54
Na manhã seguinte, Casey tinha na sua mão uma cópia do mesmo documento. Segurava os cantos da folha com tanta força que Laurie viu os nós dos dedos dela ficarem brancos.
Estavam a filmar num cenário do estúdio. Não era de surpreender que a família Raleigh se tivesse recusado a deixar Casey entrar na casa de campo. E o Cipriani também tinha mostrado relutância em abrir-lhe as portas. Ela era uma mulher sem raízes.
Hoje, isso funcionava a favor de Laurie. Ela não queria que Casey estivesse demasiado à vontade. Na verdade, Laurie cancelara as entrevistas dessa manhã com Angela e com Paula e pedira a Casey que viesse até ao estúdio sozinha, uma vez que a mãe e a prima dela não «apoiavam completamente» a sua decisão de participar no programa.
Agora que o interrogatório estava em curso, Casey tentava manter a calma, mas a folha começava a tremer-lhe nas mãos. Ela pousou o papel na mesa, como se estivesse a queimá-la.
— Parece ser um relatório da polícia — disse, respondendo finalmente à pergunta de Ryan.
— Já o tinha visto antes? Ele não se encontrava entre os muitos documentos que forneceu ao estúdio quando nós acedemos a investigar o seu caso.
— Não estou certa. Não sou advogada, senhor Nichols.
— Pois não, mas teve quinze anos para preparar a sua defesa. Dedicou-se a provar que tinha sido injustamente condenada e basicamente fez disso o seu trabalho a tempo inteiro enquanto esteve na prisão.
— Dei-vos tudo o que tinha. Talvez a minha advogada não me tenha dado os relatórios todos; ou se calhar fui reduzindo os documentos ao longo dos anos, para me focar nas partes mais importantes.
Laurie não estava a ir naquela conversa. Na noite anterior, ela e Ryan tinham comparado os relatórios da advogada de defesa com os que Casey lhes tinha dado. Era evidente que Casey tinha editado o processo de forma seletiva, para dar a ideia de que Janice Marwood não tinha lutado em defesa dela. Ela também tinha eliminado aquela folha do inventário da polícia.
Ryan pegou no papel e entregou-o novamente a Casey.
— Pode ler o segundo item da lista, por favor?
— Diz «balde do lixo da rua».
— E a seguir há vários itens sob esse título, certo? Leia, por favor, o sexto.
Casey abriu a boca para responder, mas não foi capaz. Fingiu contar os itens, como se não fizesse ideia de que objeto se tratava.
— Refere-se a este? Diz «Saco de plástico com lixo. Conteúdo: estilhaços de cristal partido.»
Precisamente no que a moldura desaparecida se teria transformado se tivesse sido partida.
O primeiro telefonema de Laurie na noite anterior tinha sido para Elaine Jenson, a governanta de Hunter. Tinha-lhe perguntado se ela se lembrava de ter apanhado pedaços de cristal partido quando fizera a limpeza da casa de campo naquele dia. Ela não o tinha feito. Nas raras ocasiões em que partia alguma coisa quando estava a limpar, Elaine punha sempre de parte os pedaços, para o caso de o proprietário da casa querer reparar ou substituir o objeto partido. Ela também era cuidadosa com a reciclagem do vidro. Segundo Elaine, se houvesse um saco de lixo com vidro ou cristal partido, ele teria sido levado para o contentor por Hunter ou por Casey.
A sua segunda chamada tinha sido para o tenente McIntosh, da polícia estadual do Connecticut. Ele deu uma gargalhada quando ela lhe perguntou pelo saco do lixo.
— Deu por isso, hein?
— O senhor sabia? — perguntou ela.
— Não tinha a certeza, até me ter perguntado pela fotografia desaparecida. Quando encontrámos aquele saco no contentor, perguntámo-nos se alguma coisa teria sido atirada numa discussão ou partida durante uma luta. Mas a acusação disse que era demasiado especulativo para ser apresentado em tribunal. E mais tarde a senhora apareceu no meu gabinete a dizer-me que a moldura de cristal preferida dele tinha desaparecido da casa. Atrevo-me a apostar que foi aquilo que nós encontrámos no lixo; que a recordação preferida dele se tenha partido nalguma espécie de acesso de mau feitio.
