe disse, eu estava bêbedo.

— A sério? Porque visto dentro do contexto, parece que estava a dizer que o seu pai podia perder a relação com o Hunter. Dá a ideia de que você sabia que o seu pai estava a pressionar o Hunter para escolher entre ele e a Casey, e que acreditava que ele iria escolher a Casey.

— Talvez, não sei. Foi há muito tempo.

Ryan olhou rapidamente para Laurie. Ela anuiu. Os espectadores iam perceber o argumento. Andrew acreditava que Hunter ia desobedecer ao pai, o que punha em questão o motivo de Casey para matar. Estava na hora de Ryan prosseguir.

— Vamos voltar ao assunto do trabalho do seu irmão na fundação. Todas as informações que temos levam-nos a crer que ele se entregava a ela de corpo e alma. Passaram quinze anos desde aquela noite. Como tem a fundação passado sem o Hunter?

— Bastante bem, acho eu. Tivemos um evento com beneméritos a noite passada, no Cipriani. Sempre que nos reunimos lá, fazemos um momento de silêncio em homenagem à minha mãe e ao meu irmão.

— Tomou o lugar do seu irmão na fundação?

Andrew deu uma gargalhada.

— Ninguém podia tomar o lugar do Hunter em domínio nenhum da vida dele. Eu colaboro com o pessoal no leilão anónimo da gala anual, falo com a imprensa uma vez ou outra, mas não. Decididamente, eu não estou envolvido da mesma maneira que o Hunter estava, mas, graças às bases que ele lançou, a fundação consegue funcionar quase plenamente só com os seus funcionários.

— Mas esse pessoal já não inclui o Mark Templeton, o vosso antigo diretor financeiro, pois não?

A expressão de Andrew permaneceu inalterada, mas a mudança na sua linguagem corporal foi indesmentível. Ele começou a mexer-se desconfortavelmente no sofá e cruzou os braços.

— O Mark era um amigo muito próximo do seu irmão, não era? Ele teria sido o sucessor natural dele na fundação. Mas, em vez disso, poucos anos depois de o seu irmão ter sido morto, ele demitiu-se. Houve problemas?

— Não.

Ryan ficou em silêncio, à espera de mais explicações, mas Andrew permaneceu calado.

— Manteve o contacto com ele? — perguntou Ryan.

Andrew sorriu educadamente, mas o seu carisma habitual tinha desaparecido.

— Ele era mais amigo do Hunter do que meu.

— E o seu pai? Ele mantém uma boa relação com o Mark Templeton?

— Porque é que me está a fazer tantas perguntas acerca do Mark? — Quando Andrew começou a puxar o microfone que tinha preso ao colarinho da camisa, Ryan mudou de assunto sem fazer qualquer esforço, começando a falar das memórias preferidas que ele tinha do irmão.

«Bom trabalho», pensou Laurie. «Nós não íamos conseguir mais informações da parte dele, mas tu mantiveste-o sentado.» Ryan estava a começar a sentir-se à vontade.

Quando a entrevista terminou, Ryan perguntou imediatamente a Andrew se ele podia fazer uma visita guiada pela propriedade a Jerry e à equipa de filmagens.

— Queremos que os espectadores vejam aquela que o seu irmão considerava a sua casa.

Quando Andrew e Jerry saíram pela porta das traseiras, era meio-dia e dezassete. A HEC do general Raleigh, como o filho dele lhe chamara, era dali a treze minutos. Tal como eles tinham previsto, a visita pela propriedade devia manter Andrew ocupado e impedi-lo de avisar o pai de que eles lhe tinham feito perguntas acerca de Mark Templeton.

Mas ao meio-dia e trinta seguiu-se o meio-dia e quarenta e, depois, cinquenta. O telemóvel de Laurie tocou era quase uma hora.

— Fala Laurie.

— Senhora Moran, daqui fala a Mary Jane Finder, da parte do general Raleigh. Lamento, mas o general não vai conseguir ir ao Connecticut hoje.

— Pensámos que já tivessem saído da cidade. Nós já estamos a filmar.

— Eu compreendo. Receio que tenhamos perdido a noção do tempo. Mas o Andrew está aí. Ele pode ajudar-vos em tudo o que precisarem no que diz respeito ao acesso à casa.

— Nós precisamos de mais do que acesso à propriedade. A senhora e o general concordaram em contar-nos tudo aquilo que sabiam em relação à noite em que o Hunter foi morto.

— Francamente, senhora Moran, as provas falam por si, não é verdade? Não me pediu a minha opinião, mas eu acho que a menina Carter já deu prejuízo que chegue à família Raleigh para ainda os fazer perder tempo com este programa de reality television fútil. — Ela acentuou as palavras reality television como se fossem sujas.

— Fiquei com a impressão de que o general Raleigh ainda tem a forte convicção de que a Casey Carter é culpada. Achámos que assim ele teria a oportunidade de expressar essa convicção. Ontem arranjou uma desculpa para não filmar connosco. Convenceu o seu patrão a deixar-nos pendurados hoje?

— A senhora está a subestimar o general Raleigh se acha que alguém o influencia. Por favor, senhora Moran. Eu tenho a certeza de que o seu programa apela ao drama, mas não há aqui nenhuma conspiração. Ele tem prazos apertados para concluir as suas memórias, que, com o devido respeito, são uma melhor ocupação para o seu pensamento do que o seu programa. Pode fazer aquilo que entender com a sua produção, mas o general Raleigh não conseguirá participar nos próximos dias.

— E a senhora? Também foi testemunha dos acontecimentos daquela noite.

— Vou estar ocupada a ajudar o general com o livro dele.

— Por falar no livro do general, ele vai entregá-lo à Holly Bloom da Arden Publishing, certo? Nós vamos referir o papel que ela teve na publicação do livro escandaloso do Jason Gardner, já para não falar da ajuda que ela deu ao garantir um emprego para o anterior diretor financeiro da Fundação Raleigh, Mark Templeton. O general sabe que nós vamos falar destas ligações, senhora Finder?

— Tenha uma boa tarde.

Mary Jane ignorou a pergunta de Laurie. A resposta já era óbvia. É claro que o general Raleigh estava a par da informação que eles iam referir. Era precisamente por isso que Laurie estava a olhar para uma cadeira vazia na sala de estar.