— Porque não me disse isso quando lhe falei da moldura desaparecida?
— Porque, quando o seu programa fosse para o ar, eu ia usar isso para deixar a Casey sem hipóteses de defesa. Afinal, não a posso ajudar muito. Tal como lhe disse, nós apanhámos a pessoa certa. Diga-se, em abono da verdade, que eu lhe dei uma pista. Disse-lhe que a moldura podia ter-se partido. Foi uma cortesia profissional para com o seu pai. E agora a senhora chegou lá.
— Ainda têm o conteúdo desse saco? Podemos provar que se tratava de uma moldura?
— Não. Nós só guardamos as coisas grandes e más como o ADN, mas um saco de lixo que não chegou a ser usado como prova? Desapareceu há muito. Pensámos que se tratasse de uma jarra ou coisa assim, mas nunca tentámos reconstruí-la. Na altura não nos pareceu importante.
Agora era. Laurie lembrou-se da primeira reação de Grace quando soubera que a fotografia tinha desaparecido. «Provavelmente ela atirou-a contra ele quando estavam a discutir, depois apanhou os estilhaços e enterrou a fotografia no bosque antes de ligar para o cento e doze.» Ryan tinha chegado à mesma conclusão: «Tanto quanto sabemos, a moldura partiu-se na sequência de uma discussão e a Casey conseguiu apanhar os pedaços antes de chamar a polícia.»
Só podia ser por causa disso que Casey lhe tinha telefonado há duas noites, a tentar convencê-la a não falar da moldura desaparecida no programa. Casey tinha medo que a polícia estabelecesse a relação.
Laurie olhara Casey nos olhos e acreditara que ela estava inocente. Como podia ter-se enganado tanto?
Ryan tinha previsto que Casey sairia disparada do estúdio quando fosse confrontada com o registo das provas, mas ela não se mexeu no lugar, nem quando ele continuou a atacá-la.
— Não é verdade que esse saco continha os vestígios da moldura que partiu, no meio de uma discussão violenta com o Hunter? A fotografia de que ele tanto gostava? Ou ela partiu-se enquanto o perseguia até ao quarto e disparava contra ele?
— Não. Não era a moldura.
— Na verdade, não telefonou à nossa produtora há dois dias, a pedir-lhe que não mencionasse a moldura?
— Isso foi por um motivo completamente diferente. Foi por uma questão de estratégia. O senhor está a distorcer tudo!
Casey estava praticamente aos gritos quando acabou de responder e bateu com o punho cerrado na mesa, para enfatizar o que estava a dizer.
Laurie sentiu-se estremecer, mas Ryan permaneceu completamente calmo.
— Então, clarifique, Casey. Foi o seu último dia com o Hunter. Deve tê-lo revisto na sua cabeça milhares de vezes. Diga-nos o que se partiu naquele dia. Do que eram os estilhaços que a polícia encontrou no contentor do lixo atrás da casa?
— Era uma jarra.
— E como se partiu?
— As coisas partem-se. Acontece.
— Deixe-me ser honesto, Casey. Se fosse minha cliente e me desse uma resposta dessas, eu não a poria a depor, porque qualquer júri perceberia que não estava a dizer a verdade. Lembra-se de mais coisas do que aquilo que está a dizer.
— Muito bem. Fui eu que a parti. Eu vi a fotografia dele com a Gabrielle Lawson na coluna «Falatório». Fiquei tão furiosa que atirei o jornal para cima da bancada e derrubei a jarra. Fiquei tão envergonhada! Apanhei os vestígios e levei tudo para o lixo, na esperança de que o Hunter não reparasse.
— Porque ficou envergonhada?
— Porque, por muito que me esforçasse, eu não conseguia controlar os ciúmes. Não acredito que duvidei da dedicação que ele me votava, nem que fosse por um segundo.
— Não foi a única ocasião em que teve ciúmes, pois não? Ouvimos algumas pessoas dizerem que muitas vezes se manifestava publicamente quando achava que o Hunter se mostrava demasiado íntimo de outras mulheres.
— Nem sempre era fácil estar ao lado de um homem tão adorado. Ele era um herói. A família dele era praticamente da realeza. Em comparação, eu era uma plebeia pouco sofisticada que tinha aberto caminho para aquele mundo. Não ajudava que ele tivesse namorado anteriormente com uma socialite, ou seja, com alguém que era precisamente o oposto de mim. Quando eu o via ser fotografado com esse tipo de mulheres, não eram apenas ciúmes que sentia. Eu ficava mesmo magoada. Mas o Hunter encarava tudo isso como fazendo parte da cena social.
— E como é que a Casey via isso?
— Como uma questão de respeito.
Laurie sentiu Jerry e Grace de olhos cravados nela, querendo urgentemente falar-lhe do que estava a passar-se à frente deles. Até à data, Casey sempre descrevera a sua relação com Hunter como o conto de fadas perfeito. Agora eles estavam a ver um lado diferente da história.
Laurie abanou a cabeça subtilmente, indicando que deviam manter-se inexpressivos.
— O Hunter não a respeitava? — perguntou Ryan, num tom compassivo. A sua postura altiva e sarcástica estava sob controlo. O seu tom de voz era perfeito.
— Respeitava, mas… ele não percebia. Ele nasceu para ser a pessoa mais importante da sala. Nunca ninguém o julgava. Ele não sabia como era ser-se como eu. Como era ter todas aquelas mulheres a avaliarem-me, a perguntarem-se como é que eu tinha tido a sorte de ter sido escolhida por ele.
— Parece que esse assunto vinha à baila repetidamente. É justo dizer-se que vocês discutiam por causa disso?
— Claro. Mas não da maneira que foi apresentada no meu julgamento. Tínhamos discussões como qualquer casal normal. Ele estava a aprender a ser menos sedutor. E eu estava menos ciumenta, à medida que me sentia mais confiante no nosso relacionamento. E foi por isso que fiquei tão desapontada comigo mesma quando reagi de forma exagerada à fotografia da Gabrielle com ele.
— Então, porque não nos contou isso? — perguntou Ryan. — Porque eliminou esta página do inventário da polícia dos documentos que nos entregou? E porque deu a entender que a sua advogada não tinha feito nada em sua defesa?
— Eu não queria que achassem que era culpada.
O silêncio que se seguiu dizia tudo. Os olhos de Casey procuravam desesperadamente uma reação em Ryan e a seguir dirigiram-se a Laurie, do outro lado da câmara.
— Ainda acredita em mim, não acredita?
O rosto de Laurie deve ter respondido à pergunta dela, porque Casey começou imediatamente a chorar.
— Eu lamento — disse, em soluços. — Lamento tanto!
As portas do elevador tinham acabado de se fechar quando todos eles soltaram um suspiro coletivo. Não podiam ter pedido muito mais.
— Eu sabia que tinha sido ela — disse Grace, erguendo o punho em triunfo.
— Esta vai ser a melhor cena que já emitimos — declarou Jerry. — É pena ela já ter cumprido a pena. Dava vontade de ver a polícia a aparecer e a levá-la.
Ryan esperou que Jerry e Grace tivessem regressado aos seus gabinetes para dar o seu veredito. Debruçou-se e disse secamente:
— Se eu fosse um homem menos nobre, sentir-me-ia tentado a dizer: eu avisei-a.
— Ainda bem que é modesto — disse Laurie. — E ainda bem que eu tenho autoconfiança suficiente para poder admitir que errei. Tinha razão. A Casey é culpada.
Quando ficou sozinha, Laurie telefonou a Alex. Quando ouviu a gravação dele, apercebeu-se das saudades que sentia da sua voz.
— Alex, é a Laurie. Podemos falar, por favor? Podes dizer ao Mark Templeton que não o incomodamos mais. Lamento que as coisas se tenham descontrolado ontem. — Tentou encontrar as palavras certas. — Vamos conversar. Por favor, liga-me quando tiveres oportunidade.
Ao longo do resto da tarde, ficou a olhar para o ecrã, à espera de que o telefone tocasse.